Caminho de Luz e Sombra (Texto 20)

     Ainda antes que o táxi chegasse, começara a instruí-la sobre o modo como deveriam comportar-se dentro do salão e perante as personalidades presentes.

     – Quando chegarmos junto da porta de entrada, metes-me o braço e deixas-te conduzir com normalidade. Manténs-te serena e sem te preocupares com o que irei dizer ao responsável pela entrada. Quando entrarmos, iremos procurar uma mesa que não esteja completa; depois, se vier alguém nos levantámos e misturamo-nos dançando, sempre mais do que o tempo que ficarmos nas vagas de qualquer mesa; não temos mesa marcada e isso pode chamar atenção. Se metermos conversa com alguém, procuremos falar de tudo menos da vida militar, e se alguém perguntar qual o posto que eu tenho, dizes que não sabes nada dos postos militares, que és professora, mas se insistirem sobre os galões, dizes que as divisas do teu marido são da cor vermelha. Porém, se isto acontecer, teremos de inventar uma desculpa e sair o mais depressa possível, pois não poderemos ficar lá por mais tempo.

     Ainda não tinham acertado estes pormenores e já o taxista buzinava para os chamar e levar para os lados da praia onde ficava o Clube de Aeronáutica. Tudo indicava que iriam viver uma noite de sonho, ainda que pudesse ser por pouco tempo, mas seria necessário que tudo corresse bem, para que em vez de nervosismo, sentissem fulgor, muito entusiasmo e uma grande paixão. Aliás, aquele momento enchera-se de uma tensão empolgante; ela estava deslumbrante e o seu rosto resplandecia uma luz de inocência debaixo da capelina branca que espalhava raios de uma beleza inebriante. Por instantes, valera-lhe a confiança do marido, que não se deslaçara do que era simples, pois fora assim que sentira sempre a beleza da sua mulher amada. No entanto, também ele projetava um figurino formado de uma compostura que se assemelhava a qualquer príncipe, o fato que vestira pela segunda vez era de cor antracite, a camisa de popelina branca, a gravata, as luvas e os sapatos eram a condizer e continuavam a fazer dele a personagem ideal para um romance a descobrir.

     – Vamos! – ordenara ele sem mais desculpas. – O táxi está à nossa espera e é necessário chegar no princípio do baile!

     – Vamos! – concordara ela, agora mais recomposta e a dar sentido à beleza que irradiava.

     Desceram as escadas do apartamento dando a mão um ao outro, ao mesmo tempo que ficavam mais firmes no caminhar até à porta de saída para entrarem no táxi que os esperava já há algum tempo. Logo que puseram os pés na rua, o taxista cumprimentou-os com deferência, abriu-lhes gentilmente a porta e ajudou-os a acomodar-se. A viagem pela orla marítima duraria cerca de vinte minutos; apesar de ser noite e começar o seu mistério, a distância não superaria o fascínio da visão do mar e do ondular da maré que riscava a areia da praia para os olhos não a perderem de vista.

     – Ali está o Clube! – dissera o taxista apontando para lá.

     – Sim, chegámos! – responderam com grande satisfação.

     – Aqui tem o dinheiro que me disse! – retorquira o marido.

     – Obrigado – agradecera o taxista com votos de feliz Ano Novo. Depois ainda acrescentara: – O Clube de Aeronáutica tem fama de proporcionar festas muito animadas.

     – Oxalá seja como diz! – responderam os noviços já a andar para a receção.

     Entretanto, à medida que se encaminhavam, ela metera-lhe o braço para melhorar o andar, fazendo tudo para assemelhar-se ao momento em que saíram da igreja no dia do casamento. Esta comunhão de pensamentos enternecera-os o suficiente para baixarem a tensão que o encontro com o rececionista inevitavelmente criaria.

     – Boa noite! – saudara-os com uma continência o homem da segurança da entrada.

     – Boa noite! – responderam inclinando-se com deferência.

     – Têm os vossos convites? – perguntara o segurança com cortesia.

    – Ora, bem! O senhor sabe quem somos, não sabe?! – exclamara o marido com cuidado, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão soltando-lhe algum dinheiro.

     – Sim, Sim! Ora, Ora! Conheço muito bem VV. Ex.as! – exclamara o segurança com autoridade e sem hesitação. – Façam o favor de entrar – manifestando a propósito mais uma continência enquanto lhes abria a porta e indicava a entrada.

     Sem perder tempo e com um andar discreto, deram as mãos e entraram com elegância no luxuoso salão. Naquele instante da entrada, o fascínio dos candelabros que enchiam o teto abrira-lhes a mente para a arte do que é soberbo. Ficaram algum tempo a contemplar o espaço onde a luz se expandia em reflexos no rosto das pessoas ao balancearem os corpos com os compassos da dança. Depois, olharam um para o outro, fazendo alguma cerimónia, enquanto esperavam que a orquestra terminasse e pudessem ver onde haveria alguma mesa para se sentarem por algum tempo.

     Entretanto, por entre o arquear das danças e o som apaixonante da música, viram alguns passos à frente uma mão que lhes acenava. Aproximaram-se sorrindo com alguma timidez, pois não tinham a certeza de estar perante o convite para uma mesa que tão ansiosamente desejavam.

     – Olá, muito boa noite! – exclamara uma senhora que os conhecera. – Sejam bem­‑vindos ao nosso Clube. É a primeira vez que vêm cá, não é? – perguntara com delicadeza.

     – Muito obrigado – agradeceram sem tibiezas. – De facto, é a primeira vez que vimos ao Clube, desta vez não poderíamos faltar a esta grande festa – responderam como se não fossem estranhos.

     – Têm mesa marcada? – perguntara a senhora com afetividade. E, num súbito, prevendo talvez a resposta negativa, consertara a situação. – Isso não importa para o caso. Se estiverem de acordo, ficam aqui na nossa mesa, não é verdade?! – exclamara ao mesmo tempo que olhava para os restantes membros da mesa.

    – Sim, sim, ficam na nossa mesa! – responderam todos. Depois acrescentaram: – Têm muito que comer e será com o maior prazer que conviveremos juntos nesta noite tão especial. Aliás, está na hora de começarmos a aquecer o ambiente; por agora basta de marisco, e a hora das doze passas está a chegar. Nessa altura festejaremos todos com grande alegria e muito champanhe. Fiquem, sem cerimónia, enquanto vamos começando a alegrar o ambiente.

     Na mesa estariam dez pessoas, mas o marisco e outras iguarias dariam para outras tantas; estava tudo uma delícia, e, enquanto os pares mais velhos abaulavam com as valsas vienenses, os jovens nubentes comiam e glosavam o tempo em que duraria aquele sonho. Consolados com o manjar e os sumos saborosos, encetaram o naipe de dançarinos estreantes, deslocando-se com mestria nos espaços do salão que iam sobrando nos intervalos dos compassos da dança.

    Esta intimidade não durara muito, a algazarra e os festejos começaram a aumentar à medida que a meia-noite chegava e, com ela, os doze desejos, que cada um escolheria na ânsia de ser feliz e poder realizá-los.

    Todos juntos e a dançar aos encontrões, cantavam cada vez mais alto ao som da orquestra, que se perdia na confusão da algazarra, dando lugar ao contar dos segundos para chegar ao Ano Novo com a abertura do champanhe e todas as felicitações: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e as rolhas das garrafas soltavam-se em todas as direções para se encherem os copos e afogar as doze passas enquanto ainda duravam os segundos.

     – Felicidades, felicidades! – gritavam todos a tanger os copos num instante tilintar e a beber o néctar das sagradas paixões.

    – Feliz ano novo e que venha repleto dos desejos de todos nós – repetia da banda o intérprete das músicas que enchiam as almas de alegria e os corpos de êxtase.

      Ainda durara algum tempo aquela alegria indescritível, embora aos jovens lhes parecesse sempre que este sonho seria fugaz. Quando houve uma pequena pausa na orquestra para organizarem as músicas e felicitarem ainda mais os presentes, as mulheres juntaram-se em pequenos grupos, ficando os homens um pouco mais dispersos e entretidos com os copos de champanhe que transbordavam discretamente e com abundância.

     Com o rosto carregado de um corado turvo e um rubor nas faces a entrar na palidez, a jovem professora dirigiu-se ao marido, com os braços abertos e a simular desejos de amor por uma carícia e um beijo, contando-lhe, sem ninguém ouvir, o que lhe tinha acontecido:

     – Olha, perguntaram-me onde é que estás colocado e o que é que fazes. Que devo responder? – sussurrou com os lábios próximos do ouvido. O marido, agarrando-a pela cintura, fora simulando com gestos de estar a falar-lhe sobre algo surpreendente e foi instruindo-a sobre o que deveria responder:

     – Aproxima-te delas com delicadeza e com ar de preocupada, agradeces contida a gentileza com que nos receberam. Depois acrescentas, mas sem esperar perguntas, que temos de sair por uma missão de serviço urgente. Faz isso com rapidez e como te disse, não temos tempo a perder! – exclamara o marido com ansiedade e grande nervosismo.

     Após o cumprimento desta formalidade, com gestos de cortesia e desejos de boa noite, despediram-se de todos dando a mão um ao outro e caminhando bastante apressados para justificarem a saída um tanto inesperada.

     Logo que puseram os pés na rua, começaram a pensar como vir para casa, uma vez que àquela hora já lá não havia táxis e seria preciso chamar por um. Mas como fazê-lo, sem voltar ao clube para telefonar?

     Quase a rebentarem de suores frios por estarem em lugar muito exposto ao perigo da descoberta da verdade, o jovem militar sentiu uma mão nas costas a interpelá-los com muita insistência.

     – Precisam de boleia, precisam que os leve a casa? Eu tenho ali o carro, venham comigo que eu levo-os! – exclamava em tom aflito um homem que surgira não se sabe de onde.

     Sem se fazerem rogados, entraram no carro que iniciara a marcha pela mesma orla marítima por que tinham vindo. Porém, o condutor tornou-se estranho, parecia estar transtornado, perdera de vez em quando a noção da estrada e, aos ziguezagues, lá ia curvando mais para a direita ou mais para a esquerda, mas sempre muito próximo da escarpa que mergulhava até ao fundo do mar. O perigo era tão iminente que a jovem esposa confessara que ficara tão tolhida de medo que lhe assaltara a ideia de que não chegariam sãos e salvos a casa. O marido também não ficara indiferente, percebera o perigo, mas como era preciso sair das imediações do Clube de Aeronáutica, meditara mais na proeza que tinham conseguido do que em qualquer situação negativa que pudesse acontecer. E, depois, ficara tão confuso com aquela inesperada ajuda e salvação, que, apesar de estranho e algo perigoso, o condutor não poderia constituir nenhum mal.

     De todas as emoções vividas no sonho alcançado ficara a certeza de que, tal como este nascera pela bondade de Deus para viverem aquela noite especial, assim terminara do mesmo modo, pela ajuda de todos, especialmente daquele homem, que ainda hoje não sabem de onde veio nem para onde seguira.

    Esta fora uma das situações aventureiras que gosta de recordar, pois o que fora triste, e quiçá até trágico, guarda na memória fingindo que fora de sorte a sua vida de militar na colónia de Moçambique.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 91a 97