Caminho de Luz e Sombra (Texto 17)

  Contudo, quando entrou para o escritório desta empresa tinha feito há pouco dezassete anos de idade. Estava a um ano de saber se seria ou não apurado para todo serviço militar, um problema que o afligia como a todos os jovens daquele tempo, porque a Guerra Colonial era assustadora e poucos escapariam à mobilização para as Colónias ultramarinas. Aliás, no dia de ir à inspeção, chegara a pensar que ficaria livre, pois tinha num braço as marcas da dor de se ter escaldado quando ainda andava na instrução primária. Julgara ele que se dissesse ao médico que o seu braço estava afetado pelo escaldão que sofrera quando ainda era menino, o médico teria pena dele e o livraria do serviço militar e, em consequência, o livraria também do receio que tinha de ir parar às colónias. Porém, de nada lhe valera este pensamento, pois quando fora inspecionado ainda lhe ocorrera esta ideia, mas a aprovação para o serviço militar fora geral e sem haver lugar para apelo nas circunstâncias.

     Com grande esforço para poder trabalhar de dia e estudar à noite, lá fora continuando a amealhar algum dinheiro, já que dois anos depois da inspeção chegaria o dia da chamada para cumprir o serviço militar. Tivera consciência de que ganharia muito pouco como soldado, mas as habilitações literárias que tinha na ocasião só em certas condições permitiriam ter um posto de classe superior e assim poder ganhar mais e ter mais vantagens.

     Ao trabalhar neste comerciante como empregado de escritório e ainda antes de ir para o serviço militar e para a colónia de Moçambique também aprendera as atividades do comércio de vários artigos, tendo-lhe servido depois de ter regressado de África e ter passado à disponibilidade, para poder ganhar para além do salário fixo mensal mais algum dinheiro extra, vendendo nas horas livres sapatos de homem, de senhora e de criança em sapatarias da cidade do Porto e de Matosinhos. Também deverá dizer-se que com a ajuda desta mesma empresa, pelas horas que voluntariamente lhe dera para estudar durante o horário de trabalho, já antes de entrar para o serviço militar e depois quando regressara após o cumprimento do mesmo, premiando, deste modo, a sua grande dedicação à aprendizagem que mantivera sobretudo depois do regresso da Colónia de Moçambique, pudera em pouco tempo, completar como trabalhador estudante o terceiro ciclo no liceu de Gaia e ingressar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

     Tudo isto fora possível, porque, apesar de já estar a frequentar o quarto ano do curso comercial do ensino noturno da Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, fizera a opção de mudar para a frequência do ensino liceal noturno com aulas para aquisição de conhecimentos no Externato Pedro Nunes em Gaia e com exames de avaliação externa no liceu de Gaia, chegando mesmo a frequentá-lo à noite durante o ano anterior ao ingresso na Universidade do Porto. Acrescente-se que esta opção foi desejada, pois de outra forma não teria sido possível alcançar um curso superior no domínio das Humanidades.

     No começo dos verdes anos, no tempo do serviço militar e na guerra colonial, António descobrira a jovem com quem haveria de namorar e casar. Durante cerca de seis anos em que namoraram e depois do casamento, a sua mulher fora sempre a sua principal aliada no combate por uma vida melhor. Continuar a estudar à noite, trabalhar de dia e ser desejado pela sociedade, pelos conhecimentos profissionais, pela dedicação e trabalho e, principalmente, pela retidão e elevado sentido moral foram fatores que determinaram em grande parte a aceitação do namoro e do casamento por ambos, mas também pelas famílias, que, à sua maneira, colaboraram e desejaram que assim fosse.

     Entretanto, quando chegou o dia de ingressar no exército, fora um pouco surpreendido por ter sido convocado para Leiria e para o Regimento de Infantaria número sete, pois neste quartel seriam selecionados alguns militares para o curso de Furriéis milicianos, o que de imediato lhe agradara, por poder vir a ser selecionado para o curso e poder ter no futuro outras regalias e um vencimento maior.

     Contudo, logo nos primeiros dias de ter iniciado a recruta, começara a sentir-se movido por duas forças opostas: por um lado queria passar na seleção, mas por outro lado temia que passando a sua especialidade viesse a ser atirador conforme a informação que corria no quartel. Daí que, quando iniciava os exercícios físicos para mostrar as suas capacidades junto do oficial instrutor, a maior parte das vezes não fora capaz de concluir bem nenhum, fosse o salto de obstáculos fáceis, fosse a subida ao pórtico ou fosse simplesmente uma pequena corrida no exterior das casernas. Apesar de desejar ser selecionado, tinha consciência de que não estava a proceder nesse sentido, o receio de vir a ter a especialidade de atirador impedia-o de responder melhor aos exercícios de aprendizagem teórica, tendo em conta as habilitações escolares que tinha, assim como de fazer bem os exercícios físicos, pois antes de ir para a tropa fora jogador de futebol num clube federado e no escalão júnior, por isso esta má prestação não tinha justificação.

     Mesmo assim, a sorte parecera continuar a bafejá-lo, pois ainda antes de terminar a recruta e de ser excluído da seleção em consequência dos maus resultados, fora chamado ao capitão da companhia para explicar a situação em que se encontrava, que não era compreensível para o oficial. Ele tomara como base da sua preocupação as habilitações escolares, que estavam quase no limite para ter ido para as Caldas da Rainha ou Tavira, onde seriam recrutados os Cabos milicianos, bem como o seu passado desportivo de jogador de futebol, que contrariava a incapacidade revelada nos exercícios de recrutamento.

     Questionado sobre a hipótese de ainda poder ser selecionado, neste encontro com o oficial, foi deduzindo das palavras amigas do Capitão que, no geral, todos os selecionados seriam atiradores e poucos escapariam à mobilização para combater nas colónias. Perante este cenário esmorecera um pouco, deixara-se invadir pelo receio e quando o capitão o questionou sobre a hipótese de ainda ser selecionado, se essa fosse a sua vontade, respondera que seria melhor ser um soldado com uma boa especialidade do que um atirador com boas regalias. Com esta resposta, despedira-se do Capitão com um cumprimento formal, mas também com um sentimento de afeto pelas palavras de coragem que este lhe transmitira pela opção que fizera.

     No seu ideal de estudante, desejara tornar-se médico, pensara muitas vezes que tinha talento para isso, uma vez que gostava de socorrer e curar os companheiros quando eles precisavam. Aliás, a sua intuição não o enganara, pois nos testes para a seleção da especialidade esse talento viera a revelar-se ao ser mandado para Coimbra para o Regimento dos Serviços de Saúde, onde completara a parte teórica da especialidade de auxiliar de enfermeiro. Concluída a parte teórica, fora enviado para estagiar no Hospital Militar da Boavista na cidade do Porto, tendo sido aprovado com uma alta classificação que lhe permitira ficar entre os primeiros lugares do curso e, em consequência, fazer-lhe nascer a esperança de que dificilmente seria mobilizado para o Ultramar.

     Concluída a especialidade de Auxiliar de Enfermeiro, fora colocado de novo em Coimbra no C.I.C.A. 2 para cumprir o tempo restante de serviço, que andaria à volta de mais dezoito meses, se não fosse para as colónias. Quando ultrapassou o tempo de doze meses, ficara convencido de que já não seria mobilizado, acreditara nesta altura que valera a pena ter estudado como estudou não só para adquirir conhecimentos, mas sobretudo por ter sido aprovado com aquela classificação, pois era informação corrente que os primeiros dez do curso de Auxiliares de Enfermeiro não seriam mobilizados.

     Entretanto, quisera a sorte que, já com quinze meses de serviço e quando já nada fazia prever o sucedido, fosse mobilizado para Moçambique, uma colónia africana que tinha fama de ser bastante perigosa para os militares que iam para lá combater. Quando fora informado da sua mobilização individual pelo Tenente, ficara desolado e não escondera as lágrimas que lhe caíram pela face. O Tenente, que era um militar habituado a estas situações, não tivera muitas palavras para justificar esta mobilização inesperada, limitara-se a encorajá-lo e a desejar-lhe as maiores felicidades para a sua missão. Depois, indicara-lhe como deveria levantar a guia de marcha na Secretaria para se apresentar no Entroncamento no Batalhão de Serviços de Material, onde integraria um pelotão de apoio direto como enfermeiro responsável desta unidade militar.

     Ele e os seus companheiros não demoraram muito tempo neste quartel, depressa foram enviados para Santa Margarida para fazerem a preparação militar adequada à situação de guerra que se travava nas colónias. Neste campo de treino militar, aprendera a usar algumas armas, algumas granadas e a executar alguns exercícios de combate. Não se sabia ao certo o que os esperava e, por isso, deveriam estar bem preparados. No seu caso, não só como enfermeiro mas também como combatente, pois na situação em que fora mobilizado poderiam acontecer as duas realidades.

     Depois de ter passado alguns dias em casa, partira de comboio com os olhos rasos de lágrimas pela despedida da família e da jovem que amava e a quem prometera casamento.

     Embarcara uns dias antes do fim do mês de dezembro na estação das Devesas, numa noite de inverno muito fria e chuvosa. Numa noite de grande tristeza, por partir para a guerra, mas também por naquele momento não poder abraçar alguns amigos que, por razões de mau tempo, não puderam lá estar. Mesmo assim, lá conseguira recompor-se e abraçar fortemente o irmão, que fora o último a segui-lo com o olhar, enquanto o comboio se afastava em direção à estação do Entroncamento, para regressar ao Batalhão de Serviço de Material pelo período de dois dias, antes de viajarem para o aeroporto de Lisboa, donde embarcaram num avião de transporte de militares com destino à colónia de Moçambique, mais concretamente à zona de Cabo Delgado, uma terra considerada de “cem por cento de guerra”.

     Poderá dizer-se que não fora um embarque sem resistência psicológica, pois o receio pelo pior começara a nascer logo que puseram os pés no aeroporto. Valeram-lhes naquela triste noite as meninas que davam assistência psicológica aos militares que embarcavam para a guerra, que, para além dos afetos que não se cansavam de transmitir, distribuíam a cada militar uma pequena caixa que continha chocolates, bolos e uma garrafinha de vinho. Era uma espécie de brinde, que, misturado com os afetos e sorrisos, faria esquecer por algum tempo a família daqueles que não eram de Lisboa e que não a poderiam ter junto deles.

     Durante o tempo de espera pelo embarque ouviam-se soluços que iam sendo abafados pelo vinho que ia fazendo algum efeito, pelo menos enquanto se misturavam as emoções.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 73 a 79