Caminho de Luz e Sombra (Texto 16)

     O Amaral deixara a casa de Avintes, que alugara à Senhora Maria Pinheiro; com ela, ficaram os sonhos de menino que o António tivera durante o tempo que lá viveram. Ficara o terreno onde caminhava pelo meio dos carreiros que separavam os produtos agrícolas plantados. Ficaram as árvores de fruta e as videiras que lhe faziam brilhar os olhos quando os frutos coravam ou as uvas estavam prontas para serem colhidas em cachos suculentos. Ficara a casa e o jardim onde ainda criança esperara longos dias acreditando que uma raiz já seca ainda haveria de dar canas da Índia. Visitava todas as manhãs o lugar onde plantara aquela raiz que por lá aparecera sem saber como. Todos os dias a olhava na esperança de ver nascer uma pequena folha que lhe indicasse que o seu sonho ia ser real.

     De tanto desejar e a tratar com carinho, acreditara que um dia ela haveria de se encher de canas. Aliás, diz muitas vezes que se acreditarmos muito na possibilidade de um sonho, que ele se torna realidade. Pois sobre as canas da Índia diz tê-las visto em muitos lugares, mesmo onde os sinais seriam menos evidentes, e se já não escolhera uma cana para pescar era porque o rio Febros agora ficava longe. Ficara lá mais vincada a recordação da mãe, porque vira-a sentada no terreiro muitas vezes a sorrir de alegria enquanto descascava as batatas e migava as couves para a sopa, por toda a riqueza que tinham agora depois de a procurarem e sofrerem tantos anos.

     Não fora fácil a adaptação; a casa era muito pequena, havia muita limpeza mas só havia um quarto de casal. Para dormirem todos, as outras divisões tornavam-se em quartos provisórios, o trabalho obrigava os adultos a horários diferentes, não sendo fácil para o sossego das crianças. Depois, quando um dos maiores adoecia, lá ocupava o quarto do casal, pois era preciso que o médico visse o doente na melhor divisão.

     O António continuava a trabalhar e a estudar à noite, chegando muitas vezes quando já tudo dormia. O amor naquela casa era bendito, o jantar feito pela cunhada ficava embrulhado em jornais e num cobertor; estava sempre quentinho, mas era preciso comer mantendo todo o silêncio. Para estudar para os exercícios diários, e em especial para os testes, só poderia ser na cozinha e com a porta fechada para não incomodar ninguém e muito menos as crianças, que dormiam muito perto.

     Apesar de os resultados na escola serem bons e ainda muito jovem já ter independência económica, foram várias as noites em que as lágrimas iluminaram a sua vida na solidão de órfão de mãe e da vida de sacrifício que levava.

      Lembrava-se nos grandes tormentos do que lhe prometera quando esta o chamara ao leito alguns dias antes de já não poder falar. Reconhece que essa promessa fora nos momentos mais irados a sua tábua de salvação, pois se não tivesse prometido que seria bom, trabalhador e obediente, talvez não tivesse a glorificação da honradez nem o reconhecimento social para ser respeitado.

     Aliás, numa noite de Inverno, já apaixonado e a caminhar para os grandes sonhos que haveria de realizar com a sua Cinderela, tivera depois algumas horas de estudo no sofrimento do cansaço, uma espécie de “encontro” que durara o tempo de uma carícia e deixara sentimento marcado no coração para o lembrar sempre que valerá a pena ser assim, pois ainda sente a leveza do sinal quando lhe escapa o esplendor. Acredita que fora o momento do acordar da sua estrela, que continua a crer ser verdadeiro e sem nenhuma dúvida, julgou na altura poder imortalizá-lo, no poema que se segue:

 

     A mulher que Deus me deu.

     Deus a deu, Deus a levou.

     A mulher que me escolheu

     seja ela o que eu não sou.

 

     Deus a deu, Deus a levou,

     por outra coisa não poder ser

     Uma lágrima me ficou

     que me mata até morrer.

 

     Se escutas meu pensamento,

     nesta noite longa e fria.

     A tal não dês atento,

     porque choro de alegria.

 

     D’alegria que não tive,

     nem dei conta no sentir.

     A criança,quando dorme,

     dorme a chorar e a rir.

 

     Criança que já não sou,

     um boneco quero ter.

     Deus mo deu ou inventou,

     me acompanhe até morrer.

 

     Quisera depois começar a entrar nas voltas do destino e, por meio de um concurso, arranjara emprego nas Trinchas e Pincéis 1001, era uma das maiores lojas de comércio de pincelaria no Porto. Acarinhado como um familiar pela patroa, trabalhara durante algum tempo na cidade, mas depressa se atemorizara em relação ao futuro. Desejava ser alguém e a cidade parecera-lhe um local onde facilmente se poderia perder. Haveria algo de estranho que porventura o atrairia para os caminhos da perdição, e a promessa que fizera à mãe de ser “bom menino” começara a senti-la de tal modo que tudo quanto lhe parecesse que levaria ao contrário ele deveria rejeitar. Corrido pelas escadas abaixo, em altos berros, pela patroa, que não aceitara de bom grado a sua saída, no dia seguinte fora apresentar-se num outro armazém para desempenhar funções no escritório, um lugar que há algum tempo lhe fora oferecido por um amigo que lá trabalhava e tinha grande influência no comerciante. Era uma empresa que ficava próximo da sua residência, passara a ganhar tanto como ganhava no Porto e a ter mais facilidade para continuar a estudar à noite na Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, como o fazia desde os quinze anos de idade.

     O dono deste armazém chamava-se Moreira, mais conhecido pelo senhor Moreira das peles, que, para além da sua bondade no reconhecimento da competência e do trabalho dos empregados, possuía também uma grande inteligência na arte de comerciar peles e outros artefactos para o calçado. De tal modo que, em certas situações, alguns destes produtos poderiam ser pouco vendáveis, pela aparência ou por outra razão qualquer, no entanto, ele recomendava-os à experiência a alguns industriais, que, com alguma resistência, lá iam fazendo alguns modelos para mostrar e vender aos seus clientes.

    Depois, era só aguardar os resultados e o inesperado tornava-se contagiante. As sapatarias compravam tanto calçado destas amostras especiais que, na maior parte das vezes, a existência destes produtos em armazém já não chegaria para as encomendas dos fabricantes que apostaram nesta aventura.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp.69 a 73