Caminho de Luz e Sombra (Texto 18)

     O voo até à cidade da Beira em Moçambique demorara catorze horas, com escala em Luanda de cerca de uma hora. Para a primeira experiência em viagens de avião, se não fora o facto de ir para a guerra teria tido um certo deslumbramento e algum fascínio. Mesmo assim, entre o ressonar de alguns e o burburinho de outros, lá surgia de vez em quando uma alegria contida, para chamar o pessoal de bordo e confraternizar o momento com uma cerveja que bebia com elevada satisfação. Depois ficara deslumbrado pela surpresa do avião e fora registando no bloco de notas, para memória futura, algumas das indicações dadas pela tripulação e outras realidades descobertas por si mesmo. Escrever fora sempre um dos melhores passatempos que tivera naquela longa viagem. Depois, o fim do ano também já estava próximo fazendo nascer a ilusão de que a festa pelo novo ano seria uma oportunidade para uma grande noite de farra. Por isso, se houvera algum momento ansioso também houvera alguma ilusão, a recordação da mulher amada, a visão do espaço nas alturas e alguns movimentos mais bruscos produziram um sentimento que era preciso superar com alguma fantasia. Brincar com alguém, contar uma história e anotar acontecimentos ajudariam sempre a passar melhor o tempo e a sentir menos a viagem.

     Por volta das seis horas da manhã, foram informados pela tripulação de que dentro de pouco tempo aterrariam no aeroporto de Luanda para embarcarem uma hora depois no avião que os levaria até Moçambique, onde aterrariam na cidade da Beira. Entretanto, olhara pela janela e num súbito fora tocado por um desejo de rapidamente sentir pousar no chão as rodas do avião. Mesmo assim, não pudera deixar de sentir as ondas do calor que viera do chão, já que o avião parecia ir ao encontro do Sol, que nascia como uma bola de fogo alimentada pelas casas de colmo que serenamente se lhe entregavam. Uma hora depois, e já bem acordados, levantaram voo do aeroporto de Luanda com destino a Moçambique e à cidade da Beira. Ao cabo de catorze horas chegaram ao Aeroporto da Beira para seguirem depois noutro avião para Nampula. A viagem da Beira para Nampula decorrera num ambiente menos militar, o pessoal de serviço era feminino, a comunicação era mais sedutora e viajar de dia será sempre mais agradável.

     Passara a noite de fim de ano em Nampula, o local era agradável e a banda esforçava-se por animar os civis mas também os militares que nesta ocasião se juntaram para saudarem o novo ano.

     Conta, quando a propósito, que não esquecerá facilmente a última noite de 1972, uma vez que fora marcada pela diferença de horário entre a África e a Metrópole e por isso só festejara a entrada do ano novo uma hora depois. E se este facto mostrava que havia alguma diferença no conceito de tempo entre a tradição colonial e a tradição da metrópole, a forma de celebração da noite de Ano Novo entre os colonos e os militares acentuou ainda mais esta diferença, pois a riqueza e a alegria dos primeiros contrastou com o champanhe a jorrar ao som das valsas de Johann Strauss e as carícias entre os pares, enquanto as tristezas dos segundos se misturavam na Coca-Cola e nas rejeições das donzelas que não pareciam gostar de conviver com os militares.

     Depois desta noite bem amarga recebera instruções sobre o modo como iriam em coluna militar e a forma de ação a desenvolverem como meio de proteção e defesa. Vestira a farda de combate, verificara a espingarda e o carregador com as munições e seguira numa viatura militar com os outros para o distrito de Cabo Delgado e Porto Amélia durante seis horas à chuva e ao sol, onde haveria de permanecer durante mais dois anos no cumprimento da totalidade do tempo de serviço, que fora de três anos e três meses.

     Não foram os perigos da guerra que o perturbaram, pois tivera a sorte de ficar num comando de setor e num aquartelamento que tratava do apoio no arranjo das viaturas e da responsabilidade por um paiol para a recolha e distribuição de munições. Além disso, entre outras ocupações que tinha no quartel, a ocupação de auxiliar de enfermeiro conferia-lhe a responsabilidade por todo o pelotão e todo o pessoal civil que lá prestava serviço. De tal modo que, associada ao seu empenho, estava a responsabilidade de ser o primeiro a decidir e a tratar na situação de doença dos utentes, uma vez que só na ausência de meios ou de conhecimentos é que deveria acompanhar os doentes até à enfermaria do setor onde seriam observados por um médico, que, achando necessário, os medicaria e internaria ou mandaria regressar de novo ao quartel para ficarem com baixa à guarda do auxiliar de enfermeiro até se restabelecerem completamente. Mas, três anos e três meses de tropa foram muito tempo, e se no conjunto houve algumas alegrias também houve muitas tristezas, sobretudo por aqueles que tombaram em defesa da Pátria.

     Valera-lhe a aventura de ter casado quando ainda não tinha um ano de serviço na colónia africana. Prometera à sua amada, quando partira, que casaria logo que regressasse, mas a confiança que tivera que, como professora, a sua esposa seria bem recebida em Moçambique e também que possivelmente não seria transferido para locais onde se travava a guerra, levara-o a vir casar à metrópole e a levá-la consigo para aquela terra africana. Não fora fácil esta decisão, pois estaria em causa o começo da vida conjugal, longe da família, numa idade bastante jovem e com a possibilidade, ainda que muito remota, de poder ser deslocado para a frente de batalha. Felizmente que tudo decorrera pelo melhor e o serviço militar acabara por ser enfadonho, não pelos problemas que tivera na guerra, mas pelo tempo de serviço que fora muito mais longo que o normal. Aliás, ainda lá conseguira fazer alguns exames, chegando quase a completar o segundo ciclo dos liceus, faltando-lhe apenas a disciplina de Física, que concluíra como aluno externo no Liceu de Gaia no ano de 1975. Recorda estes factos como algo que muito contribuíra para a história do que tem sido o melhor da sua vida e, com um raciocínio tolerante, lá vai omitindo algumas aflições e relevando algumas alegrias, na justificação do que fora necessário para viver e manter o equilíbrio entre o social e o militar.

     Não fora fácil conviver com as altas personalidades políticas, militares e de segurança da Região e Comando onde fora colocado; a sua graduação militar era do nível das praças e o seu estatuto era muito humilde. A mulher, por inerência do cargo de professora e do seu estatuto, era convidada com frequência pelas esposas destas personalidades para festas e cerimónias. A maior parte das vezes não correspondera ao convite pelos problemas que isso poderia causar ao comandante do marido, que era um excelente militar e uma boa pessoa, contornando sempre as disposições militares e permitindo que este andasse vestido à civil fora do quartel e, quando conveniente à função familiar, estivesse com a esposa a participar na receção, fosse a um ministro ou a outra entidade superior.

     A propósito desta dificuldade, revela com alegria uma peripécia com contornos de alguma gravidade, destacando neste cenário a ajuda de uma personagem enigmática, que não conheciam nem nunca chegaram a saber quem seria aquela pessoa bondosa que lhes permitira, mesmo perante a aflição, conseguir que aquele momento não deixasse de ser feliz.

     – Não sei porque é que tem que ser assim, porque é que terei de andar meio escondido – dissera isto, numa tarde, quando chegara a casa do quartel e viera mais arreliado pelas humilhações sofridas. Afinal, um cabo, um soldado ou um capitão, não serão todos militares? – Porque é que todos aqueles com um posto inferior a sargento, para trajar à civil têm de ser autorizados, com exceção no período do gozo de férias, e os outros, sempre que queiram, podem fazê-lo, condicionados apenas pelas horas de serviço e pelo local onde o exercem? É algo que não faz sentido, já basta ganharem mais e terem mais honrarias, quanto mais ainda nos sujeitarem a esta discriminação! – exclamara, vociferando, o jovem militar.

     – Oh, homem, não sei porque estás a lamentar-te! De facto, todos os dias vens fardado, mas não virias à civil se quisesses? – interrogara-o a esposa, ao mesmo tempo que lhe fazia uma pequena carícia.

     – Lá nisso tens razão! – respondera com gentileza. – No entanto, para ter essa liberdade, vale-me o meu comandante, que com esse gesto permite que eu possa identificar-me com a sociedade civil! Se não fosse ele, teria de andar sempre escondido e separado algumas vezes de ti nos atos de maior solenidade! – acrescentara nestes modos para defender e exaltar a atitude do seu tenente.

     – Sendo assim, porque é que estás sempre a lembrar-te desta questão se ela não te afeta?! – observara ela, ao mesmo tempo que procurava desvalorizar as diferenças que os separavam no estatuto.

     – Não é bem assim! – voltara de novo à carga. – Repara na diferença que existe sobre o acesso aos lugares onde se divertem os oficiais e esposas, não é verdade que tu poderias frequentá-los e eu não? – interrogara-a um pouco furioso. E continuara: – Não somos feitos da mesma massa, não contribuímos ambos para a socialização e defesa dos valores que eles apregoam defender? Então, porque é que como casal temos de viver com tantas preocupações acerca dos lugares e acontecimentos que são comuns? Já não falo das festas, que é uma questão mais particular de cada grupo, mas receber um ministro ou um alto dignitário do governo, não achas que poderíamos estar juntos sem termos de pedir para isso? Ou se eu ficar atrás de ti, junto da multidão, por incompatibilidade de estatutos e tu em frente na tribuna, será que isso dará mais solenidade ao ato, e estaremos nós socialmente mais motivados? – observara com tristeza e perplexidade.

     Repentinamente e sem que a mulher estivesse a contar, propôs-lhe uma aventura que, embora ousada, parecera-lhe que viria a propósito para contrariar esta questão.

     – Sabes onde fica o Clube de Aeronáutica? – perguntara com alguma delicadeza.

     – Sei, é aquele edifício que tem desenhado na fachada uma imagem de aviões, não é?! – respondera um pouco intrigada.

     – Sim, é esse mesmo – confirmara com entusiasmo.

     E, continuando, lá fora acrescentando com algum rodeio: – Estamos a chegar à noite de fim de ano, vai fazer-se lá uma grande festa, a festa da passagem para o Ano Novo que tem fama de ser uma festa excelente.

     Depois, como se já tivesse passado todo o azedume das frustrações referidas, fora mais direto ao assunto:

    – Tens o teu vestido de noiva, os sapatos e a capelina; que dizes se fôssemos lá passar a noite de Ano Novo? Penso que bastaria um pequeno arranjo no vestido, cortando as mangas à medida de sobressair nos teus braços o moreno da tua pele e as luvas na beleza das tuas mãos. Nessa noite, gostaria que fôssemos conviver e dançar até nos envolvermos tanto que voltássemos a reviver o sonho de quando nos olhámos pela primeira vez. Que dizes?! – insistira com um olhar cativo.

     Durante algum tempo a voz da jovem noiva emudecera, olhara pela janela o jardim que ladeava a residencial onde viviam, ao mesmo tempo que ia pensando na resposta que deveria dar e que não deveria quebrar o encanto daquele momento singular. Voltara-se em sua direção e com um gesto quase teatral contemplara-o de um modo longo e profundo, respondendo em tom envergonhado:

     – Oh, homem, tu bem sabes que eu não tenho jeito para essas coisas. Mas, como ainda falta muito tempo para o fim do ano, pode ser que até lá surjam outras sugestões ou que eu ganhe coragem para realizarmos a tua vontade.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 79 a 85