APERTO DE MÃO

 

“Assim correm os meus sonhos; mas quem sou eu?

Uma criança gritando na noite;

Uma criança gritando por luz;

E sem outra linguagem senão um grito”.

Tennyson – In Memoriam

 

      Já lá vão mais três dezenas de anos, depois da minha primeira narração que fora publicada em Jornal, sobre um momento que me enternecera e me apelara com tanta insistência, que me levara revelar o seu conteúdo e a tentar demonstrar que o amor jamais deixará de ser comum e incondicional.

     Porém, como ainda continuo a meditar no sentido humano do caso, reflectindo como se tal tivesse acontecido ontem, resolvi recordá-lo de novo, pensando que este caso poderá ser atemporal e com isso tornar-se num exemplo intemporal, pois quando penso nele ainda me emociono com a mesma sensibilidade, sobre um acto de profundo amor, que senti nessa altura, manifestado por uma médica de serviço nas urgências de um hospital, a uma criança franzina, doente e aparentemente só, que de tanto chorar, talvez pela mãe e simultaneamente pela dor da sua enfermidade, soluçava em sobressaltos, parecendo querer dormir de cansaço sendo que ao mesmo tempo contrariava essa necessidade com grande agitação e por movimentos descoordenados e bruscos.

     Admiti no momento em que dei conta, pela observação espontânea daquela criança, de que ela já lá estaria em observação num tempo bastante prolongado, em razão de uma doença, de que nunca cheguei a saber ao certo, pois também eu me encontrava no mesmo espaço de pediatria e, num momento que vivi de aflição, por uma crise de bronquite, que atingira um dos meus filhos e me levara também a recorrer aquela urgência hospitalar.

     Contudo, apesar de ansioso e um pouco instável, na observação em redor por estar mais direccionado na atenção ao tratamento do meu filho e às suas melhoras, de relance e de modo espontâneo e desprendido, no que pudera observar naquela ocasião dolorosa, o que vi de singular, profissional e maternal, jamais me poderei esquecer e deixar de sentir o caso, como se tivesse sido hoje!

      Daí que há medida que o tempo passa, ou melhor que eu vou passando, vou sentindo em cada dia sempre com mais intensidade e doçura o reconhecimento do amor, que deverá acontecer em qualquer tempo e de modo comum e incondicional, e sentindo também, como deverá ser sempre reconhecido e apreciado o valor das nossas mãos, especialmente, quando ao serviço do nosso semelhante.

     Em toda a nossa vida, estendemos ou elevamos as mãos em cumprimento a muitas pessoas, que vão para além da família ou dos amigos mais íntimos. Sentimos nesse gesto empatia e grande satisfação, mas raramente procuramos a razão mais profunda, a razão que nos possa explicar com clareza tal sentimento e tal empatia; isto porque, aparentemente, tudo parece estar explicado.

     Na família, os laços são fortes e a empatia gera uma relação afectiva que dirige com força a sintonia do pensamento, de tal modo, que mesmo na negação o cumprimento se processa. Nos amigos, as relações de convivência alicerçam-se em situações progressivamente dependentes, que salvo casos de transição, os seres humanos fixam-se numa relação de emoção e fundem-se com mais ou menos rigor nas alegrias e tristezas de cada um. Nas relações anónimas, geram-se boas maneiras, tornam-se cordiais os pensamentos, tolera-se o tempo de espera na dualidade do diálogo, agigantam-se as ideias nobres; – torna-se possível, enfim, a perpetuidade da relação com vista a um compromisso de saudação no futuro.

     Apesar de toda a complexidade dos sentimentos e das suas solicitações recíprocas, caímos por vezes em actos meramente de rotina – formais e repetitivos; contrariando desta forma, o desejo que anteriormente motivou a ânsia de conhecer.

      Nestes ciclos relacionais, geramos e estendemos a inclusão e exclusão de pessoas que envelhecem connosco no pensamento e no corpo.

    Pensara eu, tantas vezes, que isto era o resultado do nosso tempo de crianças; em que euforicamente nos mostrávamos em humildes saudações, no que nos distinguia em dia de domingo: o fato novo, que com rigor a nossa mãe talhara em seu modelo, ou as botas novas que os pais nos davam, especialmente pelo Natal, de soleado grosso e brilhantes como o Sol, para pontapear tudo quanto rolava no chão.

     Algumas vezes, em desespero, acreditei ser antes o resultado do que nos inculcaram no nosso espírito frágil de crianças; ou a reacção em cadeia de uma “solidariedade na saudação”, para um maior conhecimento em possíveis favores, a solicitar ou a prestar futuramente.

    Cogitei sempre em silêncio, até saber com exactidão o porquê do “aperto de mão” – pois não me bastava conhecer somente a sua origem histórica e toda a teoria manancial que a poderá envolver.

     E a resposta chegara com tanta evidência, que já não resisto em descrever como a senti e qual o efeito que ela teve sobre mim.

     Para aliviar o meu filho de uma crise de asma, tivemos de nos deslocar ao hospital do concelho onde residimos. Dentro deste e no serviço de pediatria, decorria com normalidade o serviço de assistência por todo o pessoal de serviço a todas as crianças doentes e entradas naquele sector.

     O ataque de asma que vitimara meu filho, fora muito agudo e complexo, por isso, a médica responsável no seu socorro e cura, entendeu por bem e maior segurança, ordenar o seu internamento em observações; resultando do facto, uma exigência de eu permanecer durante longas horas, junto à pequena cama onde meu filho permanecia e a maravilha da ciência médica se debatia na debelação da crise.

    Durante esse tempo, fui observando outras crianças que se encontravam na mesma sala internadas, e cujos familiares evidenciavam a mesma dor e aflição por serem comuns ou semelhantes os motivos da nossa presença ali.

      Estar dentro de uma sala de observações não é nada agradável, sobretudo, a quem não tem grande experiência nem está muito habituado a estas cambiantes da vida: uma hora de espera, parece-nos um dia e o nosso corpo parece começar a estar sujeito aos mais duros e pesados trabalhos.

     Observei, entretanto, também outras crianças que não tinham junto de si familiar algum – o que para além da natural tristeza que senti; a convivência com elas me propiciou uma afecção paternalista. E, ficaria por aqui, se não fosse o facto de uma dessas crianças pelo seu choro mais lancinante ter-me chamado atenção, dessa angústia no estar só; observei que segurava na mão um punhado de bolachas já encharcadas pelas lágrimas de dor ou de tanto chamar pela sua mãe.

     Convivi durante bastantes horas, com aquele quadro doloroso, mas apesar de tudo, também maravilhoso pelos olhitos negros da garotinha e pelos movimentos bem ladinos do seu pequenino corpo.

    Tive a impressão que adormecera junto da cama de meu filho, pois não me apercebera de tudo o que se passara até ao momento em que vi diante de mim a médica com a menina a que me refiro sentada sobre o seu colo. Pareciam mãe e filha a entreter-se em adivinhar o que a ambas lhes faltava. Algum tempo depois, começaram ambas a brincar e, no amor deste aconchego, a criança lá fora perdendo o choro e fora começando a meter à boca com total mansidão uma das bolachas que antes lhe servira de companheira entre as lágrimas que chorava.

    Perante este momento tão sublime, senti metamorfosear-se o pensamento e cheguei mesmo, a distinguir mal as duas; pareceu-me por instantes, ver minha mulher e minha filha e fiquei tão emocionado, que desejei adormecer de novo para não batalhar contra a fragilidade do coração em sentimento profundo.

    Já de madrugada, o meu filho estava melhor e o chefe da equipa médica dava-lhe alta para poder regressar a casa. A menina, dormia agora calmamente entre sonhos e as estrelinhas do céu, e a médica que atendera meu filho e o restante pessoal de serviço continuavam ainda a serem anónimos para mim, mas agora, anónimos só no seu nome: pudesse eu transmitir-lhes, o que senti naqueles rasgos de emoção e sentimento de amor.

    Acenei a todos quando saí, em agradecimento pelo que de bom fizeram pelo meu filho, mas agora, já não procedera como anteriormente em acto de repetição formal nem em gesto habitual de rotina. Naquele momento em que nos separávamos, estendi-lhes as minhas mãos e uni-me em sentimento pelo coração – pois compreendi, ali e naquelas horas amargas, a razão da saudação humana e compreendi melhor o poema do amor.

    Dr. Macedo Teixeira – Jornal O Distrito de Portalegre nº.5988-Ano 103-22.08.1986 (texto adaptado do original)