Caminho de Luz e Sombra (Texto 19)

   Porém, ainda não tinham terminado o instante das palavras, quando ouviram alguém bater à porta.

     – Sou eu, senhora professora! – exclamara baixinho a Dona Irene para não perturbar o silêncio de ambos. – Eu queria muito falar com a menina! – sussurrara ainda mais baixinho.

     Era assim que esta delicada senhora tratava a jovem professora. Chamava-a de vez em quando para lhe falar de algo que teria acontecido ou para segredar-lhe recordações da sua vida tantas vezes vivida em solidão e com alguma nostalgia à mistura.

     A professora, ainda com um ligeiro rubor do momento de afeto, abrira a porta e indagara: – O que há, Dona Irene, o que é que se passa? A senhora está bem? – interrogara com carinho.

     – Está tudo bem, não há qualquer problema, mas não consegui conter-me com o que observei há pouco – concluíra, esboçando gestos com alguma estupefação. – É que há bocadinho fui dar com o empregado da pensão a falar sozinho, como se as pedras o escutassem! Estava voltado para o terraço e murmurava algo que não consegui entender, mas não me pareceu boa coisa – acrescentara, cerrando os lábios em gesto de desconfiança.

     – É verdade, Dona Irene, a senhora tem muita razão! – exclamara a professora. – Eu própria já me assustei um pouco com esses sinais, mas acabei por acreditar que se calhar é a forma que ele encontra para desabafar dos ralhos que o patrão lhe dá. Além disso, ele já não é criança e já está há muito tempo com eles, por isso, como não pode fazê-lo de outro modo, responde-lhe indiretamente!

     – Oxalá seja assim como diz a menina! – concordara com alguma tolerância e já mais tranquila. E, quando se aproximava para despedir-se com um beijo, a jovem professora exclamara repentinamente:

     – Ó Dona Irene, o meu marido está cá com umas ideias, que eu nem sei o que dizer-lhe sobre o que ele me pediu. Não é que anda todo eufórico com o desejo de irmos passar o Ano Novo ao Clube de Aeronáutica! Diz que o meu vestido de noiva, porventura cortando-o nas mangas e subindo-o um pouco, faria um sucesso e seria uma surpresa naquela noite de gala! Olhe para o que lhe havia de dar! – exclamara com disfarçada satisfação.

     – E porque não lhe faz a vontade? – questionara a gentil senhora com delicadeza. – A menina tem o brilho das noivas e vestida com semelhança não ficará muito diferente de uma modelo parisiense. Digo-lhe que seria com muita alegria que lhe arranjaria o vestido, creio que o seu arranjo seria simples e não perderia a beleza que tem. – Depois acrescentara jubilosamente: – A menina vai sentir-se como nos contos de fadas, em que a beleza do rosto também ressurge num lindo vestido branco que desvenda as imagens do Céu.

     Com estas palavras, a jovem professora ficara emocionada e sem condições para não fazer a vontade ao marido.

     Quando voltara para dentro trazia um sorriso rasgado pela alegria com que fora contagiada, mas ao mesmo tempo procurava conter-se, pois tinha consciência de que seria um passo que deveria dar com alguma prudência.

     – Que tens? – perguntara o marido. – Estiveste a falar tanto tempo com a Dona Irene; há algum problema? – interrogara com cuidado.

     – Não, não há nenhum problema! – observara tranquila. – O que se passa é que ela diz que parece haver qualquer coisa de estranho com o empregado, pois julga que ele não andará com bons pensamentos. – Depois acrescentara: – Eu tranquilizei-a: disse-lhe que ele já tinha uma certa idade, e pelo facto de ser o empregado mais antigo, provavelmente diria alguns disparates quando está só e, se calhar, quando está mais irritado, pelos ralhos que o patrão lhe vai dando constantemente.

     E, para não preocupar mais o marido, aproveitara para lhe contar o que a Dona Irene lhe dissera sobre a possibilidade de festejarem a noite de Ano Novo no Clube de Aeronáutica. Com esta surpreendente mudança de atitude, ainda antes de ela concluir a explicação, já o marido dava pulos de contente, ao mesmo tempo que a segurava, para ensaiarem os passos de dança que o futuro projetava nos cinco sentidos e os corações começavam a abrir ao sonho.

     Com o quartel, a pensão, a escola e os alunos, lá iam derramando a vida com o romantismo próprio de quem ainda está em lua de mel. Às vezes, eram tão improvisados e espontâneos que se envolviam em afetos na escola onde ela lecionava, como se estivessem fora do sistema, ele que a ia visitar montado numa bicicleta do tempo da Segunda Guerra Mundial, e ela que o esperava como a um anjo protetor que lhe daria forças para continuar a ensinar os seus negrinhos. Era assim que os sentia e foi assim que o marido os sentira também, pois não pudera impedir de deixar cair-lhe uma lágrima quando se despedira dela no aeroporto de Porto Amélia e ouvira inesperadamente uma mãe a apontar insistentemente para o céu e a dizer com emoção: – Olha o avião, meu filho, ali vai a tua professora!

     Entretanto, chegara o final de dezembro a proporcionar um certo nervosismo pela ansiedade da aventura que tinham prometido realizar para passarem a Noite de Fim de Ano num modo mais ousado, na procura de um momento de felicidade única. Tinha mostrado ao marido o vestido com as alterações que a bondosa senhora lhe realizara, os sapatos, a capelina e as luvas, mas fizera questão de se preparar apenas à noite e pouco antes de saírem para a festa. Ao almoço ficara calada durante todo o tempo, pouco comera e de vez em quando suspirava, parecendo denotar alteração na saúde e quebra de disposição para a alegria. Esta mudança de humor não causara grande estranheza, pois estavam casados há três meses e o facto de ela ter ido com o marido para África tinha provocado nestes primeiros tempos estados de grande nostalgia. 

     Por outro lado, embora continuassem a comer na pensão, tinham alugado uma casa que lhes permitia mais intimidade e aconchego, embora os levasse a reconhecer que pouco mais tinham do que a cama para dormirem, o que, sendo desagradável para ambos, a mulher sentiria um pouco mais de insatisfação e desânimo.

     Ao cair da tarde, o marido chegara do quartel, dirigira-se ao pátio da pensão onde normalmente ela se sentava a conversar e o esperava para jantarem. Dera-lhe um beijo mais acalorado, ao mesmo tempo que saudara os presentes, incluindo a Dona Irene, que sempre admiraram como uma senhora muito respeitável.

     Comeram, fazendo questão de não quebrarem o ambiente para a Noite de Fim de Ano; para isso, pedira ao empregado que lhe trouxesse um café e um whisky que fora bebendo com desembaraço, pedindo à mulher que bebesse também um pouco, pois sabia que seria necessário a partir daquela hora que todas as energias fossem orientadas para o momento da aventura que se aproximava rapidamente.

     – Como é que vamos para o Clube de Aeronáutica? – interrogara ela com curiosidade.

     – Vamos de táxi, mulher! – respondera o marido sem hesitar.

     – A que horas vamos sair de casa? – perguntara sem convicção.

     O marido, percebendo que o sentimento dela não tinha evoluído para a euforia que desejava, recolheu-se por algum tempo num silêncio conjugal, para que a comunicação fosse um sentimento de alma e a vontade palpitasse pelo desejo da liberdade. Escudado na intimidade, procedeu como se não tivesse notado nada, interpelando-a carinhosamente:

     – Estava a pensar se não seria melhor irmos para casa e começarmos calmamente a preparar-nos. Não sei se falta alguma coisa, mas pelo menos será preciso falar com um taxista, para que lá por volta das 10h00 nos vá buscar a casa. Será necessário eu ir à praça para fazer a marcação, e isso também demorará algum tempo – justificando deste modo a pressa com que insistira para regressarem a casa.

     De mãos dadas, desceram em silêncio a rua até onde moravam e junto da porta de entrada separaram-se até que ele marcasse a hora com o taxista que os levaria ao clube à hora marcada e quando estivessem prontos.

     Quando o jovem esposo entrou em casa, vindo da praça de táxis, dirigiu-se para o quarto e procurou no roupeiro o fato que vestira no dia do casamento. De repente ficara toldado de paixão amorosa e começara a imaginar que a cor escura de antracite sobressairia ainda mais naquela noite africana. A camisa de cor branca daria a aparência da pureza própria da juventude. E os sapatos de verniz, as luvas e a gravata exaltariam a coragem e a beleza que o toque da estética releva em certas noites de esplendor.

     Mergulhado naquele delírio de inocência, sentira que a mão da esposa lhe tocara nas costas para o fazer voltar e surpreender no instante da aparição, para a realidade que parecia voltar a ser sonho. Até ela, antes de mostrar-se, tivera a impressão de reviver o momento em que desfilara no adro da igreja até se inclinar no altar.

     – Olha para mim! – sussurrara com carinho. – Estou bem, estou bonita? – interrogara curiosa. – Era assim que querias? – indagara com alguma sedução. E como ele não respondera, nem parecera estar a ouvir o que ela dizia, resolvera provocar-lhe a consciência: – Vá lá, diz lá alguma coisa, diz que isto foi um erro, que o vestido não ficou bem, mas por favor fala, antes que eu comece a chorar e perca a vontade de ir.

      Entretanto, já com as lágrimas a correr-lhe pela face, começara a ouvi-lo pronunciar as primeiras palavras ao mesmo tempo que a agarrava e beijava sem saber muito bem o que fazia.

     – Desculpa, não consegui entender o que senti no momento em que olhei para ti, pareceu-me teres surgido de um sonho, senti algo tão sereno e cálido que não fui capaz de responder, aliás, tudo o que eu dissesse não corresponderia ao sentimento que ainda rejubila na minha alma. Agora tenho a certeza de que o que pensei é real, que ambos iremos causar admiração no baile e que a primeira dança será de gratidão pelo amor que celebraremos nesta noite.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 85 a 91