Caminho de Luz e Sombra (Texto 15)

     Entretanto, aconteceram alguns factos no quotidiano que vieram trazer um pouco mais de alento e ajudar na mudança deste ambiente tão pesado. O Licínio regressara do serviço militar e retomara o trabalho como encarregado numa fábrica de calçado na freguesia de Oliveira do Douro, concelho de Vila Nova de Gaia, podendo retirar do seu salário uma importância razoável para ajudar nas despesas da família. O Toninho terminara a instrução primária, embora andar na rua sem fazer nada tornar-se-ia numa grande aflição pelos perigos que espreitavam nas suas brincadeiras de criança. O que vale é que esta situação não se prolongaria por muito tempo, pois no princípio do ano de 1962 a mãe decidira pôr-lhe termo e metera os pés ao caminho para ir à fábrica onde trabalhava o seu filho Licínio pedir trabalho para o filho António.

     O patrão chamava-se Elias e recebera-a com uma grande alegria, não só por o Licínio ser um dos seus empregados preferidos, mas também por ter apreciado no António a sua inteligência nas respostas e a sua alegria na comunicação.

Elias não tinha filhos e é de crer que tivesse sentido um murmúrio na alma provocando-lhe um sentimento paterno.

     – O Rapaz fica já aqui! – respondera. – Vai almoçar à Luzia e será por minha conta! Deixe-o ficar, que eu vou fazer dele um grande homem!

     Com esta bondade expressiva terminara a aflição de Maria, que não queria ver o filho perdido pelos campos nem pelo rio, pois já não era a primeira vez que faltava à hora do almoço e a fazia percorrer longas distâncias à sua procura, estando tantas vezes o rio cheio e com correntes de meter medo.

     Começara como aprendiz de sapateiro, mas rapidamente fora colocado na experiência de trabalhos nas máquinas que transformavam os artefactos para o calçado. Aprendia com tanta facilidade que a estima dos operários se transformara em pressão sobre o irmão Licínio, para que este o colocasse junto de si para executar tarefas que permitissem que mais tarde viesse a ser um profissional especializado no setor da produção.

     Saía de casa todas as manhãs por volta das 7h00, carregando nas mãos uma lancheira com o almoço que a mãe fazia, enquanto ele se vestia e arranjava, para ainda estar fresco ao meio-dia para almoçar. Ganhar um pequeno salário e ser estimado por todos era como um prémio que lhe dava forças para caminhar, muitas vezes, com os pés encharcados de água ou com as mãos geladas de frio. Aliás, é com grande alegria que recorda os operários de quem fora aprendiz, pelo carinho que lhe deram, mas também por tanto terem insistido com o irmão para que este o pusesse a estudar à noite. Eram os operários que afirmavam com toda a franqueza que este menino poderia ter uma vida melhor, já que ele se revelava muito inteligente nas tarefas que desempenhava.

     – Senta-te à minha beira e vê como eu dou cola nestas solas, é o trabalho que vais fazer! – dissera-lhe com carinho o operário que começara a ajudar como aprendiz.

     – Não disse que tinha que ir buscar formas? – lembrara o António com preocupação.

     – Sim, mas só depois de acabarmos este serviço!... – respondera-lhe objetivamente o operário. Depois acrescentara com afeto: – O tempo de secar e colar tem que ser seguido e de modo alternado!

     – Ensinem este menino, que o patrão já lhe deu um prémio, quer que ele vá almoçar à Luzia e é por conta da casa! – entrando de rompante, ordenara com ar feliz o encarregado geral da fábrica.

     – Ele é inteligente, está a aprender bem! Vamos ter homem!... – exclamaram os operários que estavam mais próximos.

     – Só não percebo é porque é que o Licínio não o tira desta vida. Ele sabe o que é a vida de operário e não se importa que o irmão venha a ser um reles sapateiro?! – acrescentara um outro, com algum desconforto pela arte, apesar de ter funções mais técnicas.

     – O que estão para aí a cochichar?!... – indagara o Licínio, sem sombra de aborrecimento.

    – Estávamos a dizer que é uma pena que o seu irmão esteja a aprender esta profissão! – retorquira um dos operários mais velhos e que tinha maior confiança. – Você sabe que isto não é futuro!... O rapaz é tão inteligente, ele decora tudo e com tanta facilidade que é pena que não possa ir estudar para um dia ter melhor sorte do que nós!... E depois se ficar na oficina não virá a ser senão um operário com todos os sofrimentos que já nos bastam a nós.

    – Ele não ficará cá muito tempo, eu já ouvi o patrão a dizer que certamente ele iria para o escritório e se assim for eu hei de arranjar maneira de ele ir estudar à noite. – sossegara-os o Licínio com a sua preocupação. E depois, para rematar a conversa e reconhecer a partilha de afetos, concluíra: – Vocês têm razão, isto não é futuro e eu também sinto que ele merece melhor sorte, mas enquanto as coisas não mudam, terá que ser assim!...

     O grande entusiasmo do António na aprendizagem tocara o coração de todos, já que algum tempo depois de ter sido iniciado nos trabalhos de aprendiz fabril, o patrão propôs ao Licínio que o rapaz fosse experimentado nos serviços do escritório para ver como seria o seu jeito nesta nova função. Assim, num final de tarde e sem que nada o fizesse prever, dado que durante dois anos o António tornara-se num aprendiz exemplar, o Licínio chamou-o para lhe dar a novidade de que iria trabalhar no escritório. Sabe-se que, no intervalo do dia, telefonara à mãe, a quem contara a proposta que o patrão fizera. Dissera-lhe, também, para lhe vestir uma roupa melhor, pois como empregado de escritório teria que estar sempre mais arranjado.

     O Toninho ficara tão contente com esta nova oportunidade que se apressou a regressar a casa, para contar à mãe, o que afinal ela já sabia, pois, o Licínio era casado e maior, mas seriam os pais que teriam que autorizar a mudança.

     Quando chegou a casa vira nos olhos da mãe uma mistura de alegria e de tristeza, ela tinha tantas dores, por uma doença no útero, que lhe tiravam as forças e anunciavam o fim. Mesmo assim, lá fora indicando ao seu menino, que agora teria cerca de catorze anos, qual a roupa que deveria vestir no dia seguinte, ao mesmo tempo que preparava o jantar para ambos, já que o pai não tardaria a chegar e era preciso alimentarem-se.

     Depois da partilha desta alegria, António fora deitar-se com o reforço da satisfação pelo novo emprego, mas também pela melhoria do horário de entrada que agora seria meia hora mais tarde. Acordou já o sol rompia pela manhã, a sua mãe não o acordara como era costume e o silêncio da casa fazia augurar algo de muito triste. Levantara-se e chamara por ela, mas ninguém respondera. Olhara para o chão com tristeza e vira junto da cama em cima de uma cadeira um fato, uma gravata, uma camisa e aos pés um par de sapatos mais novos e meias a condizer; a sua mãe tinha sido modista de roupas de criança e ele continuara a ser o seu modelo. Ainda meio confuso e a pensar no que iria fazer, uma voz caridosa de uma vizinha entoara vinda de perto:

     – António, a tua mãe adoeceu durante a noite, foi na ambulância para o hospital! – exclamara com a voz entristecida – Veste a roupa que ela te deixou e vai depressa para o trabalho, não te atrases mais – dissera carinhosamente.

     Mais consciente da situação, saíra a correr para apanhar a primeira camioneta que passasse, já era bastante tarde e ainda por cima estaria em causa uma nova oportunidade na sua vida de adolescente. Tornar-se num empregado de escritório trouxera-lhe um sentimento de confiança e expectativa no futuro. Adivinhava que iria melhorar no estatuto, que iria ter mais aceitação dos amigos e das raparigas a quem já ia arrastando a asa. Sabia que profissionalmente também iria ganhar bastante mais. Tudo se conjugava para os seus sonhos, mas o senão de se sentir só haveria de ser uma triste recordação para toda a vida.

     Chegara ao novo emprego e já metade da manhã tinha passado. O seu irmão Licínio estava preocupado, ainda que soubesse o que sucedera à mãe antes de ele ter sabido pela vizinha, mas o tempo de atraso era tanto que chegara a temer que o patrão já não deixasse o irmão iniciar a nova experiência de escriturário.

     António batera na porta da frente e, ainda agitado pela correria, entrara no escritório e saudara os presentes com um pedido de desculpa por ter chegado atrasado. O patrão saudara-o começando por fazer uma pequena apresentação do escritório e da pessoa que iria ser o seu mestre na aprendizagem dos novos serviços. Ele sabia que o rapaz estava triste e a razão do seu atraso estaria mais que justificada. Com afeto e com uma voz elogiosa lá fora dizendo:

     – Faz tudo o que o Sr. José te ordenar, procura ter muita atenção e verás que isto não será difícil. Dentro de pouco tempo poderás ser um bom escriturário e se tiveres vontade poderás vir a ser um guarda-livros muito competente.

     – Muito obrigado, Sr. Elias – agradecera o rapaz comovido.

     Depois, lá foi sendo absorvido pelo som da máquina de escrever enquanto esperava que o Sr. José lhe indicasse o que iria fazer. Neste intervalo, olhara por entre a vidraça que separava o setor da costura e do corte das peças para o calçado, ao mesmo tempo que sentira que algo estaria a mudar na sua relação com a nova realidade; sentira que deixaria para trás o trabalho duro da experiência fabril. Como vindo dum sonho, despertara bruscamente ao ouvir a voz do Sr. José:

     – Vamos começar? – interrogara.

    – Sim! Vamos! – respondera de imediato.

    – Presta atenção ao seguinte – afirmara com um certo jeito. – Em primeiro lugar, teremos de começar pela caligrafia, melhorando-a, para poderes tirar faturas com boa apresentação. Para isso irei escrever algumas frases neste caderno para copiares com perfeição. Será um dos exercícios necessários, para obteres a caligrafia ideal e assim tirares uma fatura legível e apresentável.

     Seguiram-se, depois, outras indicações e avisos, até que chegara o meio-dia e com ele a hora de almoçar para quebrar o jejum em que se encontrava.

     Ao fim de dois anos, António transformara-se num empregado de escritório competente e com muitos conhecimentos destes serviços. Ganhara fama de bom empregado, trabalhador e assíduo, de tal maneira que noutras empresas congéneres não lhe faltariam oportunidades de ganhar mais, mas havia prometido à sua mãe que, enquanto fosse ela que decidisse, continuaria naquela fábrica, mesmo em questões de salário ou outras. E infelizmente assim fora, como prometera, até aos dezassete anos, pois antes de os completar a mãe falecera de um cancro no útero e a sua vida a partir dessa altura passara a ser mais orientada por si mesmo. Não gostava muito de ter de entrar às oito e meia da manhã, uma vez que noutras empresas os empregados de escritório entravam às nove horas; depois, com o falecimento da mãe, passara a ser mais controlado pelo Licínio, e isso era um grande obstáculo à sua liberdade de ação em todos os domínios, sobretudo porque começava a dar os primeiros passos para encontrar a jovem da sua primeira paixão. A mulher amada não estaria muito longe, mas isso só viera a sabê-lo uns meses depois de a mãe falecer.

     Estava na flor da idade e o fascínio da sua juventude e dos quase dezassete anos pareciam poder colorir a sua vida e alegrar a sua alma a conter o desgosto de ter perdido a mãe num mundo que começava agora a descobrir. Apeara-se na recordação do amor que recebera até ao dia em que soubera que fora o último, e desdobrara-se teimosamente no respeito ao pai e obediência ao irmão e mulher, pela proposta que o Licínio fizera para que se mantivessem unidos e vivessem juntos na sua casa, para poder olhar pelo pai e sobretudo para proteger e ajudar a crescer o António, aquele que continuaria na juventude e já como maior a ser o seu menino Tonito. Além disso, também tinha havido maior proximidade afetiva da sua mãe com a nora, a sua mulher, já que optara no momento de grande sofrimento e amargura, por escolher a sua casa e os seus cuidados depois de vir do Hospital para terminar em Paz os seus últimos dias. Ficaram, então, a viver juntos e, por aquela casa pequena e humilde, já se ouviam há alguns anos os risos e os gritinhos das crianças que começaram a nascer e que a avó ainda antes da doença terminal pegara ao colo e guiara pela mão quando de vez em quando lhes fizera uma visita.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 62 a 69