Caminho de Luz e Sombra (Texto 22)

     Depois destas palavras protetoras, ficara ainda algum tempo na sala de aula a refletir nas ideias que escrevia, até que resolvera concluir o discurso num lugar mais sossegado, enquanto aguardava pela noite e se inspirava no modo como dizer na assembleia aquilo que pensava.

     – Boa noite, colegas! – dissera, na continuação da Assembleia e na abertura da Ordem de Trabalhos, o estudante que aceitara a proposta para presidir à Mesa da Assembleia daquela reunião geral e dirigir os trabalhos com mais dois colegas, também propostos para a função de primeiro e segundo secretários, respetivamente. Depois, começara a esclarecer um pouco mais os presentes sobre as razões daquela reunião geral, sobretudo da necessidade de se resolver o problema da falta de homologação pelo Ministério da Educação dos contratos de trabalho de alguns docentes. Por fim, antes de dar a palavra, pedira a todos que houvesse o maior respeito pela Universidade e pela Faculdade de Letras no tratamento daquela e de outras questões, pois apesar de eleitos ad hoc, uma vez aprovada a Mesa da Assembleia e a Ordem de Trabalhos proposta naquela reunião geral, passariam a estar investidos pela mesma Assembleia dos poderes necessários para dirigirem os Trabalhos e para comunicarem à Reitoria a posição dos estudantes dos cursos noturnos, mas também dos cursos diurnos pela força da solidariedade manifestada com a sua presença.

      Entretanto, aproveitando a oportunidade dada para o uso da palavra, começara a discursar o representante do grupo que se opunha à manutenção da lecionação das aulas.

     – Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é nossa intenção mostrar publicamente o nosso desagrado por não ter havido por parte do Ministério da Educação um tratamento igual em todos os cursos propostos para o iniciar do ensino noturno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É um dever do Estado garantir a igualdade de condições na mesma realidade. O ensino universitário noturno merece um tratamento tão digno como o ensino diurno, nós somos pessoas iguais, aliás, em certos casos, somos até capazes de aceitar com mais facilidade as dificuldades e o sofrimento das situações, mas sobre o caso que nos fez reunir hoje, não poderemos continuar a permitir que o Ministério da Educação se dê ao luxo de explorar a mão-de-obra docente permitindo o trabalho sem um horário definido e sem o correspondente salário. O Ministério já tivera tempo suficiente para homologar os contratos dos professores que têm lecionado sem receber ou até contratar outros se fosse caso disso e fosse essa a sua vontade. Não é admissível continuarmos por mais tempo neste vazio académico e nesta indefinição futura. Nós somos estudantes, precisamos de quem nos ensine, mas não queremos esmolas, nem o Ministério precisa disso!

      Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é por esta razão e também em nome do direito à igualdade que vamos neste momento propor à Mesa um voto por escrito com vista a serem suspensas as aulas pelo tempo necessário até que seja resolvida a questão.

     Depois deste discurso, um tanto inflamado, mas com razões que eram óbvias, o orador da oposição arrancara um aplauso tão grande que o silêncio que se seguira parecera indicar que qualquer outra proposta seria imediatamente derrotada.

    Contudo, a interromper aquele silêncio, surgira um pequeno burburinho a fazer-se notar no meio da sala, enquanto entre a multidão começara a ouvir-se a voz de um estudante que mais parecia a de um estranho que aprendia à sua custa como andar entre os demais para obter sem desonra o curso que tanto ansiava.

    – Senhor Presidente, Senhores Secretários, digníssima Assembleia. O que acabámos de ouvir é a mais preciosa obra da palavra, a Verdade! No entanto, nem sempre a verdade terá retorno se não formos, em certas ocasiões, mais diplomatas que revolucionários. Pois, se é um facto que todos temos direito à igualdade de oportunidades em todas as situações, a força do que é novo na experiência da verdade será sempre mais frágil pela dúvida e descrença, do que aquilo que já é reconhecido na verdade pela tradição do que é tido como certo. Sabemos que a justiça é um valor da Humanidade e que o Homem é a sua mais bela expressão, logo, a justiça terá que ser humana e estar ao serviço de todos os homens. A justiça da humanidade e com lei será a razão mais forte da Liberdade, pois de que valerá ao homem poder contestar livremente, julgar a partir do raciocínio livre, mas não julgar com universalidade e desvirtuar a lei? De que servirá os homens dissertarem nas praças públicas, nos plenários ou nos fóruns se com isso apenas obtiverem o efeito aparente da palavra e não o bem da igualdade do homem na realidade? É por isso que, em certos casos, mesmo que a verdade seja peregrina e sofredora, deveremos entender um tal sacrifício em nome de um bem maior, o bem da igualdade de condições para todos ([i]). Aliás, será pela igualdade que deveremos lutar, será por ela que poderemos ser felizes, mesmo na mais pequena proporção que possamos ter. Mas, tal só será possível, se o conseguirmos sem perder o que mais queremos na afirmação da nossa honra e no sucesso da justiça.

      Senhor Presidente, senhores Secretários, excelentíssima Assembleia, todos temos consciência de que neste momento seria um ato de justiça que baixássemos os braços, rejeitássemos a ajuda voluntária e o sacrifício dos professores e proclamássemos a suspensão das aulas até que o problema fosse resolvido. Certamente, com esta atitude afirmaríamos o direito à indignação, o direito ao respeito pela semelhança, o direito ao reconhecimento natural da realização da vida de cada um. Mas, também todos sabem quais seriam as consequências deste ato na defesa da razão que nos assiste. Evocá-las, nesta ocasião, seria apenas para apelar a todos os presentes para um bem que julgo produzir melhor efeito do que aquele que alguns colegas e não poucos estarão a visionar agora.

     Todos sabemos que, logo que as aulas forem suspensas, os professores não voltarão a lecionar nem voltarão à Faculdade. Com isto, deixaremos de evoluir nos conhecimentos e nos conteúdos programáticos. Como consequência ficarão atrasados os programas de cada cadeira e ficaremos muito mais limitados nos conteúdos necessários para o exame que, entretanto, será marcado, independentemente da nossa frequência. Depois, perderemos o contacto uns com os outros e com este a possibilidade de alimentarmos com a nossa presença a vontade de garantir para todos nós e para os vindouros a continuidade dos cursos noturnos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Todos sabemos que quem não aparece, esquece! E a nossa recusa em continuar as aulas só poderá nesta altura voltar-se contra nós.

     Por isso, estamos mais convictos da resolução do problema, se agirmos coletivamente com uma atitude mais solidária com as dificuldades inerentes à regularização do processo por parte dos responsáveis, se fizermos com que seja manifestado um conhecimento mais alargado à Academia e aos órgãos de comunicação pela divulgação deste problema por parte dos nossos representantes, nomeadamente pelos membros da Mesa da Assembleia que preside a esta reunião e, se conseguirmos que seja consequente e oficial o conhecimento manifestado junto da Reitoria da Universidade e do Ministério da Educação, acreditamos que esta atitude se tornará suficiente e eficaz, pois a proposta que iremos ler e entregar à Mesa para ser posta à votação, se for aprovada nos pontos que refere, há de permitir com sucesso obter os resultados que desejamos.

Para isso queremos que conste da nossa proposta, o seguinte:

    – Que seja dado conhecimento por escrito ao Ministério da Educação da falta de homologação dos contratos dos docentes em causa;

    – Que seja dado o prazo máximo de vinte dias para a resolução do problema;

    – Que seja dado conhecimento à Reitoria e aos docentes em causa das decisões tomadas neste plenário.

     Quando este jovem terminara o seu discurso e no momento em que se encaminhava para entregar a proposta à Mesa da Assembleia, ouvira-se um troar de palmas tão forte e tão contagiante que levara o opositor a retirar a sua proposta, concordando com o exposto e proporcionando um ambiente para a sua aprovação por unanimidade, ao mesmo tempo que todos o saudavam pela inteligência e tato no tratamento desta questão.

     Fora uma noite de grande satisfação pela compreensão e reconhecimento de todos, mas também pelo resultado alcançado, já que, ainda antes do prazo dado para a resolução do problema, o Ministério da Educação homologara os contratos e as aulas puderam continuar permitindo-lhe concluir o primeiro ano com sucesso.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 103 a 108


[i]. Tocqueville, Alexis de. Da Democracia na América. Coleção Os Grandes Filósofos- Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit –desta edição de Da Democracia na América: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora,Lda – Livro I – 2008 - págs. 5 e 6.