Caminho de Luz e Sombra (Texto 24/FIM DA OBRA)

      No dia seguinte, continuava para este aluno a viver-se o tempo de maior tormento, pois julgara que a sua análise filosófica não fora suficientemente aceitável, quiçá pela incompletude, como dissera o professor, ou até por algo de errado que não descortinara durante a exposição. Voltara para casa, comera muito pouco, pegara nos livros e apontamentos e só parara de rever as matérias quando a mulher o chamara por já ser muito tarde para se deitar e o achar já muito exausto.

     Na tarde do dia seguinte, apresentaram-se a exame apenas dois alunos, os restantes faltaram (sabe-se lá porquê!). O professor mandou-os sentar e com alguma cortesia perguntou quem queria começar primeiro. Como no dia anterior o professor dissera que seria conveniente desenvolver alguns aspetos filosóficos que teriam faltado na exposição sobre a ideia e a existência de Deus, em conformidade às ideias claras e distintas, resolvera este já sofrido aluno propor-se como primeiro a falar, na tentativa de melhorar a resposta dada no dia anterior.

     – Sr. Professor, gostaria de começar a desenvolver um pouco mais a questão colocada na tarde de ontem sobre as ideias claras e distintas, julgo poder melhorar alguns aspetos que evoquei – dissera o aluno olhando-o com veemência e humildade.

     – Muito bem, estamos de acordo, pode começar a sua exposição! – exclamou o professor com a voz ainda mais doutoral.

     Sem mais demora, António começara citando Descartes:

     – “É claro e distinto o que se impõe imediatamente e por si só ao espírito. E tendo notado que nada há no ‘eu penso, logo existo’ que garanta que digo a verdade, a não ser que vejo claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.”

      Dito isto, olhou de forma expectante para o professor e sintetizou com o seguinte:

     – Refletindo nestas afirmações, poder-se-á dizer-se que a evidência cartesiana é puramente intelectual e o ato da razão ou do espírito que apreende diretamente a verdade será a Intuição. Sendo assim, também se poderá concluir que Descartes chega às ideias claras e distintas através da Razão e pela via da Intuição.

     E depois, para reforçar, volta a citar Descartes:

   – “Chamo claro o conhecimento que está presente e manifesto a um espírito atento; distinto, o conhecimento que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros, que só compreende em si o que aparece manifestamente àquele que o considera como se deve”; “tudo o que eu concebo claramente e distintamente sobre o que quer que seja é verdadeiro, e pode ser tido como tal”.

     Terminada esta observação, não lhe ocorrera mais nada sobre a questão, pelo que ficou em silêncio à espera do que diria o professor, julgando ter melhorado as respostas anteriores. E, embora não recebesse um não de modo direto, também não recebeu um sim sem reservas, pois, antes de passar para o aluno que faltava examinar, exaltara alguns aspetos positivos da exposição que ouvira, sem deixar de dizer que a mesma não tinha sido suficiente para a compreensão da questão.

     Entretanto, passara ao aluno seguinte, propondo-lhe que falasse da moral cartesiana, o qual começou de imediato a expor as quatro regras da moral provisória de Descartes:

     – Primeira ([i]): “obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância e conduzindo-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero que fossem geralmente aceites ou postas em prática pelos mais sensatos com quem teria de viver”;

     Segunda: “ser o mais firme e mais resoluto que pudesse nas minhas ações e, uma vez que me tivesse decidido, não seguir menos firmemente do que as seguiria, se fossem muito seguras, as opiniões mais duvidosas. Nisto estou a imitar os viajantes que, perdidos em alguma floresta, não devem errar andando de um lado para o outro e menos ainda parar, mas sim andar sempre o mais direito possível numa mesma direção, e não a modificar, por frouxas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha: porque, dessa maneira, se não chegam exatamente aonde desejam, pelo menos chegarão finalmente a algum lado, onde verosimilmente estarão melhor que no meio da floresta”;

     Terceira: “procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível”;

     Quarta: “para conclusão dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem nada dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era prosseguir naquela em que, de momento, me encontram, isto é, empregar toda a vida a cultivar a razão e a avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto”.

     Analisadas estas máximas e a reflexão que desenvolvera o aluno, o professor limitara-se a dar por concluído o exame e a propor-lhe uma classificação positiva; no entanto, ao António voltara a repetir que seria necessário aprimorar a questão por ele desenvolvida, pelo que deveria continuar o exame na tarde seguinte.

      Ao ouvir estas palavras, António apressara-se a sair da faculdade, embora o passo marcasse um andar doentio e a vontade estivesse toldada de tristeza e alguma vergonha.

     Quando entrou em casa não dissera nada que lamentasse a situação, apenas que teria de continuar a estudar, pois não sabia o que faltava para o professor decidir. Pouco comera e pouco dormira para estudar outros conteúdos que melhorassem a sua exposição, já que precisava de passar sem repetição de exame, uma vez que trabalhava e estudava e o esforço necessário era imenso.

     No dia seguinte, com as forças muito diminuídas e num sentimento psicológico muito baixo, cumprimentara o professor, fizera uma breve exposição e, sem esperar que ele lhe voltasse a dizer para continuar, pediu desculpa e dissera-lhe que já não podia mais, preferia desistir e até reprovar, pois já não tinha forças para prosseguir. O Professor olhara-o com um sorriso de alegria, dizendo-lhe, comprometido:

     – Oh! homem, já podia ter dito, ficamos então por aqui! – exclamou o professor propondo-lhe uma classificação positiva e perguntando-lhe se estaria bem assim.

     Ficara atordoado com o que ouvira, ficara tão desnorteado com a alegria de ter passado que, emocionado e com lágrimas nos olhos, saíra do gabinete a correr e a gritar de satisfação:

     – Passei, passei! – exclamara vezes sem conta e sem sentir por quem passava, enquanto corria para fora da faculdade.

     Contudo, sem guardar qualquer mágoa, nem saber o porquê desta longa prova, continua a lembrar que este caso foi determinante no fortalecimento psicológico para os obstáculos que se seguiram, mas que se arrependera bastante de não ter pedido uma classificação melhor.

     Depois de todos estes acontecimentos licenciara-se na Universidade do Porto, tendo entrado para o serviço público no âmbito administrativo e mais tarde para a educação, onde continuara a realizar os seus sonhos e a receber mais força para poder continuar a servir e a amar.

     Proclama, com esplendor, ser um aprendiz do que for melhor no conhecimento para ser feliz e viver com os outros; aliás, esta viria a ser uma das máximas que aprendera ainda bastante jovem e que continuaria a seguir com todas as suas forças para poder vislumbrar melhor o caminho da perfeição possível e sempre mais semelhante com a Idealidade permanente.

     Com um olhar manso e livre, fizera algum silêncio; e como se adivinhasse que aquela aula chegava ao fim, e a campainha da escola tocasse num instante para saírem, para ele como um sinal amigo de quem se despediria também naquela hora com um “até sempre”. Para os alunos, para o retemperar de forças pelo convívio do recreio e, quem sabe, para mais alguma conversa sobre o caso, certamente com palavras de estima e admiração, que o espaço guardará para recolher na memória como recordação quando houver merecimento.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 113 a 118


[i]. Descartes (2008). Discurso do Método – Meditações Metafísicas, Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.

 [1]. Tocqueville, Alexis de. Da Democracia na América. Coleção Os Grandes Filósofos- Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit –desta edição de Da Democracia na América: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora,Lda – Livro I – 2008 - págs. 5 e 6.

[1]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, Descartes e o Racionalismo, Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.

 [1]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método – As Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.

[1]. Descartes (2008). Discurso do Método – Meditações Metafísicas, Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.