Caminho de Luz e Sombra (Texto 23) 

     Também surgiram outros acontecimentos dignos de ser contados, pelo menos por reconhecimento da força que lhe deram para continuar a resistir com menos queixume aos problemas da vida. E é por isso que, com alguma discrição, lá vai contando também as peripécias de um exame oral que durara três tardes seguidas.

     – Boa tarde, meus amigos! – exclamara o professor com um leve sorriso.

     – Boa tarde – responderam os examinandos propostos para aquela tarde.

   –Todos estão conscientes daquilo que fizeram na prova escrita de Filosofia Moderna? – interrogara o Professor com delicadeza. – Sabem que tiveram nota positiva, pois de contrário não seriam chamados a exame oral, não é verdade? – questionara com alguma satisfação. Depois, de modo mais assertivo e com maior autoridade, reforçara o seu raciocínio: – Mas também sabem que, em relação a esta cadeira, nenhum aluno será dispensado da prova oral, logo, deverão considerar que há uma razão filosófica que deverá ser alcançada para que a nota final corresponda à média ponderada das classificações.

      De seguida, convidara os alunos a sentarem-se em círculo, para que, em conjunto e respeitando a ordem a partir daquele que começaria em primeiro, produzissem um diálogo sobre o filósofo René Descartes e a sua obra O Discurso do Método.

Acomodara-se na cadeira com as pernas estendidas e com as mãos atrás da nuca, olhara­‑os de relance e apontara para um aluno, dizendo:

     – Comece a falar sobre as Regras do Discurso do Método e o colega seguinte continuará com a sua exposição quando eu ordenar. Julgo que todos entenderam o modo de procedimento? – interrogara de modo objetivo e com a autoridade de cátedra. Entretanto, calara-se, fechara os olhos formando uma imagem de quem parecia estar mais a dormitar do que a avaliar o conhecimento de alguém.

      Com este gesto de serenidade fizera-se silêncio até começar a ouvir-se o primeiro examinando, que, com algum nervosismo, começara por dizer que ([i]) o mérito da filosofia cartesiana foi o de se ter apresentado, pela primeira vez, como um esforço sistemático para clarificar as condições lógicas da função teórica ou cognitiva da razão e a sua consequente aplicação à investigação da verdade. Muito embora aceite inicialmente que “a razão é naturalmente igual em todos os homens”, essa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso só ganha autonomia quando o seu trabalho crítico se apoiar em regras lógicas fundamentais, “porque não basta ter o espírito bom, é preciso aplicá-lo bem”. Daí a importância que o pensador atribui ao método na constituição do conhecimento e na fundamentação da sua unidade. Depois, para concluir, passou a enunciar as Regras do Discurso do Método, ([ii]) a começar pela Primeira Regra, a regra da Evidência Racional, que diz o seguinte: “nunca devemos aceitar como verdadeira qualquer coisa, sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”. A Segunda Regra, a regra da Divisão, que consiste em “dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver”. A Terceira Regra, a regra da Combinação, que se baseia em “conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns com os outros”. E, por último, a Quarta Regra, a regra da Enumeração, que pressupunha “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir”.

      Terminada esta exposição e quando o mesmo aluno se recompunha para responder a outra possível questão, o professor manteve-se na mesma posição mas ordenando que o aluno seguinte demonstrasse como foi que Descartes concluiu a Primeira Regra.

      Sobre esta demonstração, o aluno seguinte começara a sua exposição, dizendo o seguinte:

     – O modelo racionalista de Descartes começa por questionar e examinar a validade do conhecimento que temos do Mundo. Interroga-se acerca da sua origem ou fundamento. Tem a pretensão de encontrar conhecimento verdadeiro e não apenas provável, por isso, começa por duvidar que se conheça algo como verdadeiro até encontrar um tipo de conhecimento que seja válido para todos e para sempre, isto é, universalmente válido. Para percorrer o seu caminho de investigação formula argumentos semelhantes aos usados pelos céticos, que afirmam que “os nossos sentidos são, por vezes, enganadores”; “aquilo que chamamos conhecimento pode não passar de um sonho”; “mesmo que não estejamos a dormir, podemos estar alucinados”.

     Esta investigação é apoiada na dúvida que segue um caminho ou método, sendo por isso uma dúvida metódica e, em consequência, o seu ceticismo ser metódico e tornar-se numa estratégia inicial para pôr à prova a validade de todo o conhecimento, na tentativa de encontrar uma certeza. Ao colocar a questão se “existirá alguma coisa acerca da qual possamos ter a certeza”, chega ao fundamento da Regra da Evidência com a primeira certeza de que para pensar precisa de existir. “Se duvido, se sonho, se estou a ser enganado, devo existir para poder duvidar, sonhar e ser enganado – Cogito, ergo sum – penso, logo existo.”

      Depois das explicações dadas por estes examinandos, o professor moveu-se na cadeira, abriu os olhos e, com a mesma formalidade, procurou aliviar a tensão dos alunos, exclamando com alguma deferência:

     – Até agora, estão a portar-se bem, vamos lá ver como vão terminar! – E continuou dizendo a propósito das exposições: – Já agora que foram capazes de demonstrar as regras do Discurso do Método e como Descartes chegou à existência do Eu pensante (res cogito), proponho-vos que me demonstrem como chegou às ideias claras e distintas, nomeadamente à ideia e existência de Deus, podendo para o efeito continuar o aluno seguinte.

       Depois, voltou a fechar os olhos e a manter-se na mesma atitude de silêncio e com a mesma posição na cadeira.

     De pouco servira o efeito do elogio anterior, já que chegara a vez de prestar provas aquele que iria começar naquele momento a prova mais longa e mais dolorosa de toda a sua formação como aluno. Durara cerca de sete horas e ocorrera em três tardes seguidas, com a sua desistência na terceira tarde, por exaustão e por não sentir capacidades físicas nem psíquicas para poder continuar, pois, ao que parece, se não fora este facto, o exame não teria terminado naquela tarde.

     Um pouco nervoso pela espera da sua vez, começara a exposição pela questão da ideia e existência de Deus, para passar depois à síntese sobre as ideias claras e distintas:

     – “Ao refletir sobre o Eu pensante, Descartes descobre, entre as ideias nele existentes, uma ideia clara e nítida de um ser perfeito, a ideia de Deus. Conclui que esta ideia só pode provir de um tal ser perfeito e que este ser não pode ser apenas uma ideia, mas tem também de existir como ser autónomo. “Aquilo que eu concebera muito clara e distintamente é verdadeiro.” “Trazendo isto no espírito e refletindo sobre o facto de que a dúvida me assalta, compreendo que a minha existência não é perfeita. Porque vejo claramente que é uma perfeição muito maior conhecer, do que duvidar. Mas de onde aprendi a pensar em alguma coisa mais perfeita que eu próprio? Obviamente de alguma natureza que tem, dentro de si, todas as perfeições de que eu possa fazer ideia – numa palavra, Deus. Somente aquilo que é perfeito pode ser atribuído a Deus. Não pode haver imperfeição nele. A dúvida, a inconstância, a tristeza, a cólera, o ódio, não são atributos de Deus, mas qualidades cuja ausência nos faria mais felizes. Isto é, são qualidades imperfeitas, a marca da Humanidade e não da divindade. Deus é perfeito, quer dizer, infinito, eterno, imutável.”

     Ouvida esta explicação, o professor manifestou concordar, mas acrescentara que seria necessário desenvolver mais alguns aspetos filosóficos naquela questão, e uma vez já ser bastante tarde, continuariam, ele e os colegas ainda não examinados, na tarde seguinte e à mesma hora. Aos outros examinandos reforçou o elogio, propôs-lhes uma classificação positiva e deu por terminado o exame de cada um.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 108 a 113


[i]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, Descartes e o Racionalismo, Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.

[ii]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método – As Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.