“Freely you have received, freely give.”

 

Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

 

Macedo Teixeira

 



Ler mais: https://partilharsaberes.webnode.pt/news/de-graca-recebestes-freely-you-have-received/#:~:text=%E2%80%9CDe%20gra%C3%A7a-,recebestes,-%E2%80%9D%20/%20%E2%80%9CFreely%20you%20hav

“De graça recebestes” / “Freely you have received”

06-09-2019 16:10

“De graça recebestes, de graça dai.”

 

    Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspectos da misteriosa transcendência da minha vida.

    E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

    Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos actos.

    A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

    Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

    Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

    Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

    Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

    Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

 

Macedo Teixeira

 

 

“Freely you have received, freely give.”

 

Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

 

Macedo Teixeira

 



Ler mais: https://partilharsaberes.webnode.pt/news/de-graca-recebestes-freely-you-have-received/#:~:text=%E2%80%9CDe%20gra%C3%A7a-,recebestes,-%E2%80%9D%20/%20%E2%80%9CFreely%20you%20have

“De graça recebestes” / “Freely you have received”

06-09-2019 16:10

“De graça recebestes, de graça dai.”

 

    Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspectos da misteriosa transcendência da minha vida.

    E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

    Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos actos.

    A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

    Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

    Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

    Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

    Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

    Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

 

Macedo Teixeira

 

 

“Freely you have received, freely give.”

 

Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

 

Macedo Teixeira

 



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“De graça recebestes” / “Freely you have received”

06-09-2019 16:10

“De graça recebestes, de graça dai.”

 

    Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspectos da misteriosa transcendência da minha vida.

    E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

    Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos actos.

    A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

    Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

    Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

    Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

    Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

    Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

 

Macedo Teixeira

 

 

“Freely you have received, freely give.”

 

Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

 

Macedo Teixeira

 



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“De graça recebestes” / “Freely you have received”

06-09-2019 16:10

“De graça recebestes, de graça dai.”



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“De graça recebestes” / “Freely you have received”

06-09-2019 16:10

“De graça recebestes, de graça dai.”



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“De graça recebestes, de graça dai.”

 



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OCULTOS ENTRE CENAS

 

      Ocultos entre cenas vemos o Mundo desfilar nas suas múltiplas e agradáveis variações; estados de graça e de misericórdia humana; factos de grande satisfação e de profundo sofrimento.

     Entre cenas, vemos o “espetáculo” que não queremos e que, não podendo deixar de ver, vemos só o que nos não dói ou o que os nossos sentimentos nos permitem. Vemos o Mundo que varia e muda, que se transforma e se enfraquece para acudir às desgraças da inteligência humana, que imprevidente e teimosa, pensa que tudo pode fazer, para os seus prazeres e gozo das suas “grandiosidades”.

    Ocultos entre cenas, assistimos amedrontados pela incerteza do futuro, porque o presente está ameaçado e a Vida se afunda na desgraça de uma juventude sem esperança e uma sociedade sem ordem e sem rumo.

     O Mundo não se governa sem ordem, nem com tamanha desfaçatez e desinteresse pela verdade e pelo gosto de organizar a Sociedade na base dos princípios sociais e morais. A sociedade não pode ser apenas, formada pelo conjunto de pessoas ou pelo elitismo dos grupos: onde reina o ruído e a confusão ou o separatismo e a distância; deste modo não há rumo social correto.

     Entre cenas, assistimos ao nascer de corações despedaçados, de consciências laceradas pela falta de retidão dos outros, de brio e interesse em comungar de um mundo humano, com emoções fortes e desejos de aventura na liberdade do amor e do respeito do homem pelo homem.

      Diz J. Lacan que o homem fala porque a linguagem o fez homem. Sem a linguagem humana, não teríamos superado a nossa animalidade natural; não faríamos senão gestos, e estes não seriam tão perfeitos e coordenados como são! Mas nós não podemos limitar a nossa fala ao conjunto das pessoas ruidosas e confusas ou às elites separatistas e autoproclamadas de “eleitas” e perfeitas.

      A linguagem faz o Homem e este surge no ser social que é, com virtudes e defeitos, com sonhos e pesadelos, sem ter o direito de se deixar perder na confusão e desordem, nem o direito de se autoproclamar superior aos outros e, em consequência, criar grupos que formam elites sem rosto nem alma social. Veja-se a exemplo os grupos que, em nome de uma religião, que às vezes nem compreendem bem, procedem criminosamente, matando todos aqueles que não comungam dos seus fanatismos de tutela.

     Entre cenas, assistimos à queda dos “velhos atores” perfeitos e lúcidos, que nunca foram escravos de ideologias ou poderes de qualquer espécie, que nunca foram sobranceiros aos que eram mais pobres nem abdicaram de autonomia, liberdade e sinceridade.

      Atores que amaram uma ideia comum: serem homens e fazerem os outros serem a mesma coisa; homens que desejaram sonhar, viver, amar, rezar, e, quando já velhos, testemunharem que vale a pena viver, em liberdade e não ocultos entre cenas, sermos assistentes diretos, participarmos do “espetáculo”, porque tudo está bem, embora a Humanidade também envelheça, para poder se renovar, com os novos filhos que nela diariamente vão nascendo.

    Entre cenas, sentimos uma vontade enorme de gritar, para que este “espetáculo” degradante da Humanidade atual termine, antes que o palco se afunde e as luzes se apaguem de vez.

Macedo Teixeira

O Sentido do Escritor no Caminho da Globalização

 

     Ao pensar na questão do Sentido do Escritor no Caminho da Globalização, surgiu-me à memória o poeta Miguel Torga quando no seu Diário XII, escreve o seguinte:

 

      “A vida não tem sentido...

      Ela, em si, não...respondi.

     Mas tem o sentido que lhe damos.

     Tem a nossa riqueza, o nosso entusiasmo, o nosso orgulho...

     Ou a nossa covardia.”

 

     Será uma dádiva generosa que na evocação destes juízos surja o propósito para nos situarmos na questão do Sentido da Vida em toda a sua dimensão, focando com humildade a nossa existência e desejando que se abra no silêncio e na inquietação destas palavras o deslumbramento, sempre tão necessário, para o êxito de qualquer mensagem.

 

     Todos sabemos que o captar da atenção de quem se propõe a ouvir ou a ler a palavra, não poderá ser condicional, nem se poderá determinar a sua vontade nem determinar a sua inspiração. Será pela verdade e pela motivação que a apoia, que se poderá levar o recetor a alcançar as formas do pensamento, a começar pelas imagens para seguir depois até à perceção das ideias, mas sempre num exercício voluntário de adesão ao sentimento comum que se vai supondo nas palavras e na ideia inspiradora que se espera alcançar no verbo.

 

     Ao tomarmos consciência do processo da globalização e das suas consequências, julgamos haver uma grande necessidade de, nesta fase que tende para a mundialização, advertir para a importância que terá para a nossa estrutura social e cultural, cuidarmos da possibilidade e da liberdade do Sentido do Escritor no Caminho da Globalização na diversidade de estilos ou na riqueza de géneros.

 

     Cuidar para garantir a possibilidade de alcançarmos um Sentido que não seja só o que lhe damos, quando em relação à vida, mas também aquele que devemos dar em relação a outros aspetos, sobretudo àqueles que esperamos, que, por via de razão, venham a ter na globalização do Mundo em qualquer plano da nossa existência.

 

     Desde logo, fazer com que o sentido do escritor possa continuar a manter-se com o lado da presença real e o lado da evasão transcendental. Que este possa continuar a manter-se universal e profundo, para que nos possa levar, se necessário, da abundância das riquezas e loucuras dos homens à rareza e loucura de Deus.

 

     Sabemos que temos sido testemunhas desta vontade e ela nos tem guiado como povo. Que temos sido intérpretes de um sentimento que se localiza aqui e em qualquer lugar onde a nossa língua é mensageira: um sentimento de saudade pela distância que nos separa do ser Portugal, mas que a todo o custo vai caminhando para a tangência e para o cumprimento dessa composição que há muito se vai tornando cada vez mais perfeita, mais próxima e mais sublime. Ao sermos adeptos exímios de uma unidade e razão, temos espalhado e partilhado os valores da comunidade Lusíada por todo o Mundo, de um modo livre e fraterno sem nunca ficarmos amarrados a qualquer fixação ad æternum.

 

     Temos procurado um sentido universalista para o cumprimento da nossa razão. Temo-nos aventurado no interminável e antecipado a História para fazermos como povo a história de que nos haveremos de orgulhar enquanto cidadãos do mundo. E na interminável discussão pela descoberta do cumprir-se Portugal, temos tido sempre presente a dimensão mais perfeita da vida humana, a dimensão existencial, interior e literária; a dimensão artística que, em versos e prosas e nas artes do belo canto, a experiência já imortalizou e um novo sentido se fez no Mundo. Todos sabemos que os escritores vão dando sentido à História, mas não se sentirão felizes fora destes valores; eles são a expressão e pensamento, são uma imagem viva que poderemos ver refletida na nossa alma e sentirmos que não podem ser posse de ninguém nem ser forma definida e fechada.

 

     Aliás, este sentimento encontra-se retratado “Na Fénix Renascida ou obras poéticas portuguesas”, recolhido num Dicionário de Literatura, da responsabilidade do Professor Jacinto Prado Coelho, publicado pela Editorial Figueirinhas e onde se chama à atenção nos cinco volumes dos cancioneiros seiscentistas, publicação de Matias Pereira da Silva, para o pensamento literário dos séculos XVII e XVIII que “reflete uma dominância humana entre o épico e o mítico com expressão dos segredos ardentes e da arte da beleza dos cambiantes da vida, mas também reflete o sentido revolucionário da dialética das mudanças nas composições e na ordem social”.

 

     Houve até autores nos séculos XIX e XX, porventura de cunho mais filosófico, que não ficaram situados em nenhuma corrente de pensamento, que não partiram de respostas ou soluções, mas da situação interrogante do homem português religioso e prático, vivendo a História em rotina e aventura, em saudade ambígua de desterro e lirismo melancólico de solidão. Foram exemplos deste esforço de aventura e rompimento com as amarras dos sistemas Pedro Amorim Viana, Lopes Praça, Antero de Quental, Sampaio Bruno, Leonardo Coimbra e, de um modo especial, Oliveira Martins, que chamava a atenção dizendo que até "a própria terra deveria fazer refletir todos aqueles que vaidosamente pregam a teoria de um progresso constante e sem limite".

 

     Situando a análise em juízo, poderemos afirmar que nunca fomos “tontos” na compreensão do sentido da civilização universal. Já que temos vindo a ser antecipadores de um pensamento moderno e integrado, porventura sendo muito críticos e interrogativos na seleção dos hinos do progresso. Mas, se alguma coisa houve de desvantagem nas nossas lições da história, também muito de notável fizeram as nossas obras, já que na expansão portuguesa demos novos sentidos ao Mundo.

 

     Ainda a propósito da ação universal do Escritor, gostaria de citar de Vergílio Ferreira, o seguinte: "Quanta coisa aprendi e sei que está aí à minha disposição quando dela preciso. Mas esta simples verdade de que eu estou vivo, me habito em evidência, me sinto como um absoluto divino, esta certeza fulgurante de que ilumino o mundo, de que há uma força que me vem de dentro, me implanta na vida necessariamente, estabilização de mim a mim próprio que me não deixa ver os meus olhos pensar o meu pensamento porque ela é esses meus olhos e esse meu pensamento".

 

     A partir da conjugação na Verdade da citação, parece-nos possível melhorar o propósito, induzindo, para o efeito, uma projeção do Criacionismo de Leonardo Coimbra, que no conhecimento evidenciava ser o facto da ação mais do que o facto psicológico do tempo, que a liberdade era uma geração espontânea do sentido universal e, sobre o sentido Lusíada, dizia ser um sentido representativo mais do que um sentido determinado e rígido.

 

     Será esta evidência de um sentido livre, representativo e universal que desejamos que na globalização ou Universalização ganhe vínculos de aceitação e universalismo, vínculos de integração cultural e de edificação de pensamentos humanistas, ganhe a força de princípios para o acolhimento da grandeza e fascínio do universo, com certeza do desejo pela aventura cultural e pela admiração de outros povos, mas de outro tanto, pelo nosso povo e pelo desejo de nos restaurarmos sempre a partir de nós próprios e de cada situação em que vamos vivendo.

 

     Deve também relevar-se, como necessário, aquele aspeto que reclama com o mesmo vigor este desejo de singularidade na complexidade global, que fará o significado do valor das identidades culturais e da intimidade estética dos valores de cada obra.

 

     Trata-se sem dúvida da questão do valor das raízes, que poderemos perceber melhor com a ajuda do pensamento do escritor asiático Georges Séféris, um escritor de consciência europeia, cujo pensamento esteve em exposição na biblioteca de Vila Nova de Gaia em 1998 e que dizia o seguinte: “Ninguém se fecha sobre si mesmo com medo de perder a sua originalidade, porque esta constitui a sua força e acredita nela.”

 

     Todos estaremos de acordo com o escritor Georges Séféris, pois a originalidade é uma matriz complexa que se enche de muitos elementos espirituais, físicos e locais. As imagens que retemos nas nossas lembranças são físicas no tempo e no espaço, situam-se na memória entre a semelhança e a igualdade. São as formas que melhor nos guiam, mesmo que não sejam muito nobres e agradáveis; pois elas tornam-se nas formas que dão vida ao turbilhão dos nossos pensamentos. Será porventura este sentimento que se poderá constatar em Vergílio Ferreira, que na obra Aparição, pensa uma matriz cheia de elementos espirituais a evoluir para uma síntese radical sobre a face última das coisas e a glorificação da sua origem.

 

     Deste escólio, nota-se existir uma emergência nas palavras sem a nostalgia da fixidez mental, porque é essa a vontade do escritor ao intervir no silêncio para dirigir os pensamentos a uma elevação quase mística, até aos limites possíveis da sua escrita e aos domínios territoriais do seu texto, que se pretende seja uma obra para cada leitor que a abrirá com a mente e com a proximidade de experiências e culturas. Mais do que um texto e uma obra, a sua escrita é uma mensagem que se decifra numa plenitude de partes que tocam os intérpretes e descodificam as civilizações. Sabemos que um local literário não é igual a um local físico, é sempre mais belo, porque é visto pela arte, e pode sê-lo ainda mais, porque tenderá para uma globalidade estética. Os locais, os rostos, os sentimentos são os elementos mais fascinantes dos segredos da comunicação humana.

 

     O mundo da globalização não pode retirar a força natural destas origens a comunicar ao outro; é a esses elementos que o escritor se agarra, é neles que se abre para a narração criando de si próprio os sinais com que marcará a vida e a memória que, depois do texto, já não serão apenas para ditar, mas também para conversar e propor que sejam universais, globalizantes, incondicionados e se estendam por todo o mundo onde haja o pensamento. É nele que vai deixando leves sinais nos caminhos do pensamento infinitos e únicos. E nesta transposição lembremos de novo as palavras de Vergílio Ferreira: "Sento-me aqui nesta sala vazia e relembro. Uma lua quente de Verão entra pela varanda, ilumina uma jarra de flores sobre a mesa. Olho essa jarra, essas flores e escuto o indício de um rumor de vida, o sinal obscuro de uma memória de origens. Tento há quantos anos, vencer a dureza dos dias, das ideias solidificadas, a espessura dos hábitos, que me constrange e tranquiliza. Tento descobrir a face última das coisas e ler aí a minha verdade perfeita... A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca é de dentro de mim que a sei não do olhar dos outros."

 

     Depois desta proposta de recordação e de desejo de uma Aparição permanente e desconhecida, será oportuno refletirmos no pensar como a força do viver com sentido e para uma finalidade que será formal sem que o sentido tenha que ser linear, circular, retangular. Porventura um sentido de dimensão angular, pois será, com certeza, a melhor forma de a obra escrita realizar a sua vocação de ser uma promessa com matriz para os planos possíveis. Aliás, todos sabemos que a fonte inspiradora de qualquer obra literária, plástica ou musical não é irreal, não parte do nada. No entanto, se não existir um sentido referencial na globalização de cada pensamento e se cairmos mundialmente no sentido determinativo que começa a fechar as identidades, a desconstruir as origens e a gerar sistemas formais e de base técnico-económica, que problemas não poderão advir daí?!...

 

     Desde logo, como resolver o problema da criatividade e do sonho, que são a fonte de qualquer obra como promessa com matriz? Como resolver o problema do pensamento como potência globalizante, com apetência para atingir todos, mas conservando o emergir da sua referência singular e intransmissível? Quem escreve, pensa ou produz, fá-lo com a consciência da sua autonomia e do lugar do ser que habita, do qual fará uma possível morada para visitação e encontro das almas, que temporariamente com ele comungam quando o leem ou quando o interpretam e glosam!

 

     Um texto não potenciará outro texto, porque num sentido determinativo a finalidade lhe será cortada, a finalidade de ser um fim para uma promessa incondicional, ao passar a tornar-se num objeto de uso condicionado pelo sistema que o autoriza, a promessa deixará de ser sonho para ser poder e dominação. As obras tornar-se-ão de todos para todos, mas sem se conhecer ninguém por não se identificar o seu espírito nem se almejar promessa alguma, nem sonho, nem glorificação, nem História; a Ocidente nada de novo e a Oriente tudo será igual.

 

     Aproveito para sustentar esta ideia algo dramática com os contributos de Paul Ricoeur na interpretação do Símbolo da Metáfora e da Ação. O autor diz ter sido sua preocupação "pensar o ser em termos de ato, de ação, de agir, de sofrer; a questão do voluntário e do involuntário no homem".

 

     O primeiro problema que toma como questão refere-se à linguagem do duplo sentido: o sentido de referência (a palavra na sua origem) e o sentido simbólico (a palavra como morada do ser); a linguagem implica sentido e o símbolo implica leitura; a linguagem da obra artística aponta para fenómenos simbólicos onde as analogias ganham um valor superior. A linguagem tecnológica levará os pensamentos para formulários racionais onde a informação se oporá à comunicação expressiva dos pensamentos que se compõem nas aberturas do ser do escritor, que é mais consciência pura do que existência programada.

 

     Um segundo problema que Paul Ricoeur levanta é a questão da caminhada do homem para a compreensão de si próprio. Diz este autor que a compreensão das expressões simbólicas e das narrativas é fundamental para o conhecimento do homem sobre si próprio. É a hermenêutica (no estudo das expressões simbólicas e das narrativas) que, em conjunto com a reflexão do sujeito, permite que este deixe de ser consciência imediata, ser pensante para poder apropriar-se de si através da interpretação das suas obras (atos, objetos e textos).

 

     Estes dois problemas fazem-nos admitir a hipótese de que o pensamento como potência globalizante e a obra como uma promessa com matriz possam perder a sua força natural, pois se a linguagem, como base do pensamento, passar a ser técnica por ser determinada, deixará de haver distanciamento do sujeito de si mesmo, não se abrirá ao outro e não se abrirá a si na redescoberta dos textos que escreve; a mediação destes perderá no valor semântico e o Homem inevitavelmente não caminhará ao encontro de si mesmo. Assim, poder-se-á dizer, com amargura, que o Escritor nada mais prometerá porque ficará totalmente condicionado e a promessa de uma aventura no sonho, no desconhecido, no absoluto não existirão porque deixarão de ser possíveis no reino das possibilidades e dos fins em que o homem se deverá tornar no que é: Homem e Pessoa.

 

     Termino esta comunicação com uma referência à globalização, que deverá ser como esforço desejável, mas não determinado em nenhum limite. Este desígnio poderá ser ainda um juízo de reflexão não conclusivo, mas a tese construtora desta ideia resulta da visão do perigo que se vai sentindo na intercessão factual das realidades hegemónicas ditadas pelos poderes financeiro e político que não param de caminhar para a Globalização ou Mundialização Planetária. Por isso, deverá ser nossa pretensão que o sentido que deverá ter a Globalização deverá ser como esforço desejável e possível na liberdade não determinada. Assim, comecemos por defender o valor da vida como tendo, antes de mais, um sentido natural, mesmo numa diversidade de símbolos, entre os quais, o do escritor, desde logo, pela expressão em que se orienta.

 

     Depois, será bom afirmar que a ideia de Globalização que deverá defender-se no papel de escritor deverá ter um sentido que não poderá deixar de fazer-se por dentro e a partir de cada parte que a constitui; porventura um sentido angular que implicará diversas perspetivas com referência implícita e dirigida a uma unidade que se admitirá, por dentro, como algo definido e se pensará por fora como uma dinâmica crescente, infinita e indefinida. Será a ideia de esforço desejável para atingir essa dinâmica numa ordem livre e indeterminável.

 

     O escritor continuará a ter uma responsabilidade na ação e buscará um sentido para a sua caminhada. Como escritores, devemos ser trabalhadores e intérpretes no papel que cabe aos construtores da vida que esperam de nós ideais, imagens, pensamentos, uma força de ação comunicada que lhes permita enredos, paisagens, planos, cantarias, que a natureza deixa arrancar na convivência da nossa paixão, mas com a certeza de que esta dor será depois o bálsamo do alívio perfeito que os olhos verão e os pensamentos farão a sua glória.

 

     Na atual ideia de globalização, correm as vontades do poder para um sentir que tudo é global; todos os problemas são globais, todos os acontecimentos são globais e, por isso, têm de ser tratados de forma global, se pensarmos no papel das comunidades, no papel das civilizações e no papel dos construtores da vida, se trabalharmos com mais determinação nas redes tecnológicas, formação e educação e se fizermos a abstração destas referências de base, de valores e de identidades com centro na consciência de que cabe a todos os povos uma parte das aflições do mundo e da sua correção. Então, como escritores ou simplesmente como pessoas, poderemos fazer mais através de qualquer ato de comunicação oportuna ou intempestiva ou ato de comportamento moral com vista à correção dos problemas e à elevação da Humanidade. Poderemos fazer mais do que condicionados por qualquer estrutura do poder global que determinará inevitavelmente a nossa liberdade individual e comunitária, uma vez que aquilo que se escreve ou se fala pode fortalecer o país, as suas gentes ou deslocá-las e retirar-lhes o sentido da sua própria história e a vontade de se encontrarem a si mesmos.

 

     A propósito, cito uma história de amor noticiada no jornal Público, em 6 de maio de 2001, utilizada num manual escolar das edições ASA e que serve de exemplo para o problema de reflexão nas aulas de Filosofia sobre a ideia de autonomia, e que diz o seguinte:

 

     "Eu seguia sempre a opinião da minha mãe e do meu pai…  Mais tarde, o professor do liceu era francamente inteligente. Eu pensava sempre como ele.

     Mais recentemente era o meu patrão que até escrevia para os jornais.... Dizia-me sempre o que eu devia fazer e dizer...

     Mas agora, o patrão morreu... O professor já está muito velhinho...

     Eu gostava de saber se vê algum inconveniente em que… em que… eu comece a pensar pela sua cabeça...?"

 

     Caros leitores e amigos, ao propor-vos um sentido na globalização, como esforço desejável, mas não determinado em nenhum limite, é com a ideia de que o jogo da vida só pode ser jogado se os seus intérpretes se sentirem verdadeiramente livres e se puderem ser originais e autónomos, mesmo na antítese entre seres humanos e em qualquer situação, mesmo naquelas em que existe um conflito latente. Manoel de Oliveira, no seu filme "Viagem ao princípio do mundo" diz, num apontamento breve a um jornalista do "Notícias" que "existe um latente conflito entre o feminino e o masculino" e que "A sábia natureza assim deixou as coisas, certamente para quebrar a monotonia, geradora de tédio, e para espevitar as relações entre os dois sexos". “Aos restos, caso porventura haja ‘restos’, poderemos chamar amor.”

 

     Como vemos, é também o jogo da tese e da antítese que dão lugar à síntese como superação e movimento gerador. É esta visão de uma objetiva fatigada que no alude para a perversidade dos seres humanos, mas também para o seu amor como a razão que limpa, cura e transforma qualquer pessoa numa força irresistível. O sentido que desejo no Caminho da Globalização terá que ter estas razões e permitir estes sentimentos, por isso é que o intitulei, de modo referencial, como “O Sentido do Escritor no Caminho da Globalização”, porque acredito que nada pode diminuir os nossos feitos, mas em certas condições, se não nos mantivermos assertivos, eles poderão ser apagados. Termino com a convicção de que tudo fiz para me tornar compreensível em relação ao desejo que me proponho simbolizar por esta comunicação; gostava muito que todos partilhássemos desta vontade e nos tornássemos numa das forças da força que a tornará possível.

 

     Comecei o meu trabalho com um poema e vou terminá-lo com uma conta da vida. Pedia a todos o máximo de atenção na sua leitura para que a possam compreender, resolver e atingir o seu alcance.

 

     Então, a globalização para todos e, em especial, para o escritor, poderá ser semelhante a uma conta, em que se acrescentará um ao dividendo, o divisor terá a igualdade o quociente será rigoroso e o resto tornar-se-á na força a acrescentar e a tornar eterna a classe do dividendo. Uma conta com um sentido na globalização, uma resolução de esforço, uma potência objetivamente possível e uma prova para o caminho pleno de Humanidade.

Macedo Teixeira

“Juventude, idade de ouro!”

26.12.2023

      Querer é Poder – porque o ser humano é capaz de sentir, sonhar e amar; querer e poder ser diferente, mesmo na angústia, no sofrimento ou mal-estar em geral.

      Nesta plenitude contraditória, surge a existência prodigiosa do ser humano, referente de outro infinito, cuja grandeza se glorifica em todas as criaturas; movimentando-se entre elas, o Homem, esse ser, capaz de se reconhecer em toda a complexidade de constrangimentos que o envolvem e o suspendem, mas só enquanto este não se liberta!

      A Juventude é determinada, pela sua real coragem, pelo seu entusiasmo no gosto de viver entre o que há de mais belo; num sorriso de esperança e num desejo de em cada dia sentir-se melhor, mais feliz e mais justo. Vivendo na abertura gratuita ao outro e na vontade comprometedora do seu élan vital, é sem sombra de dúvida, a idade de ouro, a idade que levará o homem pelo caminho até à consubstanciação da sua Fé, da sua Esperança e da sua Realização, no tempo que se há de seguir por todos os dias da sua vida.

     Este comportamento, franco e promissor, é o maior valor espiritual que orienta o jovem em toda a sua caminhada, que vai sendo histórica, no sentido supremo da vida; valor que permitirá exclamar com solenidade e respeito, por condições de felicidade responsável no presente e no futuro, pelos juros do " capital" que vai sendo investido, no trabalho, no estudo, no desporto, na música, na ciência, sempre perante as maiores ou menores dificuldades.

     Acredito que a pobreza no Mundo irá diminuindo com a melhor organização social Mundial, sobretudo na melhor distribuição dos bens alimentares e económicos. O Mundo será certamente, mais rico e mais próspero, quando o “nosso querer” se revelar mais profundo e mais global, nos interesses sociopolíticos da vida da nossa sociedade.

     Será mais livre, quando for mais aberto e dialogante entre pensamento de todos os povos: o exemplo mais poderoso e mais determinante poderá vir de vós, pela vossa formação mais cuidada nos domínios científicos e tecnológicos mais modernos e, acima de tudo, pela elevação no ato de julgar: ser Verdadeiro, Respeitoso e Responsável

     Será este o Capital propiciador para uma riqueza económica mais equilibrada, permitindo, por certo, uma afirmação mais convicta e respeitável sobre a dignidade humana, neste mundo, ainda tão conturbado e confuso.

     A dignidade de um povo reflete-se nas suas gentes, especialmente, nas pessoas mais jovens; pelo seu interesse, pela sua grande vontade em tornar o Mundo melhor, no seu desejo de afirmação pessoal e ainda pela sinceridade no cumprimento dos objetivos universais da Humanidade

     Olhem, que os mais velhos e as crianças sempre vos procuraram seguir, mas, já não são muito raras as vezes, em que nos nossos dias, teimais em deixá-los ancorados no seu estado de insegurança. Os ventos da sua fortuna fustigarão toda a formação moral e ética do mundo, e as instituições serão as primeiras responsáveis, pois apesar do esforço global que têm feito, não tem sabido o suficiente, como evitar e controlar tal perigo.

     Não se poderá continuar a justificar tudo em nome da liberdade; permitindo-nos à incapacidade e ao servilismo comprometido: a liberdade impessoal termina onde começa a responsabilidade e o empenhamento de todos.

     Se vós, jovens, consentirdes por indiferença ou alheamento, na destruição de tudo quanto vos reverencia no ato volitivo e na nobreza de objetivos; não dignificais a força e a beleza criadora, e melhor fora que os vertebrados que somos, nunca tivéssemos sido capazes de reconhecer a nossa natureza.

     Uma natureza, aparentemente contraditória, quando se é capaz de reconhece até onde podemos ser livres, por nos julgarmos diferentes e mais capazes que os seres irracionais; mas não compreendermos voluntariamente que perante o Criador seremos apenas criaturas, embora com funções diferentes, mas entre o mesmo Universo, só seremos parcialmente livres, por podermos ser autónomos nas decisões e capacidades de realização de toda a ação humana.

     Importa, por isso, que o presente deva consolidar-se num real autêntico de liberdade, justiça, vontade e ação; sendo a vossa força, neste período da vida, mais atuante e exigente no sentido ético e político; a juventude será a classe mais capaz para o realizar; evitando tanto quanto possível, nesta idade que sendo a mais empolgante e dominadora, seja impedida da sua afirmação na escola ou no trabalho, na saúde ou na diversão, na amizade ou na temperança, no desporto ou na música, em tudo quanto alicerça e consubstancia a vida na sua totalidade terrena.

     Tudo isto é possível, sem o recurso a qualquer ato de violência, de imobilismo ou inépcia, de raiva ou de rancor, antes, pelo recurso da inteligência e da vontade, no diálogo, em silêncio ou com os outros; pelo encontro amigo e sem reservas ocultas; ainda que nos cause embaraço, mas, não podemos amar ninguém, se não formos capazes de dar o nosso melhor.

     Tenhamos consciência, e vós jovens nos alertem com o vosso exemplo, na necessidade humana de dar, sempre que para tal sejamos solicitados. Deus nos premiará, mas, ficará mais radiante; se o reconhecerdes sem vaidades nem ostentações revivendo em cada momento, uma abertura possível, mais brilhante e mais sentida.

     Com o tempo compreendereis que o homem é como um leve pássaro que salta de pernada em pernada, até encontrar a forma de decidir e optar na sua qualquer condição. Caminha “voando”, pensa sonhando e decide-se nunca convencido de ter feito tudo; rejubilando garbosamente, quando pensa ter feito o melhor que lhe foi possível e capaz.

     Em vós se reúne a esperança que fortifica os mais velhos e dá alento ao futuro, justificando sem reservas a entrega do facho que é a luz e a semente da glória. Nestas circunstâncias, existe a essência do querer e do poder, para vencer os obstáculos da iniquidade e do imobilismo tendentes a impedir a revitalização dos objetivos supremos da juventude e da humanidade.

Macedo Teixeira

SETENTA E CINCO ANOS DEPOIS

 

      Será sempre com grande satisfação que me proporei de vez em quando a introduzir nas minhas reflexões um pensamento sobre a Declaração Universal dos Direitos do Homem.
   
      Tem sido muito mais forte a crença e o entusiasmo pela positiva com que sempre tenho recordado este acontecimento na sua proclamação histórica, que tivera lugar há cerca de setenta e cinco anos, do que o desânimo em função dos resultados negativos, contrariando cada vez mais tal acordo, (O homem continua a esquecer o valor da palavra assinada, sob os desígnios da Honra)
 
      De qualquer modo continuo acreditar no seu valor e significado, não só porque creio que as sociedades um dia compreenderão que somos seres de paz e não de guerra, mas também pela alegria de lembrar o que foi feito por diversos pensadores até chegarmos a este momento, uma vez que a nossa memória deverá recuar para aquém do tempo em que foi feita a proclamação e a assinatura desta Declaração.
 
     Neste sentido, o pensamento que agora pretendo desenvolver nesta reflexão situa-se nos “Fundamentos da Declaração Universal dos Direitos do Homem”, e, para o efeito, socorrer-me-ei de um desses pensadores, de nome Immanuel Kant, ilustre filósofo do século XVIII, tomando algumas das ideias espelhadas na sua obra de 1784, A Paz Perpétua, pois julgo que deverá ser excecionalmente que a ele deveremos atribuir a principal força de ordem de pensamento para a constituição, ainda que precoce, desta Declaração Universal.
 
     Nessa altura, com grande sabedoria, escrevera Kant que o Iluminismo era a saída do Homem da menoridade de que ele próprio era o culpado.
 
     Dizia que a menoridade era a incapacidade de o homem se servir do entendimento sem a orientação de outrem.
 
     E afirmava que ao homem lhe faltava a coragem em servir-se de si mesmo, faltava-lhe o que viera a ser a palavra de ordem do iluminismo: “Tem a coragem de te servires do teu próprio entendimento e proclama que o uso público da própria razão deve ser sempre livre, pois só ele pode levar a cabo a ilustração entre os homens” (uma palavra de ordem que se prestara a interpretações várias e, ao que parece, até hoje ainda insuficientes).
 
     Mas se faltava a coragem ao homem em servir-se de si mesmo, também lhe faltava a coragem para manter a consecução de uma sociedade civil, a cuja solução a natureza forçará o homem, tornando-se necessária a administração do direito em geral.
 
     Como consequência, surgia a necessidade de uma constituição civil perfeitamente justa, mas Kant sabia que a necessidade constrangia o homem, tão afeiçoado que estava à liberdade irrestrita e cada vez mais insensível ao direito natural
.
     E sabia também que a maior de todas as necessidades viria das inclinações e desejos individuais que levavam os homens a reciprocamente infringirem todas as regras, fazendo com que deste modo não mais pudessem viver uns ao lado dos outros em liberdade selvagem ou natural.
 
     Por isso, dizia Kant, que só dentro da cerca, que seria essa Constituição Civil, é que essas inclinações ou desejos produziriam o melhor resultado. E com maior assertividade concluía categoricamente “que o homem é um animal que, quando vive entre os seus congéneres, precisa de um senhor. Com efeito, abusa da sua liberdade em relação aos outros semelhantes; pese embora ser um ser dotado de razão e consciência”.
 
     Os séculos XVII, XVIII e XIX foram férteis em pensamentos diversos com vista ao entendimento da lei como fundamento da ordem e poder da justiça. Kant, Rousseau, John Locke e tantos outros foram juízos dessa vontade, mas prevaleceu sempre mais a força do que a Razão, e os conflitos trouxeram a fome e a miséria aos povos, e o atraso e a escravidão das mentalidades foram as fontes para a autoeleição das sociedades economicamente ricas.
 
     E o iluminismo, que apontava para a liberdade do Homem e o progresso do Mundo, mais não foi do que o estalar de um idealismo ingénuo e o reacender do medo da força dos mais fortes e poderosos, até ao culminar da tragédia da Segunda Guerra Mundial, que levou um conjunto de países a aceitar ficar lado a lado, não fosse a ira dos loucos voltar de novo a ter sede de sangue dos inocentes e a desejar tomar conta da Terra.
 
     No século XX, as duas Guerras Mundiais vieram colocar na ordem do dia a necessidade de relembrar o respeito pelos princípios, chamados algumas vezes por “princípios de 1789”, votados nesta altura pela Assembleia Constituinte francesa e servindo de prefácio à Constituição de 1791, mas raras vezes cumpridos.
 
     Entretanto, em 1945, a Carta da Organização das Nações Unidas fazia-lhes referência, tanto no preâmbulo como em seis dos seus artigos, e, em 10 de dezembro de 1948, a Assembleia Geral da ONU, reunida em Paris, lançava a Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Macedo Teixeira

VERDADE COMO SER E CONCEITO

     Poder-se-á dizer, ainda que com algum exagero, que estaremos a viver num período de interação social tão inconstante e tão contraditório, quanto fiável e verdadeiro ou inconfiável e falso; ao que parece estaremos mais permissivos, anestesiáveis e a ganhar maior tendência, mesmo que isto não se verifique em todos os aspetos, em aceitar que o nosso comportamento comece a prevalecer com maior evidência para o que é involuntário e automático, e nesta atitude se torne numa uma espécie de alternância e contraponto apoiado na indiferença (mudam as opiniões, mudam as crenças) caindo na apatia para deixar de passar a ação, com vista  a ser reflexivo, pensado e justificado, sobretudo, através da Razão, Experiência e Entendimento.

     E com esta mudança, porventura inconsciente, começa a resultar em consequência, também estarmos a mudar de paradigma nos exemplos de interação social.

    Estarmos nos dias de hoje, pela evidência desta enorme força negativa desproporcional, a começar a resvalar com maior premência para aceitar que tudo possa ser facilmente tolerado, permitindo com este assentamento irrefletido rebaixar o valor da nossa existência, passando nos dias de hoje a ser mais confiável, qualquer verdade ou falsidade ditada por um polígrafo ou detetor do que poderá ser verdadeiro ou o seu contrário.

     Logo, com esta mudança na ação de procurar os factos para a evidência do verdadeiro ou para o contraditório e prova do falso, deixamos tacitamente de  valorizar a verdade superiormente no valor da nossa consciência e entendimento, ou seja, deixamos de valorizar a nossa força na intenção de nos pormos ao serviço da nossa honra e do nosso sentimento, valores tão necessários para continuarmos a ser Pessoa, Livre e Descomprometida, já que o nosso ser, só poderá manter-se inalterável, quando fundado na Verdade e na Essência, sendo que estes valores deverão ser apoiados na Ética e nos principais critérios gerais da Educação e da Ciência: Verdade, Respeito, Responsabilidade, valores essenciais para a vida humana, individual ou social, pois, seja em relação à verdade na vida política, seja à verdade na vida religiosa, seja a verdade na economia, ou seja noutro saber qualquer

     Verdade, porque se for condição da natureza humana a insatisfação (vontade do imediato), como o homem nasce bom e participa da bondade, logo, trará consigo as sementes da Verdade e qualquer satisfação só poderá ser entendida como tal, se esta for coincidente com a bondade do homem e não for obtida pela sua negação (tendo mais em conta o imediato e o efémero, e às vezes até o ódio), pois esta, já não poderá ter valor para a vida e esta atitude tornar-se-á num contravalor, por consequência, o que se pretendia preencher com sentimento de bondade e clarividência virá a tornar-se inconscientemente, num sentimento (efémero e de persistência) que vence mas não convence. (“Para vencer, há que convencer.” — Miguel Unamuno.) “Vencer não é convencer, e há sobretudo que convencer. O ódio — que não deixa lugar à compaixão — não pode convencer.” (Versão de Luís Gabriel Portillo, publicada na revista Horizon em 1941.)

(…)

     “A Verdade é, entre outras realidades visíveis e ocultas, energia vital que se sente, se vive, se explica, se conhece e se entende. O entendimento da Verdade coloca-se na dimensão da transcendência do ser humano, daí que jamais podemos permitir a impureza dos nossos pensamentos e atos para podermos ser com firmeza o guia existencial dos nossos sentidos, dos nossos desejos e dos nossos apelos.

     Subimos e descemos pelo fio de Luz que nos anima e guia, até onde a possibilidade da programação humana não tem mais sentido, nem a explicação total é jamais possível, somente a pureza das nossas intenções (Nós somos seres da Verdade e não da mentira).

     Tudo se perde na exterioridade do Homem e se ganha no núcleo da consciência, de que não sonhamos – porque tudo é vivo e se transforma na Ordem inexorável da vitalidade humano-cósmica, sem que possamos desprender uma única amarra de cada elemento espiritual, que anima a matéria em extensão e vive em cada abertura do nosso ser, para a revelação da permanência em cada sucessão espácio-temporal das realidades do Universo que nos são permitidas em cada uma das raridades da vida: terrestre, aquática, aérea e sideral.

      E enquanto não se processa a acomodação biológica e mental, julgamo-nos perdidos para nós próprios; apeamo-nos na vida física, para nos certificarmos de que não estamos desligados de tudo, e confiantes na Natureza que nos anima, nos estabiliza e equilibra; deixamo-nos guiar até aos domínios da transcendência, onde os sulcos do sonho se vivem no mistério divino.

     “Homem e Cosmos, se experienciam e se integram, sem perda de qualquer valor no domínio dos entes, sem reconhecimento ascendente de nenhuma das dimensões e sem quaisquer misturas qualitativas.

     Em cada abertura do ser humano ao Mistério da transcendência, a luminosidade divina orienta e coordena a elevação humana nas diferentes escaladas, proporcionando o êxtase em cada encontro e revelação, afago e meditação.

    “Sem regresso nem antecipação, vive-se a Verdade na Verdade, em cada uma das claridades e aguardando que a revelação da Vida Universal se vá tornando concêntrica em cada uma das jornadas da nossa vida.” (1)

     As verdades que assentam nos fundamentos dos saberes, tão necessárias ao conhecimento e desenvolvimento do ser humano, deverão ser claras e distintas, não deverão permitir a confusão e a demagogia, mas o que se vai assistindo cada vez mais é que as verdades dos saberes vão começando a ser tão inconsequentes e tão desencorajadoras da vontade, que aos poucos nos vão conduzindo para um caos social e um desinteresse pela inteligência natural, e com isso, vamo-nos perdendo na distinção relativa ao valor da inteligência artificial, que irá ganhando terreno sobre todas as vontades, sobretudo nas que nos levem a descrer nas planificações para servir o próximo, nomeadamente, nos levem a diminuir o gosto e a vontade de servir a humanidade e de agir com firmeza na educação para o valor da honra e da rectidão da conduta humana.

     Sendo certo, de que com esta atitude cultural, tenderemos inevitavelmente, a resvalar para um corolário de automatismos, mesmo que este possa vir a ser efémero, mas que nos tempos de hoje, vai gerando nas sensibilidades mais jovens o gosto por aquilo que lhes dá mais prazer e que não exigirá grandes planos de conduta muito ética, logo, não os conduzirá para a necessidade de terem de sonhar e de terem um grande gosto para a criação de grandes obras sociais

     É evidente, de que não deixei de admitir nos meus juízos, de que todo o nosso desenvolvimento e crescimento, far-se-ão ao longo dos tempos, sempre em contexto de adaptação e numa integração global de todos os elementos, necessariamente, de todos aqueles que vão surgindo pelo avanço científico e tecnológico, mas é preciso que se continue o preenchimento da memória, com o diálogo e o convívio, nomeadamente o associativo.

    Será preciso que se continue a viver não apenas com as imagens das situações, em que as máquinas nos prendem ao tempo e nos retiram a liberdade de sonhar e de planificar estratégias; pois as máquinas serão úteis, elas, podem ajudar-nos a viver melhor, mas jamais nos poderão amar ou sentirão pena de nós!

  1. Macedo Teixeira. “Sementes da Verdade”, Segunda Parte I— Da Política para a Moral, Fotocomposição e Impressão: ROCHA/artes gráficas, L.da, Julho de 1992, p 41.

 

 

APERTO DE MÃO

 

“Assim correm os meus sonhos; mas quem sou eu?

Uma criança gritando na noite;

Uma criança gritando por luz;

E sem outra linguagem senão um grito”.

Tennyson – In Memoriam

 

      Já lá vão mais três dezenas de anos, depois da minha primeira narração que fora publicada em Jornal, sobre um momento que me enternecera e me apelara com tanta insistência, que me levara revelar o seu conteúdo e a tentar demonstrar que o amor jamais deixará de ser comum e incondicional.

     Porém, como ainda continuo a meditar no sentido humano do caso, reflectindo como se tal tivesse acontecido ontem, resolvi recordá-lo de novo, pensando que este caso poderá ser atemporal e com isso tornar-se num exemplo intemporal, pois quando penso nele ainda me emociono com a mesma sensibilidade, sobre um acto de profundo amor, que senti nessa altura, manifestado por uma médica de serviço nas urgências de um hospital, a uma criança franzina, doente e aparentemente só, que de tanto chorar, talvez pela mãe e simultaneamente pela dor da sua enfermidade, soluçava em sobressaltos, parecendo querer dormir de cansaço sendo que ao mesmo tempo contrariava essa necessidade com grande agitação e por movimentos descoordenados e bruscos.

     Admiti no momento em que dei conta, pela observação espontânea daquela criança, de que ela já lá estaria em observação num tempo bastante prolongado, em razão de uma doença, de que nunca cheguei a saber ao certo, pois também eu me encontrava no mesmo espaço de pediatria e, num momento que vivi de aflição, por uma crise de bronquite, que atingira um dos meus filhos e me levara também a recorrer aquela urgência hospitalar.

     Contudo, apesar de ansioso e um pouco instável, na observação em redor por estar mais direccionado na atenção ao tratamento do meu filho e às suas melhoras, de relance e de modo espontâneo e desprendido, no que pudera observar naquela ocasião dolorosa, o que vi de singular, profissional e maternal, jamais me poderei esquecer e deixar de sentir o caso, como se tivesse sido hoje!

      Daí que há medida que o tempo passa, ou melhor que eu vou passando, vou sentindo em cada dia sempre com mais intensidade e doçura o reconhecimento do amor, que deverá acontecer em qualquer tempo e de modo comum e incondicional, e sentindo também, como deverá ser sempre reconhecido e apreciado o valor das nossas mãos, especialmente, quando ao serviço do nosso semelhante.

     Em toda a nossa vida, estendemos ou elevamos as mãos em cumprimento a muitas pessoas, que vão para além da família ou dos amigos mais íntimos. Sentimos nesse gesto empatia e grande satisfação, mas raramente procuramos a razão mais profunda, a razão que nos possa explicar com clareza tal sentimento e tal empatia; isto porque, aparentemente, tudo parece estar explicado.

     Na família, os laços são fortes e a empatia gera uma relação afectiva que dirige com força a sintonia do pensamento, de tal modo, que mesmo na negação o cumprimento se processa. Nos amigos, as relações de convivência alicerçam-se em situações progressivamente dependentes, que salvo casos de transição, os seres humanos fixam-se numa relação de emoção e fundem-se com mais ou menos rigor nas alegrias e tristezas de cada um. Nas relações anónimas, geram-se boas maneiras, tornam-se cordiais os pensamentos, tolera-se o tempo de espera na dualidade do diálogo, agigantam-se as ideias nobres; – torna-se possível, enfim, a perpetuidade da relação com vista a um compromisso de saudação no futuro.

     Apesar de toda a complexidade dos sentimentos e das suas solicitações recíprocas, caímos por vezes em actos meramente de rotina – formais e repetitivos; contrariando desta forma, o desejo que anteriormente motivou a ânsia de conhecer.

      Nestes ciclos relacionais, geramos e estendemos a inclusão e exclusão de pessoas que envelhecem connosco no pensamento e no corpo.

    Pensara eu, tantas vezes, que isto era o resultado do nosso tempo de crianças; em que euforicamente nos mostrávamos em humildes saudações, no que nos distinguia em dia de domingo: o fato novo, que com rigor a nossa mãe talhara em seu modelo, ou as botas novas que os pais nos davam, especialmente pelo Natal, de soleado grosso e brilhantes como o Sol, para pontapear tudo quanto rolava no chão.

     Algumas vezes, em desespero, acreditei ser antes o resultado do que nos inculcaram no nosso espírito frágil de crianças; ou a reacção em cadeia de uma “solidariedade na saudação”, para um maior conhecimento em possíveis favores, a solicitar ou a prestar futuramente.

    Cogitei sempre em silêncio, até saber com exactidão o porquê do “aperto de mão” – pois não me bastava conhecer somente a sua origem histórica e toda a teoria manancial que a poderá envolver.

     E a resposta chegara com tanta evidência, que já não resisto em descrever como a senti e qual o efeito que ela teve sobre mim.

     Para aliviar o meu filho de uma crise de asma, tivemos de nos deslocar ao hospital do concelho onde residimos. Dentro deste e no serviço de pediatria, decorria com normalidade o serviço de assistência por todo o pessoal de serviço a todas as crianças doentes e entradas naquele sector.

     O ataque de asma que vitimara meu filho, fora muito agudo e complexo, por isso, a médica responsável no seu socorro e cura, entendeu por bem e maior segurança, ordenar o seu internamento em observações; resultando do facto, uma exigência de eu permanecer durante longas horas, junto à pequena cama onde meu filho permanecia e a maravilha da ciência médica se debatia na debelação da crise.

    Durante esse tempo, fui observando outras crianças que se encontravam na mesma sala internadas, e cujos familiares evidenciavam a mesma dor e aflição por serem comuns ou semelhantes os motivos da nossa presença ali.

      Estar dentro de uma sala de observações não é nada agradável, sobretudo, a quem não tem grande experiência nem está muito habituado a estas cambiantes da vida: uma hora de espera, parece-nos um dia e o nosso corpo parece começar a estar sujeito aos mais duros e pesados trabalhos.

     Observei, entretanto, também outras crianças que não tinham junto de si familiar algum – o que para além da natural tristeza que senti; a convivência com elas me propiciou uma afecção paternalista. E, ficaria por aqui, se não fosse o facto de uma dessas crianças pelo seu choro mais lancinante ter-me chamado atenção, dessa angústia no estar só; observei que segurava na mão um punhado de bolachas já encharcadas pelas lágrimas de dor ou de tanto chamar pela sua mãe.

     Convivi durante bastantes horas, com aquele quadro doloroso, mas apesar de tudo, também maravilhoso pelos olhitos negros da garotinha e pelos movimentos bem ladinos do seu pequenino corpo.

    Tive a impressão que adormecera junto da cama de meu filho, pois não me apercebera de tudo o que se passara até ao momento em que vi diante de mim a médica com a menina a que me refiro sentada sobre o seu colo. Pareciam mãe e filha a entreter-se em adivinhar o que a ambas lhes faltava. Algum tempo depois, começaram ambas a brincar e, no amor deste aconchego, a criança lá fora perdendo o choro e fora começando a meter à boca com total mansidão uma das bolachas que antes lhe servira de companheira entre as lágrimas que chorava.

    Perante este momento tão sublime, senti metamorfosear-se o pensamento e cheguei mesmo, a distinguir mal as duas; pareceu-me por instantes, ver minha mulher e minha filha e fiquei tão emocionado, que desejei adormecer de novo para não batalhar contra a fragilidade do coração em sentimento profundo.

    Já de madrugada, o meu filho estava melhor e o chefe da equipa médica dava-lhe alta para poder regressar a casa. A menina, dormia agora calmamente entre sonhos e as estrelinhas do céu, e a médica que atendera meu filho e o restante pessoal de serviço continuavam ainda a serem anónimos para mim, mas agora, anónimos só no seu nome: pudesse eu transmitir-lhes, o que senti naqueles rasgos de emoção e sentimento de amor.

    Acenei a todos quando saí, em agradecimento pelo que de bom fizeram pelo meu filho, mas agora, já não procedera como anteriormente em acto de repetição formal nem em gesto habitual de rotina. Naquele momento em que nos separávamos, estendi-lhes as minhas mãos e uni-me em sentimento pelo coração – pois compreendi, ali e naquelas horas amargas, a razão da saudação humana e compreendi melhor o poema do amor.

    Dr. Macedo Teixeira – Jornal O Distrito de Portalegre nº.5988-Ano 103-22.08.1986 (texto adaptado do original)

 

A CULTURA DO SONHO

         Sinto-me, hoje, como se fosse um garimpeiro que sai pela manhã, com o sonho de encontrar algumas pedras preciosas e a vontade de as ver brilhar com toda a força da luz. Ainda mal iniciei a caminhada e já o suor me escorre pelo espírito e a ânsia de

encontrar algo precioso me varre as ideias e me agita o coração.

          Sou diferente dele só nos motivos da caminhada: o garimpeiro, que habita os meus sonhos, procura a riqueza para a sua vida, eu procuro a riqueza para a minha alma. Ambos somos peregrinos nesta ansiedade louca de percorrermos caminhos com objetivos diferentes, mas alegrias tão semelhantes! – Que a realidade faça o destino de ambos: um para a vontade de sonhar, outro para a vontade de ser sonho.

                 Sinto-me um garimpeiro porque sei que o que procuro não é muito fácil de se ver nem de se encontrar. Transpiro de emoção porque sei quanta necessidade há no que procuro e que agora ao anunciar-me, com a vossa permissão, também vos peço para caminharmos juntos.

                  Ao que venho e ao que me refiro cabem na mesma preocupação, venho por uma razão e refiro-me a um ser. Simbolicamente posso ser um representante, já que, como diz Emmanuel Kant, tudo na natureza age segundo leis e só o homem age segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. É nessa qualidade que vos convido a refletirem comigo acerca da razão que evoco e do ser de que somos representantes.

                 Quando somos pequeninos vivemos a nossa vida guiada por ordens de várias naturezas e com objetivos culturais distintos. É a unidade do ser humano que está em questão e a sociedade preocupa-se com a sua coesão e com os elementos que a tornam coesa. Nós pouco sabemos disso, para nós, o que é interessante, é o que sentimos no tempero dessas experiências. Ganha-se em cada dia uma certa vontade para voltarmos a experimentar as atividades do jogo ou das brincadeiras que vamos fazendo. Vão progressivamente aumentando os conteúdos das experiências que desejamos e o gosto de as repetir de novo.

               Isto leva­‑me a pensar que, sendo o homem um ser de vontade, não nasce com essa força formada de modo inato e até pode perdê-la durante o tempo em que vive. Ao experimentarmos uma certa lucidez da vida, damos conta de que com facilidade nos desmobilizamos das convicções que são a força impulsionadora para a realização dos atos humanos mais simples ou mais complexos.

                Poder-se-á dizer que não são suficientemente fortes nem apelativas que baste, pois se o forem o Homem não esmorece nem se desencanta com os acontecimentos que as abalam. Mas, não é bem assim, não há convicção que seja suficientemente forte para arrastar o homem para fora do sentido negativo da vida se a sociedade não mobilizar as consciências e as vontades para o seu sentido positivo.                                                                                                                          

             Volto a lembrar o nosso tempo de meninos: na idade das perguntas não nos cansamos de perguntar por tudo o que nos fascina. – O que é o Mundo? – É uma bola enorme – responderão os nossos pais. Ficamos a falar sozinhos… “a minha bola tem a forma do mundo”. Gostava de ver o tamanho do Mundo, interrogamo-nos afirmativamente.

     Se nos apercebermos bem deste diálogo, constatamos que o nosso pensamento vai acrescentando algo de muito maravilhoso aos fatores que entram em jogo nos nossos pensamentos. Se não, vejamos: – O que é o Mundo? – uma pergunta metafísica por um ilimitado real. É uma bola enorme, uma resposta física de volume ilimitado. A minha bola tem a forma do Mundo, uma afirmação de semelhança que me leva a gostar mais da minha bola porque tem semelhança, e eu posso brincar com ambos. Gostava de ver o tamanho do mundo, uma afirmação da vontade por via da força que começa a nascer em nós, um pensamento para sonharmos com o Mundo.

     Servi-me desta abordagem lógica para mostrar a todos vós que o nosso crescimento e desenvolvimento têm seguido uma ordem natural e que a nossa educação tende a acompanhar essa ordem.

Não estão em causa, na minha análise, os fatores sociais mais preponderantes em cada época ou os objetivos políticos dos poderes reinantes. Não vêm a propósito para o que pretendo descobrir com todos vós. É uma questão de raiz e que tem a ver com o ser e com a razão que aqui me traz.

      A ordem natural que seguimos é evolutiva e crescente, cheia de novidades e alterações. É formada por sistemas dinâmicos não redutores e regenerativos quanto baste. Atua na temporalidade, modifica-se na forma, cresce nos elementos; responde com base nas leis e por força da correspondência das mesmas.

    Pode dizer-se que a Ordem Natural cultiva o que necessita, transforma para o que quer e muda conforme o tempo, engendrando nestes movimentos a vontade natural e animação dessa vontade.

     A Educação do Homem e o seu desenvolvimento têm seguido esta ordem, mas na atualidade estão a enfraquecer-se e a estabilizar-se numa grande insensibilidade e perda de força de vontade.

      Uma das ideias ou razões que me parecem ser responsáveis tem sido cultivada pela crença num individualismo social muito marcado pela posição de que quem não é por nós é contra nós. É um pensamento binário que traz consequências muito preocupantes, pois não basta desejar que sejam por nós, é necessário querer e fazer por isso, isto é, ser em nós com todos os outros

      Outra ideia, que reputo de responsável por esta crise que me parece vir a ser altamente perigosa para a nossa vida, prende-se com as características que deve ter aquele que é chamado pela sociedade para dirigir.

      Num regime social universal, o poder de participar é geral e a capacidade de escolha pressuporá esta mesma ordem. Assim, será com todos que se governa e através de todos que se é governado.

     Para o exercício de funções diretivas no poder social executivo ou legislativo, escolher-se-ão entre todos os que por vontade, por capacidades e aprovação vierem a ser reconhecidos com mérito. De qualquer modo, num regime social universal baseado na Democracia, todos serão chamados às responsabilidades da governação e todos serão potencialmente “escolhíveis”.

     Nos nossos dias o totalitarismo do grupo caiu também no aleatório das escolhas e, como sistema interpares, começou a negar o universalismo dos seus elementos e a força da sua ordem na escolha para cargos de responsabilidade, começou a situar-se no imprevisto e no acaso.

     Logo, são chamados, não alguns para todos, mas alguns apenas para alguns. O todo social político passou a ser aleatório na sua forma, porque os conteúdos de pensamento são de alguns só para alguns. Em conclusão, diz a lei que o que não tiver que ser naturalmente adquirido pelo aleatório, há de resultar em consequências negativas e de perigo para a vida do homem. Por isso, a situação atual é de profunda rejeição pela cultura universalista, e uma grande parte dos seres humanos está a caminhar às escuras sobre a confiança no mérito social e na força de todos.

    Voltemos de novo ao nosso sentimento de meninos: Quando brincávamos uns com os outros, no encontro de todos, nascia a força para nos lembrarmos uns dos outros. Fôssemos de um grupo ou de outro, no jogo de cada um nascia a vontade de ser melhor e ser mais reconhecido. E tanto valia ser pobre como rico, no jogo era melhor quem jogasse mais e melhor. Na amizade era comum o sentimento de convívio e só a algazarra da vitória poderia ser diferente e a ordem ser de alternativa.

      De qualquer forma, o que ficava quando chegava a hora de regressar a casa e de nos separarmos, até ao dia seguinte, era o sonho e a satisfação ou um certo desencanto e a vontade de mudar.

      Em todos ficava o desejo de ser melhor no outro dia, ser apto para ser escolhido, desejar ser o ganhador, mas não como na atualidade e como o que acontece a todos nós, conscientes ou inconscientes disso. Em que o Teatro está a ficar vazio de público, os atores já estão previamente escolhidos e as peças a representar não têm origem, são feitas para a ocasião e para desejo apenas de alguns, que são como os outros, mas não são como todos.

      Quando eu era pequenino, ouvia os meus pais dizer: “Cresce e aprende, meu filho, para que sejas um homem de amanhã”, para que sejas alguém que a história fale de ti, com alguma surpresa, mas sem vergonha. Para que sejas como nós, e, se fores mais rico, te lembres de todos e, em especial, “daqueles” que foram o exemplo para enriqueceres honrado, como Deus quer de nós.

      Quando eu era pequenino, eu sonhei, como todos vós, com um mundo mais perfeito e onde pudesse continuar a sonhar com um mundo que fosse melhor que o dos meus pais, porque a cultura do sonho nascia por dentro de nós, nascia na nossa vontade que ainda que constrangida pelos interesses sociais, ela era plantada em todos pelo mesmo Semeador e com a mesma Semente da Verdade Pura.

     Não quero dizer com este meu desânimo, que não se passe o mesmo agora, mas estamos divididos entre a tirania e afetividade impedindo esta divisão que os resultados de raiz sejam os mesmos como eram na origem para pudermos sentir vontade de continuar a lutar para uma vida melhor e com mais sentido.

      Mal sabíamos o que era a liberdade e, do lado em que viéssemos a ficar, a força de sonhar era mais forte que o sonho, porque nascia por dentro de nós, tinha uma raiz comum e a força que se espalhava era combativa e contrária, mas não caía em qualquer terreno, nem caía em corações empedernidos que levassem à descrença no gosto de viver e de crescer para sonhar e ser sonho. Lembro-me de me dizerem, quando eu era pequenino, se estudares, se aprenderes, se trabalhares, tu irás longe, tu serás alguém na vida…meu rapaz!...

     Hoje, sinto-me um garimpeiro, mas também um poeta fraternal, que à luz da filosofia da vida e do pensamento de todos vós, vos propõe que mudemos algumas regras, para que haja sempre razões plurais e destinos para a luz de todos os nossos sonhos.

Macedo Teixeira

O Mundo e o Teatro

The World and the Theater

Macedo Teixeira

       Carlo Goldoni (1707-1793), autor dramático italiano; mais propriamente do teatro de Veneza, ao refletir sobre o Mundo e os seus problemas, disse uma vez o seguinte:

       – (…) os dois elementos-chave para os advogados da Lei, converti-os numa outra ordem e numa outra prática; (os dois livros sobre os quais mais meditei, e de que jamais me arrependerei por deles me ter servido, foram o Mundo e o Teatro). Condenem-me se assim o julgarem. Perdoem-me se assim vos agradar (…)

       De facto, a palavra Teatro vem do grego theatron e quer dizer o que se vê, e o que é…; e o que se vê em Teatro é muito mais o que nos serve do que o que se deita fora, já que no Mundo não podemos ver nada para além dele nem podemos deitar fora os pedaços que o compõem; o Teatro convida-nos a assistir e o Mundo torna-nos intérpretes. 

       Achei interessante o modo como Carlo Goldoni se serviu dos dois elementos-chave dos advogados da Lei e, por isso, resolvi refletir sobre a importância social e cultural destes elementos. É minha intenção não revelar já, a que aspeto do Mundo me vou referir nem a que emoções me vou prender; vou preocupar-me, apenas, em equacionar os conceitos do Mundo e Teatro numa relação entre o que se vê como acontecimento (Mundo) e o que se manifesta a quem se vê (Teatro). 

      Sei que a questão principal é comum aos dois planos e que merece que a tratemos com o valor que lhe é devido, e pouco a pouco, revelar-vos-ei o que me preocupa. Seja, então, a minha reflexão iluminada pelas luzes de uma memória que recorda lampejos de vozes que recortavam o silêncio pelo troar de palmas e gritos de aclamação. 

      Fui jovem, e não sei ao certo o que mais me encantou no Mundo; sei que vivi num “palco” que estava sempre cheio do que era bom e do que não prestava; porventura cheio de ilusões e de pobreza, de ignorância e de desigualdades, mas também cheios os corações dos homens, cheia a Lei da Vida e cheios os sorrisos das pessoas.

       O “Palco” em que agora vivo já não tem nada disso; esvaziou-se de valores negativos, mas também não se encheu de valores positivos; está a ficar vazio de tudo e a ficar cheio de nada. 

      Ainda se ouvem as pancadas de abertura, nisso o “Teatro” não fraquejou no seu espírito, todos os dias nos convida a assistir a novos acontecimentos em cenas de uma imaginação forçada, mas as pessoas já não prestam atenção porque não há nada para sonhar; não há ilusões para viver e a realidade interessa, só na ocasião. 

     Lembro-me de conversar sobre o que via no palco e no Mundo, quando os atores encarnavam as personagens, sem ficar presos a elas no viver pela existência artística os sentimentos reais e humanos; ou quando falavam de assuntos da vida e, pela forma como os criticavam e se interessavam por eles; dava gosto ouvir quem sabia falar, mas também, quem se emocionava verdadeiramente pelas questões da vida. Lembro-me das luzes que focavam os rostos e via neles uma sinceridade que não sabia distinguir a quem pertencia; o que eu via era uma pessoa num rosto que era expressão e não máscara dissimulada de uma arte que não tem vida, porque lhe falta a sinceridade estética e lhe sobra a ideologia artística. 

      Lembro-me de as pessoas se interessarem por causas que tinham mais a ver com a cooperação e competição desinteressada, do que pelo sucesso de ganhar muito ou serem muito importantes socialmente. As pessoas serviam-se do Mundo para mostrar as suas qualidades e o seu respeito na comunidade a que pertenciam; os que não estavam de acordo com o regime uniam-se noutras qualidades; eram fiéis e exaltavam o seu papel nessa fidelidade; eram combativos e interessavam-se por aquilo em que acreditavam. 

      A vida era um “palco”, mas só estávamos no teatro quando lá íamos. No “palco” atual as “pessoas” estão sempre a fazer “teatro”, mas não querem ser atores nem mostrar as qualidades; preferem ser ignoradas como homens e enaltecidas como ídolos de qualquer coisa e para qualquer coisa. 

     Lembro-me do Mundo e daquilo que vi nele; não era expressão desta imagem que confunde tudo; o corpo e a forma da relação corporal; já não há intimidade nem segredo; já não há ilusões nem paraísos artificiais – só a realidade, nua e crua, para consumir e deitar fora. Perdem-se pouco a pouco as identidades, e até as crianças são forçadas a ser adultos para ganharem nas plateias aquilo que não têm em casa. 

      Lembro-me dos rios e dos ribeiros, dos campos e das desfolhadas, onde encontrei forças para ser a criança que tinha pouco de felicidade, mas que era forte e saudável na alegria de viver. 

     Foi esse tónus natural que me encheu de sonhos e de desejos para ser homem e constituir família; foi essa esplendorosa substância vital que me fez sonhar no tempo e no espaço, e exaltar os sentimentos, quando as luzes da ribalta se acendiam e iluminavam aqueles rostos humanos, que encarnavam as almas do povo que sofria quando labutava nas duras e perigosas fainas, ou se alegrava quando se divertia nos tempos de fartura e de festa.

     Foi essa energia psicológica que a pureza dos atores do Mundo e do Teatro irradiou e fez entusiasmar as gentes; criou pensamentos de revolta e de desencanto, mas também de aceitação e acolhimento moral dos valores que dignificam o Homem e o tornam mais vivo e interessado. O trabalho, o respeito, o sentimento e a sinceridade estavam no coração de cada um, e à sua maneira, eram retratados no palco do Mundo ou no palco da vida; tudo era feito, como sendo único.

    Quem não se lembra de representações teatrais que encheram os corações e deixaram lembranças eternas? Frases e pensamentos célebres que educaram o povo no respeito e nas atitudes, e o despertaram para o gosto de falar dos outros, pelas suas qualidades e aventuras. Não sei se podemos escolher o Mundo e o Teatro do mesmo modo como o fizemos outrora; sei que escolhemos a liberdade, e esse é o melhor valor que o Homem tem, mas não podemos experimentar a liberdade se estivermos em crise permanente; acredito que vivemos numa fase transitória, mas já é há tanto tempo, que estamos neste estado!...

      Prometi revelar-vos, neste escrito, os aspetos do Mundo que me preocupam e as emoções a que me prendo. Dos primeiros ressalta, com evidência, o Homem e o mundo atual; dos segundos, peço-lhes que adivinhem, mas considerando as características humanas em geral; não deverá ser difícil!...

     Estou certo de que podemos sempre escolher o Mundo e o Teatro; servirmo-nos de ambos; ver desfilar as pessoas na sua pressa elegante; nos seus passos firmes e resolutos para a conquista do Tempo e das promessas dos antepassados. 

    Acredito que começou a elevar-se o pano das fronteiras das desilusões sociais; que já se ouve o som mais profundo de Molière; que os atores correm para os seus lugares e que as multidões começam a encher de novo as praças e as salas; começam a interessar-se pelo conto, pela história, pela fala; pelas empolgantes ondas sonoras, das vozes que enchem de luz a vida do espírito e arrebatam os corações para um Sonho que será eternamente verdadeiro.

     Oxalá que eu não esteja a delirar!

Publicado na revista Caminho Novo de 1997 (adaptado).

 

The World and the Theater

Macedo Teixeira

     Carlo Goldoni (1707-1793), Italian dramatic author; more properly of Venice’s theater, by reflecting on the world and its problems, said once the following:

      – (…) the two key elements for the lawyers of the Law, I have converted them into another order and into another practice; (the two books upon which I meditated the most, and of which I will never regret for having served of them, were the World and the Theater). Condemn me if you judge so. Forgive me if that pleases you so (…)

     Actually, the word Theater comes from the Greek theatron and means what is seen, and what it is…; and what one sees in Theater is much more what is useful than what is discarded, since in the world we can neither see anything beyond it nor can we discard the pieces that compose it; Theater invites us to watch and the world makes interpreters. I thought interesting the way Carlo Goldoni made use of key elements of the lawyers of the Law and, because of that, I decided to reflect upon the social and cultural importance of these elements. It is my intention not to reveal yet, what aspect of the world I will refer to or what emotions    

      I will become attached to; I will concern, only, about the ponderation of the concepts of World and Theater in a relation between what is seen as an event (World) and what manifests to who sees (Theater). I know that the main question is common to both planes and deserves that we treat it with due respect, and little by little, I shall reveal you what concerns me. Be, then, my reflection enlightened by the lights of a memory that remembers glares of voices that suspended the silence by the roar of claps and cries of acclamation.

      I was young, and I do not know for sure what marveled me more in the world; I know that I lived on a “stage” that was always full of what was good and of what was no good; perchance full of illusions and of poverty, of ignorance and of inequalities, but also full the hearts of men, full the Law of Life and full the smiles of the people. 

     The “Stage” on which I live now does not have any of that anymore; it became empty of negative values, but it did not became full of positive values; it is becoming empty of everything and becoming full of nothing. The opening knocks are still heard; in that, “Theater” did not weakened in its spirit, everyday it invites us to attend at new events on scenes of a forced imagination, but people do not pay attention anymore because there is nothing to dream; there are no illusions to live and reality matters, only on the occasion.

      I remember of chatting about what I saw on stage and in the world, when actors embodied the characters, without getting attached to them on the living by the artistic existence the real and human feelings; or when they spoke about matters of life and, by the form how they criticized them or interested about them; it was good to hear who knew how to speak, but also who was touched by the issues of life.

     I remember of the lights that focused the faces and saw in them a sincerity that I did not how to distinguish to whom it belonged; what I saw was a person in a face that was an expression, not a dissimulate mask, of an art that has no life, because it lacks the aesthetical sincerity and has the more than enough artistic ideology.

      I remember of people getting interested about causes that had more to do with cooperation and disinterested competition, than by the success of earning a lot or being socially very important. People made use of the world to show their qualities and their respect in the community to which they belonged; those who did not agree with the regime united in other qualities; they were loyal and exalted their role in that loyalty; they were contentious and were interested by what they believed. Life was a “stage”, but we only were in theater when we went there. 

     At the actual “stage”, “people” are always doing “theater”, but they do not want to be actors or show the qualities; they prefer to be ignored like men and extolled like idols of anything and for anything. I remember of the world and of what I saw in it; it was not an expression of this image that confounds everything; the body and the form of the corporal relation; there is no more neither intimacy nor secret; there are no more neither illusions nor artificial paradises – only naked reality to consume and throw away. 

      Little by little, identities are lost, and even children are forced to be grown-ups to win from the audience what they do not have at home. I remember of the rivers and of the brooks, of the fields and of the huskings, where I found strength to be the child who had little of happiness, but who was strong and healthy in the joy of living.

     It was that natural tonus that filled me with dreams and with wishes to be a man and to start a family; it was that splendorous vital substance that made me dream in time and in space, and exalt the feelings, when footlights were turned on and illuminated those human faces, which incarnated the souls of the people who suffered while toiling in the hard and dangerous works, or who became happy in times of abundance and of feast.

     It was that psychological energy that the purity of the actors of the World and of the Theater irradiated and aroused the people’s enthusiasm; it created thoughts of revolt and of disenchantment, but also of acceptance and of moral welcome of the values that dignify Man and make him more alive and interested. Work, respect, the feeling and sincerity were in the heart of each one, and in one’s own way, they were portrayed on the stage of the world or on the stage of life; all was made as being unique.

     Who does not remember of theatrical actings that filled the hearts and left eternal memories? Famous sentences and thoughts that disciplined the people in respect and in attitudes, and awoke them to the enjoyment of speaking about others, for their qualities and adventures. I do not know if we can choose between the World and the Theater in the same way we did formerly; I know we chose liberty, and that is the best value Man has, but we cannot experience liberty if we are in permanent crisis; I believe that we live in a transitory phase, but it has been for a long time we are in this state!...

     I promised to reveal you, in this writing, the aspects of the World that concern me and the emotions I attach to. From the first, stand out, with evidence, Man and the actual world; from the second, I ask you to guess, but considering human characteristics, in general; it should not be difficult!...

     I am sure that we can always choose the World and the Theater; make use of both; see file people in their elegant rush; in their firm and resolute steps to the conquest of Time and of the promises of their ancestors. I believe it has begun to elevate the curtain of the frontiers of social disappointments; that one already hears the more profound sound of Molière; that the actors run to their places and that multitudes begin to fill again the squares and the halls; begin to get interested by tales, by stories by, by speech; by thrilling sound waves, of the voices that fill with light the life of the spirit and enrapture the hearts to a Dream that will be eternally true.

    I hope I'm not delusional!

Published in magazine Caminho Novo of 1997 (adapted).

 

SEMELHANTES A UMA ESPÉCIE DE “MOSCARDO”

            Vivemos a maior parte da nossa existência, ou se calhar toda a nossa vida, num sentimento de contínua insatisfação e numa infindável vontade de procurar sempre mais e mais, procurar o que nos parece diferente e com a ideia de esta nova realidade vir a ser melhor para a nossa satisfação e felicidade!...

            Será este sentimento, em busca do diferente e do novo, porventura um sentimento natural, especial e próprio da natureza humana, será este um sentido com força na nossa essência e, por isso, um sentido inato em cada um de nós?!

            Do que fui sentindo ao longo da minha vida, foi despertando na minha reflexão, que este sentimento quando na sua função mais persistente e acutilante, tende a tornar-se numa espécie de “moscardo”, que de tão incomodativo e permanente na dureza das suas picadas, nos vai sacudindo de tal modo, que a nossa consciência acabará por nos desinstalar de qualquer estado de conforto, mesmo que o nosso modo de viver não esteja despossuído de razoável satisfação.

        Sendo que, com esta permanente insistência na procura pelo novo, esta insatisfação acabará por nos descompor e quase de forma imperativa nos ordenar, para a necessidade de não pararmos e de continuarmos a prosseguir em direção à experiência da mudança, não deixando de procurar com a nossa nova Caminhada, seguir em direção ao que vamos intuindo como sendo melhor, do que tudo aquilo que possuímos, mesmo que já sintamos como nível razoável de conforto, mas que não sentimos ser já suficiente, em virtude da nossa contínua e persistente insatisfação.

            Pensada como insuficiente para podermos viver e procurar a nossa própria paz, pois a maior parte das vezes, movemo-nos numa consciência inquieta e num lapso de tempo um tanto apressado, sempre com vista à obtenção de uma nova ordem de satisfação, quase sempre guiados pela vontade insaciável para superar qualquer insatisfação sentida, ainda que, na maior parte das vezes, vamos acabando por não superar tal insatisfação para um nível melhor e com isso enviesámos a nossa vivência num sentimento sempre desesperado e insatisfeito.

            Neste inexplicável incitamento, aparentemente indireto e involuntário, vão-se criando sucessivas ansiedades e desejos, que nos levam para além de um espaço-tempo, percorrendo abstratamente em pensamento o ilimitado, quase sempre numa projeção imaginária sendo que nesta mudança aparente passamos admitir como real que estamos a caminhar ao encontro de um outro novo estado, que imaginamos vir a ser de maior contentamento.

        Estado este, que sendo considerado como uma superação pela mudança,  nos vai parecendo ser melhor, mas esta nova mudança não deixará nunca, mesmo que tenha sido já tomada como lei  social, não deixará de continuar a ser apenas um outro estado de desenvolvimento, porventura, parecendo ser melhor do que o anterior, mas que apesar de induzir a uma nova mudança de vida, mesmo assim, nunca  o ser humano admitirá o “quanto baste”, e isso o levará a uma ambição desmedida a caminhar sempre num sentimento transitório, em face da sua consciência de permanente insatisfação.

            Pois, se é verdade, que em cada novo estado de mudança social, nos vamos envolvendo numa certa expectativa pelo melhor, pois em virtude da nossa natureza,  o desenvolvimento humano proporcionará  mudança social, mas este continuará a ser apenas  um limite, de mais um momento de mudança não permanente nem contentável, já que a nossa consciência só tenderá a conceder alguma folga no nosso desejo de permanecer estável, enquanto não pudermos continuar a marchar numa nova direção, movidos por uma certa avidez, comportando-nos deste modo, como “UMA ESPÉCIE DE “MOSCARDO ”, que investe com “ferroadas”, perante a nossa imprevisível e sempre ansiosa insatisfação.

          Contudo, tomado que seja este movimento, aparentemente inato, pela necessidade de ajudar a impulsionar a nossa consciência para o cumprimento do que seja natural e bom, social e humano: sejam eles, o contentamento, a satisfação  ou a realização da essência da nossa vida, quando direcionado um tal movimento no sentido destes valores, poderá ser reconhecida como necessária esta insatisfação, quando não excessiva, mas ressalvando o valor desta insistência para a necessidade do novo, esta só será justificável, se vier a concorrer para um sentimento pessoal e social moderados e sempre entre o possível contexto do desenvolvimento, e não  no modo tão apressado e disforme como o que se tem verificado ao longo de pouco mais de meio século até ao presente, que têm convergido mais para o Mal do que para o Bem, desvirtuando a memória, a honra e o sentido de humanidade, valores que têm sido e continuarão a ser o melhor fermento da História do homem, e com essa perda de sentido, teremos de continuar a dar razão à expressão: “Tu és um insatisfeito por natureza.”

             Porém, não vejo em nada de tão necessário, de que tenhamos de aceitar esta insatisfação como algo natural, como algo que nos impeça de poder viver de modo mais moderado, contrariando esta permanente insatisfação, em que estamos a viver cada vez mais, nem vejo o seu necessário e real valor, se esta vontade natural não for orientada para o “quanto baste”, que é o que não está a ser considerando como uma condição necessária, pois o que se vai cada vez mais verificando (tendo em vista a atualidade) é que aquilo que é prioritariamente mais necessário, está cada vez mais a ser ignorado e desrespeitado, passando a valorizar-se mais aquilo que é supérfluo e muitas vezes mau, começando a triunfar o mais mediático, irreal e fantasioso, do que o mais discreto, mas melhor para sermos felizes e muito mais necessário, para podermos colaborar com a nossa vontade para o exercício do Bem, que irá pela sua ação impedindo a superação da confusão nas mentes humanas, sobre o usual  e muito mais importante, para o desenvolvimento da Humanidade, com vista à paz, à felicidade, ao amor, à criação de família, do trabalho e à melhor distribuição de riqueza, no tempo em que vivemos e por a maior parte das nossas ações sociais, estarem a caminhar muito mais para a desordem, do que para à ordem com vista à liberdade, a solidariedade e à dignidade de todos..

         Creio que só assim, e perante este procedimento, valerá a pena tomar esta ansiedade como natural e até boa, mesmo quando dependente da lei social, pois mesmo, que a nossa consciência possa ser muito perturbada, por um tal “moscardo” ou por um tal “aguilhão”, ao tomar-se assim no seu modo perturbante ela, torna-se também numa forma de enervação que será necessária para realizarmos a nossa vida, sobretudo torna-se numa enervação para a procura de um caminho melhor para a superação do que não temos e sobre o que nos pareça não estar ainda completo, no sentido da perfeição e da equidade.

         Só se observando nesta linha de orientação da nossa conduta, baseada numa insatisfação moderada, me parece ser tolerada uma tal ansiedade, ressalvando sempre na nossa boa vontade alguns excessos, sobretudo em que a nossa insatisfação tiver de ser ainda mais incisiva e apressada, quando pelo menos esta seja apenas, por qualquer razão mais desesperante.

            Contudo, se será plausível admitir-se um tal estado de sentimento, como sendo natural e necessário, para o crescimento da nossa satisfação, já o mesmo não se poderá dizer do seu sentido contrário, em que uma grande parte da sociedade, no Mundo atual vai dando à direção do sentido deste valor, no sentimento que é referido, negando aqueles que deverão ser os seus objetivos, pois no caso de um tal sentimento ser também essência do mistério da nossa vida, julgo em meu entender, que este só poderá ter como desígnios: a Verdade, a Responsabilidade e o Respeito.

            Verdade, porque se for condição da natureza humana a insatisfação, como homem nasce bom e participa da bondade, logo, trará consigo as sementes da verdade e qualquer satisfação só poderá ser entendida como tal se esta for coincidente com a bondade do homem e não for obtida pela sua negação, pois uma tal negação já não poderá ter valor para a vida e será apenas um contravalor, por consequência só poderá vir a tornar-se em maldade.

            Responsabilidade, porque se o ser humano, quando nasce não traz consigo nenhum contravalor, como no caso da mentira, da maldade e da perfídia, a sua ação só poderá ser para o bem da verdade, quando pela prática consciente e de boa intenção na toma de responsabilidade nos seus atos, que deverão ser com vista à obtenção do bem, e com essa atitude poderá manter inalterável a pureza da sua vida, naquilo que ela é, e não no seu contrário, porque procedendo por intenção irresponsável a rejeitará e a tornará impura pela perda e pela mancha.

          Respeito, porque se a insatisfação, for então uma condição natural, ela não poderá nunca perturbar a satisfação do outro, ressalvando que a mesma seja verdadeira e respeitosa, pois se com a sua insatisfação pretender excomungar a satisfação do seu semelhante, procederá em desconformidade com o que poderá ser a lei natural, e em consequência poderá cometer crime por contaminar um direito que sendo recíproco, será universal!

        Quem dera que o homem, não perdesse mais tempo, com a insatisfação gerada pela vontade de dominar, ser poderoso, ser egoísta, ser falso e julgar-se dono do Mundo.

Vivemos, é verdade, nesta quadra (de desespero sobre uma epidemia de malfeitores, corruptos, criminosos, que parece ser incontrolável!) num tempo de Paz aparente.

        Numa paz silenciosa e de receio sobre a proteção da nossa vida, no presente e em relação ao futuro, na saúde, no emprego, na convivência social, na força do poder cego das tecnologias que cada vez substituem mais a mais valia da capacidade humana que deverá continuar a ser apoiada, mas não substituída por passar a ser robotizada, mas também devemos continuar a pensar na contínua necessidade, da emergência no socorro a tantas crianças, homens e mulheres, adultos e jovens, velhos e novos, todos os que se encontram abandonados à sua sorte, a morrer à fome e à sede nos mares das migrações. A viver na penúria nos campos de refugiados e nas debandadas para fugir à guerra e à pobreza, em vários países do Mundo ricos de valores materiais, mas tão pobres em valores humanos, países em que vivem milhões de seres humanos.

        Por isso, mesmo assim, apesar de estarmos a viver nesta quadra temporal de maior receio, em relação à nossa vida e saúde, quer no presente quer no futuro, apesar do medo que temos de todos os vírus, que cada vez vão sendo mais fortes e poderosos, na força sobre o nosso Sistema Imunitário, deveremos manter a solidariedade e o amor incondicional, sobretudo valorizando os que mais têm lutado e continuam a lutar, para manter e criar esperança  de que é possível salvar a nossa vida.

       No entanto, às vezes, também eu, como qualquer um outro de vós, continuo mesmo assim perante a miséria humana, que grassa no nosso Mundo, a dizer, de que gostaria antes de em lugar de falar de paz açaimada e de medo, valores contrários ( ao amor, dignidade e solidariedade) que são fundamentais nesta quadra de tragédia, que se vive em todo o mundo e que se vai tornando cada vez mais em ambiente de receio em saber como viver em conjunto, agora e depois, na esperança de ser superado o Caos gerado por esta pandemia de traiçoeiros, criminosos, corruptos; afinal, homens sem dignidade!

        Também eu (se não fora o caso da minha fé num mundo novo), gostaria muito mais de gritar em desespero e em condenação, sobretudo gritar aos mais responsáveis, condenando-os por uma certa parte de todas estas tragédias, sobretudo pela fome e pela guerra que matam tantos inocentes no mundo, pois parecem nem perceber ou aceitar como condição normal, pois a estes acontecimentos têm sido quase indiferentes, deixam avançar a ingratidão e o desespero na maior parte das pessoas, tornando o mundo social  tão indiferente e cruel.

        No entanto, perdoando (mais pela Fé do que pela realidade) vou acreditando nos numa nova humanidade e na mudança de mentalidades, acreditando de que "amanhã" será um novo dia e, com ele haverão de surgir homens de boa vontade e de grande coragem, e de que jamais irão continuar a permitir, sem reprimenda, que continue a alastrar-se a desgraça e a miséria que vão predominando neste mundo, e então nessa altura, possamos dizer como o poeta: “Há quanto tempo sonho com Aquele que há de vir e não vem.”

       Ou possamos eu e todos vós, acrescentar: "Há quanto tempo sonhamos, com Aquele que haveria de vir e veio”, porque sempre esteve no meio de nós!

Macedo Teixeira

É o Homem que faz o Cargo, e não o contrário

 

     Mesmo como profissional no ativo, nunca me calei em relação a elogiar ou a "condenar" tudo o que de mau ou de bom ia acontecendo no Mundo e, por isso, como também sempre entendi que os fóruns, que podem ser as praças, as igrejas ou as escolas, salvaguardados os valores do respeito, do amor, da verdade, da justiça e da sociedade, mas seja em que situação for, podem ser os lugares mais apropriados em que o homem pode e deve sempre elevar a sua voz para a defesa e a manutenção da vida, sob pena de vir a ser considerado como igual a todo aquele que a põe em risco, a destrói e a mata.

      Julgo que não é por muito se escrever ou falar-se sobre certos crimes que a sua ação toca mais os corações e se espalha com o fogo divino, creio que qualquer crime faz mais efeito em cada coração humano e se espalha com o fogo divino sempre que nos assumimos numa atitude de loucura e de escândalo, falando sem medo e dizendo o que se sente.

      De atitude de loucura para podermos dizer que cada homem é o próprio estatuto, que é ele a posição social, e não é a posição social que o torna nele. De escândalo porque devemos sempre condenar, ao menos moralmente, toda a ação que vise levar à destruição e à morte da vida.

    Tudo isto também para sermos capazes de condenar moralmente, se não pudermos de outro modo, todos aqueles que desempenham cargos superiores, institucionais, políticos, religiosos, jurídicos, empresariais, industriais e outros e que continuam a calar-se nos fóruns, ou nas praças, ou noutros espaços públicos, cooperativos e até privados em relação à desordem e à maldade em que o Mundo vai caindo com a morte e a destruição da consciência e da vida humana sem repelir e condenar pela justiça humana social continental, comunitária e nacional.

     É o Homem que faz o cargo, e não o contrário, e se estas pessoas com cargos superiores não se levantam para porem ordem e justiça no Mundo, então não merecem desempenhar tais cargos e certamente só compreenderão o poder das armas porque não saberão quem são.

Macedo Teixeira

 

It is the Man who makes the Position, not otherwise

 

Even as a professional in activity, I have never shut up in relation to praising or "condemning" everything of bad or good that was happening in the world and, therefore, as I also always understood that the forums, which may be squares, churches or schools, secured the values of respect, of love, of truth, of justice and of society, but regardless of the situation, they may be the most appropriate places where man may and should always raise his voice for the defense and maintenance of life, under the penalty of becoming considered as equal to that who puts it at stake, destroys it and kills it.

I think it is not for writing or speaking too much about certain crimes that its action touches more the hearts and spreads with the divine fire, I believe that any crime has more effect in each human heart and spreads with the divine fire every time we assume ourselves in an attitude of craziness and scandal, speaking fearlessly and saying what we feel.

Of an attitude of craziness so that we may say each man is its own status, that he is the rank, and not that it is the rank that turns him in it. Of scandal because we should always condemn, at least morally, every action which aims at leading to destruction and to the death of life.

All this also to be ourselves capable of condemning morally, if we cannot otherwise, all those who hold superior, institutional, political, religious, juridical, business-related, industrial positions and others, and that remain quiet at forums, or on squares, or in other public, cooperative and even private spaces in relation to the chaos and wickedness the world is falling into with the death and destruction of conscience and of human life without repelling and condemning by continental, communitarian and national social human justice.

It is the Man who makes the position, and not otherwise, and if these people with superior positions do not rise to put order and justice in the world, then they do not deserve to hold such positions and certainly they will only understand the power of weapons because they will not know who they are.

Macedo Teixeira

 

Deus… também É assim! / God… is also like that!

Deus… também É assim!

— Ora, ora, ninguém me tira da ideia que isto de Deus foi tudo uma invenção. O povo, para poder resistir à vida, precisa de acreditar em alguma coisa, e alguém inventou a existência de algo superior para o homem se poder iludir.

    — Que está a dizer, senhor Pedro?! Então o senhor também acredita que alguém pode inventar fantasias e que estas se mantenham para sempre?!

    — É como lhe digo, amigo João: quando a gente lê a História, vê que os deuses foram inventados pelos homens, dava-lhes prazer identificarem-se com algo superior e assim justificavam todo o tipo de atrocidades e glórias, que mais não eram do que fantasias para as suas vaidades.

    — Não é bem assim, senhor Pedro: olhe que mesmo esses tinham temor pelas tempestades, secas, doenças, e por isso imitavam os deuses na honra, mas também na beleza, na justiça e até nas guerras e na morte os invocavam para triunfarem na terra e para no fim das suas vidas serem conduzidos aos Céus e libertados dos Infernos.

    — Ora, ora, balelas é o que isso é! Pois não é verdade que os reis, os imperadores e os chefes das tribos se justificavam nas suas loucuras e fantasias com esses seres que inventaram; matavam, pilhavam, divertiam-se nos circos a verem os escravos a lutarem uns com os outros, quase sempre até à morte, para gáudio dessa gente que se intitulava na conformidade dessas divindades, que diziam estar escondidas nos céus?

    — Bem, se pensarmos por esses maus exemplos, o senhor tem muita razão, mas mesmo assim não é verdade que no meio de todas essas loucuras havia algo que eles adoravam e a que prestavam culto, prometendo obedecer, condenando cegamente seres em sacrifício de morte como oferenda às divindades e implorando depois, por meio dos religiosos do tempo, que os deuses lhe dessem os triunfos nas guerras, as abundâncias nas colheitas, a riqueza da saúde, da força e da inteligência?

    — Ó amigo João, eu já vi que consigo não adianta: o amigo é crente nessas coisas, mas eu não acredito, para mim isso são balelas, pois nós somos como qualquer animal, nascemos e vivemos conforme nos deixa a Natureza, a sociedade e o dinheiro, depois acabamos na terra comidos pelos bichinhos que antes comêramos nós.

    — Não seja assim, senhor Pedro, você sabe que eu lhe tenho amor, que fico triste quando você está triste, fico feliz quando você está feliz e que ficamos saudosos quando estamos distantes, por isso acreditamos um no outro, e olhe que nós não somos deuses!

    — Tem razão, amigo João, eu exaltei-me. O nosso amor é muito mais forte do que qualquer querela.

    — Vê… como o senhor lá chegou?

    — Como, não entendo?

    — Pois, se o amor é mais forte do que nós, então isso quer dizer que há algo que nos supera, e se o amor é algo que nos supera, então Deus é amor!

    — Não estou a entender a sua lógica!

    — Eu explico:

    Sabe? Os homens foram descobrindo e chegaram à conclusão de que esses deuses eram aceções sensíveis de um Deus Único, que, sendo Único, só pode ser Amor.

    — Está a dizer-me que Ele não tem designações?!

    — Isso mesmo!

    — Eu explico melhor:

    Não é verdade que o senhor é único, e que fica feliz quando vê os seus filhos e eles ficam durante algum tempo consigo, e, por amor, às vezes até ficam por mais tempo do que aquele que podiam?

    — Sim, é verdade!

    — E não fica ainda mais feliz quando, sem que eles lhe peçam, você lhes fala e os ouve nas suas aflições, para que com o seu amor, préstimos e inteligência os possa ajudar a serem mais felizes?

    — Sim, é verdade, mas continuo a não entender aonde o amigo João quer chegar!

    — Então se é assim, pela mesma ordem de razões, poderemos concluir que quando eles, sem motivo algum, não lhe falam nem vão a sua casa, o senhor Pedro ficará triste?!

    — Sim, com certeza!

    — Mas não deixa de os amar?

    — Não!

    — Então imagine algo mais simples:

    Quando os seus filhos estão consigo e depois se retiram, mas dizem “Até logo” ou “Até amanhã”, o senhor fica contente?

    — Sim!

    — E se eles, além disso, o beijarem?

    — Fico ainda mais contente!

    — E se eles saírem e nem sequer se despedirem?

    — Fico triste!

    — E porquê?

    — Porque os amo incondicionalmente, não posso exigir que se lembrem, mas confesso que só no seu amor me sinto um verdadeiro pai!

    — E isso só será para si, ou espera que eles procedam também com amor para os
outros?
    — Será para mim e também para os outros; não só eu, como os meus e como os demais semelhantes!

    — Pois bem, sendo assim poderemos concluir das suas palavras que o amor se manifesta na nossa sensibilidade, e não apenas em nós, mas também nos outros, e que este amor vai do mais simples para o mais complexo, e como seres únicos que somos,
somos também no limite absolutos?

    — É verdade!

    — Então Deus… também é assim!

    E já agora, na nossa modesta opinião, poderemos concluir com razão que Deus é Amor, uma vez que Ele contém todo o amor que cada um partilha com os outros e parece captar como Seu e senti-lo incondicionalmente nos seus limites, pois sendo o Amor a mesma essência para todos, este tanto se poderá assemelhar a um pequeno grão ou ao tamanho todo sem que nenhuma das grandezas perca o valor de ser uma totalidade.

    — Quero acreditar no que diz, amigo João! Pelos vistos você parece ter razão! Mas sabe-se lá se Deus também será assim!

Macedo Teixeira

Deus… também É assim! / God… is also like that!

Deus… também É assim!

God… is also like that!

— Well; well! Nobody takes out of my mind that this of God was all an invention. The people, to be able to resist life, need to believe in something, and someone invented the existence of something superior so that man may deceive himself.

— What are you saying, Mr Peter?! So you also believe that someone can invent fantasies and that these are maintained forever?!

— It is like I say to you, my friend John: when we read History, we see that the gods were invented by men, it gave them pleasure to identify with something superior and thus they justified all kind of atrocities and glories, which were no more than fantasies
for their vanities.

— It isn’t quite so, Mr Peter: notice that even those had fear of storms, drynesses, diseases, and therefore they imitated the gods in honor, but also in beauty, in justice and even in wars and in death they invoked them in order to triumph on earth, and to, at the the end of their lives, be conducted to Heaven and freed from Hell.

— Well; well! Falsehood is what that is! For isn’t it true that kings, emperors and heads of the tribes justified themselves on their madnesses and fantasies with those beings they invented; they killed, purloined, had fun at circuses seeing slaves fighting with each other, almost always to death, for rejoicing of that folk which entitled itself in compliance with those divinities, which they said to be hidden in Heaven?

— Well, if we think by those bad examples, you are very right, but even so isn’t it true that in the middle of those madnesses there was something they adored and to whom they rendered worship, promising to obey, condemning blindly beings in sacrifice of death as oblation to divinities and begging later, through the religious of that time, to the gods to give the triumphs in wars, the abundances in crops, the wealth of health, of
strength and of intelligence?

— Oh, my friend John, I’ve already seen it’s no use insisting with you: you, my friend, are a believer in those things, but I don’t believe, for me that is falsehood, since we are like any animal, we are born, live as let us nature, society and money, then we end on earth eaten by the animals we had eaten before.

— Don’t be like that, Mr Peter, you know that I have affection for you, that I’m sad when you’re sad, I’m happy when you’re happy and that we get longing when we’re distant, so we believe in each other, and notice that we are not gods!

— You’re right, my friend John, I lost my temper. Our love is much stronger than any discussion.

— See… how you got there?

— How, I don’t understand?

— For, if love is stronger than us, then that means there is something that surpasses us, and if love is something that surpasses us, then God is love!
— I don’t understand your logic!

— I explain:

You know? Men were discovering and reached the conclusion that those gods were sensible meanings of a Unique God, who, being Unique, can only be Love.

— You are telling me He does not have designations?!

— That’s right!
— I explain you better:

Isn’t it true that you are unique, and that you are happy when you see your sons and they stay some time with you, and, by love, sometimes they stay longer than they could?

— Yes, it’s true!

— And don’t you get even happier when, without they asking you, you speak to them and hear them in their afflictions, so that with your love, services and intelligence you can help them be happier?

— Yes, it’s true, but I continue to not understand where my friend John wants to get!

— Then, if it is so, by the same order of reasons, we may conclude that when they,

without any motive, do not speak to you or do not go to your home, you, Mr Peter, will be sad?!

— Yes, sure!

— But you don’t quit loving them?

— No!

— Then imagine something simpler:

When your sons are with you and afterwards they leave, but say “See you later” or “See you tomorrow”, do you get joyful?

— Yes!

— And if they, besides, kiss you?

— I get even more joyful!


— And if they leave and do not even bid farewell to you?

— I get sad!

— And why?

— Because I love them unconditionally, I cannot demand them to remember, but I confess that only in their love I feel like a true father!

— And that will be only towards you, or do you expect them to also proceed with love towards others?

— It will be towards me and also towards others; not only me, but also my own people and the rest of the fellow-creatures!

— Well then! This being the case, we may conclude from your words that love manifests itself in our sensibility, and not only in us, but also in others, and that this love goes from the simplest to the most complex, and as unique beings we are, we also are, on the limit, absolute?

— It’s true!

— Then God… is also like that!

And by the way, in our modest opinion, we may conclude with reason that God is Love, since He contains all the love that each one shares with others and seems to catch as His and to feel it unconditionally within its limits, for being Love the same essence for all, this can both resemble a small grain and the whole size without any of the magnitudes losing the value of being a totality.

— I want to believe in what you say, my friend John! Apparently you seem to be right! But who knows if God is also like that!

 

Aparição e Liberdade

    Vi em Vergílio Ferreira o Existencialismo ao ler e interpretar duas das suas principais obras, Aparição e Manhã Submersa, constatando que este autor reflete sobre questões que me impressionam, e estou em crer que comungamos de uma preocupação que nos foi comum e me parece não ser fácil de experimentar, ou seja, a questão dos limites reais da liberdade do homem e dos limites da aparição do ser da própria liberdade. Acredito que será no tanger destas linhas que se encontrarão as dimensões perfeitas da vivência humana e da sua estabilidade, mais do que nas possibilidades de o homem ser capaz de “escolher” voluntariamente a sua liberdade, ou seja, viver sem a necessidade objetiva das leis ou ter a sua liberdade em relação à sociedade.

    Acredito, porque sendo a linha dos limites reais da liberdade do homem uma linha que se vai planificando e engendrando no sentido da história universal e sendo a linha dos limites da Aparição do ser da liberdade a linha da essencialidade, ou seja, aquilo que é, e permanece independentemente de todas as transformações temporais dos limites reais da liberdade, quando estas são conjugadas de modo tangencial permitem os limites perfeitos da vivência humana. Creio, sinceramente, que será na compreensão desta ordem, na aprendizagem do que ela implica que residirá a grande alegria de viver, de pensar e experimentar a vida; julgo que é esta preocupação que está presente no pensamento literário de Vergílio Ferreira e no toque existencial com que exprimiu literariamente pelas personagens e suas vivências numa grande parte dos seus textos.

    Aliás, nas suas obras, especialmente na obra Aparição, o autor descreve situações onde se experimentam relações de possibilidade, mas sem acreditar-se que é preciso viver a qualquer preço, porque as situações acontecem e os momentos terão o sentido que lhes dermos. Vergílio Ferreira deixa-nos nos nossos atos, em expectativa de decisão consciente, mas supliciada pela falta da sua realização completa. Mostra-nos que a existência humana tem sentido, mesmo nas situações mais simples ou absurdas, mostra-nos que estas são quadros transitórios de uma realidade em definição. Na presença do eu ou no ressurgir do acontecimento, os limiares da existência ganham outra forma porque a impressão estética ou a plasticidade da memória lhes dá uma outra dimensão, que nos impressiona e convida ou nos estabiliza e nos “adormece”.

    São, de facto, as questões dos limites reais da liberdade do homem e dos limites da aparição do ser e da própria liberdade, que Vergílio Ferreira procura equacionar através de uma interpretação estética e literária, mas também crítica e profunda. No pensamento das personagens e na construção literária sente-se uma tensão entre a consciência do ser pelas qualidades que sente despertar em cada momento que vive e ao mesmo tempo a censura lapidar a tudo o que faz ressurgir o mistério, mas lhe é capaz de quebrar a sua dulcíssima esfinge.

    Pode constatar-se esta preocupação nas obras a que me referi, quando diz pela sua pena: “Se o meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos, um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se enfim!”

    Como pensar que eu poderia não existir? Quando digo “eu” já estou vivo… Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática!... que é a minha presença a mim próprio..... Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, Eu, esta brutal iluminação de mim e do mundo. E, todavia, eu sei que “isto” nasceu para o silêncio sem fim.

    Para terminar, desejo comparar o conceito e valor da liberdade, no modo de a viver, quer na aparição das coisas e do ser, quer na nossa relação existencial de convívio e de partilha. São ideias familiares ao autor, a mim e a vós, porque a preocupação que nos domina é sobre o problema da experiência dos limites da vida. Como viver e experimentá-los, como solucionar as situações incompreensíveis de injustiça e como acreditar sem reservas na transcendência que nos eterniza? Pela experiência direta dos fenómenos que dão origem à “iluminação”, pela experiência irracional dos indivíduos, tendo em conta as paixões cegas ou as forças ocultas que são muito mais fortes que as forças humanas? Aceitar a regularidade e deixar embalar o espírito até à fogueira do conforto?

    Lembro de novo os pensamentos do autor quando diz: “Se todos fizéssemos só o que nos apetece…” ou “ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?” E continua, nos limiares das suas personagens, pronunciando em exclamação: “Este ‘eu’ solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo?” “E de que serve esse ‘eu’ e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo. Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é.”

    Em todas estas expressões sente-se uma emoção existencial e uma procura de uma verdade perfeita através da face última das coisas, que eu julgo ser o essencial ou os limites da Aparição, antes de esta ser encarnada pela forma da palavra, ou por qualquer vivência irracional. Para mim, acredito na possibilidade de experimentarmos “esta face última da realidade” pela relação de sentido entre o sujeito que somos e a realidade que nos é dada em “objectum”, em presença e pelo esforço de elevação até aos limites reais da nossa liberdade e do ressurgir do seu Ser. A compreensão e vivência da nossa vida passam pelo ajustar da perfeição do ver da verdade e da verdade que se nos torna possível. Aliás, este entendimento parece estar presente no prólogo da obra “Aparição”, que diz: “E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude de tudo — da alegria, do heroísmo, da amargura de cada gesto. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca, é de dentro de mim que a sei — não do olhar dos outros.”

    Concluo, por fim, dizendo que a conjugação tangencial das linhas dos limites reais da liberdade humana e da aparição do ser da liberdade hão de permitir a cada um de nós experimentar a “iluminação”, experimentar a vida na alegria de viver e pensar; hão de permitir reconhecer que mesmo o trabalho inútil e sem esperança, não poderá ser encarado como tragédia, nem a nossa vida pode ser reduzida à finitude biológica.

    Acredito, com todas as minhas forças, que é possível superar este estado de elevação existencial até outros níveis, até à perceção íntima e profunda da unidade e até à Aparição divina.

Macedo Teixeira

Sinais de Família

       A diplomacia social toma conta da moral e dos seus fins, tudo parece reduzir-se a gestos simples que nem sabemos ao certo se os estamos a interpretar bem!

      – Posso ver? – perguntei com delicadeza e respeito pela idade daquela linda senhora!

      – Esteja à vontade, menino! – exclamou, com apreensão e curiosidade. E com alguma pacatez e mansidão, lá foi dizendo: – Veja que há coisas muito bonitas e boas!...

      Tenho no meu temperamento a ingenuidade consentida de tudo ver e apreciar com espontaneidade e elevação. Dou valor às coisas e às pessoas sem estar preocupado com o que sinto sobre esta atitude.

      Passou um certo tempo em que me preguei ao enlevo daquela senhora e à voz com que atendia os outros compradores e que eram mais efémeros.

      – Já viu o que queria? – perguntou com insistência.

      – Já, já vi o que queria, estimada senhora – respondi em tom interrogativo. Foi esta voz menos adocicada e mais altiva que me integrou no meu gesto social, mas sobretudo no meu gesto de amor, para trazer sempre objetos de recordação das terras que visito.

      Como se acordasse após esta meditação, animei de novo e escolhi naquela montra onde a linda senhora as tinha em exposição, um conjunto de prendas; objetos que distinguiam os meus sentimentos de partilha afetiva. Nós gostamos dos filhos por igual, mas concentramo-nos no gosto de cada um e excitamo-nos como eles se excitam nas suas preferências particulares.

      – Quanto é? – perguntei, com algum carinho.

      A senhora olhou-me profundamente e demorou algum tempo a responder. Não sei se eu lhe fazia recordar alguém. Um filho, talvez! Quem sabe…? Como não tinha máquina de somar e as parcelas eram várias, pegou num caderninho e começou a rabiscar os números. “– Um,… mais três…; mais sete…; são…”, a memória faltava‑lhe e eu tinha-lhe tomado a emoção. Eu não era um qualquer! Não era, porque ela olhou-me com profundidade e também ficou presa a mim.

      – Some o menino! Já tenho alguma dificuldade! A vista já não é o que era – dizia a senhora em comentários divinos.

      Peguei no caderno e somei rapidamente a conta. Tirei o dinheiro do bolso e paguei‑lhe. Julgo que não me enganei a somar e que lhe paguei o que ela me pediu; atesto o que digo com emoção e profunda gratidão, por ter confiado em mim e por me ter avivado o meu sonho, de lembrar-me sempre de todos os sinais de família.

Macedo Teixeira

A CRIATURA TRAINDO O CRIADOR

     Cada vez que observo a Natureza, fico fascinado com cada uma das suas partes e com cada um dos seus elementos na qualidade e diversidade dos seres, mas também vou ficando cada vez mais desiludido e descrente, com todas as atitudes criminosas, que diariamente vão sendo praticadas no Mundo, sobretudo, por certas criaturas que se escondem na razão do seu poder.

     Realidades singulares, todas tão singulares, espécies e naturezas, seres animais, vegetais e minerais, aquosos, terrestres e aéreos.

     Tantos, tantos…são os elementos fascinantes e deslumbrantes nesta constelação tão bela, telúrica, celestial!

    Porém, quando olho e medito no ser humano, fico perplexo diante de tanto desleixo contrariedade, desprezo, vontade de guerrear até à destruição e morte, em certos casos, algumas criaturas a transformarem-se em monstros sedentos de sangue, criaturas que me  perturbam e enervam tanto, que mesmo que não possa proceder de outro modo, em juízo, condeno-os veementemente  e desfaleço no dom da piedade, por ver muito mais o pior de alguns seres humanos,  que o seu contrário, que tanto gostaria de ver como sendo o seu bem e ter sempre mais motivos, para enaltecer o valor e o saber desta tão complexa criatura, a que chamamos “homem”.

     Cada vez mais sinto que vai diminuindo a minha crença no Homem Novo, ainda que continue a perdoar, mas não consigo ser indiferente aos maus exemplos praticados no cumprimento dos Mandamentos, que vão acontecendo e permitindo o aumento galopante do poder das trevas sobre a Luz do Mundo: Guerra, Fome, Roubo, Mentira, Adultério Cobiça, Morte, Idolatria, Desonra, Escravidão; terríveis exemplos, que vem sucedendo uns atrás dos outros e, que eu, tal como o Samaritano, desde muito novo, começara acreditar que iria sendo sempre  maior, o valor da maioria das ações com vista ao Bem da Humanidade, do que o seu contrário, ainda que fosse ligeiramente admitindo, que por via das tentações humanas, fossem acontecendo também algumas exceções negativas, contudo, as exceções negativas têm sido tantas e algumas têm sido tão criminosas, que ainda, que eu não tenha perdido a fé no Poder do Criador, que acredito, que sempre proverá a divina trajetória pelo poder da Luz e com a nossa obediência nos inclinará na busca do sentido para o caminho da Glória, não consigo esconder a minha preocupação, pois cada vez constato mais no dia-a-dia menos ações maioritariamente positivas e maioritariamente valiosas no percurso para o Bem da Humanidade, situação que se verifica já numa grande  parte dos” nossos semelhantes”; (a Criatura traindo o Criador)

     Desejaria tanto, mesmo tanto… que a minha perplexidade fosse de deslumbramento, fosse de fascínio, ou pelo menos fosse na maior parte de admiração pelo que o Homem já é capaz de realizar em benefício da Humanidade.

     Infelizmente, ao contrário do que seria desejável, ainda é muito maior a tangência de planos destruidores, de planos tão cegos e desumanos, que ao tentarem passar por um caminho sem continuidade, acabam por ficar encalhados e o crescimento do melhor continua a manter-se tolhido, especialmente por teimosia, por incompreensão e desobediência, desobediência até em defesa da sua própria vida como da vida dos outros.

     Apesar de tudo, reconheço que o ser humano é um ser capaz dos maiores feitos e da
maior sacralidade na defesa da vida e da espécie; um ser que na ascendência eleva-se em modo quase divino, sonhador e inventivo, supera limites até às profundezas, viaja em velocidades ultrassónicas, sai do seu mundo terrestre e vai à procura do mundo estelar.

     Mas que ser admirável é este, a quem chamamos homem, quando também é capaz de se transformar num monstro?!

     O Chapéu da Vida está furado, deixa entrar o mal que não poderá segurar
para não perder tudo, sobretudo, para não perder a raiz e as sementes que crescem entre os espaços que ainda abriga e se alegra na esperança do Homem Novo, que ansiamos para a cura da Humanidade.

    Proponho como solução para ajudar a melhorar este estado social− aumentar os espaços de convivência pura, dialogar em comunidade para insistir com a contínua educação para o crescimento de atitudes éticas, cívicas, morais, para o crescimento de atitudes saudáveis, com vista a contrariar a vantagem das atitudes “doentes e malformadas”., que vão escapando ao Bem e subtilmente fortalecendo o Mal.

    A Começar e com grande determinação, por plantar nos pequeninos as melhores sementes da vida individual e social, para que estas reforcem a crença e a esperança num Homem Novo e numa Nova Humanidade, numa Humanidade que compreenda que só poderá voltar a ser feliz se deixar de trair o Criador.

Macedo Teixeira

 

Instantes de Movimento e Vida

     Fixara da agenda os assuntos a tratar naquele dia, abrira sem ansiedade o seu computador e lera seletivamente as mensagens que, entretanto, chegaram à sua caixa de correio. Passara rapidamente os olhos pelas notícias dos jornais diários, sublinhara os acontecimentos mais importantes e preparara-se um pouco melhor para sair até ao primeiro local donde habitualmente entrava para entre o sabor de uma xícara de café dar azo aos primeiros desabafos sociais; o proprietário do café era um homem simpático e gostava da asserção das coisas da bola, principalmente do seu clube desportivo, de que era um grande fã.

     Nestes gestos de cordialidade e de registo social, verificava-se uma espécie de interlúdio para os Instantes da composição de mais um dia e que, nos acontecimentos mais gerais, se previa complexo e sempre algo imprevisível.

    Assumia-se numa mistura de ingredientes plasmada de movimento e vida, que com o intercalar dos diversos trechos sociais se tornava na origem de uma composição complexa a ser narrada pela história da pegada humana.

    Ataviara-se melhor e com um aprumo mais rigoroso descera até à garagem do seu andar para pegar no seu automóvel de cor preta e já usado, mas muito limpo, e ainda com uma aparência de sinal bastante positivo; o automóvel não era apenas o seu meio de transporte, também representava um pouco do valor económico da sua riqueza conseguida na honra e dignidade do trabalho.

     Naquele dia o café não estava tão cheio como de costume, era um tempo de férias escolares e a escola que ficava próxima, apesar de ser um lugar para os mais pequeninos, dava-lhe uma garantia de maior trabalho, não só os pais das crianças como também funcionários e professores acorriam durante esse período formando a maior parte das vezes uma enchente de pessoas.

     Mesmo assim, aquele homem que servia no café de forma lesta e atenciosa estava com um ar sorridente para todos os que iam chegando, quer para ocuparem as mesas, quer para ficarem de pé pregados no balcão durante um tempo que não se alongava para além do saborear o paladar aconchegante que tem em Portugal uma xícara de café.

     Fizera o mesmo, cumprimentara e sorrira de igual modo para os presentes, havia entre ambos uma amizade gerada pela convivência que depressa se estendia num ambiente de carinho, mesmo aos mais estranhos; o ambiente social urbano será certamente um pouco diferente daquele que decorre de uma matriz de envolvência campesina, é de crer que só o ato de tomar café se apresenta como uma realidade de sentido transversal, in actu.

     Naquele dia o espaço, que estava mais vazio do que o habitual, não lhe seria vantajoso para aligeirar o momento da saída. Não dispunha de grande satisfação nem de grande tempo para poder tagarelar sobre as realidades mais simples ou então complexas pelas confusões muitas vezes reinantes em cada situação, como são as dos encontros desportivos e dos resultados do futebol, que na maior parte das vezes são sentidos apenas como expressão do resultado da vitória, do resultado do neutro ou do resultado da derrota, numa atividade social desportiva que acima de tudo deverá ter como finalidade a convivência entre pessoas, o seu recreio e o seu lazer.

     De qualquer forma, mesmo assim, esta será sempre uma realidade agradável e não terá em nenhuma situação, por muito complicada que seja, nada de grave ou de tamanha insatisfação que não possa ser compensada por outras realidades sociais; não será como a realidade da fome e da miséria humanas, que destroem e matam a vida sem lhes darem nenhuma compensação nem lhes permitirem qualquer retorno.

     Sem demonstrar desencanto nem dar sinal de tédio, despedira-se com um “Até à próxima”, misturando-se entre os demais nas despedidas agradáveis e de bom senso; há nestes lugares e nestes locais de natureza rural uma certa simbiose na amizade, que fraquejará no seu encanto quando se esquecem os pormenores da simpatia, do respeito e da elegância na conduta; o ser humano aqui torna-se mais transparente.

     Entrara no carro e com delicadeza mantivera por alguns segundos o motor a trabalhar sereno e sem pressa, assinalara depois o pisca na direção a seguir e pusera-se a caminho. Com o rádio ligado em tom suave, deixara-se embalar levemente por uma linda canção a que, sem grande força, não resistira a trautear na intermitência alguns dos versos da melodia.

     Entretanto começara a pensar na primeira coisa que deveria tratar naquele dia, a situação em que se encontrava não era nada agradável e daí evidenciar alguma perturbação no seu ânimo. Precisava de encontrar o gerente do banco a quem ia recorrer a um empréstimo, necessitava que este se mantivesse atencioso e humano para lhe conceder um pedido de crédito, em situações já especiais de idade, pois tinha uma prestação global vencida no tribunal da casa de habitação que comprara, ainda como inquilino e que acontecera numa razão inesperada e bastante posterior ao contrato de promessa de venda, pois no momento da sua promessa de compra, acreditara que não teria de ir até uma situação daquelas, para ter de comprar em tribunal, e já em tão avançado estado na idade para um tempo razoável num crédito à habitação, sendo muito no caso por razões de incompreensão e de injustiça de algumas pessoas que levaram numa contenda egoísta a que o caso fosse resolvido à força sem prévio conhecimento do inquilino e nos termos da Justiça por venda por licitação de um comerciante em hasta pública no Tribunal da Comarca.

     Necessitava de encontrar naquele momento alguém que compreendesse a aflição, pois tinha apenas quinze dias para cobrir a oferta que fora feita ao Tribunal, que confiasse na honra e na seriedade da pessoa e estivesse disposto a correr algum risco aparente perante a administração do banco no entendimento que poderiam fazer da sua competência e zelo na defesa do dinheiro da instituição.

    Como se procurasse no movimento a resposta que procurava, olhara desinteressadamente para as realidades que avistara naqueles instantes, uma mulher com uma criança ao colo anunciando um quadro de maternidade que lhe lembrara a mãe quando caminhara com ele a gritar para pedir socorro perante a gravidade do ferimento que lhe abrira a água fervente quando era ainda pequenino e a sua mãe dormitava sobre a mesa. Lembrara-se de que ela fora buscar forças sem saber onde para sulcar as águas que, alvoroçadas, naquele dia de inverno corriam barrentas e enchiam com uma força medonha o carreiro que a mãe com ele a gemer de dor e abraçados na tragédia tivera de percorrer até à primeira povoação.

     Um pouco mais adiante, reparara num enorme camião carregado de troncos de madeira que rasgava a estrada sem piedade na alegria expressiva do condutor que parecia segurar o volante como se este fosse a rédea de um cavalo que teria de domar num certo tempo e entre uma certa distância; aquele homem dera-lhe força e coragem para acelerar a velocidade e ir sem tibieza ao encontro de um pouco de felicidade no dinheiro que procurava e na casa que passaria a ser definitivamente sua; tornara-se de repente um jovem repleto de loucura e de sonho.

     Na azáfama do caminho a percorrer misturara a emoção com alguma lucidez; sentira-se turvo por instantes, mas depressa fora acordado por um taxista que procurava na distância alguém para transportar, sabe-se lá quem! Talvez uma pessoa como eu, que procurasse naquele instante os sonhos, mesmo que não pudesse revelá-los por não lhe conhecer rigorosamente a origem, uma casa, um carro, um curso para um filho, um emprego para a filha ou, simplesmente, que o levasse até um lugar sagrado onde pudesse encontrar a paz para uma desavença havida no seu lar.

    Entrara no banco possuído de uma coragem e de uma força que jamais certamente algum gerente sentira; decidido, fora expedito na explicação do que pretendia, e ao cabo de pouco tempo o gerente estava a colocar-lhe condições de pegar ou largar. Respirara fundo, ouvira a sua mulher e lembrara-se num ímpeto de surpresa de que o que lhe acontecera não fora senão mais um acontecimento para o pôr à prova perante outras circunstâncias ainda mais difíceis.

     Aquela mulher que segurava a criança ao colo não era nenhuma gigante, mas parecia ter uma força que não emanava da sua doçura; era a vida agreste que pulsava nela e naquela ocasião.

     O condutor não era um domador de cavalos, mas encarnava a luta da natureza para conseguir os seus fins.

     O taxista não era intolerante, naquele momento era o guia que, em certo desencanto da vida, vai buscar dentro da alma um dito de espírito para alegrar na solidão humana ou no corpo por um grito de buzina para acordar aquele que adormece desencantado pelo peso do sofrimento e da amargura nos caminhos ásperos da vida.

    Assim somos os seres humanos, e em cada instante que vivemos há um movimento e um acaso a experimentarem a nossa vida.

Macedo Teixeira

SE AINDA NÃO FOR TARDE

Se minhas impressões não forem delírios
  Se puder imaginar e se ainda não for tarde
Livra meus pecados livra meus martírios
  Permite um sonho que em mim ainda arde
 
 Ergue minha cabeça durante o dia e o luar
  Torna meus passos ainda que menos certos
 Faz-me esquecer toda a fraqueza no andar
 E na ilusão sejam coesos firmes despertos
 
   Leva-me ainda por esta vez mais a acreditar
     Ajuda-me a ler os sinais nos tempos desertos
       Na ilusão eu esqueça a lentidão no meu andar
     Permite que eu caminhe entre erros e acertos
 
       Eu creio sermos essência dum tempo singular
      Permite que pense como o menino que anseia
   Acreditando que somos ser ainda antes estar
      Apenas que abscôndito vive lá já o verbo amar
 
Se puder imaginar e se ainda não for tarde
    Ajuda-me na pobreza na humildade do existir
       Como a observar esperando a infinita bondade
   Um sonho esplendor entre o mais belo sorrir
 
Macedo Teixeira/Fevereiro de 2022

 

ENTRE TUDO E NADA

Desde pequeninos, que em tudo o que fazemos, pensamos ou comunicamos, vamos querendo ser os melhores e ser os primeiros – sentir que crescemos para a vitória (estimulados em parte pela educação e instrução que vamos recebendo), conquistar a apreciação dos amigos, conseguirmos ser notados na nossa personalidade, sermos destacados como “génios”, sermos reconhecidos como os mais inteligentes, etc.

É evidente, (valha-nos a certeza desta crença) de que existem muitas exceções sobre o modo de assimilação desta complexa vontade negativa em deixar-se conduzir por esta “pseudonorma social”, uma vez, que  o esplendor da humildade, ainda continua a tornar-se num valor que vai prevalecendo ao longo dos tempos, sobretudo, continua a tornar-se num valor, que na experiência da nossa vida  vai vergando estes sentimentos ilusórios (do ser superior), uma vontade negativa que começa logo no ser criança, pois, quando crescemos na elevação do sentido da humildade eleva-se o sentido da pessoa humana, surgindo como consequência na aprendizagem a necessidade da compreensão do dever de obediência, sendo que com esta força valorativa, coadjuvada com outras, logo na fase de criança, torna-se mais fácil compreender a nossa  organizando e disciplina, quer no crescimento cultural, quer no desenvolvimento social e psicológico.

Se assim não fosse, se a Humildade não prevalecesse sobre o negativo, dificilmente daríamos conta desta pressão psicológica que se vai exercendo sobre o nosso ser durante a nossa existência, e que também se vai estendendo, com ou sem intenção, e com muita persistência sobre o grupo social. Logo, quando no nosso crescimento e desenvolvimento, estes desejos ilusórios se vão descuidadamente tornando inflexíveis na teimosia em resistir à aprendizagem interativa, e em deixar-se voluntariamente guiar pela experiência dos melhores exemplos, para o presente e para o futuro do aprendizado, por falta de uma boa orientação modelar educativa e formativa, então, também pelo poder desta força negativa exercida na teimosia de tal inflexibilidade, vão também sendo ao longo do nosso crescimento e desenvolvimento social, mal estruturados todos os conhecimentos na nossa personalidade individual e social, e, por consequência, poderão tornar-se na matriz cívica da ordem pública, ainda antes da maioridade, mas sobretudo, no estado de adultos, na principal causa da tendência para a vontade de guerrear, roubar, matar, burlar, mentir; em suma, proceder e tornar-se, na principal apetência, para a fuga à prática do valor do Bem e para atração e queda para a prática do valor do Mal.

É de acreditar, que certamente, conseguir-se-ia contrariar o que é dito, sobre os efeitos negativos, em cada um, da possível falta de uma boa orientação modelar educativa e formativa, se na maior parte das vezes no ato educativo e nos atos de convivência, o valor da cooperação social fosse entendido e ensinado, com maior insistência na família e na escola, ensinado, como sendo um dos valores mais importantes para a comunidade, do que qualquer valor da competição individual, justificando com boas práticas este sentimento tão importante para a paz, desde que fosse estruturando voluntariamente ao longo do nosso crescimento.

Num juízo, ainda que teórico, é de crer que este modo pedagógico, permitiria compreender melhor o valor da solidariedade e do desejo de ser exemplo no Amor Comum, contrariando deste modo, a maior parte da tendência para o egoísmo, a xenofobia, o racismo, e sobretudo, para evitarmos ser iludidos na vontade para a ideia de superioridade, fosse no obter de riqueza de conhecimentos, fosse no adquirir de alguma riqueza material, ou iludir-se para qualquer forma de poder, que se nota muitas vezes até no estatuto social de cada um, notando-se ainda mais no aumentar do poder económico, que vergonhosamente é associado ao domínio da vitória – basta verificar ,como lutam os poderosos, para serem os primeiros no ranking dos mais ricos do Mundo!

E o que é estranho, é que tudo isto parece ser aceite socialmente, com naturalidade!

Nada, em que no nosso querer menos atento, nos faça notar qualquer diferença entre o normal e o exagero, nada que faça com que achemos alguma dúvida ou estranheza, para nos interrogarmos o suficiente, sobre o  sentido e entusiasmo construído nesta vontade negativa, tornando-a indeclinável, distinguindo-a como se esta fosse a única aspiração natural, a única aspiração infinitamente desejável.

Chegando ao ponto, de nos desinteressarmos em condenar com toda a nossa força, para denunciar o caminho errado, no qual aos poucos vamos todos sendo envolvidos involuntariamente, quando deveria ser o contrário, mudarmos a atitude para excitarmo-nos na discordância sobre tamanhas artimanhas dos sistemas. Combatermos contra o sentido desta mórbida concordância e tolerância passiva, para nos voltarmos a  tornar nos exemplos do amanhã, e com esta atitude natural voltarmos a pensar que o Caminho do Homem, só poderá ser aquele, que o leve a tornar-se num Homem no verdadeiro sentido da palavra, ser aquele Caminho na Verdade que o leve, quando no caso, a  ser um pai extremoso, a ser um valor para a família, a ser um amigo estimável e a ser um exemplo a seguir; ou seja, o leve a existir e a viver em sociedade e ser com elevada determinação, um cidadão exemplar no Mundo.

Porém, à medida que o tempo vai passando, ou melhor, à medida que nós vamos passando (pois o tempo fica; nós é que vamos passando), vamo-nos apercebendo de que foram concorrendo para o nosso bem ou mal-estar, certas circunstâncias ou aspetos mais ou menos determinantes e, em que fomos também, os seus principais agentes, apesar de muitas vezes (nos refugiarmos na nossa inconsciência) endossando toda a responsabilidade no papel importante que deverá ter o Estado e as Instituições, para a nossa orientação e socorro, principalmente, as que intervêm na Organização do Mundo.

Mas, sejamos francos e livres em aceitar a nossa parte de culpa e não culpemos o Estado de tudo o que acontece de mal, já que somos sujeitos livres e autónomos!

Desde logo, por tentarmos em tudo continuar a pensar em  sermos os primeiros, em sermos sempre vitoriosos, e não aceitarmos perder nem sermos também perdedores, nem aceitarmos, quando inevitáveis, os fracassos nem as frustrações de qualquer derrota, e com este imperativo de tudo querer vencer, acabarmos por nos esquecer na maior parte do tempo, de pensarmos em viver, de pensarmos em viver simplesmente, e amar sempre tendo em conta, o dom da vida.

Depois, achando-nos livres e autónomos, não serão raras as vezes em que nos deixamos levar pelas aparências (do que é vantajoso, do que tem interesse, no que vale a pena apostar!), deixando-nos enredar pelo que parece ser belo e fascinante, e só verificando mais tarde, de que tal não passou duma simples sombra, do que será a própria beleza na sua beatitude e eternidade.

Por fim, vamo-nos agarrando ao Mundo, como se pudéssemos ter nele mais do que a possibilidade de sermos passageiros numa viagem, que começou num determinado lapso de tempo, que sendo finito, não é eterno e às vezes tarde ou nunca descobrimos, que como sujeitos, vamos passando até qualquer dia, e só então, muito lentamente, lá iremos percebendo, de que entre o finito e o nada, haverá certamente o Infinito e a Eternidade.

Será nesta altura, que nos quedamos perante a fragilidade, que ficaremos em silêncio e meditemos, sobretudo no termo-nos esquecido de viver e amar plenamente, no termos sonhado com impérios que darão poder social, mas jamais poderão comprar a nossa vida nem a nossa eternidade, de lembrarmo-nos de nos termos esquecido de que os corpos murcham, que perdem ao longo do tempo a beleza da sua forma, enquanto a vida da nossa alma se manterá inalterável e, se com brevidade a soltarmos das amarras, com que às vezes a prendemos, ela nos encherá de luz, e até as lágrimas se tornarão num soro que, não existindo neste mundo, poderá vir de outro quando dele mais necessitarmos, poderá vir daquela Pátria que, essa sim, sendo a nossa, jamais se poderá registar em algum livro humano.

Com o passar do tempo, vamo-nos apercebendo de que, se até quiséssemos mudar completamente o nosso modo de vida, talvez nem conseguíssemos, pelo menos sem nenhuma rutura (familiar, social, profissional…) pelos compromissos que fôramos assumindo ao longo da nossa caminhada, que nos foi levando à lenta e dócil perda da nossa liberdade, pois a certa altura, já não somos mais do que seres normativos e morais, seres condenados a viver entre um pensamento sempre controlado e obediente, mas pouco sociável, e muitas das vezes a vivermos maioritariamente frustrados e amargurados (pelas injustiças e pela maldade) procurando fugir às sombras de uma cadeia, fugir à amargura de um hospital, quando a viver em dor e sofrimento e, ainda que lá estando, entre vários, sentirmo-nos a viver entre um sentimento de solidão e de vazio.

Não sei como entender esta contradição, entre tudo querermos e sabermos que nada temos, de sabermos que um dia deixaremos tudo sem contestação.

Não sei como será isto tolerável e tenho dificuldades em admitir a mudança, se não formos capazes de resistir às tentações, às fantasias do tudo ter, sem deixar prevalecer primeiro, o nosso ser e sem deixar de procurar em toda a parte, uma luz que nos ilumine e nos guie, para o Caminho, para a Verdade e para a Vida.

Foi numa criança que o poeta encontrou a paz e a tranquilidade que procurava em todos os “negócios” que fora fazendo ao longo do tempo, negócios que a maior parte de nós também vai fazendo, ainda que muitas vezes diga que não!

Será um desejo, mas também um convite, para pensarmos melhor no modo da nossa existência, em cada dia que formos vivendo, e oxalá, que um dia possamos também ter a sorte de termos alguém, que nos queira comprar, “somente com Nada”, e nós possamos dizer como o poeta, com este negócio que fiz poderei vir a poder alcançar Tudo em que acredito, “Naquele que É”.

Macedo Teixeira

“De graça recebestes, de graça dai.”

        Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspetos da misteriosa transcendência da minha vida.

        E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

       Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos atos.

       A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

        É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

       Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

      Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

       Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

       Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

       Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

      Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

Macedo Teixeira

 

Caminho de Luz e Sombra
Caminho de Luz e Sombra (Texto 24/FIM DA OBRA)
 

      No dia seguinte, continuava para este aluno a viver-se o tempo de maior tormento, pois julgara que a sua análise filosófica não fora suficientemente aceitável, quiçá pela incompletude, como dissera o professor, ou até por algo de errado que não descortinara durante a exposição. Voltara para casa, comera muito pouco, pegara nos livros e apontamentos e só parara de rever as matérias quando a mulher o chamara por já ser muito tarde para se deitar e o achar já muito exausto.

     Na tarde do dia seguinte, apresentaram-se a exame apenas dois alunos, os restantes faltaram (sabe-se lá porquê!). O professor mandou-os sentar e com alguma cortesia perguntou quem queria começar primeiro. Como no dia anterior o professor dissera que seria conveniente desenvolver alguns aspetos filosóficos que teriam faltado na exposição sobre a ideia e a existência de Deus, em conformidade às ideias claras e distintas, resolvera este já sofrido aluno propor-se como primeiro a falar, na tentativa de melhorar a resposta dada no dia anterior.

     – Sr. Professor, gostaria de começar a desenvolver um pouco mais a questão colocada na tarde de ontem sobre as ideias claras e distintas, julgo poder melhorar alguns aspetos que evoquei – dissera o aluno olhando-o com veemência e humildade.

     – Muito bem, estamos de acordo, pode começar a sua exposição! – exclamou o professor com a voz ainda mais doutoral.

     Sem mais demora, António começara citando Descartes:

     – “É claro e distinto o que se impõe imediatamente e por si só ao espírito. E tendo notado que nada há no ‘eu penso, logo existo’ que garanta que digo a verdade, a não ser que vejo claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.”

      Dito isto, olhou de forma expectante para o professor e sintetizou com o seguinte:

     – Refletindo nestas afirmações, poder-se-á dizer-se que a evidência cartesiana é puramente intelectual e o ato da razão ou do espírito que apreende diretamente a verdade será a Intuição. Sendo assim, também se poderá concluir que Descartes chega às ideias claras e distintas através da Razão e pela via da Intuição.

     E depois, para reforçar, volta a citar Descartes:

   – “Chamo claro o conhecimento que está presente e manifesto a um espírito atento; distinto, o conhecimento que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros, que só compreende em si o que aparece manifestamente àquele que o considera como se deve”; “tudo o que eu concebo claramente e distintamente sobre o que quer que seja é verdadeiro, e pode ser tido como tal”.

     Terminada esta observação, não lhe ocorrera mais nada sobre a questão, pelo que ficou em silêncio à espera do que diria o professor, julgando ter melhorado as respostas anteriores. E, embora não recebesse um não de modo direto, também não recebeu um sim sem reservas, pois, antes de passar para o aluno que faltava examinar, exaltara alguns aspetos positivos da exposição que ouvira, sem deixar de dizer que a mesma não tinha sido suficiente para a compreensão da questão.

     Entretanto, passara ao aluno seguinte, propondo-lhe que falasse da moral cartesiana, o qual começou de imediato a expor as quatro regras da moral provisória de Descartes:

     – Primeira ([i]): “obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância e conduzindo-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero que fossem geralmente aceites ou postas em prática pelos mais sensatos com quem teria de viver”;

     Segunda: “ser o mais firme e mais resoluto que pudesse nas minhas ações e, uma vez que me tivesse decidido, não seguir menos firmemente do que as seguiria, se fossem muito seguras, as opiniões mais duvidosas. Nisto estou a imitar os viajantes que, perdidos em alguma floresta, não devem errar andando de um lado para o outro e menos ainda parar, mas sim andar sempre o mais direito possível numa mesma direção, e não a modificar, por frouxas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha: porque, dessa maneira, se não chegam exatamente aonde desejam, pelo menos chegarão finalmente a algum lado, onde verosimilmente estarão melhor que no meio da floresta”;

     Terceira: “procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível”;

     Quarta: “para conclusão dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem nada dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era prosseguir naquela em que, de momento, me encontram, isto é, empregar toda a vida a cultivar a razão e a avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto”.

     Analisadas estas máximas e a reflexão que desenvolvera o aluno, o professor limitara-se a dar por concluído o exame e a propor-lhe uma classificação positiva; no entanto, ao António voltara a repetir que seria necessário aprimorar a questão por ele desenvolvida, pelo que deveria continuar o exame na tarde seguinte.

      Ao ouvir estas palavras, António apressara-se a sair da faculdade, embora o passo marcasse um andar doentio e a vontade estivesse toldada de tristeza e alguma vergonha.

     Quando entrou em casa não dissera nada que lamentasse a situação, apenas que teria de continuar a estudar, pois não sabia o que faltava para o professor decidir. Pouco comera e pouco dormira para estudar outros conteúdos que melhorassem a sua exposição, já que precisava de passar sem repetição de exame, uma vez que trabalhava e estudava e o esforço necessário era imenso.

     No dia seguinte, com as forças muito diminuídas e num sentimento psicológico muito baixo, cumprimentara o professor, fizera uma breve exposição e, sem esperar que ele lhe voltasse a dizer para continuar, pediu desculpa e dissera-lhe que já não podia mais, preferia desistir e até reprovar, pois já não tinha forças para prosseguir. O Professor olhara-o com um sorriso de alegria, dizendo-lhe, comprometido:

     – Oh! homem, já podia ter dito, ficamos então por aqui! – exclamou o professor propondo-lhe uma classificação positiva e perguntando-lhe se estaria bem assim.

     Ficara atordoado com o que ouvira, ficara tão desnorteado com a alegria de ter passado que, emocionado e com lágrimas nos olhos, saíra do gabinete a correr e a gritar de satisfação:

     – Passei, passei! – exclamara vezes sem conta e sem sentir por quem passava, enquanto corria para fora da faculdade.

     Contudo, sem guardar qualquer mágoa, nem saber o porquê desta longa prova, continua a lembrar que este caso foi determinante no fortalecimento psicológico para os obstáculos que se seguiram, mas que se arrependera bastante de não ter pedido uma classificação melhor.

     Depois de todos estes acontecimentos licenciara-se na Universidade do Porto, tendo entrado para o serviço público no âmbito administrativo e mais tarde para a educação, onde continuara a realizar os seus sonhos e a receber mais força para poder continuar a servir e a amar.

     Proclama, com esplendor, ser um aprendiz do que for melhor no conhecimento para ser feliz e viver com os outros; aliás, esta viria a ser uma das máximas que aprendera ainda bastante jovem e que continuaria a seguir com todas as suas forças para poder vislumbrar melhor o caminho da perfeição possível e sempre mais semelhante com a Idealidade permanente.

     Com um olhar manso e livre, fizera algum silêncio; e como se adivinhasse que aquela aula chegava ao fim, e a campainha da escola tocasse num instante para saírem, para ele como um sinal amigo de quem se despediria também naquela hora com um “até sempre”. Para os alunos, para o retemperar de forças pelo convívio do recreio e, quem sabe, para mais alguma conversa sobre o caso, certamente com palavras de estima e admiração, que o espaço guardará para recolher na memória como recordação quando houver merecimento.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 113 a 118


[i]. Descartes (2008). Discurso do Método – Meditações Metafísicas, Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.

 [1]. Tocqueville, Alexis de. Da Democracia na América. Coleção Os Grandes Filósofos- Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit –desta edição de Da Democracia na América: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora,Lda – Livro I – 2008 - págs. 5 e 6.

[1]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, Descartes e o Racionalismo, Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.

 [1]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método – As Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.

[1]. Descartes (2008). Discurso do Método – Meditações Metafísicas, Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.

 

Caminho de Luz e Sombra
Caminho de Luz e Sombra (Texto 23)
 

     Também surgiram outros acontecimentos dignos de ser contados, pelo menos por reconhecimento da força que lhe deram para continuar a resistir com menos queixume aos problemas da vida. E é por isso que, com alguma discrição, lá vai contando também as peripécias de um exame oral que durara três tardes seguidas.

     – Boa tarde, meus amigos! – exclamara o professor com um leve sorriso.

     – Boa tarde – responderam os examinandos propostos para aquela tarde.

   –Todos estão conscientes daquilo que fizeram na prova escrita de Filosofia Moderna? – interrogara o Professor com delicadeza. – Sabem que tiveram nota positiva, pois de contrário não seriam chamados a exame oral, não é verdade? – questionara com alguma satisfação. Depois, de modo mais assertivo e com maior autoridade, reforçara o seu raciocínio: – Mas também sabem que, em relação a esta cadeira, nenhum aluno será dispensado da prova oral, logo, deverão considerar que há uma razão filosófica que deverá ser alcançada para que a nota final corresponda à média ponderada das classificações.

      De seguida, convidara os alunos a sentarem-se em círculo, para que, em conjunto e respeitando a ordem a partir daquele que começaria em primeiro, produzissem um diálogo sobre o filósofo René Descartes e a sua obra O Discurso do Método.

Acomodara-se na cadeira com as pernas estendidas e com as mãos atrás da nuca, olhara­‑os de relance e apontara para um aluno, dizendo:

     – Comece a falar sobre as Regras do Discurso do Método e o colega seguinte continuará com a sua exposição quando eu ordenar. Julgo que todos entenderam o modo de procedimento? – interrogara de modo objetivo e com a autoridade de cátedra. Entretanto, calara-se, fechara os olhos formando uma imagem de quem parecia estar mais a dormitar do que a avaliar o conhecimento de alguém.

      Com este gesto de serenidade fizera-se silêncio até começar a ouvir-se o primeiro examinando, que, com algum nervosismo, começara por dizer que ([i]) o mérito da filosofia cartesiana foi o de se ter apresentado, pela primeira vez, como um esforço sistemático para clarificar as condições lógicas da função teórica ou cognitiva da razão e a sua consequente aplicação à investigação da verdade. Muito embora aceite inicialmente que “a razão é naturalmente igual em todos os homens”, essa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso só ganha autonomia quando o seu trabalho crítico se apoiar em regras lógicas fundamentais, “porque não basta ter o espírito bom, é preciso aplicá-lo bem”. Daí a importância que o pensador atribui ao método na constituição do conhecimento e na fundamentação da sua unidade. Depois, para concluir, passou a enunciar as Regras do Discurso do Método, ([ii]) a começar pela Primeira Regra, a regra da Evidência Racional, que diz o seguinte: “nunca devemos aceitar como verdadeira qualquer coisa, sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”. A Segunda Regra, a regra da Divisão, que consiste em “dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver”. A Terceira Regra, a regra da Combinação, que se baseia em “conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns com os outros”. E, por último, a Quarta Regra, a regra da Enumeração, que pressupunha “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir”.

      Terminada esta exposição e quando o mesmo aluno se recompunha para responder a outra possível questão, o professor manteve-se na mesma posição mas ordenando que o aluno seguinte demonstrasse como foi que Descartes concluiu a Primeira Regra.

      Sobre esta demonstração, o aluno seguinte começara a sua exposição, dizendo o seguinte:

     – O modelo racionalista de Descartes começa por questionar e examinar a validade do conhecimento que temos do Mundo. Interroga-se acerca da sua origem ou fundamento. Tem a pretensão de encontrar conhecimento verdadeiro e não apenas provável, por isso, começa por duvidar que se conheça algo como verdadeiro até encontrar um tipo de conhecimento que seja válido para todos e para sempre, isto é, universalmente válido. Para percorrer o seu caminho de investigação formula argumentos semelhantes aos usados pelos céticos, que afirmam que “os nossos sentidos são, por vezes, enganadores”; “aquilo que chamamos conhecimento pode não passar de um sonho”; “mesmo que não estejamos a dormir, podemos estar alucinados”.

     Esta investigação é apoiada na dúvida que segue um caminho ou método, sendo por isso uma dúvida metódica e, em consequência, o seu ceticismo ser metódico e tornar-se numa estratégia inicial para pôr à prova a validade de todo o conhecimento, na tentativa de encontrar uma certeza. Ao colocar a questão se “existirá alguma coisa acerca da qual possamos ter a certeza”, chega ao fundamento da Regra da Evidência com a primeira certeza de que para pensar precisa de existir. “Se duvido, se sonho, se estou a ser enganado, devo existir para poder duvidar, sonhar e ser enganado – Cogito, ergo sum – penso, logo existo.”

      Depois das explicações dadas por estes examinandos, o professor moveu-se na cadeira, abriu os olhos e, com a mesma formalidade, procurou aliviar a tensão dos alunos, exclamando com alguma deferência:

     – Até agora, estão a portar-se bem, vamos lá ver como vão terminar! – E continuou dizendo a propósito das exposições: – Já agora que foram capazes de demonstrar as regras do Discurso do Método e como Descartes chegou à existência do Eu pensante (res cogito), proponho-vos que me demonstrem como chegou às ideias claras e distintas, nomeadamente à ideia e existência de Deus, podendo para o efeito continuar o aluno seguinte.

       Depois, voltou a fechar os olhos e a manter-se na mesma atitude de silêncio e com a mesma posição na cadeira.

     De pouco servira o efeito do elogio anterior, já que chegara a vez de prestar provas aquele que iria começar naquele momento a prova mais longa e mais dolorosa de toda a sua formação como aluno. Durara cerca de sete horas e ocorrera em três tardes seguidas, com a sua desistência na terceira tarde, por exaustão e por não sentir capacidades físicas nem psíquicas para poder continuar, pois, ao que parece, se não fora este facto, o exame não teria terminado naquela tarde.

     Um pouco nervoso pela espera da sua vez, começara a exposição pela questão da ideia e existência de Deus, para passar depois à síntese sobre as ideias claras e distintas:

     – “Ao refletir sobre o Eu pensante, Descartes descobre, entre as ideias nele existentes, uma ideia clara e nítida de um ser perfeito, a ideia de Deus. Conclui que esta ideia só pode provir de um tal ser perfeito e que este ser não pode ser apenas uma ideia, mas tem também de existir como ser autónomo. “Aquilo que eu concebera muito clara e distintamente é verdadeiro.” “Trazendo isto no espírito e refletindo sobre o facto de que a dúvida me assalta, compreendo que a minha existência não é perfeita. Porque vejo claramente que é uma perfeição muito maior conhecer, do que duvidar. Mas de onde aprendi a pensar em alguma coisa mais perfeita que eu próprio? Obviamente de alguma natureza que tem, dentro de si, todas as perfeições de que eu possa fazer ideia – numa palavra, Deus. Somente aquilo que é perfeito pode ser atribuído a Deus. Não pode haver imperfeição nele. A dúvida, a inconstância, a tristeza, a cólera, o ódio, não são atributos de Deus, mas qualidades cuja ausência nos faria mais felizes. Isto é, são qualidades imperfeitas, a marca da Humanidade e não da divindade. Deus é perfeito, quer dizer, infinito, eterno, imutável.”

     Ouvida esta explicação, o professor manifestou concordar, mas acrescentara que seria necessário desenvolver mais alguns aspetos filosóficos naquela questão, e uma vez já ser bastante tarde, continuariam, ele e os colegas ainda não examinados, na tarde seguinte e à mesma hora. Aos outros examinandos reforçou o elogio, propôs-lhes uma classificação positiva e deu por terminado o exame de cada um.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 108 a 113


[i]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, Descartes e o Racionalismo, Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.

[ii]. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. Filosofia 12.º ano. Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método – As Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.

Caminho de Luz e Sombra
Caminho de Luz e Sombra (Texto 22)

      Depois destas palavras protetoras, ficara ainda algum tempo na sala de aula a refletir nas ideias que escrevia, até que resolvera concluir o discurso num lugar mais sossegado, enquanto aguardava pela noite e se inspirava no modo como dizer na assembleia aquilo que pensava.

     – Boa noite, colegas! – dissera, na continuação da Assembleia e na abertura da Ordem de Trabalhos, o estudante que aceitara a proposta para presidir à Mesa da Assembleia daquela reunião geral e dirigir os trabalhos com mais dois colegas, também propostos para a função de primeiro e segundo secretários, respetivamente. Depois, começara a esclarecer um pouco mais os presentes sobre as razões daquela reunião geral, sobretudo da necessidade de se resolver o problema da falta de homologação pelo Ministério da Educação dos contratos de trabalho de alguns docentes. Por fim, antes de dar a palavra, pedira a todos que houvesse o maior respeito pela Universidade e pela Faculdade de Letras no tratamento daquela e de outras questões, pois apesar de eleitos ad hoc, uma vez aprovada a Mesa da Assembleia e a Ordem de Trabalhos proposta naquela reunião geral, passariam a estar investidos pela mesma Assembleia dos poderes necessários para dirigirem os Trabalhos e para comunicarem à Reitoria a posição dos estudantes dos cursos noturnos, mas também dos cursos diurnos pela força da solidariedade manifestada com a sua presença.

      Entretanto, aproveitando a oportunidade dada para o uso da palavra, começara a discursar o representante do grupo que se opunha à manutenção da lecionação das aulas.

     – Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é nossa intenção mostrar publicamente o nosso desagrado por não ter havido por parte do Ministério da Educação um tratamento igual em todos os cursos propostos para o iniciar do ensino noturno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É um dever do Estado garantir a igualdade de condições na mesma realidade. O ensino universitário noturno merece um tratamento tão digno como o ensino diurno, nós somos pessoas iguais, aliás, em certos casos, somos até capazes de aceitar com mais facilidade as dificuldades e o sofrimento das situações, mas sobre o caso que nos fez reunir hoje, não poderemos continuar a permitir que o Ministério da Educação se dê ao luxo de explorar a mão-de-obra docente permitindo o trabalho sem um horário definido e sem o correspondente salário. O Ministério já tivera tempo suficiente para homologar os contratos dos professores que têm lecionado sem receber ou até contratar outros se fosse caso disso e fosse essa a sua vontade. Não é admissível continuarmos por mais tempo neste vazio académico e nesta indefinição futura. Nós somos estudantes, precisamos de quem nos ensine, mas não queremos esmolas, nem o Ministério precisa disso!

      Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é por esta razão e também em nome do direito à igualdade que vamos neste momento propor à Mesa um voto por escrito com vista a serem suspensas as aulas pelo tempo necessário até que seja resolvida a questão.

     Depois deste discurso, um tanto inflamado, mas com razões que eram óbvias, o orador da oposição arrancara um aplauso tão grande que o silêncio que se seguira parecera indicar que qualquer outra proposta seria imediatamente derrotada.

    Contudo, a interromper aquele silêncio, surgira um pequeno burburinho a fazer-se notar no meio da sala, enquanto entre a multidão começara a ouvir-se a voz de um estudante que mais parecia a de um estranho que aprendia à sua custa como andar entre os demais para obter sem desonra o curso que tanto ansiava.

    – Senhor Presidente, Senhores Secretários, digníssima Assembleia. O que acabámos de ouvir é a mais preciosa obra da palavra, a Verdade! No entanto, nem sempre a verdade terá retorno se não formos, em certas ocasiões, mais diplomatas que revolucionários. Pois, se é um facto que todos temos direito à igualdade de oportunidades em todas as situações, a força do que é novo na experiência da verdade será sempre mais frágil pela dúvida e descrença, do que aquilo que já é reconhecido na verdade pela tradição do que é tido como certo. Sabemos que a justiça é um valor da Humanidade e que o Homem é a sua mais bela expressão, logo, a justiça terá que ser humana e estar ao serviço de todos os homens. A justiça da humanidade e com lei será a razão mais forte da Liberdade, pois de que valerá ao homem poder contestar livremente, julgar a partir do raciocínio livre, mas não julgar com universalidade e desvirtuar a lei? De que servirá os homens dissertarem nas praças públicas, nos plenários ou nos fóruns se com isso apenas obtiverem o efeito aparente da palavra e não o bem da igualdade do homem na realidade? É por isso que, em certos casos, mesmo que a verdade seja peregrina e sofredora, deveremos entender um tal sacrifício em nome de um bem maior, o bem da igualdade de condições para todos ([i]). Aliás, será pela igualdade que deveremos lutar, será por ela que poderemos ser felizes, mesmo na mais pequena proporção que possamos ter. Mas, tal só será possível, se o conseguirmos sem perder o que mais queremos na afirmação da nossa honra e no sucesso da justiça.

      Senhor Presidente, senhores Secretários, excelentíssima Assembleia, todos temos consciência de que neste momento seria um ato de justiça que baixássemos os braços, rejeitássemos a ajuda voluntária e o sacrifício dos professores e proclamássemos a suspensão das aulas até que o problema fosse resolvido. Certamente, com esta atitude afirmaríamos o direito à indignação, o direito ao respeito pela semelhança, o direito ao reconhecimento natural da realização da vida de cada um. Mas, também todos sabem quais seriam as consequências deste ato na defesa da razão que nos assiste. Evocá-las, nesta ocasião, seria apenas para apelar a todos os presentes para um bem que julgo produzir melhor efeito do que aquele que alguns colegas e não poucos estarão a visionar agora.

     Todos sabemos que, logo que as aulas forem suspensas, os professores não voltarão a lecionar nem voltarão à Faculdade. Com isto, deixaremos de evoluir nos conhecimentos e nos conteúdos programáticos. Como consequência ficarão atrasados os programas de cada cadeira e ficaremos muito mais limitados nos conteúdos necessários para o exame que, entretanto, será marcado, independentemente da nossa frequência. Depois, perderemos o contacto uns com os outros e com este a possibilidade de alimentarmos com a nossa presença a vontade de garantir para todos nós e para os vindouros a continuidade dos cursos noturnos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Todos sabemos que quem não aparece, esquece! E a nossa recusa em continuar as aulas só poderá nesta altura voltar-se contra nós.

     Por isso, estamos mais convictos da resolução do problema, se agirmos coletivamente com uma atitude mais solidária com as dificuldades inerentes à regularização do processo por parte dos responsáveis, se fizermos com que seja manifestado um conhecimento mais alargado à Academia e aos órgãos de comunicação pela divulgação deste problema por parte dos nossos representantes, nomeadamente pelos membros da Mesa da Assembleia que preside a esta reunião e, se conseguirmos que seja consequente e oficial o conhecimento manifestado junto da Reitoria da Universidade e do Ministério da Educação, acreditamos que esta atitude se tornará suficiente e eficaz, pois a proposta que iremos ler e entregar à Mesa para ser posta à votação, se for aprovada nos pontos que refere, há de permitir com sucesso obter os resultados que desejamos.

Para isso queremos que conste da nossa proposta, o seguinte:

    – Que seja dado conhecimento por escrito ao Ministério da Educação da falta de homologação dos contratos dos docentes em causa;

    – Que seja dado o prazo máximo de vinte dias para a resolução do problema;

    – Que seja dado conhecimento à Reitoria e aos docentes em causa das decisões tomadas neste plenário.

     Quando este jovem terminara o seu discurso e no momento em que se encaminhava para entregar a proposta à Mesa da Assembleia, ouvira-se um troar de palmas tão forte e tão contagiante que levara o opositor a retirar a sua proposta, concordando com o exposto e proporcionando um ambiente para a sua aprovação por unanimidade, ao mesmo tempo que todos o saudavam pela inteligência e tato no tratamento desta questão.

     Fora uma noite de grande satisfação pela compreensão e reconhecimento de todos, mas também pelo resultado alcançado, já que, ainda antes do prazo dado para a resolução do problema, o Ministério da Educação homologara os contratos e as aulas puderam continuar permitindo-lhe concluir o primeiro ano com sucesso.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 103 a 108


[i]. Tocqueville, Alexis de. Da Democracia na América. Coleção Os Grandes Filósofos- Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit –desta edição de Da Democracia na América: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora,Lda – Livro I – 2008 - págs. 5 e 6.

Caminho de Luz e Sombra
Caminho de Luz e Sombra (Texto 21)
 

      Depois de ter passado à disponibilidade, a vontade de estudar para adquirir conhecimentos e o sonho que sempre acalentara de tirar um curso superior fizeram mais força na ação de trabalhar e estudar, ser marido dedicado e um pai atento aos filhos que iam nascendo. O casal unira a vontade, dedicara-se mutuamente no esforço e as metas para os sonhos foram sendo alcançadas.

    É evidente que a vida em Portugal continental nos primeiros anos pós 25 de Abril de 1974 não foram fáceis, a sociedade ensaiava a vivência em Liberdade e as exigências dos rumos neste sentido eram mais fortes que as capacidades de resposta pelos poderes instituídos. Lutava-se pela igualdade no trabalho, na educação, na família, na saúde, no género, etc.

    Aliás, é com grande satisfação que ainda evoca o acontecimento da maior manifestação de estudantes dos cursos noturnos das escolas privadas e cooperativas do país, no Norte, com concentração na cidade do Porto de todos estudantes dos estabelecimentos de ensino privado e cooperativo desde Coimbra até ao Minho, e no Sul, com concentração na cidade de Lisboa de todos os estudantes também do ensino privado e cooperativo desde Leiria até ao Algarve. Coube-lhe a sorte de ter ficado no Norte com a responsabilidade de dirigir a manifestação e de tudo fazer para que esta fosse de forma ordeira e cívica, pois o seu objetivo era a obtenção de direitos iguais às escolas públicas em relação ao estudo e à avaliação científica, no caso dos estabelecimentos de ensino, como os colégios ou externatos, desde que tivessem as condições necessárias. A caminhada em manifestação tivera início na Câmara do Porto e dirigira-se até ao quartel-general na Praça da República. Sentira uma grande alegria e uma pontinha de orgulho por a manifestação ter corrido tão bem por parte do grupo que dirigira, pelo grande sentido de responsabilidade dos colegas que auxiliaram na coordenação da manifestação e por todos os que nela participaram tão entusiasticamente.

    Porém, é com alguma mágoa que recorda dois factos que nublaram esta manifestação que se propunha consistir numa reivindicação por direitos legítimos e possíveis, como se provou pela aprovação em decreto-lei desta norma educativa que autorizara a igualdade pedagógica e científica em todos os estabelecimentos de ensino privado que reunissem as condições necessárias. O primeiro facto, bastante lamentável, diz respeito à ação levada a cabo pelos estudantes em Lisboa que não correu bem e resultou, depois de alguns tumultos e sequestro de responsáveis do Ministério da Educação, na detenção de alguns estudantes; o segundo caso, também lamentável, diz respeito à manifestação no Porto e à entrega da missiva de que era portador, juntamente com dois colegas, ao comandante do quartel-general, que se não fora a sua habilidade, não saberemos se teria corrido tão bem.

     Tudo aconteceu quando a multidão se aproximou da Praça da República, depois de deixarem entrar a comissão de estudantes, que chefiava, fecharam imediatamente os portões do quartel. Esta ação parecera ser normal, pois o comando militar tinha sido avisado da grande multidão que se avizinhava. No entanto, quando os três representantes do grupo fizeram questão de falar com o comandante, se é um facto que foram autorizados a subir para o salão nobre com a força militar que os recebeu, quando se encontravam dentro do corredor e em direção a este salão, houve um procedimento de segurança que não parecera correto a quem (como ele) acabara de terminar o serviço militar com incidência na guerra colonial, tendo-lhe provocado algum receio por não lhe parecer estar a decorrer pelo melhor, enquanto esperavam no salão nobre para serem recebidos pelo comandante; por um lado, porque continuavam acompanhados de militares em forma de cerco; por outro lado, porque os mesmos militares tinham destravado as armas e metido bala na câmara como em situação de defesa muito extrema.

    O tempo de espera para serem recebidos, apesar de não ter sido demasiado, fizera aumentar o receio e a dúvida sobre as consequências do ato em questão. Perante o desespero da impaciência e medo, lembrara-se de inventar um compromisso que assumira antes, dizendo aos militares que prometera aos colegas que cá fora entoavam slogans e cânticos reivindicativos, que se ao fim de meia hora não saíssem do quartel ou não viesse alguém falar­‑lhes de dentro sobre o modo como estava a decorrer a receção, que estes deveriam pedir socorro e forçar a entrada até os libertar.

    Não se sabe se a invenção para esta advertência tivera algum efeito, o que é certo é que para além de terem permitido que este falasse da varanda à multidão, pouco tempo depois desta comunicação, o tenente-coronel Tomás Ferreira, em representação do brigadeiro Eurico de Deus Corvacho, recebera a missiva que continha os pontos reivindicativos e felicitara-os pela forma ordeira como se tinham comportado, dizendo com satisfação que o que pediam era um ato de justiça com o qual concordava, prometendo tudo fazer para serem bem-sucedidos, como de facto acontecera pela autorização ministerial concedida.

    Alguns meses depois, entrara na Universidade do Porto para frequentar à noite o curso de Filosofia, já que não era possível ser médico, pois teria de frequentar o curso durante o dia, e o facto de ter de trabalhar para ajudar no sustento da família não o permitiria. No entanto, não se cansa de dizer que mesmo que tivesse sido médico não hesitaria em cursar Filosofia, pois a reflexão estará sempre no princípio dos atos e será necessária em todos os saberes.

    Depois de um dia de trabalho, não era fácil ter disposição para começar as aulas às seis horas da tarde e terminar próximo da meia-noite todos os dias. Misturava quase sempre o sacrifício do esforço com uma alimentação ligeira que levava consigo para comer no intervalo das quatro horas de aulas diárias. Às vezes o cansaço era tanto que lhe dava sono a tal ponto que era preciso segurar as pálpebras para não fechar os olhos e poder continuar a anotar o que os professores ensinavam. Anotava imenso, porque acreditava que os apontamentos eram o recurso principal, já que não teria muito tempo para procurar nas obras o fundamento dos professores.

    Mas, a contrastar com a enorme vontade de tirar o curso, surgiram logo nos primeiros meses de frequência os primeiros obstáculos a impedirem o curso normal das aulas. Desde logo, sobre a continuidade da lecionação de algumas cadeiras, que, por não terem sido homologados os contratos de alguns professores, estaria na iminência de ser suspensa a lecionação das mesmas.  

      Aliás, só não fora suspensa, porque os professores manifestaram vontade em continuar naquela situação, isto é, lecionar sem saber se seriam ou não homologados os seus contratos e porque, entretanto, também desenvolvera uma ação de solidariedade, com a qual correra alguns perigos, por ter tido a coragem de ter sido a personagem principal no reforço do voluntarismo dos professores em dar aulas, pela oposição às vontades inerentes a alguns estudantes que não estavam de acordo com a predisposição dos mesmos em quererem continuar a lecionar sem vínculo contratual.

    Com esta ação, procurara contrariar o pensamento negativo dos opositores que ganhara imensa força com o aumento do número de aderentes. Já não era a primeira vez que se ouvia dizer que a experiência iniciada no pós-25 de Abril de 1974 da abertura da Faculdade de Letras à noite para a frequência de alguns cursos, nomeadamente História e Filosofia, não tinha colhido boa aceitação por parte do Ministério da Educação com o argumento da escassez do suporte financeiro e da falta de instalações mais adequadas.

     Ao que parece, tal como hoje, continuará a ser um grande problema reconhecer as situações favoráveis ao desenvolvimento, desde que impliquem mais gastos por parte do Estado, mesmo que não haja dúvidas que sejam boas, a não ser que se movimentem os interessados e estes tenham algum crédito político e económico.

    De qualquer modo, naquela altura, o que seria necessário era que houvesse alguma motivação social, pois fazia-se com veemência a apologia da liberdade e igualdade de oportunidades, o que em relação à motivação universitária poderia dizer-se que era de um nível muito elevado, dada a grande carência que havia de cursos superiores. Entre o conflito da agitação quase anárquica das manifestações académicas na rua e os plenários na Universidade, lá ia surgindo alguma luz sobre o modo de proceder para estudantes, que, como ele, tiveram de lutar mais por um curso como uma enxada para ganhar o pão do que para qualquer outro interesse que sempre soubera que lhe escaparia por ser um estudante noturno e não poder acompanhar a Universidade a tempo inteiro.

     Assim, ao refletir no empenho dos docentes, em lecionarem mesmo sem saberem o seu futuro profissional, resolvera, durante uma manhã numa reunião prévia da turma com os professores em questão, anunciar aos seus companheiros que na reunião geral de alunos, que, entretanto, fora marcada para a noite, iria propor por escrito que fosse aceite e reconhecida a disponibilidade dos professores em lecionarem, mesmo sem terem ainda o seu contrato homologado.

     Perante este facto, alguns estudantes insurgiram-se com alguma agressividade, insinuando em tom provocatório que este seria um ato irresponsável, pois ninguém deveria apoiar a vontade dos professores sem a consequente homologação do seu contrato, chegando mesmo a adverti-lo em voz alta, para as medidas de força que tomariam, caso este continuasse a insistir na sua proposta.

     Sem mostrar receio, nem responder às provocações, começara a escrever as ideias que se propusera apresentar na reunião geral de alunos, marcada para a noite. Entretanto, como não cedera à advertência do grupo de opositores, manifestando-o através do rascunho que começara a elaborar para discursar nos primeiros momentos da reunião, aproximaram-se dele dois ou três elementos que, exibindo alguma corpulência, começaram a invetivar com ditos e ameaças do género: “se logo lês algum texto, arrepender-te-ás para toda a vida! – Este assunto tem que ser tratado como nós queremos! – Se queres “guerra”, então terás a guerra e não sairás daqui direito!”

     Ao cabo de algum tempo de pressão constante, começara a sentir algum receio, pois esta não era uma guerra real como aquela que temera na Colónia de Moçambique, onde ocorreram vários acontecimentos trágicos com vítimas mortais de que fora tendo conhecimento ao longo do serviço militar nesta colónia. Esta era uma “guerra” sem quartel e aparentemente sem armas, mas por razões e pessoas às vezes muito obscuras e perigosas; os anos de 1975 e 1976 não foram bons no que respeita às confusões vindas de movimentos civis e militares que teriam em vista instituir um certo poder.

    Contudo, se o receio fez esmorecer um pouco, não fora suficiente para abalar a atitude na convicção de que estava certo, tornando-se ainda mais forte, depois de sentir que não estaria só naquela decisão. Por entre os opositores mais zangados, uma outra voz se fizera ouvir nas suas costas vinda de um outro grupo:

    – Olá, companheiro! Nós não sabemos ainda bem quem tu és, mas queremos que saibas que apoiamos o que propões. Temos a certeza de que a tua opinião será a mais correta e, se eles te quiserem bater, também terão de bater em nós. Vai em frente com o teu discurso e não tenhas medo de ninguém, que nós estaremos contigo!

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 97 a 103

 

Desejo a todos os amigos e amigas um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!
I wish to all my friends a Merry Christmas and a Happy New Year!
Je souhaite à toutes mes amies un Joyeux Noël et une Bonne Année!
أتمنى لجميع الأصدقاء عيد ميلاد سعيد وسنة جديدة سعيدة!
Saya berharap semua teman Selamat Natal dan Selamat Tahun Baru!

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 20)

     Ainda antes que o táxi chegasse, começara a instruí-la sobre o modo como deveriam comportar-se dentro do salão e perante as personalidades presentes.

     – Quando chegarmos junto da porta de entrada, metes-me o braço e deixas-te conduzir com normalidade. Manténs-te serena e sem te preocupares com o que irei dizer ao responsável pela entrada. Quando entrarmos, iremos procurar uma mesa que não esteja completa; depois, se vier alguém nos levantámos e misturamo-nos dançando, sempre mais do que o tempo que ficarmos nas vagas de qualquer mesa; não temos mesa marcada e isso pode chamar atenção. Se metermos conversa com alguém, procuremos falar de tudo menos da vida militar, e se alguém perguntar qual o posto que eu tenho, dizes que não sabes nada dos postos militares, que és professora, mas se insistirem sobre os galões, dizes que as divisas do teu marido são da cor vermelha. Porém, se isto acontecer, teremos de inventar uma desculpa e sair o mais depressa possível, pois não poderemos ficar lá por mais tempo.

     Ainda não tinham acertado estes pormenores e já o taxista buzinava para os chamar e levar para os lados da praia onde ficava o Clube de Aeronáutica. Tudo indicava que iriam viver uma noite de sonho, ainda que pudesse ser por pouco tempo, mas seria necessário que tudo corresse bem, para que em vez de nervosismo, sentissem fulgor, muito entusiasmo e uma grande paixão. Aliás, aquele momento enchera-se de uma tensão empolgante; ela estava deslumbrante e o seu rosto resplandecia uma luz de inocência debaixo da capelina branca que espalhava raios de uma beleza inebriante. Por instantes, valera-lhe a confiança do marido, que não se deslaçara do que era simples, pois fora assim que sentira sempre a beleza da sua mulher amada. No entanto, também ele projetava um figurino formado de uma compostura que se assemelhava a qualquer príncipe, o fato que vestira pela segunda vez era de cor antracite, a camisa de popelina branca, a gravata, as luvas e os sapatos eram a condizer e continuavam a fazer dele a personagem ideal para um romance a descobrir.

     – Vamos! – ordenara ele sem mais desculpas. – O táxi está à nossa espera e é necessário chegar no princípio do baile!

     – Vamos! – concordara ela, agora mais recomposta e a dar sentido à beleza que irradiava.

     Desceram as escadas do apartamento dando a mão um ao outro, ao mesmo tempo que ficavam mais firmes no caminhar até à porta de saída para entrarem no táxi que os esperava já há algum tempo. Logo que puseram os pés na rua, o taxista cumprimentou-os com deferência, abriu-lhes gentilmente a porta e ajudou-os a acomodar-se. A viagem pela orla marítima duraria cerca de vinte minutos; apesar de ser noite e começar o seu mistério, a distância não superaria o fascínio da visão do mar e do ondular da maré que riscava a areia da praia para os olhos não a perderem de vista.

     – Ali está o Clube! – dissera o taxista apontando para lá.

     – Sim, chegámos! – responderam com grande satisfação.

     – Aqui tem o dinheiro que me disse! – retorquira o marido.

     – Obrigado – agradecera o taxista com votos de feliz Ano Novo. Depois ainda acrescentara: – O Clube de Aeronáutica tem fama de proporcionar festas muito animadas.

     – Oxalá seja como diz! – responderam os noviços já a andar para a receção.

     Entretanto, à medida que se encaminhavam, ela metera-lhe o braço para melhorar o andar, fazendo tudo para assemelhar-se ao momento em que saíram da igreja no dia do casamento. Esta comunhão de pensamentos enternecera-os o suficiente para baixarem a tensão que o encontro com o rececionista inevitavelmente criaria.

     – Boa noite! – saudara-os com uma continência o homem da segurança da entrada.

     – Boa noite! – responderam inclinando-se com deferência.

     – Têm os vossos convites? – perguntara o segurança com cortesia.

    – Ora, bem! O senhor sabe quem somos, não sabe?! – exclamara o marido com cuidado, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão soltando-lhe algum dinheiro.

     – Sim, Sim! Ora, Ora! Conheço muito bem VV. Ex.as! – exclamara o segurança com autoridade e sem hesitação. – Façam o favor de entrar – manifestando a propósito mais uma continência enquanto lhes abria a porta e indicava a entrada.

     Sem perder tempo e com um andar discreto, deram as mãos e entraram com elegância no luxuoso salão. Naquele instante da entrada, o fascínio dos candelabros que enchiam o teto abrira-lhes a mente para a arte do que é soberbo. Ficaram algum tempo a contemplar o espaço onde a luz se expandia em reflexos no rosto das pessoas ao balancearem os corpos com os compassos da dança. Depois, olharam um para o outro, fazendo alguma cerimónia, enquanto esperavam que a orquestra terminasse e pudessem ver onde haveria alguma mesa para se sentarem por algum tempo.

     Entretanto, por entre o arquear das danças e o som apaixonante da música, viram alguns passos à frente uma mão que lhes acenava. Aproximaram-se sorrindo com alguma timidez, pois não tinham a certeza de estar perante o convite para uma mesa que tão ansiosamente desejavam.

     – Olá, muito boa noite! – exclamara uma senhora que os conhecera. – Sejam bem­‑vindos ao nosso Clube. É a primeira vez que vêm cá, não é? – perguntara com delicadeza.

     – Muito obrigado – agradeceram sem tibiezas. – De facto, é a primeira vez que vimos ao Clube, desta vez não poderíamos faltar a esta grande festa – responderam como se não fossem estranhos.

     – Têm mesa marcada? – perguntara a senhora com afetividade. E, num súbito, prevendo talvez a resposta negativa, consertara a situação. – Isso não importa para o caso. Se estiverem de acordo, ficam aqui na nossa mesa, não é verdade?! – exclamara ao mesmo tempo que olhava para os restantes membros da mesa.

    – Sim, sim, ficam na nossa mesa! – responderam todos. Depois acrescentaram: – Têm muito que comer e será com o maior prazer que conviveremos juntos nesta noite tão especial. Aliás, está na hora de começarmos a aquecer o ambiente; por agora basta de marisco, e a hora das doze passas está a chegar. Nessa altura festejaremos todos com grande alegria e muito champanhe. Fiquem, sem cerimónia, enquanto vamos começando a alegrar o ambiente.

     Na mesa estariam dez pessoas, mas o marisco e outras iguarias dariam para outras tantas; estava tudo uma delícia, e, enquanto os pares mais velhos abaulavam com as valsas vienenses, os jovens nubentes comiam e glosavam o tempo em que duraria aquele sonho. Consolados com o manjar e os sumos saborosos, encetaram o naipe de dançarinos estreantes, deslocando-se com mestria nos espaços do salão que iam sobrando nos intervalos dos compassos da dança.

    Esta intimidade não durara muito, a algazarra e os festejos começaram a aumentar à medida que a meia-noite chegava e, com ela, os doze desejos, que cada um escolheria na ânsia de ser feliz e poder realizá-los.

    Todos juntos e a dançar aos encontrões, cantavam cada vez mais alto ao som da orquestra, que se perdia na confusão da algazarra, dando lugar ao contar dos segundos para chegar ao Ano Novo com a abertura do champanhe e todas as felicitações: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e as rolhas das garrafas soltavam-se em todas as direções para se encherem os copos e afogar as doze passas enquanto ainda duravam os segundos.

     – Felicidades, felicidades! – gritavam todos a tanger os copos num instante tilintar e a beber o néctar das sagradas paixões.

    – Feliz ano novo e que venha repleto dos desejos de todos nós – repetia da banda o intérprete das músicas que enchiam as almas de alegria e os corpos de êxtase.

      Ainda durara algum tempo aquela alegria indescritível, embora aos jovens lhes parecesse sempre que este sonho seria fugaz. Quando houve uma pequena pausa na orquestra para organizarem as músicas e felicitarem ainda mais os presentes, as mulheres juntaram-se em pequenos grupos, ficando os homens um pouco mais dispersos e entretidos com os copos de champanhe que transbordavam discretamente e com abundância.

     Com o rosto carregado de um corado turvo e um rubor nas faces a entrar na palidez, a jovem professora dirigiu-se ao marido, com os braços abertos e a simular desejos de amor por uma carícia e um beijo, contando-lhe, sem ninguém ouvir, o que lhe tinha acontecido:

     – Olha, perguntaram-me onde é que estás colocado e o que é que fazes. Que devo responder? – sussurrou com os lábios próximos do ouvido. O marido, agarrando-a pela cintura, fora simulando com gestos de estar a falar-lhe sobre algo surpreendente e foi instruindo-a sobre o que deveria responder:

     – Aproxima-te delas com delicadeza e com ar de preocupada, agradeces contida a gentileza com que nos receberam. Depois acrescentas, mas sem esperar perguntas, que temos de sair por uma missão de serviço urgente. Faz isso com rapidez e como te disse, não temos tempo a perder! – exclamara o marido com ansiedade e grande nervosismo.

     Após o cumprimento desta formalidade, com gestos de cortesia e desejos de boa noite, despediram-se de todos dando a mão um ao outro e caminhando bastante apressados para justificarem a saída um tanto inesperada.

     Logo que puseram os pés na rua, começaram a pensar como vir para casa, uma vez que àquela hora já lá não havia táxis e seria preciso chamar por um. Mas como fazê-lo, sem voltar ao clube para telefonar?

     Quase a rebentarem de suores frios por estarem em lugar muito exposto ao perigo da descoberta da verdade, o jovem militar sentiu uma mão nas costas a interpelá-los com muita insistência.

     – Precisam de boleia, precisam que os leve a casa? Eu tenho ali o carro, venham comigo que eu levo-os! – exclamava em tom aflito um homem que surgira não se sabe de onde.

     Sem se fazerem rogados, entraram no carro que iniciara a marcha pela mesma orla marítima por que tinham vindo. Porém, o condutor tornou-se estranho, parecia estar transtornado, perdera de vez em quando a noção da estrada e, aos ziguezagues, lá ia curvando mais para a direita ou mais para a esquerda, mas sempre muito próximo da escarpa que mergulhava até ao fundo do mar. O perigo era tão iminente que a jovem esposa confessara que ficara tão tolhida de medo que lhe assaltara a ideia de que não chegariam sãos e salvos a casa. O marido também não ficara indiferente, percebera o perigo, mas como era preciso sair das imediações do Clube de Aeronáutica, meditara mais na proeza que tinham conseguido do que em qualquer situação negativa que pudesse acontecer. E, depois, ficara tão confuso com aquela inesperada ajuda e salvação, que, apesar de estranho e algo perigoso, o condutor não poderia constituir nenhum mal.

     De todas as emoções vividas no sonho alcançado ficara a certeza de que, tal como este nascera pela bondade de Deus para viverem aquela noite especial, assim terminara do mesmo modo, pela ajuda de todos, especialmente daquele homem, que ainda hoje não sabem de onde veio nem para onde seguira.

    Esta fora uma das situações aventureiras que gosta de recordar, pois o que fora triste, e quiçá até trágico, guarda na memória fingindo que fora de sorte a sua vida de militar na colónia de Moçambique.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 91a 97

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 19)

     Porém, ainda não tinham terminado o instante das palavras, quando ouviram alguém bater à porta.

     – Sou eu, senhora professora! – exclamara baixinho a Dona Irene para não perturbar o silêncio de ambos. – Eu queria muito falar com a menina! – sussurrara ainda mais baixinho.

     Era assim que esta delicada senhora tratava a jovem professora. Chamava-a de vez em quando para lhe falar de algo que teria acontecido ou para segredar-lhe recordações da sua vida tantas vezes vivida em solidão e com alguma nostalgia à mistura.

     A professora, ainda com um ligeiro rubor do momento de afeto, abrira a porta e indagara: – O que há, Dona Irene, o que é que se passa? A senhora está bem? – interrogara com carinho.

     – Está tudo bem, não há qualquer problema, mas não consegui conter-me com o que observei há pouco – concluíra, esboçando gestos com alguma estupefação. – É que há bocadinho fui dar com o empregado da pensão a falar sozinho, como se as pedras o escutassem! Estava voltado para o terraço e murmurava algo que não consegui entender, mas não me pareceu boa coisa – acrescentara, cerrando os lábios em gesto de desconfiança.

     – É verdade, Dona Irene, a senhora tem muita razão! – exclamara a professora. – Eu própria já me assustei um pouco com esses sinais, mas acabei por acreditar que se calhar é a forma que ele encontra para desabafar dos ralhos que o patrão lhe dá. Além disso, ele já não é criança e já está há muito tempo com eles, por isso, como não pode fazê-lo de outro modo, responde-lhe indiretamente!

     – Oxalá seja assim como diz a menina! – concordara com alguma tolerância e já mais tranquila. E, quando se aproximava para despedir-se com um beijo, a jovem professora exclamara repentinamente:

     – Ó Dona Irene, o meu marido está cá com umas ideias, que eu nem sei o que dizer-lhe sobre o que ele me pediu. Não é que anda todo eufórico com o desejo de irmos passar o Ano Novo ao Clube de Aeronáutica! Diz que o meu vestido de noiva, porventura cortando-o nas mangas e subindo-o um pouco, faria um sucesso e seria uma surpresa naquela noite de gala! Olhe para o que lhe havia de dar! – exclamara com disfarçada satisfação.

     – E porque não lhe faz a vontade? – questionara a gentil senhora com delicadeza. – A menina tem o brilho das noivas e vestida com semelhança não ficará muito diferente de uma modelo parisiense. Digo-lhe que seria com muita alegria que lhe arranjaria o vestido, creio que o seu arranjo seria simples e não perderia a beleza que tem. – Depois acrescentara jubilosamente: – A menina vai sentir-se como nos contos de fadas, em que a beleza do rosto também ressurge num lindo vestido branco que desvenda as imagens do Céu.

     Com estas palavras, a jovem professora ficara emocionada e sem condições para não fazer a vontade ao marido.

     Quando voltara para dentro trazia um sorriso rasgado pela alegria com que fora contagiada, mas ao mesmo tempo procurava conter-se, pois tinha consciência de que seria um passo que deveria dar com alguma prudência.

     – Que tens? – perguntara o marido. – Estiveste a falar tanto tempo com a Dona Irene; há algum problema? – interrogara com cuidado.

     – Não, não há nenhum problema! – observara tranquila. – O que se passa é que ela diz que parece haver qualquer coisa de estranho com o empregado, pois julga que ele não andará com bons pensamentos. – Depois acrescentara: – Eu tranquilizei-a: disse-lhe que ele já tinha uma certa idade, e pelo facto de ser o empregado mais antigo, provavelmente diria alguns disparates quando está só e, se calhar, quando está mais irritado, pelos ralhos que o patrão lhe vai dando constantemente.

     E, para não preocupar mais o marido, aproveitara para lhe contar o que a Dona Irene lhe dissera sobre a possibilidade de festejarem a noite de Ano Novo no Clube de Aeronáutica. Com esta surpreendente mudança de atitude, ainda antes de ela concluir a explicação, já o marido dava pulos de contente, ao mesmo tempo que a segurava, para ensaiarem os passos de dança que o futuro projetava nos cinco sentidos e os corações começavam a abrir ao sonho.

     Com o quartel, a pensão, a escola e os alunos, lá iam derramando a vida com o romantismo próprio de quem ainda está em lua de mel. Às vezes, eram tão improvisados e espontâneos que se envolviam em afetos na escola onde ela lecionava, como se estivessem fora do sistema, ele que a ia visitar montado numa bicicleta do tempo da Segunda Guerra Mundial, e ela que o esperava como a um anjo protetor que lhe daria forças para continuar a ensinar os seus negrinhos. Era assim que os sentia e foi assim que o marido os sentira também, pois não pudera impedir de deixar cair-lhe uma lágrima quando se despedira dela no aeroporto de Porto Amélia e ouvira inesperadamente uma mãe a apontar insistentemente para o céu e a dizer com emoção: – Olha o avião, meu filho, ali vai a tua professora!

     Entretanto, chegara o final de dezembro a proporcionar um certo nervosismo pela ansiedade da aventura que tinham prometido realizar para passarem a Noite de Fim de Ano num modo mais ousado, na procura de um momento de felicidade única. Tinha mostrado ao marido o vestido com as alterações que a bondosa senhora lhe realizara, os sapatos, a capelina e as luvas, mas fizera questão de se preparar apenas à noite e pouco antes de saírem para a festa. Ao almoço ficara calada durante todo o tempo, pouco comera e de vez em quando suspirava, parecendo denotar alteração na saúde e quebra de disposição para a alegria. Esta mudança de humor não causara grande estranheza, pois estavam casados há três meses e o facto de ela ter ido com o marido para África tinha provocado nestes primeiros tempos estados de grande nostalgia. 

     Por outro lado, embora continuassem a comer na pensão, tinham alugado uma casa que lhes permitia mais intimidade e aconchego, embora os levasse a reconhecer que pouco mais tinham do que a cama para dormirem, o que, sendo desagradável para ambos, a mulher sentiria um pouco mais de insatisfação e desânimo.

     Ao cair da tarde, o marido chegara do quartel, dirigira-se ao pátio da pensão onde normalmente ela se sentava a conversar e o esperava para jantarem. Dera-lhe um beijo mais acalorado, ao mesmo tempo que saudara os presentes, incluindo a Dona Irene, que sempre admiraram como uma senhora muito respeitável.

     Comeram, fazendo questão de não quebrarem o ambiente para a Noite de Fim de Ano; para isso, pedira ao empregado que lhe trouxesse um café e um whisky que fora bebendo com desembaraço, pedindo à mulher que bebesse também um pouco, pois sabia que seria necessário a partir daquela hora que todas as energias fossem orientadas para o momento da aventura que se aproximava rapidamente.

     – Como é que vamos para o Clube de Aeronáutica? – interrogara ela com curiosidade.

     – Vamos de táxi, mulher! – respondera o marido sem hesitar.

     – A que horas vamos sair de casa? – perguntara sem convicção.

     O marido, percebendo que o sentimento dela não tinha evoluído para a euforia que desejava, recolheu-se por algum tempo num silêncio conjugal, para que a comunicação fosse um sentimento de alma e a vontade palpitasse pelo desejo da liberdade. Escudado na intimidade, procedeu como se não tivesse notado nada, interpelando-a carinhosamente:

     – Estava a pensar se não seria melhor irmos para casa e começarmos calmamente a preparar-nos. Não sei se falta alguma coisa, mas pelo menos será preciso falar com um taxista, para que lá por volta das 10h00 nos vá buscar a casa. Será necessário eu ir à praça para fazer a marcação, e isso também demorará algum tempo – justificando deste modo a pressa com que insistira para regressarem a casa.

     De mãos dadas, desceram em silêncio a rua até onde moravam e junto da porta de entrada separaram-se até que ele marcasse a hora com o taxista que os levaria ao clube à hora marcada e quando estivessem prontos.

     Quando o jovem esposo entrou em casa, vindo da praça de táxis, dirigiu-se para o quarto e procurou no roupeiro o fato que vestira no dia do casamento. De repente ficara toldado de paixão amorosa e começara a imaginar que a cor escura de antracite sobressairia ainda mais naquela noite africana. A camisa de cor branca daria a aparência da pureza própria da juventude. E os sapatos de verniz, as luvas e a gravata exaltariam a coragem e a beleza que o toque da estética releva em certas noites de esplendor.

     Mergulhado naquele delírio de inocência, sentira que a mão da esposa lhe tocara nas costas para o fazer voltar e surpreender no instante da aparição, para a realidade que parecia voltar a ser sonho. Até ela, antes de mostrar-se, tivera a impressão de reviver o momento em que desfilara no adro da igreja até se inclinar no altar.

     – Olha para mim! – sussurrara com carinho. – Estou bem, estou bonita? – interrogara curiosa. – Era assim que querias? – indagara com alguma sedução. E como ele não respondera, nem parecera estar a ouvir o que ela dizia, resolvera provocar-lhe a consciência: – Vá lá, diz lá alguma coisa, diz que isto foi um erro, que o vestido não ficou bem, mas por favor fala, antes que eu comece a chorar e perca a vontade de ir.

      Entretanto, já com as lágrimas a correr-lhe pela face, começara a ouvi-lo pronunciar as primeiras palavras ao mesmo tempo que a agarrava e beijava sem saber muito bem o que fazia.

     – Desculpa, não consegui entender o que senti no momento em que olhei para ti, pareceu-me teres surgido de um sonho, senti algo tão sereno e cálido que não fui capaz de responder, aliás, tudo o que eu dissesse não corresponderia ao sentimento que ainda rejubila na minha alma. Agora tenho a certeza de que o que pensei é real, que ambos iremos causar admiração no baile e que a primeira dança será de gratidão pelo amor que celebraremos nesta noite.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 85 a 91

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 18)

     O voo até à cidade da Beira em Moçambique demorara catorze horas, com escala em Luanda de cerca de uma hora. Para a primeira experiência em viagens de avião, se não fora o facto de ir para a guerra teria tido um certo deslumbramento e algum fascínio. Mesmo assim, entre o ressonar de alguns e o burburinho de outros, lá surgia de vez em quando uma alegria contida, para chamar o pessoal de bordo e confraternizar o momento com uma cerveja que bebia com elevada satisfação. Depois ficara deslumbrado pela surpresa do avião e fora registando no bloco de notas, para memória futura, algumas das indicações dadas pela tripulação e outras realidades descobertas por si mesmo. Escrever fora sempre um dos melhores passatempos que tivera naquela longa viagem. Depois, o fim do ano também já estava próximo fazendo nascer a ilusão de que a festa pelo novo ano seria uma oportunidade para uma grande noite de farra. Por isso, se houvera algum momento ansioso também houvera alguma ilusão, a recordação da mulher amada, a visão do espaço nas alturas e alguns movimentos mais bruscos produziram um sentimento que era preciso superar com alguma fantasia. Brincar com alguém, contar uma história e anotar acontecimentos ajudariam sempre a passar melhor o tempo e a sentir menos a viagem.

     Por volta das seis horas da manhã, foram informados pela tripulação de que dentro de pouco tempo aterrariam no aeroporto de Luanda para embarcarem uma hora depois no avião que os levaria até Moçambique, onde aterrariam na cidade da Beira. Entretanto, olhara pela janela e num súbito fora tocado por um desejo de rapidamente sentir pousar no chão as rodas do avião. Mesmo assim, não pudera deixar de sentir as ondas do calor que viera do chão, já que o avião parecia ir ao encontro do Sol, que nascia como uma bola de fogo alimentada pelas casas de colmo que serenamente se lhe entregavam. Uma hora depois, e já bem acordados, levantaram voo do aeroporto de Luanda com destino a Moçambique e à cidade da Beira. Ao cabo de catorze horas chegaram ao Aeroporto da Beira para seguirem depois noutro avião para Nampula. A viagem da Beira para Nampula decorrera num ambiente menos militar, o pessoal de serviço era feminino, a comunicação era mais sedutora e viajar de dia será sempre mais agradável.

     Passara a noite de fim de ano em Nampula, o local era agradável e a banda esforçava-se por animar os civis mas também os militares que nesta ocasião se juntaram para saudarem o novo ano.

     Conta, quando a propósito, que não esquecerá facilmente a última noite de 1972, uma vez que fora marcada pela diferença de horário entre a África e a Metrópole e por isso só festejara a entrada do ano novo uma hora depois. E se este facto mostrava que havia alguma diferença no conceito de tempo entre a tradição colonial e a tradição da metrópole, a forma de celebração da noite de Ano Novo entre os colonos e os militares acentuou ainda mais esta diferença, pois a riqueza e a alegria dos primeiros contrastou com o champanhe a jorrar ao som das valsas de Johann Strauss e as carícias entre os pares, enquanto as tristezas dos segundos se misturavam na Coca-Cola e nas rejeições das donzelas que não pareciam gostar de conviver com os militares.

     Depois desta noite bem amarga recebera instruções sobre o modo como iriam em coluna militar e a forma de ação a desenvolverem como meio de proteção e defesa. Vestira a farda de combate, verificara a espingarda e o carregador com as munições e seguira numa viatura militar com os outros para o distrito de Cabo Delgado e Porto Amélia durante seis horas à chuva e ao sol, onde haveria de permanecer durante mais dois anos no cumprimento da totalidade do tempo de serviço, que fora de três anos e três meses.

     Não foram os perigos da guerra que o perturbaram, pois tivera a sorte de ficar num comando de setor e num aquartelamento que tratava do apoio no arranjo das viaturas e da responsabilidade por um paiol para a recolha e distribuição de munições. Além disso, entre outras ocupações que tinha no quartel, a ocupação de auxiliar de enfermeiro conferia-lhe a responsabilidade por todo o pelotão e todo o pessoal civil que lá prestava serviço. De tal modo que, associada ao seu empenho, estava a responsabilidade de ser o primeiro a decidir e a tratar na situação de doença dos utentes, uma vez que só na ausência de meios ou de conhecimentos é que deveria acompanhar os doentes até à enfermaria do setor onde seriam observados por um médico, que, achando necessário, os medicaria e internaria ou mandaria regressar de novo ao quartel para ficarem com baixa à guarda do auxiliar de enfermeiro até se restabelecerem completamente. Mas, três anos e três meses de tropa foram muito tempo, e se no conjunto houve algumas alegrias também houve muitas tristezas, sobretudo por aqueles que tombaram em defesa da Pátria.

     Valera-lhe a aventura de ter casado quando ainda não tinha um ano de serviço na colónia africana. Prometera à sua amada, quando partira, que casaria logo que regressasse, mas a confiança que tivera que, como professora, a sua esposa seria bem recebida em Moçambique e também que possivelmente não seria transferido para locais onde se travava a guerra, levara-o a vir casar à metrópole e a levá-la consigo para aquela terra africana. Não fora fácil esta decisão, pois estaria em causa o começo da vida conjugal, longe da família, numa idade bastante jovem e com a possibilidade, ainda que muito remota, de poder ser deslocado para a frente de batalha. Felizmente que tudo decorrera pelo melhor e o serviço militar acabara por ser enfadonho, não pelos problemas que tivera na guerra, mas pelo tempo de serviço que fora muito mais longo que o normal. Aliás, ainda lá conseguira fazer alguns exames, chegando quase a completar o segundo ciclo dos liceus, faltando-lhe apenas a disciplina de Física, que concluíra como aluno externo no Liceu de Gaia no ano de 1975. Recorda estes factos como algo que muito contribuíra para a história do que tem sido o melhor da sua vida e, com um raciocínio tolerante, lá vai omitindo algumas aflições e relevando algumas alegrias, na justificação do que fora necessário para viver e manter o equilíbrio entre o social e o militar.

     Não fora fácil conviver com as altas personalidades políticas, militares e de segurança da Região e Comando onde fora colocado; a sua graduação militar era do nível das praças e o seu estatuto era muito humilde. A mulher, por inerência do cargo de professora e do seu estatuto, era convidada com frequência pelas esposas destas personalidades para festas e cerimónias. A maior parte das vezes não correspondera ao convite pelos problemas que isso poderia causar ao comandante do marido, que era um excelente militar e uma boa pessoa, contornando sempre as disposições militares e permitindo que este andasse vestido à civil fora do quartel e, quando conveniente à função familiar, estivesse com a esposa a participar na receção, fosse a um ministro ou a outra entidade superior.

     A propósito desta dificuldade, revela com alegria uma peripécia com contornos de alguma gravidade, destacando neste cenário a ajuda de uma personagem enigmática, que não conheciam nem nunca chegaram a saber quem seria aquela pessoa bondosa que lhes permitira, mesmo perante a aflição, conseguir que aquele momento não deixasse de ser feliz.

     – Não sei porque é que tem que ser assim, porque é que terei de andar meio escondido – dissera isto, numa tarde, quando chegara a casa do quartel e viera mais arreliado pelas humilhações sofridas. Afinal, um cabo, um soldado ou um capitão, não serão todos militares? – Porque é que todos aqueles com um posto inferior a sargento, para trajar à civil têm de ser autorizados, com exceção no período do gozo de férias, e os outros, sempre que queiram, podem fazê-lo, condicionados apenas pelas horas de serviço e pelo local onde o exercem? É algo que não faz sentido, já basta ganharem mais e terem mais honrarias, quanto mais ainda nos sujeitarem a esta discriminação! – exclamara, vociferando, o jovem militar.

     – Oh, homem, não sei porque estás a lamentar-te! De facto, todos os dias vens fardado, mas não virias à civil se quisesses? – interrogara-o a esposa, ao mesmo tempo que lhe fazia uma pequena carícia.

     – Lá nisso tens razão! – respondera com gentileza. – No entanto, para ter essa liberdade, vale-me o meu comandante, que com esse gesto permite que eu possa identificar-me com a sociedade civil! Se não fosse ele, teria de andar sempre escondido e separado algumas vezes de ti nos atos de maior solenidade! – acrescentara nestes modos para defender e exaltar a atitude do seu tenente.

     – Sendo assim, porque é que estás sempre a lembrar-te desta questão se ela não te afeta?! – observara ela, ao mesmo tempo que procurava desvalorizar as diferenças que os separavam no estatuto.

     – Não é bem assim! – voltara de novo à carga. – Repara na diferença que existe sobre o acesso aos lugares onde se divertem os oficiais e esposas, não é verdade que tu poderias frequentá-los e eu não? – interrogara-a um pouco furioso. E continuara: – Não somos feitos da mesma massa, não contribuímos ambos para a socialização e defesa dos valores que eles apregoam defender? Então, porque é que como casal temos de viver com tantas preocupações acerca dos lugares e acontecimentos que são comuns? Já não falo das festas, que é uma questão mais particular de cada grupo, mas receber um ministro ou um alto dignitário do governo, não achas que poderíamos estar juntos sem termos de pedir para isso? Ou se eu ficar atrás de ti, junto da multidão, por incompatibilidade de estatutos e tu em frente na tribuna, será que isso dará mais solenidade ao ato, e estaremos nós socialmente mais motivados? – observara com tristeza e perplexidade.

     Repentinamente e sem que a mulher estivesse a contar, propôs-lhe uma aventura que, embora ousada, parecera-lhe que viria a propósito para contrariar esta questão.

     – Sabes onde fica o Clube de Aeronáutica? – perguntara com alguma delicadeza.

     – Sei, é aquele edifício que tem desenhado na fachada uma imagem de aviões, não é?! – respondera um pouco intrigada.

     – Sim, é esse mesmo – confirmara com entusiasmo.

     E, continuando, lá fora acrescentando com algum rodeio: – Estamos a chegar à noite de fim de ano, vai fazer-se lá uma grande festa, a festa da passagem para o Ano Novo que tem fama de ser uma festa excelente.

     Depois, como se já tivesse passado todo o azedume das frustrações referidas, fora mais direto ao assunto:

    – Tens o teu vestido de noiva, os sapatos e a capelina; que dizes se fôssemos lá passar a noite de Ano Novo? Penso que bastaria um pequeno arranjo no vestido, cortando as mangas à medida de sobressair nos teus braços o moreno da tua pele e as luvas na beleza das tuas mãos. Nessa noite, gostaria que fôssemos conviver e dançar até nos envolvermos tanto que voltássemos a reviver o sonho de quando nos olhámos pela primeira vez. Que dizes?! – insistira com um olhar cativo.

     Durante algum tempo a voz da jovem noiva emudecera, olhara pela janela o jardim que ladeava a residencial onde viviam, ao mesmo tempo que ia pensando na resposta que deveria dar e que não deveria quebrar o encanto daquele momento singular. Voltara-se em sua direção e com um gesto quase teatral contemplara-o de um modo longo e profundo, respondendo em tom envergonhado:

     – Oh, homem, tu bem sabes que eu não tenho jeito para essas coisas. Mas, como ainda falta muito tempo para o fim do ano, pode ser que até lá surjam outras sugestões ou que eu ganhe coragem para realizarmos a tua vontade.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 79 a 85

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 17)

     Contudo, quando entrou para o escritório desta empresa tinha feito há pouco dezassete anos de idade. Estava a um ano de saber se seria ou não apurado para todo serviço militar, um problema que o afligia como a todos os jovens daquele tempo, porque a Guerra Colonial era assustadora e poucos escapariam à mobilização para as Colónias ultramarinas. Aliás, no dia de ir à inspeção, chegara a pensar que ficaria livre, pois tinha num braço as marcas da dor de se ter escaldado quando ainda andava na instrução primária. Julgara ele que se dissesse ao médico que o seu braço estava afetado pelo escaldão que sofrera quando ainda era menino, o médico teria pena dele e o livraria do serviço militar e, em consequência, o livraria também do receio que tinha de ir parar às colónias. Porém, de nada lhe valera este pensamento, pois quando fora inspecionado ainda lhe ocorrera esta ideia, mas a aprovação para o serviço militar fora geral e sem haver lugar para apelo nas circunstâncias.

     Com grande esforço para poder trabalhar de dia e estudar à noite, lá fora continuando a amealhar algum dinheiro, já que dois anos depois da inspeção chegaria o dia da chamada para cumprir o serviço militar. Tivera consciência de que ganharia muito pouco como soldado, mas as habilitações literárias que tinha na ocasião só em certas condições permitiriam ter um posto de classe superior e assim poder ganhar mais e ter mais vantagens.

     Ao trabalhar neste comerciante como empregado de escritório e ainda antes de ir para o serviço militar e para a colónia de Moçambique também aprendera as atividades do comércio de vários artigos, tendo-lhe servido depois de ter regressado de África e ter passado à disponibilidade, para poder ganhar para além do salário fixo mensal mais algum dinheiro extra, vendendo nas horas livres sapatos de homem, de senhora e de criança em sapatarias da cidade do Porto e de Matosinhos. Também deverá dizer-se que com a ajuda desta mesma empresa, pelas horas que voluntariamente lhe dera para estudar durante o horário de trabalho, já antes de entrar para o serviço militar e depois quando regressara após o cumprimento do mesmo, premiando, deste modo, a sua grande dedicação à aprendizagem que mantivera sobretudo depois do regresso da Colónia de Moçambique, pudera em pouco tempo, completar como trabalhador estudante o terceiro ciclo no liceu de Gaia e ingressar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

     Tudo isto fora possível, porque, apesar de já estar a frequentar o quarto ano do curso comercial do ensino noturno da Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, fizera a opção de mudar para a frequência do ensino liceal noturno com aulas para aquisição de conhecimentos no Externato Pedro Nunes em Gaia e com exames de avaliação externa no liceu de Gaia, chegando mesmo a frequentá-lo à noite durante o ano anterior ao ingresso na Universidade do Porto. Acrescente-se que esta opção foi desejada, pois de outra forma não teria sido possível alcançar um curso superior no domínio das Humanidades.

     No começo dos verdes anos, no tempo do serviço militar e na guerra colonial, António descobrira a jovem com quem haveria de namorar e casar. Durante cerca de seis anos em que namoraram e depois do casamento, a sua mulher fora sempre a sua principal aliada no combate por uma vida melhor. Continuar a estudar à noite, trabalhar de dia e ser desejado pela sociedade, pelos conhecimentos profissionais, pela dedicação e trabalho e, principalmente, pela retidão e elevado sentido moral foram fatores que determinaram em grande parte a aceitação do namoro e do casamento por ambos, mas também pelas famílias, que, à sua maneira, colaboraram e desejaram que assim fosse.

     Entretanto, quando chegou o dia de ingressar no exército, fora um pouco surpreendido por ter sido convocado para Leiria e para o Regimento de Infantaria número sete, pois neste quartel seriam selecionados alguns militares para o curso de Furriéis milicianos, o que de imediato lhe agradara, por poder vir a ser selecionado para o curso e poder ter no futuro outras regalias e um vencimento maior.

     Contudo, logo nos primeiros dias de ter iniciado a recruta, começara a sentir-se movido por duas forças opostas: por um lado queria passar na seleção, mas por outro lado temia que passando a sua especialidade viesse a ser atirador conforme a informação que corria no quartel. Daí que, quando iniciava os exercícios físicos para mostrar as suas capacidades junto do oficial instrutor, a maior parte das vezes não fora capaz de concluir bem nenhum, fosse o salto de obstáculos fáceis, fosse a subida ao pórtico ou fosse simplesmente uma pequena corrida no exterior das casernas. Apesar de desejar ser selecionado, tinha consciência de que não estava a proceder nesse sentido, o receio de vir a ter a especialidade de atirador impedia-o de responder melhor aos exercícios de aprendizagem teórica, tendo em conta as habilitações escolares que tinha, assim como de fazer bem os exercícios físicos, pois antes de ir para a tropa fora jogador de futebol num clube federado e no escalão júnior, por isso esta má prestação não tinha justificação.

     Mesmo assim, a sorte parecera continuar a bafejá-lo, pois ainda antes de terminar a recruta e de ser excluído da seleção em consequência dos maus resultados, fora chamado ao capitão da companhia para explicar a situação em que se encontrava, que não era compreensível para o oficial. Ele tomara como base da sua preocupação as habilitações escolares, que estavam quase no limite para ter ido para as Caldas da Rainha ou Tavira, onde seriam recrutados os Cabos milicianos, bem como o seu passado desportivo de jogador de futebol, que contrariava a incapacidade revelada nos exercícios de recrutamento.

     Questionado sobre a hipótese de ainda poder ser selecionado, neste encontro com o oficial, foi deduzindo das palavras amigas do Capitão que, no geral, todos os selecionados seriam atiradores e poucos escapariam à mobilização para combater nas colónias. Perante este cenário esmorecera um pouco, deixara-se invadir pelo receio e quando o capitão o questionou sobre a hipótese de ainda ser selecionado, se essa fosse a sua vontade, respondera que seria melhor ser um soldado com uma boa especialidade do que um atirador com boas regalias. Com esta resposta, despedira-se do Capitão com um cumprimento formal, mas também com um sentimento de afeto pelas palavras de coragem que este lhe transmitira pela opção que fizera.

     No seu ideal de estudante, desejara tornar-se médico, pensara muitas vezes que tinha talento para isso, uma vez que gostava de socorrer e curar os companheiros quando eles precisavam. Aliás, a sua intuição não o enganara, pois nos testes para a seleção da especialidade esse talento viera a revelar-se ao ser mandado para Coimbra para o Regimento dos Serviços de Saúde, onde completara a parte teórica da especialidade de auxiliar de enfermeiro. Concluída a parte teórica, fora enviado para estagiar no Hospital Militar da Boavista na cidade do Porto, tendo sido aprovado com uma alta classificação que lhe permitira ficar entre os primeiros lugares do curso e, em consequência, fazer-lhe nascer a esperança de que dificilmente seria mobilizado para o Ultramar.

     Concluída a especialidade de Auxiliar de Enfermeiro, fora colocado de novo em Coimbra no C.I.C.A. 2 para cumprir o tempo restante de serviço, que andaria à volta de mais dezoito meses, se não fosse para as colónias. Quando ultrapassou o tempo de doze meses, ficara convencido de que já não seria mobilizado, acreditara nesta altura que valera a pena ter estudado como estudou não só para adquirir conhecimentos, mas sobretudo por ter sido aprovado com aquela classificação, pois era informação corrente que os primeiros dez do curso de Auxiliares de Enfermeiro não seriam mobilizados.

     Entretanto, quisera a sorte que, já com quinze meses de serviço e quando já nada fazia prever o sucedido, fosse mobilizado para Moçambique, uma colónia africana que tinha fama de ser bastante perigosa para os militares que iam para lá combater. Quando fora informado da sua mobilização individual pelo Tenente, ficara desolado e não escondera as lágrimas que lhe caíram pela face. O Tenente, que era um militar habituado a estas situações, não tivera muitas palavras para justificar esta mobilização inesperada, limitara-se a encorajá-lo e a desejar-lhe as maiores felicidades para a sua missão. Depois, indicara-lhe como deveria levantar a guia de marcha na Secretaria para se apresentar no Entroncamento no Batalhão de Serviços de Material, onde integraria um pelotão de apoio direto como enfermeiro responsável desta unidade militar.

     Ele e os seus companheiros não demoraram muito tempo neste quartel, depressa foram enviados para Santa Margarida para fazerem a preparação militar adequada à situação de guerra que se travava nas colónias. Neste campo de treino militar, aprendera a usar algumas armas, algumas granadas e a executar alguns exercícios de combate. Não se sabia ao certo o que os esperava e, por isso, deveriam estar bem preparados. No seu caso, não só como enfermeiro mas também como combatente, pois na situação em que fora mobilizado poderiam acontecer as duas realidades.

     Depois de ter passado alguns dias em casa, partira de comboio com os olhos rasos de lágrimas pela despedida da família e da jovem que amava e a quem prometera casamento.

     Embarcara uns dias antes do fim do mês de dezembro na estação das Devesas, numa noite de inverno muito fria e chuvosa. Numa noite de grande tristeza, por partir para a guerra, mas também por naquele momento não poder abraçar alguns amigos que, por razões de mau tempo, não puderam lá estar. Mesmo assim, lá conseguira recompor-se e abraçar fortemente o irmão, que fora o último a segui-lo com o olhar, enquanto o comboio se afastava em direção à estação do Entroncamento, para regressar ao Batalhão de Serviço de Material pelo período de dois dias, antes de viajarem para o aeroporto de Lisboa, donde embarcaram num avião de transporte de militares com destino à colónia de Moçambique, mais concretamente à zona de Cabo Delgado, uma terra considerada de “cem por cento de guerra”.

     Poderá dizer-se que não fora um embarque sem resistência psicológica, pois o receio pelo pior começara a nascer logo que puseram os pés no aeroporto. Valeram-lhes naquela triste noite as meninas que davam assistência psicológica aos militares que embarcavam para a guerra, que, para além dos afetos que não se cansavam de transmitir, distribuíam a cada militar uma pequena caixa que continha chocolates, bolos e uma garrafinha de vinho. Era uma espécie de brinde, que, misturado com os afetos e sorrisos, faria esquecer por algum tempo a família daqueles que não eram de Lisboa e que não a poderiam ter junto deles.

     Durante o tempo de espera pelo embarque ouviam-se soluços que iam sendo abafados pelo vinho que ia fazendo algum efeito, pelo menos enquanto se misturavam as emoções.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 73 a 79

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 16)

      O Amaral deixara a casa de Avintes, que alugara à Senhora Maria Pinheiro; com ela, ficaram os sonhos de menino que o António tivera durante o tempo que lá viveram. Ficara o terreno onde caminhava pelo meio dos carreiros que separavam os produtos agrícolas plantados. Ficaram as árvores de fruta e as videiras que lhe faziam brilhar os olhos quando os frutos coravam ou as uvas estavam prontas para serem colhidas em cachos suculentos. Ficara a casa e o jardim onde ainda criança esperara longos dias acreditando que uma raiz já seca ainda haveria de dar canas da Índia. Visitava todas as manhãs o lugar onde plantara aquela raiz que por lá aparecera sem saber como. Todos os dias a olhava na esperança de ver nascer uma pequena folha que lhe indicasse que o seu sonho ia ser real.

     De tanto desejar e a tratar com carinho, acreditara que um dia ela haveria de se encher de canas. Aliás, diz muitas vezes que se acreditarmos muito na possibilidade de um sonho, que ele se torna realidade. Pois sobre as canas da Índia diz tê-las visto em muitos lugares, mesmo onde os sinais seriam menos evidentes, e se já não escolhera uma cana para pescar era porque o rio Febros agora ficava longe. Ficara lá mais vincada a recordação da mãe, porque vira-a sentada no terreiro muitas vezes a sorrir de alegria enquanto descascava as batatas e migava as couves para a sopa, por toda a riqueza que tinham agora depois de a procurarem e sofrerem tantos anos.

     Não fora fácil a adaptação; a casa era muito pequena, havia muita limpeza mas só havia um quarto de casal. Para dormirem todos, as outras divisões tornavam-se em quartos provisórios, o trabalho obrigava os adultos a horários diferentes, não sendo fácil para o sossego das crianças. Depois, quando um dos maiores adoecia, lá ocupava o quarto do casal, pois era preciso que o médico visse o doente na melhor divisão.

     O António continuava a trabalhar e a estudar à noite, chegando muitas vezes quando já tudo dormia. O amor naquela casa era bendito, o jantar feito pela cunhada ficava embrulhado em jornais e num cobertor; estava sempre quentinho, mas era preciso comer mantendo todo o silêncio. Para estudar para os exercícios diários, e em especial para os testes, só poderia ser na cozinha e com a porta fechada para não incomodar ninguém e muito menos as crianças, que dormiam muito perto.

     Apesar de os resultados na escola serem bons e ainda muito jovem já ter independência económica, foram várias as noites em que as lágrimas iluminaram a sua vida na solidão de órfão de mãe e da vida de sacrifício que levava.

      Lembrava-se nos grandes tormentos do que lhe prometera quando esta o chamara ao leito alguns dias antes de já não poder falar. Reconhece que essa promessa fora nos momentos mais irados a sua tábua de salvação, pois se não tivesse prometido que seria bom, trabalhador e obediente, talvez não tivesse a glorificação da honradez nem o reconhecimento social para ser respeitado.

     Aliás, numa noite de Inverno, já apaixonado e a caminhar para os grandes sonhos que haveria de realizar com a sua Cinderela, tivera depois algumas horas de estudo no sofrimento do cansaço, uma espécie de “encontro” que durara o tempo de uma carícia e deixara sentimento marcado no coração para o lembrar sempre que valerá a pena ser assim, pois ainda sente a leveza do sinal quando lhe escapa o esplendor. Acredita que fora o momento do acordar da sua estrela, que continua a crer ser verdadeiro e sem nenhuma dúvida, julgou na altura poder imortalizá-lo, no poema que se segue:

 

     A mulher que Deus me deu.

     Deus a deu, Deus a levou.

     A mulher que me escolheu

     seja ela o que eu não sou.

 

     Deus a deu, Deus a levou,

     por outra coisa não poder ser

     Uma lágrima me ficou

     que me mata até morrer.

 

     Se escutas meu pensamento,

     nesta noite longa e fria.

     A tal não dês atento,

     porque choro de alegria.

 

     D’alegria que não tive,

     nem dei conta no sentir.

     A criança,quando dorme,

     dorme a chorar e a rir.

 

     Criança que já não sou,

     um boneco quero ter.

     Deus mo deu ou inventou,

     me acompanhe até morrer.

 

     Quisera depois começar a entrar nas voltas do destino e, por meio de um concurso, arranjara emprego nas Trinchas e Pincéis 1001, era uma das maiores lojas de comércio de pincelaria no Porto. Acarinhado como um familiar pela patroa, trabalhara durante algum tempo na cidade, mas depressa se atemorizara em relação ao futuro. Desejava ser alguém e a cidade parecera-lhe um local onde facilmente se poderia perder. Haveria algo de estranho que porventura o atrairia para os caminhos da perdição, e a promessa que fizera à mãe de ser “bom menino” começara a senti-la de tal modo que tudo quanto lhe parecesse que levaria ao contrário ele deveria rejeitar. Corrido pelas escadas abaixo, em altos berros, pela patroa, que não aceitara de bom grado a sua saída, no dia seguinte fora apresentar-se num outro armazém para desempenhar funções no escritório, um lugar que há algum tempo lhe fora oferecido por um amigo que lá trabalhava e tinha grande influência no comerciante. Era uma empresa que ficava próximo da sua residência, passara a ganhar tanto como ganhava no Porto e a ter mais facilidade para continuar a estudar à noite na Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, como o fazia desde os quinze anos de idade.

     O dono deste armazém chamava-se Moreira, mais conhecido pelo senhor Moreira das peles, que, para além da sua bondade no reconhecimento da competência e do trabalho dos empregados, possuía também uma grande inteligência na arte de comerciar peles e outros artefactos para o calçado. De tal modo que, em certas situações, alguns destes produtos poderiam ser pouco vendáveis, pela aparência ou por outra razão qualquer, no entanto, ele recomendava-os à experiência a alguns industriais, que, com alguma resistência, lá iam fazendo alguns modelos para mostrar e vender aos seus clientes.

    Depois, era só aguardar os resultados e o inesperado tornava-se contagiante. As sapatarias compravam tanto calçado destas amostras especiais que, na maior parte das vezes, a existência destes produtos em armazém já não chegaria para as encomendas dos fabricantes que apostaram nesta aventura.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp.69 a 73

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 15)

     Entretanto, aconteceram alguns factos no quotidiano que vieram trazer um pouco mais de alento e ajudar na mudança deste ambiente tão pesado. O Licínio regressara do serviço militar e retomara o trabalho como encarregado numa fábrica de calçado na freguesia de Oliveira do Douro, concelho de Vila Nova de Gaia, podendo retirar do seu salário uma importância razoável para ajudar nas despesas da família. O Toninho terminara a instrução primária, embora andar na rua sem fazer nada tornar-se-ia numa grande aflição pelos perigos que espreitavam nas suas brincadeiras de criança. O que vale é que esta situação não se prolongaria por muito tempo, pois no princípio do ano de 1962 a mãe decidira pôr-lhe termo e metera os pés ao caminho para ir à fábrica onde trabalhava o seu filho Licínio pedir trabalho para o filho António.

     O patrão chamava-se Elias e recebera-a com uma grande alegria, não só por o Licínio ser um dos seus empregados preferidos, mas também por ter apreciado no António a sua inteligência nas respostas e a sua alegria na comunicação.

Elias não tinha filhos e é de crer que tivesse sentido um murmúrio na alma provocando-lhe um sentimento paterno.

     – O Rapaz fica já aqui! – respondera. – Vai almoçar à Luzia e será por minha conta! Deixe-o ficar, que eu vou fazer dele um grande homem!

     Com esta bondade expressiva terminara a aflição de Maria, que não queria ver o filho perdido pelos campos nem pelo rio, pois já não era a primeira vez que faltava à hora do almoço e a fazia percorrer longas distâncias à sua procura, estando tantas vezes o rio cheio e com correntes de meter medo.

     Começara como aprendiz de sapateiro, mas rapidamente fora colocado na experiência de trabalhos nas máquinas que transformavam os artefactos para o calçado. Aprendia com tanta facilidade que a estima dos operários se transformara em pressão sobre o irmão Licínio, para que este o colocasse junto de si para executar tarefas que permitissem que mais tarde viesse a ser um profissional especializado no setor da produção.

     Saía de casa todas as manhãs por volta das 7h00, carregando nas mãos uma lancheira com o almoço que a mãe fazia, enquanto ele se vestia e arranjava, para ainda estar fresco ao meio-dia para almoçar. Ganhar um pequeno salário e ser estimado por todos era como um prémio que lhe dava forças para caminhar, muitas vezes, com os pés encharcados de água ou com as mãos geladas de frio. Aliás, é com grande alegria que recorda os operários de quem fora aprendiz, pelo carinho que lhe deram, mas também por tanto terem insistido com o irmão para que este o pusesse a estudar à noite. Eram os operários que afirmavam com toda a franqueza que este menino poderia ter uma vida melhor, já que ele se revelava muito inteligente nas tarefas que desempenhava.

     – Senta-te à minha beira e vê como eu dou cola nestas solas, é o trabalho que vais fazer! – dissera-lhe com carinho o operário que começara a ajudar como aprendiz.

     – Não disse que tinha que ir buscar formas? – lembrara o António com preocupação.

     – Sim, mas só depois de acabarmos este serviço!... – respondera-lhe objetivamente o operário. Depois acrescentara com afeto: – O tempo de secar e colar tem que ser seguido e de modo alternado!

     – Ensinem este menino, que o patrão já lhe deu um prémio, quer que ele vá almoçar à Luzia e é por conta da casa! – entrando de rompante, ordenara com ar feliz o encarregado geral da fábrica.

     – Ele é inteligente, está a aprender bem! Vamos ter homem!... – exclamaram os operários que estavam mais próximos.

     – Só não percebo é porque é que o Licínio não o tira desta vida. Ele sabe o que é a vida de operário e não se importa que o irmão venha a ser um reles sapateiro?! – acrescentara um outro, com algum desconforto pela arte, apesar de ter funções mais técnicas.

     – O que estão para aí a cochichar?!... – indagara o Licínio, sem sombra de aborrecimento.

    – Estávamos a dizer que é uma pena que o seu irmão esteja a aprender esta profissão! – retorquira um dos operários mais velhos e que tinha maior confiança. – Você sabe que isto não é futuro!... O rapaz é tão inteligente, ele decora tudo e com tanta facilidade que é pena que não possa ir estudar para um dia ter melhor sorte do que nós!... E depois se ficar na oficina não virá a ser senão um operário com todos os sofrimentos que já nos bastam a nós.

    – Ele não ficará cá muito tempo, eu já ouvi o patrão a dizer que certamente ele iria para o escritório e se assim for eu hei de arranjar maneira de ele ir estudar à noite. – sossegara-os o Licínio com a sua preocupação. E depois, para rematar a conversa e reconhecer a partilha de afetos, concluíra: – Vocês têm razão, isto não é futuro e eu também sinto que ele merece melhor sorte, mas enquanto as coisas não mudam, terá que ser assim!...

     O grande entusiasmo do António na aprendizagem tocara o coração de todos, já que algum tempo depois de ter sido iniciado nos trabalhos de aprendiz fabril, o patrão propôs ao Licínio que o rapaz fosse experimentado nos serviços do escritório para ver como seria o seu jeito nesta nova função. Assim, num final de tarde e sem que nada o fizesse prever, dado que durante dois anos o António tornara-se num aprendiz exemplar, o Licínio chamou-o para lhe dar a novidade de que iria trabalhar no escritório. Sabe-se que, no intervalo do dia, telefonara à mãe, a quem contara a proposta que o patrão fizera. Dissera-lhe, também, para lhe vestir uma roupa melhor, pois como empregado de escritório teria que estar sempre mais arranjado.

     O Toninho ficara tão contente com esta nova oportunidade que se apressou a regressar a casa, para contar à mãe, o que afinal ela já sabia, pois, o Licínio era casado e maior, mas seriam os pais que teriam que autorizar a mudança.

     Quando chegou a casa vira nos olhos da mãe uma mistura de alegria e de tristeza, ela tinha tantas dores, por uma doença no útero, que lhe tiravam as forças e anunciavam o fim. Mesmo assim, lá fora indicando ao seu menino, que agora teria cerca de catorze anos, qual a roupa que deveria vestir no dia seguinte, ao mesmo tempo que preparava o jantar para ambos, já que o pai não tardaria a chegar e era preciso alimentarem-se.

     Depois da partilha desta alegria, António fora deitar-se com o reforço da satisfação pelo novo emprego, mas também pela melhoria do horário de entrada que agora seria meia hora mais tarde. Acordou já o sol rompia pela manhã, a sua mãe não o acordara como era costume e o silêncio da casa fazia augurar algo de muito triste. Levantara-se e chamara por ela, mas ninguém respondera. Olhara para o chão com tristeza e vira junto da cama em cima de uma cadeira um fato, uma gravata, uma camisa e aos pés um par de sapatos mais novos e meias a condizer; a sua mãe tinha sido modista de roupas de criança e ele continuara a ser o seu modelo. Ainda meio confuso e a pensar no que iria fazer, uma voz caridosa de uma vizinha entoara vinda de perto:

     – António, a tua mãe adoeceu durante a noite, foi na ambulância para o hospital! – exclamara com a voz entristecida – Veste a roupa que ela te deixou e vai depressa para o trabalho, não te atrases mais – dissera carinhosamente.

     Mais consciente da situação, saíra a correr para apanhar a primeira camioneta que passasse, já era bastante tarde e ainda por cima estaria em causa uma nova oportunidade na sua vida de adolescente. Tornar-se num empregado de escritório trouxera-lhe um sentimento de confiança e expectativa no futuro. Adivinhava que iria melhorar no estatuto, que iria ter mais aceitação dos amigos e das raparigas a quem já ia arrastando a asa. Sabia que profissionalmente também iria ganhar bastante mais. Tudo se conjugava para os seus sonhos, mas o senão de se sentir só haveria de ser uma triste recordação para toda a vida.

     Chegara ao novo emprego e já metade da manhã tinha passado. O seu irmão Licínio estava preocupado, ainda que soubesse o que sucedera à mãe antes de ele ter sabido pela vizinha, mas o tempo de atraso era tanto que chegara a temer que o patrão já não deixasse o irmão iniciar a nova experiência de escriturário.

     António batera na porta da frente e, ainda agitado pela correria, entrara no escritório e saudara os presentes com um pedido de desculpa por ter chegado atrasado. O patrão saudara-o começando por fazer uma pequena apresentação do escritório e da pessoa que iria ser o seu mestre na aprendizagem dos novos serviços. Ele sabia que o rapaz estava triste e a razão do seu atraso estaria mais que justificada. Com afeto e com uma voz elogiosa lá fora dizendo:

     – Faz tudo o que o Sr. José te ordenar, procura ter muita atenção e verás que isto não será difícil. Dentro de pouco tempo poderás ser um bom escriturário e se tiveres vontade poderás vir a ser um guarda-livros muito competente.

     – Muito obrigado, Sr. Elias – agradecera o rapaz comovido.

     Depois, lá foi sendo absorvido pelo som da máquina de escrever enquanto esperava que o Sr. José lhe indicasse o que iria fazer. Neste intervalo, olhara por entre a vidraça que separava o setor da costura e do corte das peças para o calçado, ao mesmo tempo que sentira que algo estaria a mudar na sua relação com a nova realidade; sentira que deixaria para trás o trabalho duro da experiência fabril. Como vindo dum sonho, despertara bruscamente ao ouvir a voz do Sr. José:

     – Vamos começar? – interrogara.

    – Sim! Vamos! – respondera de imediato.

    – Presta atenção ao seguinte – afirmara com um certo jeito. – Em primeiro lugar, teremos de começar pela caligrafia, melhorando-a, para poderes tirar faturas com boa apresentação. Para isso irei escrever algumas frases neste caderno para copiares com perfeição. Será um dos exercícios necessários, para obteres a caligrafia ideal e assim tirares uma fatura legível e apresentável.

     Seguiram-se, depois, outras indicações e avisos, até que chegara o meio-dia e com ele a hora de almoçar para quebrar o jejum em que se encontrava.

     Ao fim de dois anos, António transformara-se num empregado de escritório competente e com muitos conhecimentos destes serviços. Ganhara fama de bom empregado, trabalhador e assíduo, de tal maneira que noutras empresas congéneres não lhe faltariam oportunidades de ganhar mais, mas havia prometido à sua mãe que, enquanto fosse ela que decidisse, continuaria naquela fábrica, mesmo em questões de salário ou outras. E infelizmente assim fora, como prometera, até aos dezassete anos, pois antes de os completar a mãe falecera de um cancro no útero e a sua vida a partir dessa altura passara a ser mais orientada por si mesmo. Não gostava muito de ter de entrar às oito e meia da manhã, uma vez que noutras empresas os empregados de escritório entravam às nove horas; depois, com o falecimento da mãe, passara a ser mais controlado pelo Licínio, e isso era um grande obstáculo à sua liberdade de ação em todos os domínios, sobretudo porque começava a dar os primeiros passos para encontrar a jovem da sua primeira paixão. A mulher amada não estaria muito longe, mas isso só viera a sabê-lo uns meses depois de a mãe falecer.

     Estava na flor da idade e o fascínio da sua juventude e dos quase dezassete anos pareciam poder colorir a sua vida e alegrar a sua alma a conter o desgosto de ter perdido a mãe num mundo que começava agora a descobrir. Apeara-se na recordação do amor que recebera até ao dia em que soubera que fora o último, e desdobrara-se teimosamente no respeito ao pai e obediência ao irmão e mulher, pela proposta que o Licínio fizera para que se mantivessem unidos e vivessem juntos na sua casa, para poder olhar pelo pai e sobretudo para proteger e ajudar a crescer o António, aquele que continuaria na juventude e já como maior a ser o seu menino Tonito. Além disso, também tinha havido maior proximidade afetiva da sua mãe com a nora, a sua mulher, já que optara no momento de grande sofrimento e amargura, por escolher a sua casa e os seus cuidados depois de vir do Hospital para terminar em Paz os seus últimos dias. Ficaram, então, a viver juntos e, por aquela casa pequena e humilde, já se ouviam há alguns anos os risos e os gritinhos das crianças que começaram a nascer e que a avó ainda antes da doença terminal pegara ao colo e guiara pela mão quando de vez em quando lhes fizera uma visita.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 62 a 69

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 14)

    Entretanto, quando comunicaram ao rei do Egito que o povo fugia, o coração do Faraó e dos seus servidores mudaram a respeito do povo. Disseram: “Que fizemos deixando partir Israel que agora já não nos prestará serviço?!” O Faraó mandou atrelar o carro e pôs-se em marcha com o seu exército. Prepararam seiscentos carros escolhidos e todos os carros do Egito com os melhores combatentes. O Senhor endureceu o coração do Faraó, rei do Egito, que começou a perseguição aos filhos de Israel. Estes, porém, avançavam triunfalmente. Os egípcios perseguiram-nos e alcançaram-nos quando estavam acampados junto ao mar. Todos os cavalos dos carros do Faraó, os seus cavaleiros e o seu exército avistaram-nos em Pi-hahirot, em frente de Baalcefôn. Como o Faraó se aproximava, os filhos de Israel, erguendo os olhos, viram os egípcios a marchar contra eles. Esmagados pelo terror, invocaram o Senhor em altos brados e voltando-se contra Moisés, interrogaram: “Não havia sepulcros no Egito para que nos tenhas trazido para morrermos no deserto? Que foi que nos fizeste, tirando- -nos do Egito? Não te dizíamos no Egito: Deixa-nos servir os egípcios; era melhor sermos escravos dos egípcios do que morrermos no deserto?”. Moisés respondeu ao povo: “Não tenhais receio de nada. Tranquilizai-vos e vereis a vitória que o Senhor vai alcançar neste dia em nosso favor. Os egípcios que hoje estais vendo, não mais voltareis a vê-los. O Senhor combaterá por nós. Permanecei calmos”.

   Então, o Senhor, interpelando Moisés, exclamou: “Porquê esses gritos? Ordena aos filhos de Israel que se ponham em marcha. E tu, ergue a tua vara, estende a tua mão sobre o mar e divide-o para que os filhos de Israel possam atravessá-lo a pé enxuto. Eu vou endurecer o coração dos egípcios, para que entrem no mar atrás deles, e obterei uma gloriosa vitória sobre o Faraó e sobre todo o exército, os seus carros e os seus cavaleiros. Os egípcios ficarão a saber que Eu Sou o Senhor, quando o Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros fizerem resplandecer a Minha glória”. O anjo de Deus, que marchava à frente das hostes de Israel, mudou de lugar e foi para trás deles. a coluna de nuvem que os precedia foi colocar-se atrás deles entre o acampamento dos egípcios e o acampamento de Israel. De um lado iluminava a noite, e, do outro, a escuridão era absoluta. E os dois exércitos não puderam aproximar-se um do outro.

   Moisés estendeu a mão sobre o mar e o Senhor fustigou o mar com um impetuoso vento do oriente, que soprou durante toda a noite. Secou o mar e as águas dividiram-se. Os filhos de Israel desceram a pé enxuto para o meio do mar e as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda deles. Os egípcios perseguiram-nos, tendo todos os cavalos do Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros entrado no leito do mar com o objetivo de os alcançar. Na vigília da manhã, o Senhor olhou da coluna de fogo e da nuvem para o campo dos egípcios e lançou nele o pânico. Bloqueou as rodas dos seus carros, de modo que só dificilmente conseguiam avançar. Os egípcios ao ver o que lhes acontecera ficaram com medo e disseram: “Fujamos diante de Israel, porque o Senhor combate a favor deles contra o Egito”. Então, entre a força das partes que separavam a esquerda e a direita do mar, o Senhor em alta voz bradara a Moisés dizendo: “Estende agora a tua mão sobre o mar e as águas voltarão a reunir-se sobre os egípcios, os seus carros e os seus cavalos”. Moisés estendeu a mão sobre o mar e, ao romper do dia, o mar retomou o seu nível habitual; os egípcios, em fuga, foram de encontro a ele precipitando-se no meio do mar. Ao reunirem-se, as águas cobriram os carros, os cavaleiros e todo o exército do Faraó que tinha entrado no mar em perseguição dos filhos de Israel. Nem um só escapou. Mas os filhos de Israel tinham avançado a pé enxuto (pelo meio do mar), enquanto as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda deles. Foi assim que, nesse dia, o Senhor livrou Israel das mãos dos egípcios, os quais se encontravam mortos nas margens do mar. Israel reconheceu o grande poder que o Senhor tinha empregado contra os egípcios, e o povo acreditou no Senhor e em Moisés, seu servo.

   Depois deste prodígio, Moisés ordenou aos filhos de Israel que partissem do mar Vermelho e se dirigissem para o deserto de Sur. Caminharam durante três dias sem encontrar água. Chegaram a Mara, mas não puderam beber água, porque era muito amarga, daí o nome de Mara posto a este lugar. Perante esta aflição, o povo começou outra vez a murmurar contra Moisés, exclamando: “Que havemos de beber?” Moisés clamou então ao Senhor, que lhe indicou um madeiro. Aquele atirou-o à água tornando-a potável. Foi também ali que o Senhor deu ao povo leis e preceitos, e foi lá que o pôs à prova, pronunciando as seguintes palavras: “Se escutares a voz do Senhor, teu Deus, se fizeres o que for reto aos seus olhos, se cumprires as Suas ordens e se observares todas as Suas leis, não te infligirei nenhum dos males com que feri o Egito; porque Eu Sou o Senhor, Aquele que te restabelecerá”.

   Continuando o povo de Israel a caminhar, chegaram a Elim, onde havia doze nascentes de água e setenta palmeiras. Acamparam ali, junto da água, tendo depois toda a multidão dos filhos de Israel partido ao encontro do deserto de Sin, entre Elim e o Sinai. Era o décimo quinto dia do segundo mês após a sua saída do Egito. No deserto e com fome, toda a multidão começou a murmurar outra vez em altos brados contra Moisés e Aarão, dizendo-lhes: “Porque não fomos mortos pela mão do Senhor no Egito quando estávamos sentados diante das panelas de carne e comíamos pão à vontade? Trouxeste-nos para o deserto a fim de matar à fome todo este povo!”. O Senhor, sentindo a aflição do povo voltou-se para Moisés, falando-lhe novamente: “Vou mandar chover para vós pão do alto do céu. O povo sairá para recolher diariamente a quantidade necessária, a fim de o pôr à prova e ver se obedece ou não às Minhas ordens. No sexto dia, preparem-se para levar o dobro do que recolherem cada dia”. Moisés e Aarão falaram então aos filhos de Israel: “Esta tarde compreendereis que foi o Senhor quem vos fez sair do Egito, e amanhã de manhã vereis a glória do Senhor, pois ouviu as vossas murmurações contra Ele. E nós, que somos nós para murmurardes contra nós?” Moisés disse-lhes ainda o seguinte: “Esta tarde o Senhor dar-vos-á carne para comerdes, e amanhã pão com fartura, pois ouviu o que proferistes contra Ele. Mas nós, que somos nós? Não foi contra nós que murmurastes, foi contra o Senhor.” Depois, um pouco zangado com o povo, ordenou a Arão: “Diz a toda a assembleia dos filhos de Israel: Apresentai-vos diante do Senhor, porque Ele ouviu as vossas murmurações”. E, enquanto Aarão falava a toda a assembleia dos filhos de Israel, estando voltados para o lado do deserto, a glória do Senhor apareceu, de repente, na nuvem, comunicando a Moisés: “Ouvi as murmurações dos filhos de Israel. Por isso dir-lhes-ás: “Esta tarde, ao anoitecer, comereis carne, e amanhã saciar-vos-eis de pão. E, assim, ficareis a saber que Eu Sou o Senhor, vosso Deus”. Cumprindo a Sua palavra, o Senhor de tarde, fez aparecer codornizes que cobriram o campo, e, na manhã seguinte, havia uma camada de orvalho em volta do acampamento. Quando este orvalho se evaporou, apareceu à superfície do deserto uma coisa miúda, granulada, como saraiva caída na terra. Ao vê-la, os filhos de Israel perguntaram uns aos outros: “Que é isto?”, pois não sabiam o que era. Moisés respondeu-lhes: “É o pão que o Senhor vos dá para comerdes. O Senhor ordena o seguinte: Recolha cada um de vós o que for necessário para o seu sustento, à razão de um ômer por cabeça, e de harmonia com o número de pessoas que viva na mesma tenda…” Os filhos de Israel deram a esse alimento o nome de maná. Parecia-se com a semente de coentro, era branco e tinha o sabor de bolo de mel.

   Entretanto, vendo o Senhor que alguns não cumpriram o que lhes ordenara (não respeitaram o sétimo dia, que é o dia de sábado e dia de descanso consagrado ao Senhor, não respeitaram as quantidades diárias que poderiam recolher de pão), bradou com insistência a Moisés: “Até quando vos recusareis a cumprir os Meus mandamentos e as Minhas Leis? Vede, o Senhor deu-vos o sábado; por isso, no sexto dia, vos dará alimentação para dois dias. Permaneça cada um na sua tenda e que ninguém saia do sítio em que estiver no sétimo dia”. E, assim, o povo descansou no sétimo dia.

   Depois deste dia, o povo continuou a sua caminhada em direção ao Monte Sinai. No primeiro dia do terceiro mês, após a saída do Egito, os filhos de Israel chegaram ao deserto do Sinai, onde acamparam. Israel instalou-se aí, em frente do monte. Moisés subiu para Deus, e o Senhor chamou-o do alto do monte, dizendo: “Dirás o seguinte à casa de Jacob, anunciarás o seguinte aos filhos de Israel: Vistes o que fiz aos egípcios e como vos transportei sobre asas de águia para vos trazer até Mim. Doravante, se escutardes a Minha voz e se fordes fiéis à Minha aliança, sereis, entre todos os povos, uma propriedade Minha. Toda a terra Me pertence. Mas vós sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. São estas palavras que tu dirás aos filhos de Israel”. Moisés convocou os anciãos do povo e comunicou-lhes as palavras que o Senhor lhe ordenara para repetir. O povo inteiro respondeu: “Faremos tudo quanto o Senhor disse.”

   Algum tempo depois, Deus voltou a falar a Moisés, dizendo-lhe: “Vou aproximar-me de ti numa nuvem espessa a fim de que o povo se aperceba de que estou a falar contigo, e tenha sempre confiança em ti”. E para que o povo soubesse como proceder, chamou Moisés ao monte Sinai para ver o poder do Seu dedo que, através de chamas ardentes, escrevia em duas Tábuas os Dez Mandamentos que Moisés trouxera para ler ao povo:

 “– Eu Sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão. Não terás outro deus além de Mim.

  – Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma do que há em cima no céu, e do que há em baixo na terra, nem do que há nas águas debaixo da terra. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás culto; Eu sou o Senhor teu Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam; e que usa de misericórdia até mil (gerações) com aqueles que me amam e guardam os meus preceitos.

  – Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus.

  – Recorda-te do dia de sábado, para o santificar.

  – Honra o teu pai e a tua mãe.

  – Não matarás.

  – Não cometerás adultério.

  – Não roubarás.

  – Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.

  – Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem a sua mulher nem coisa alguma que lhe pertença.”

  (iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [Neste texto 4, a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

   Assim contara a história e recordara ao seu menino, naquela triste noite, estes factos bíblicos, assim também começara a amenizar-se a tristeza de não terem visto o filme “Os Dez Mandamentos”.

  Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 56 a 62.

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 13)

   Perante esta atitude, o Senhor ordenou a Moisés: “Estende a tua mão sobre o Egito para que os gafanhotos venham a esta terra, invadam o Egito e devorem toda a vegetação aqui existente, tudo o que o granizo deixou”. Moisés estendeu a sua vara e o Senhor fez soprar um vento do oriente naquela terra, durante todo esse dia e durante toda essa noite. Quando amanheceu, o vento do oriente tinha trazido os gafanhotos que se espalharam pelo Egito e pousaram sobre toda a extensão do seu território em tão grande quantidade que não houve nem haverá jamais semelhante invasão. Cobriram a superfície de toda a terra e esta tornou-se escura. Devoraram toda a vegetação e todos os frutos das árvores, tudo o que o granizo tinha poupado.

   O Faraó mandou imediatamente chamar Moisés e Aarão e, mostrando arrependimento, disse-lhes: “Pequei contra o Senhor, vosso Deus, e contra vós. Mas perdoai o meu pecado ainda esta vez e rogai ao Senhor, vosso Deus, que afaste de mim este flagelo mortal”. Moisés saiu de casa do Faraó e intercedeu junto de Javé. O Senhor fez soprar um vento do ocidente muito violento que arrastou os gafanhotos, precipitou-os no mar Vermelho, sem ficar um único em todo o território egípcio. Mas o Senhor endureceu o coração do Faraó e este não deixou (uma vez mais) partir os filhos de Israel.

   Em consequência de mais esta má atitude do rei do Egipto, seguiu-se a nona praga – as trevas, tendo para isso o Senhor falado a Moisés: “Estende a mão para o céu e haja trevas sobre todo o Egito, tão espessas que se possam apalpar”. Moisés estendeu, então, a mão para o céu, e durante três dias densas trevas cobriram todo o Egito. No decurso de três dias, não se viram uns aos outros e ninguém se mexia do lugar em que se encontrava. Mas os filhos de Israel tinham luz nas regiões por eles habitadas. Perante este facto, o Faraó mandou chamar Moisés e rogou-lhe: “Ide oferecer sacrifícios ao Senhor. Só permanecerão aqui as vossas ovelhas e os vossos bois. Os vossos filhos também poderão acompanhar-vos”. Moisés respondeu: “Tu próprio terás de colocar nas nossas mãos o que for necessário para oferecer os sacrifícios e os holocaustos ao Senhor, nosso Deus. Os nossos rebanhos virão também connosco, não ficará nem sequer uma rês, porque é dentre os nossos rebanhos que devemos escolher os animais para oferecermos em sacrifício ao Senhor, nosso Deus, e, enquanto lá não chegarmos, não sabemos quais serão as vitimas que ofereceremos ao Senhor”. Mas o Senhor endureceu o coração do Faraó, e o Faraó faltou à palavra e voltou a não deixá-los partir e, enfurecido, disse a Moisés: “Sai da minha casa! Livra-te de tornares a aparecer na minha presença, pois no dia em que voltares a estar diante de mim, morrerás!” Ao qual, Moisés replicou: “Assim o disseste. Não voltarei mais à tua presença.”

   E assim deu-se o anúncio da décima praga. Tendo o Senhor dito a Moisés: “Enviarei mais uma última praga sobre o Faraó e sobre o Egito, depois da qual não só vos deixará partir, mas expulsar-vos-á daqui. Dirás ao povo que cada mulher peça aos seus vizinhos objetos de prata e oiro”. O Senhor fez com que o povo achasse graça aos olhos dos egípcios. O próprio Moisés era muito respeitado no Egito, tanto pelos servidores do Faraó, como pelo povo em geral. Moisés, cumprindo depois o que Deus ordenara, disse: “assim falou o Senhor: Pelo meio da noite passarei através do Egito e todo o primogénito nascido no Egito morrerá, desde o primogénito do Faraó, que deveria ocupar o trono, até ao primogénito da escrava que faz girar a mó e todos os primogénitos dos animais. Elevar-se-á um clamor imenso em todo o país do Egito, um clamor tal como nunca houve antes e não mais haverá. Mas, entre os filhos de Israel nem mesmo um cão latirá, quer contra eles quer contra o seu gado; assim, ficareis a saber de que maneira o Senhor distingue os egípcios dos filhos de Israel. Então, todos os teus cortesãos aqui presentes virão ter comigo e prostrar-se-ão diante de mim, dizendo: Parte tu e todo o teu povo que te obedece! Então, depois disso partirei”. Após estas palavras e dominado por grande cólera, Moisés saiu da casa do Faraó. O Senhor dissera também a Moisés: “O Faraó não vos escutará, para que, assim, os Meus prodígios se multipliquem no Egito”. Moisés e Aarão realizaram todos estes prodígios na presença do Faraó, mas o Senhor endureceu o seu coração e ele continuou a não permitir que os filhos de Israel saíssem da sua terra.

   Com esta praga, deu-se a instituição da Páscoa. O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: “Este mês será para vós o primeiro mês, será o primeiro mês do ano. Dizei a toda a assembleia de Israel: No décimo dia deste mês, tome cada um de vós um cordeiro por família, um cordeiro por cada casa. Se a família for pouco numerosa para comer um cordeiro, comê-lo-ão em comum com o seu vizinho mais próximo, segundo o número de pessoas, tendo em conta o que cada um pode comer. Será um cordeiro sem defeito, macho e com um ano de idade; podereis escolher um cordeiro ou um cabrito.

   Guardá-lo-eis até ao décimo quarto dia deste mês: então toda a assembleia de Israel o imolará ao entardecer. Recolherão o seu sangue e espalhá-lo-ão pelas duas ombreiras e pela verga da porta das casas onde for comido. Nessa mesma noite, comer-se-á a carne assada ao fogo com pães sem fermento e ervas amargas. Não comereis dela nada que esteja cru ou cozido em água, mas somente assada ao fogo; comê-lo-eis com a cabeça, as patas e as entranhas. Não deixareis nada para o dia seguinte, e se ficar algum resto queimá-lo-eis. Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão. Comê-lo-eis apressadamente, pois é a Páscoa do Senhor.

   Nesta noite, passarei através do Egito e ferirei de morte todos os primogénitos nascidos no Egito, desde os homens até aos animais, e exercerei a Minha justiça contra todos os deuses do Egito, Eu, o Senhor. O sangue servirá de sinal nas casas em que residis. Vendo o sangue, passarei adiante, e não sereis atingidos pelo flagelo destruidor, quando Eu ferir a terra do Egito. Conservareis a recordação desse dia, comemorando-o com uma solenidade em honra do Senhor: celebrá-la-eis como uma instituição perpétua, de geração em geração. Durante sete dias, não haverá fermento nas vossas casas. Quem comer pão fermentado, desde o primeiro dia até ao sétimo, será excluído de Israel.

   A meio da noite, o Senhor matou todos os primogénitos do Egito, desde o primogénito do Faraó, herdeiro do seu trono, até ao primogénito do preso na masmorra, e todos os primogénitos dos animais. O Faraó ergueu-se durante a noite, assim como todos os seus servidores e todos os egípcios, e ouviu-se um imenso clamor no Egito, pois não havia casa alguma sem um morto. Nessa mesma noite, o Faraó mandou chamar Moisés e Aarão, e atormentado, suplicou-lhes: “Ide-vos, parti do meio do meu povo, vós e os filhos de Israel. Ide servir o Senhor como dissestes. Levai também as vossas ovelhas e os vossos bois, como pedistes, e parti! Implorai também por mim a bênção”.

   Os filhos de Israel partiram de Ramsés para Sucot, em número de cerca de seiscentos mil homens, sem contar com as crianças. Além disso, partiu com eles uma numerosa multidão de gente de proveniências diversas e grandes rebanhos de ovelhas e bois.

   Quando o Faraó deixou partir o povo, Deus não o conduziu pelo caminho da terra dos filisteus, que, no entanto, é o mais curto, pois Deus disse: “O povo poderia arrepender-se de ter partido quando se encontrar perante uma guerra, e regressar ao Egito. Então, Deus fez com que o povo se desviasse do deserto para o mar Vermelho. Os filhos de Israel saíram do Egito em boa ordem. Moisés levou consigo as ossadas de José, porque José fizera jurar os filhos de Israel, rogando-lhes: “Quando Deus vos visitar levareis daqui os meus ossos convosco. Partiram de Sucot, acamparam em Etam, na extremidade do deserto. O Senhor ia à frente deles; durante o dia, numa coluna de nuvem para os guiar no caminho; e, durante a noite, numa coluna de fogo para os iluminar, a fim de poderem caminhar de dia e de noite.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 51 a 56.

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 12)

      Perante esta aflição, o Faraó chamou Moisés e Aarão e disse-lhes: “Intercede junto do Senhor para que Ele afaste as rãs da terra do Egito e eu deixarei ir o vosso povo oferecer sacrifícios ao Senhor”. Moisés respondeu-lhe: “Fazei-me a mercê de dizer quando devo rogar por ti, pelos teus servidores e pelo teu povo, a fim de que o Senhor afaste as rãs de ti e das tuas casas, de modo a ficarem apenas no rio”. Ele volveu: “Amanhã”. E Moisés retorquiu: “Far-se-á como desejas, para saberes que ninguém é semelhante ao Senhor, nosso Deus. As rãs afastar-se-ão de ti, das tuas casas, dos teus servidores e do teu povo; ficarão apenas no rio.” Moisés e Aarão saíram da casa do Faraó e Moisés invocou o Senhor a respeito das rãs que tinha enviado contra o Faraó. O Senhor fez o que Moisés pedira: e as rãs morreram nas casas, nas praças e nos campos. Mas o Faraó, sentindo-se aliviado naquele momento, endureceu o coração e, como o Senhor tinha predito, não escutou Moisés e Aarão.

      Como o Faraó não cumpriu a promessa que fizera a Moisés e Aarão, Deus continuou a castigar o povo egípcio, enviando a praga dos mosquitos. O Senhor disse a Moisés: “Dize a Aarão: ergue a tua vara e fere o pó da terra, e transformar-se-á em mosquitos em todo o Egito. Assim fizeram e todo o pó da terra se transformou em mosquitos. Também os magos lançaram mão dos seus encantamentos para produzir mosquitos, mas não conseguiram. Os mosquitos continuavam sobre os homens e sobre os animais. Os magos disseram, então, ao Faraó: “Está aí o dedo de Deus”. Mas o coração do Faraó permaneceu endurecido.

     Seguiu-se, então, a quarta praga, a praga das moscas venenosas. O Senhor ordenou a Moisés: “Levanta-te de manhã cedo e apresenta-te ao Faraó quando ele sair para ir às águas. Dir-lhe-ás: Assim fala o Senhor: Deixa partir o Meu povo a fim de que Me sirva. Se recusares, enviarei moscas venenosas contra ti, contra os teus servidores, contra o teu povo e contra as tuas casas; as casas dos egípcios ficarão cheias de moscas venenosas, assim como a terra que eles habitam. Mas, nesse dia, abrirei exceção para a terra de Gessen, onde reside o Meu povo. Lá não haverá moscas venenosas, para saberes que Eu, o Senhor, estou presente nesta terra. Farei, portanto, distinção entre o Meu povo e o teu. É amanhã que este prodígio será realizado”. Assim fez o Senhor. Surgiu na casa do Faraó e nas dos seus servidores uma nuvem imensa de terríveis moscas, e todo o Egito foi assolado pelas moscas venenosas.    

     Então, o Faraó mandou chamar Moisés e Aarão, e disse-lhes: “Ide oferecer sacrifícios ao vosso Deus aqui nesta terra”. Moisés respondeu: “Não é conveniente que se proceda desta maneira, pois os sacrifícios que oferecemos ao Senhor, nosso Deus, seriam uma abominação para os egípcios. Se oferecermos, sob os olhos dos egípcios, sacrifícios que lhes são abomináveis, não seriam capazes de nos apedrejar? Iremos para o deserto, a três dias de caminho, e ofereceremos sacrifícios ao Senhor, nosso Deus, conforme a ordem que nos deu. O Faraó retorquiu: “Consinto em deixar-vos partir para oferecerdes sacrifícios ao Senhor, vosso Deus, no deserto; mas não vos afastareis demasiadamente. Rogai por mim ao Senhor”, ao qual Moisés respondeu: “Logo que me for embora da tua casa intercederei por ti junto de Deus, e amanhã as moscas venenosas retirar-se-ão do Faraó, dos seus servidores e do seu povo. Mas que o Faraó não continue a iludir-nos, recusando-se a deixar ir o povo para oferecer sacrifícios ao Senhor”. Logo que saiu de casa do Faraó, orou ao Senhor, que fez o que lhe pedira Moisés. As moscas venenosas afastaram-se do Faraó, dos seus servidores e do seu povo: não ficou sequer uma. Mas, ainda desta vez, o Faraó endureceu o coração, e não deixou ir o povo.

     Surgiu, por isso, a quinta praga – a peste dos animais. Contudo, antes da ação desta praga, o Senhor ordenou a Moisés que fosse ter com o Faraó e lhe dissesse, o seguinte: “Assim fala o Senhor, Deus dos hebreus: Deixa partir o Meu povo a fim de que Me sirva. Se te recusares, se persistires em detê-lo, a mão do Senhor cairá sobre os teus rebanhos que se encontram no campo, sobre os cavalos, os jumentos, os camelos, os bois e as ovelhas. Será uma peste de consequências terríveis. Contudo, o Senhor fará distinção entre o gado dos filhos de Israel e o gado dos egípcios, e não morrerá nada que pertença aos filhos de Israel”. O Senhor fixou o tempo, dizendo: “Amanhã, o Senhor fará isto na terra”.

     No dia seguinte, perante o silêncio do Faraó surgiu mais esta praga. O Senhor cumpriu com a Sua palavra e todo o gado dos egípcios morreu, mas não morreu um único animal dos filhos de Israel. Tendo o Faraó mandado informar-se verificou que nem um só animal dos rebanhos de Israel tinha morrido. No entanto, o seu coração continuou endurecido e não deixou partir o povo.

    Seguiu-se a sexta praga – as úlceras, tendo para o efeito o Senhor indicado a Moisés e a Aarão: “Enchei as vossas mãos de cinza de forno, e que Moisés a lance para o céu, de maneira que o Faraó veja. Transformar-se-á num pó que se espalhará por todo o Egito, e produzirá nos homens e nos animais úlceras e tumores. Deitaram, pois, cinza de forno e apresentaram-na ao Faraó. Moisés lançou-a para o céu, e produziu úlceras e tumores nos homens e nos animais. Os magos não puderam comparecer diante de Moisés por causa das úlceras, pois tinham sido atingidos, como, aliás, todos os egípcios. O Senhor endureceu o coração do Faraó que não escutou Moisés nem Aarão, como o Senhor tinha predito.

    Veio depois a sétima praga que surgiu sob a forma de granizo; porém, antes de ser lançada, o Senhor incumbira Moisés do seguinte: “Amanhã de manhã irás apresentar-te ao Faraó e dir-lhe-ás: Assim fala o Senhor, o Deus dos hebreus: Deixa ir o Meu povo a fim de que Me sirva. Porque, desta vez, irei desencadear todos os Meus flagelos contra ti, contra os teus servidores e contra o teu povo, para ficares a saber que ninguém é semelhante a Mim em toda a terra Se, de repente, Eu estendesse a mão e desencadeasse a mortandade sobre ti e o teu povo, terias desaparecido já da terra. Mas, se permiti que vivesses, foi para veres o Meu poder, e para que o Meu povo seja glorificado por toda a terra. Se persistires em ser um obstáculo à sua partida, amanhã a esta hora, farei chover granizo tão violentamente que nada houve de semelhante no Egito, desde a origem até ao presente. Coloca, portanto, em segurança, o teu gado e tudo quanto tiveres nos campos, pois todos os homens e todos os animais que se encontrarem nos campos, sem terem regressado a casa, serão atingidos pelo granizo e morrerão.

    Entretanto, entre os servidores do Faraó, aqueles que temeram a palavra do Senhor, mandaram recolher às suas casas os seus servos e rebanhos. Aqueles que não fizeram caso deixaram nos campos os seus servos e os seus rebanhos. Por mais esta recusa, o Senhor ordenara, então, a Moisés: “Estende a mão para o céu, a fim de cair granizo em todo o Egito, sobre os homens, sobre os animais e sobre toda a verdura dos campos”. Moisés estendeu a sua vara para o céu, e o Senhor enviou trovões e granizo, e o fogo do céu caiu sobre toda a terra. Choveu granizo e os relâmpagos misturavam-se ao granizo, tornando-se tão violento que nada houve de semelhante em todo o Egito. O granizo destruiu por todo o Egito, quanto havia nos campos, homens, animais, destruiu toda a verdura e quebrou as árvores. Apenas a terra de Gessen, onde viviam os filhos de Israel, foi poupada ao granizo.

    Constatando este flagelo, o rei mandou chamar Moisés e Aarão, manifestando a sua culpa, dizendo-lhes: “Desta vez confesso o meu pecado. O Senhor é justo; eu e o meu povo é que somos culpados. Rogai ao Senhor que acabe com os trovões e com o granizo e eu deixar-vos-ei partir, sem tentar reter-vos”. Moisés respondera: “Logo que sair da cidade, levantarei as minhas mãos para o Senhor. Os trovões terminarão e não haverá mais granizo para ficares a saber que a terra pertence ao Senhor. Moisés retirou-se da casa do Faraó e saiu da cidade. Ergueu as mãos para o Senhor, e os trovões e o granizo cessaram e a chuva deixou de cair sobre a terra. Vendo que a chuva do granizo e os trovões tinham cessado, o Faraó continuou a pecar e a endurecer o coração, continuando a não deixar partir os filhos de Israel.

    Perante este procedimento, Deus enviou a oitava praga – os gafanhotos. Porém, Moisés e Aarão foram ter novamente com o Faraó e com a indicação que Deus lhes dera, comunicando-lhe o seguinte: “Assim fala o Senhor, o Deus dos hebreus: Até quando recusarás curvar-te submissamente diante de Mim? Deixa partir o Meu povo, a fim de me oferecer sacrifícios. Se te opuseres a isso, trarei, amanhã, gafanhotos sobre toda a extensão do teu país. Cobrirão a superfície da terra até não poder ser vista. Devorarão o resto das colheitas que escaparam do granizo, devorarão todas as árvores que crescem nos vossos campos. Encherão as tuas casas, as casas dos teus servidores e as casas de todos os egípcios. Será uma tão grande calamidade, que os teus pais e os pais dos teus pais nunca viram igual desde que chegaram a esta terra”. Depois de Moisés se ter retirado da casa do Faraó, os servidores do rei do Egipto disseram-lhe, em lamentos: “Durante quanto tempo ainda este homem será causa da nossa desgraça? Deixa partir essa gente para oferecer sacrifícios ao Senhor, seu Deus. Não compreendeste ainda que o Egito caminha para a ruína?” Mandaram, então, Moisés e Aarão comparecer novamente diante do rei, que lhes disse: “Ide render culto ao Senhor, vosso Deus. Quais são os que devem partir?” Moisés respondeu: “Iremos todos, novos e velhos, com os nossos filhos e as nossas filhas, com as nossas ovelhas e os nossos bois, porque temos de celebrar uma festa em honra do Senhor.” O Faraó retorquiu: “Assim o Senhor esteja convosco como é certo que vou deixar-vos partir com os vossos filhos! Tende cuidado, porque não é com boas intenções que procedeis.” Mas, arrependendo-se do que tinha prometido, retorquiu de novo: “Não, não! Ide apenas vós, os homens, e oferecei sacrifícios ao Senhor, pois esse é o vosso desejo.” E, em seguida, foram afastados da presença do Faraó.

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 46 a 51.

(iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 11)

    Moisés apascentava todos os dias o gado do seu sogro Jetro, sacerdote de Madian. Um dia, conduzira o rebanho para além do deserto e subira ao monte de Deus: o Horeb. Neste monte, o Anjo do Senhor apareceu numa labareda, no meio de uma sarça que estava toda a arder mas não se consumia. Então, Moisés disse para consigo: “Vou aproximar-me e examinar esta visão extraordinária, vou saber por que razão esta não se consome!”. Deus viu que ele se tinha aproximado para observar, chamou-o do meio da sarça: “Moisés! Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. Depois, Deus disse-lhe: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é terra sagrada”. E acrescentou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”. Então, Moisés escondeu o rosto, pois não se atrevia a olhar para Deus. O Senhor, porém, continuou: “Eu vi a miséria do Meu povo no Egito e bem assim tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores. Conheço, pois, a sua dor. Estou decidido a libertá-lo das mãos dos egípcios e a conduzi-lo para uma terra fértil e espaçosa, uma terra que mana leite e mel, terra em que reside o cananeu, o heteu, o amorreu, o fezedeu, o heveu e o jebuseu. Agora, os gritos dos filhos de Israel chegaram até Mim e vi a tirania que sobre eles exercem os egípcios. Vai, envio-te ao Faraó, para que tires do Egito o Meu povo, os filhos de Israel”. Mas, como Moisés era muito humilde, disse a Deus: “Quem sou eu para ir ter com o Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito?” – Ao que Deus respondeu: “Eu estarei contigo; e o sinal de ter sido Eu que te envia é este: quando tirares o Meu povo do Egito, oferecereis sacrifícios sobre este monte”. Então, Moisés disse: “Quando eu for ter com os filhos de Israel e lhes disser que o Deus dos seus pais me enviou para junto deles, se me perguntarem qual é o Seu nome, que lhes responderei?” – Deus disse então a Moisés: “Responderás o seguinte: – Eu sou Aquele que sou”. E acrescentou: “Assim falarás aos israelitas: “Eu Sou envia-me a vós!” Deus ordenou ainda: “Dirás isto aos filhos de Israel: – Foi o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, que me enviou para junto de vós – Esse é para sempre o Meu nome, esse é o nome com que Me invocarão de geração em geração. Vai, reúne os anciãos de Israel e diz-lhes: – O Senhor, Deus dos vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, apareceu-me e disse-me: “Visitei-vos e vi como vos tratam no Egito”. Por isso resolvi: transferir-vos-ei da opressão do Egito para a terra dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus; para uma terra que mana leite e mel. E eles escutarão a tua voz!”

    Disse ainda: “Depois irás com os anciãos de Israel ter com o rei do Egito, e dir-lhes-ás: O Senhor, o Deus dos hebreus, apareceu-nos, permite-nos pois que, durante três dias, caminhemos através do deserto, para oferecermos sacrifícios ao Senhor, nosso Deus. Eu sei que o rei do Egito não vos autorizará a partir, se não for castigado por mão poderosa. Mas Eu estenderei a mão e castigarei o Egito com toda a espécie de prodígios que realizarei no meio deles. Depois deixar-vos-á partir. E farei que o povo ache graça aos olhos dos egípcios e, quando de lá sairdes, não partireis de mãos vazias. Cada mulher pedirá à sua vizinha e àquela que reside em sua casa objetos de prata, objetos de oiro e vestuário, que entregareis aos vossos filhos. E, assim, despojareis os egípcios”.

    Porém, Moisés voltou a lembrar: “Eles não me vão escutar, dirão que o Senhor não me apareceu”. Perante esta dúvida, o Senhor perguntou-lhe: “Que tens tu na mão?” Ele respondeu: “uma vara”. E o Senhor ordenou: “Deita-a ao chão”. E Moisés deitou-a ao chão e a vara transformou-se numa serpente, que, ao vê-la, Moisés fugiu. No entanto, o Senhor ordenou-lhe: “Estende a mão e agarra-a pela cauda”. Moisés estendeu a mão, agarrou-a, e a serpente voltou a ser uma vara na mão dele. “Farás todas estas coisas para que eles acreditem que o Senhor, o Deus dos seus pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, te apareceu realmente.” Depois prosseguiu, dizendo: “Mete a mão no peito”. E Moisés meteu-a como o Senhor lhe dissera, e, ao retirá-la, ela estava coberta de lepra, branca como a neve. Depois ordenara-lhe de novo: “Mete outra vez a mão no peito”. Voltou a metê-la e, quando a retirou, a mão tinha o anterior aspeto de carne. Disse-lhe, então: “Se eles não acreditarem em ti, e se a evidência do primeiro prodígio os não convencer, acreditarão na evidência do segundo. E, se nem mesmo acreditarem nestes dois prodígios, se não te quiserem escutar, irás buscar água ao rio e derramá-la-ás sobre a terra, e a água que fores buscar ao rio transformar-se-á em sangue na terra.”

    Contudo, Moisés manifestou mais uma vez a sua humildade, confessando ao Senhor: “Ah, Senhor! Mas eu não sou homem que facilmente use da palavra; nunca pude fazê-lo, nem ontem nem anteontem; e mesmo agora que estais a falar com o vosso servo, tenho a boca e a língua embaraçadas.” O Senhor retorquiu-lhe: “Quem deu boca ao homem? Quem faz o mudo, o surdo, o homem que vê e o cego? Não sou Eu, o Senhor? Vai, pois; Eu estarei contigo quando falares e ensinar-te-ei o que hás de dizer.” Mas, Moisés respondeu mais uma vez: “Ah! Senhor, dai esta missão a outro.” Então, o Senhor encolerizou-Se com ele, e disse-lhe: “Não existe Aarão, teu irmão, o levita? Eu sei que ele fala com muita facilidade. Aliás, ele vem precisamente ao teu encontro, e, vendo-te, o seu coração exultará. Falarás com ele, e colocar-lhe-ás as palavras na boca. Quando falardes, Eu estarei com a tua boca e com a boca dele, e ensinar-vos-ei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo, servir-te-á de boca, e tu serás como Deus para ele. Leva na tua mão essa vara, pois é com ela que tu realizarás os prodígios”.

    Moisés retirou-se, e, de volta a casa de Jetro, seu sogro, pediu-lhe: “Rogo-te que me deixes partir e regressar para junto dos meus irmãos que se encontram no Egito, para ver se estão ainda vivos”. Ao qual, Jetro respondeu: “Vai em paz”.

    No regresso ao Egito, o Senhor falou a Moisés em Madian, dizendo-lhe: “Vai de novo para o Egito, pois todos aqueles que procuravam a tua vida para te fazer mal já morreram”. Então, sem perder tempo, Moisés tomou consigo a mulher e os filhos, ajudou-os a montar num jumento e voltou para o Egito, segurando na mão a vara de Deus.

    Já no Egito, Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó, e disseram-lhe: “Assim fala o Senhor, o Deus de Israel: ‘Deixa ir o Meu povo a fim de celebrar uma festa em minha honra no deserto’.” Mas, o Faraó respondeu: “Quem é esse Senhor para que eu obedeça às Suas ordens, deixando ir Israel? Não conheço o Senhor e não deixarei ir Israel”. E eles retorquiram: “O Deus dos hebreus apareceu-nos. Deixa-nos ir ao deserto, durante três dias de caminho, para oferecermos sacrifícios ao Senhor e evitar, assim, que Ele nos fira com a peste ou com a espada”. Então o rei do Egito respondeu-lhes: “Moisés e Aarão, porque pretendeis desviar o povo do seu trabalho? Ide cumprir as obrigações a que estais sujeitos”. E acrescentou: “Esse povo é atualmente muito numeroso: que será se, por vossa causa, interromperem os seus trabalhos?”. E nesse mesmo dia, o Faraó deu a seguinte ordem aos inspetores do povo e aos capatazes: “Não mais fornecereis ao povo palha para fazer tijolos, como antigamente; que eles próprios a vão buscar. Exigir-lhes-ei a mesma quantidade de tijolos que antes, sem reduzir nem um só. Estão ociosos e por isso gritam: ‘Queremos oferecer sacrifícios ao nosso Deus.’ Carreguem essa gente com mais trabalho; que nele se ocupem e não deem ouvidos às mentiras que lhes vêm contar”.

    Perante o sofrimento do povo, Moisés voltou-se outra vez para o Senhor, e clamou: “Porquê, Senhor, fizestes mal a este povo? Porque me enviastes? Desde que fui falar ao Faraó em vosso nome, ele maltrata o povo, e Vós nada fazeis para o libertar”. O Senhor respondeu-lhe: “Verás, dentro em pouco, o que vou fazer ao Faraó. Coagido por uma poderosa mão, deixá-los-á ir; coagido por uma poderosa mão, ele mesmo os expulsará da sua terra”.

    Depois disse a Moisés: “Vê, vou fazer de ti um deus para o Faraó: e Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Dirás o que Eu te ordenar, e o teu irmão Aarão falará ao Faraó da sua terra para que ele deixe sair os filhos de Israel. Então, quando o Faraó vos disser: ‘Fazei um prodígio’, dirás a Aarão: ‘Pega na tua vara e lança-a diante do Faraó’, e ela transformar-se-á numa serpente”.

    Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó e fizeram o que o Senhor tinha ordenado. Aarão lançou a sua vara à frente do rei e dos seus servidores, e ela transformou-se numa serpente. O Faraó mandou, porém, chamar os sábios e os magos: e os magos do Egito fizeram o mesmo com os seus encantamentos. Atiraram todas as suas varas ao chão, que se transformaram em serpentes, mas a de Aarão devorou as outras. Todavia, como o Senhor tinha predito, o coração do Faraó endureceu-se e não deixou sair o povo de Israel.

    Perante esta atitude de recusa do rei do Egito, Deus lançou sobre o Egito dez pragas. A primeira consistiu na conversão das águas em sangue que poluiu os rios, matou os peixes e tornou a água potável imprópria para beber durante sete dias. a segunda foi a praga das rãs, pela qual toda a terra do Egito ficou infestada.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 41 a 46.

(iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

Caminho de Luz e Sombra

Caminho de Luz e Sombra (Texto 10)

    O Toninho, ainda a trautear as palavras do pai, exclamara: – Como são lindas as estrelas, Pai! Se calhar está ali a estrela do menino Jesus! – acrescentara ainda com o fascínio do que aprendera sobre o Natal.

    – Essa é outra realidade, de que te falarei noutra ocasião! Agora não temos tempo para explicações! – rematara o pai concluindo. – Já estamos a chegar a casa do homem. Reza para que ele tenha bilhetes para nos vender. Sem eles não poderemos ver o filme que há tanto tempo ouço dizer que é muito bonito!

    A partir desta altura, começaram a andar mais depressa, dando as mãos um ao outro enquanto subiam pela rua perpendicular ao carreiro, por onde tinham vindo, para chegarem até junto da porta onde morava o bilheteiro.

    – Boa noite! O senhor não sabe quem sou, mas eu sou familiar de pessoas que o senhor conhece bem e que são suas amigas! – exclamara o Amaral, em jeito de apresentação. – Olhe, por exemplo, o senhor não conhece o Zé “torneiro”? Ele é meu primo! – dissera com afeto. – Ele é um grande industrial da terra, não é? – interrogara, com solenidade.

    – Ah, sim! Sim, conheço-o muito bem! De facto é um industrial muito perfeito e muito respeitado na nossa terra – afirmara o bilheteiro em tom coloquial e a abanar a cabeça em sinal de concordância. Depois, mais desembaraçado nas palavras, perguntou: – Mas, qual é o problema que o traz a minha casa?

    – Desculpe por não saber a sua graça, embora ouça dizer muito bem do senhor – observou Amaral com deferência.

    – Mas o que é que o senhor deseja? – voltou a insistir, na expectativa do problema.

    – O meu nome é Amaral, e a razão que me levou a vir a sua casa foi porque prometi aqui ao meu rapaz que o levaria no próximo domingo ao cinema. Queria que víssemos o filme “Os Dez Mandamentos”, que vai ser exibido no Cine Teatro almeida e Sousa, onde o senhor é o responsável pela bilheteira. E como no domingo, com certeza, já não haverá bilhetes, apressei-me a vir comprá-los hoje antes que se esgotassem.

    – Oh! Meu caro senhor, mas eu já não tenho bilhetes, já estão esgotados! – exclamara o bilheteiro com alguma emoção.

    – Estão esgotados?! Mas ainda faltam alguns dias para a exibição do filme! – retorquira Amaral com grande tristeza.

    – Sim! Sim!... O senhor Amaral tem razão, mas as pessoas não largaram a bilheteira para fazerem a marcação de bilhetes para o próximo domingo. Aliás, já não vamos abrir a bilheteira ao público porque acabei de entregar os últimos bilhetes.

    – Queira desculpar, senhor, mas aqui para o meu rapaz não será possível arranjar-se pelo menos um bilhete? – suplicara emocionado. E acrescentara de seguida: – Viemos de longe com a ideia de que ainda não seria tarde, e afinal já não há bilhetes. Veja como o meu rapaz está tão triste, ele ainda é um menino; por favor, não o deixe ficar neste estado. – apelava o Amaral para o coração do bilheteiro.

    – Mas, senhor Amaral, se o senhor tivesse ido no domingo à bilheteira, também lhe arranjaria bilhetes como arranjei aos outros.

    Depois, como forma de partilhar da tristeza comum, exclamara:

    – Ainda por cima, sabendo agora quem é, e a que família pertence, fico com pena de não ter nenhum bilhete!

    – Que havemos de fazer senão lamentar a pouca sorte que tivemos! – desabafara Amaral com resignação. E, de modo repentino, despedira-se respeitosamente dando a mão ao seu menino, ao mesmo tempo que procurava conter-lhe as lágrimas, efetuando o movimento de descida em direção à perpendicular do caminho de regresso a casa. O Amaral olhava o céu, como a suplicar forças para a caminhada que, a partir daquela altura, já não fariam com a mesma alegria de quando saíram. Depois, com passo ligeiro e já recomposto, exclamara com mais otimismo:

    – Vamos, rapaz! Agora é preciso quando chegarmos a casa animar a tua mãe e prometer-lhe que quando voltar a ser exibido este filme eu comprarei os bilhetes a tempo! – E, sem deixar esmorecer o sentimento de compensação que procurava para a angústia que o invadia, começara a contar algumas passagens bíblicas sobre a saída dos hebreus do Egito, através das águas do mar Vermelho, em direção à Terra Prometida; afinal, começara a contar o que ouvira falar sobre a história do filme “Os Dez Mandamentos” e o que lera na Bíblia, especialmente durante o tempo em que tivera contacto com o Seminário.

    – Sabes, Toninho, muitos filhos de Israel e as suas famílias foram com Jacob para o Egito. (iv) Este povo hebreu tornara-se mais numeroso e mais poderoso que os egípcios. Por isso, o rei, tendo medo que os israelitas os destruíssem, ordenou aos seus chefes para os oprimirem com trabalhos muito duros, como, por exemplo, fazerem os tijolos de barro para construírem as cidades. Depois, não satisfeito com esta atitude, por o povo hebreu estar a aumentar cada vez mais, ordenara às parteiras, Séfora e Fua, que quando assistissem aos partos, se nascessem rapazes que os matassem e se fossem raparigas as deixassem viver. Como as parteiras não cumpriram a ordem dada, por serem tementes a Deus e terem conseguido enganar o Faraó, dizendo que as mulheres dos hebreus não eram como as dos egípcios, pois eram vigorosas e davam à luz mesmo antes de chegar a parteira, o Faraó dera a seguinte ordem a todo o seu povo: “Lançareis ao rio todas as crianças do sexo masculino que nascerem aos hebreus e deixareis viver todas as raparigas”.

    Ora, como tinha nascido naquela altura o menino Moisés, a sua mãe, que era filha de um hebreu que se chamava Levi, colocou o seu filho num cesto de vergas num canavial da margem do rio Nilo. a filha do Faraó, que não tinha filhos, estando a banhar-se no rio, avistou o cesto no meio do canavial e mandou buscá-lo pela sua serva. Quando abriu o cesto viu que era um menino a chorar. Teve pena dele e disse: “É um filho dos hebreus”.

    Então, a irmã do menino que acompanhava o cesto no canavial disse à filha do Faraó: “Queres que te vá procurar uma ama, entre as mulheres dos hebreus para criar este menino?” “Vai”, disse-lhe a filha do Faraó, e a irmã de Moisés foi buscar a sua mãe.

    A filha do Faraó disse-lhe, então, o seguinte: “Leva este menino. Amamenta-mo, e dar-te-ei o teu salário”. A mãe levou o menino e criou-o, e quando Moisés cresceu, entregou-o à filha do Faraó, como tinham combinado, tendo sido adotado por esta e lhe dado o nome de Moisés, “por ter sido tirado das águas”.

    Moisés fez-se homem e, certo dia, indo reunir-se com o povo, viu um egípcio a bater num hebreu. Após confirmar que ninguém se encontrava em redor, matou o egípcio e enterrou-o na areia. No dia seguinte, viu dois hebreus a brigar. Disse ao agressor: “Porque bates no teu camarada?” – E o homem respondeu: “Quem te nomeou chefe e juiz entre nós? – Queres matar-me como mataste o egípcio?” Moisés ficou amedrontado e pensou: “Portanto, não há dúvida de que o facto é conhecido”. Realmente, o Faraó soube do que se tinha passado, e mandou prender Moisés para o matar, mas este conseguiu fugir e foi refugiar-se na terra de Madian.

    Chegado a esta terra, sentou-se junto a um poço e adormeceu escondido entre os arbustos. Sem saberem da sua presença, as sete filhas do sacerdote de Madian foram tirar água do poço para levarem para casa e encheram também os tanques para darem de beber ao gado do pai.

    No momento em que tiravam a água, aproximaram-se alguns pastores que as obrigaram com violência a abandonar o poço. Moisés acordou com os gritos das raparigas que procuravam defender-se dos malfeitores. De imediato, pegou no cajado que lhe tinha servido para se apoiar e enfrentar os ventos do deserto e lançou-o contra os pastores para libertar as filhas do sacerdote.

    Como forma de pagar este gesto heroico de Moisés, o sacerdote convidou-o para comer com ele e a sua família, depois propôs que assistisse a algumas danças, acabando por ficar a viver com eles. Na sequência deste convívio, casou com Séfora, que lhe deu um filho, ao qual Moisés pôs o nome de Gerson.

    Decorrido muito tempo, morreu o rei do Egito, mas os filhos de Israel continuavam a viver na escravidão. Os lamentos e gemidos dos hebreus eram tão fortes e tão dolorosos que chegaram até Deus, o qual se compadeceu deles e lhes enviou Moisés como seu libertador.

 

   Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 36 a 41.

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 9)

    No entanto, apesar destas mudanças positivas na vida da família, outros factos negativos, não menos importantes, iam fazendo estragos no domínio psicológico e moral. Numa noite próxima da Páscoa, por volta das nove horas, Amaral lembrara ao seu menino a ida ao cinema, que lhe prometera na noite anterior:

    – Sossega, meu rapaz, que ainda não é hora de sairmos! – exclamara o pai com alguma irritação ao ver o seu menino andar ansioso ao redor da mesa. – Nós só vamos a casa do bilheteiro depois do jantar! Ainda é muito cedo para tanta preocupação! – Depois, acrescentara com cortesia:

    – Nós não devemos incomodar o homem antes das dez horas!... É preciso que tenha jantado bem e que esteja com boa disposição para conseguirmos os bilhetes. Vamos a casa dele esta noite, porque no domingo, no dia da exibição do filme, já não haverá bilhetes, certamente já estará tudo esgotado.

    Entretanto, nesta altura e já a falar mais com o coração, sussurrou-lhe baixinho:

    – Sossega um pouco mais, meu menino, porque sairemos de casa lá por volta das nove horas, pois apesar de o caminho não ser muito longo, pode ser que o bilheteiro nos atenda um pouquinho mais cedo.

    Com estas palavras, Amaral procurava também acalmar o seu Toninho, que esperara todo o dia por aquela ocasião para poder ver os bilhetes que lhe permitiriam ir pela primeira vez ao cinema.

    Esta ansiedade tornara-o inquieto e insistente; António não parava de dar voltas à mesa onde tinham comido a refeição de mais um dia.

    Chegada a hora, dissera o Amaral ao seu menino:

    – Vamos, comecemos a andar para estarmos em casa do bilheteiro antes das dez horas! Quero que sinta que temos uma grande vontade de comprar os bilhetes. um para mim, outro para a tua mãe e outro para ti. Compraremos bilhetes para a plateia, para podermos estar mais sossegados, pois os lugares do geral são mais baratos, mas são mais barulhentos. Eu juntei dinheiro para esta ocasião e também não quero que estejamos no meio da confusão que há quase sempre na geral.

    António deveria ter nesta altura dez anos de idade, estaria a acabar a instrução primária, mas nunca pudera sair do espaço entre a sua casa e a escola, que distavam entre si três quilómetros. O seu desenvolvimento e crescimento não tinham passado para além dos jogos do pião, dos jogos de futebol e da pescaria no rio Febros, que corria no leito a jusante da casa onde viviam.

    Algum tempo depois de iniciarem a caminhada, o Toninho perguntara ao pai:

    – Que filme vamos ver? É como nos livros de cowboys que eu leio dos assaltos às diligências ou dos ataques dos índios? – insistira com curiosidade, porque também era grande a alegria de ir pela primeira vez ao cinema.

    – Não é nada disso, rapaz! – respondera-lhe o pai com alguma intolerância. – É o filme dos Dez Mandamentos: – Amarás o Senhor Teu Deus acima de todas as coisas. – Honrarás o teu pai e a tua mãe. – Não matarás. – Não roubarás. – Não dirás falso testemunho… É um filme que conta a história do povo de Israel e que mostra como o príncipe Moisés recebeu as Tábuas das Leis com os Dez Mandamentos escritos pelo dedo de Deus. E mostra como Moisés guiou o povo hebreu da saída do Egito a caminho da Terra Prometida.

    Com esta explicação, fez-se silêncio entre ambos, enquanto caminhavam lado a lado pelo carreiro estreito, criado pelas passadas de homens e mulheres que o percorriam para chegarem ao rio Douro e apanharem o barco que os transportava até à cidade para fazerem compras ou ganharem o pão de cada dia; também era delineado por todos aqueles que o utilizavam para trabalhar nos campos ou fazer compras nas pequenas lojas que ficavam mais perto de sua casa. Neste silêncio percorreram uma boa parte do caminho, mas, ansiosos pelo desejo de comprar os bilhetes, Amaral e o seu menino puseram-se a tagarelar sobre os mistérios da noite:

    – Oh! o céu está cheio de estrelas! – exclamara o Toninho, admirado.

    – Sim, hoje está uma linda noite, uma noite de luar – respondera-lhe o pai. – São tantas as estrelas e estão tão brilhantes que apetece agarrá-las! – Depois, acrescentara com maior admiração: – Vês aquelas, ali em cima? Formam a constelação da Ursa Maior!

    – O que são constelações? – perguntara o menino com curiosidade.

    – As constelações são grupos de estrelas. A Ursa Maior é aquela ali em cima – apontando como se estivesse um pouco para além dos seus olhos. – Ela tem sete estrelas, quatro que formam um quadrilátero e três que formam uma linha a servir-lhe de cauda.

    De seguida, continuara a explicar em jeito professoral e recordando o que aprendera na escola e no Seminário quando estudara com o primo Manecas que chegara a Juiz Conselheiro: – As constelações [iii] são grupos de Estrelas que formam uma figura e a que se dá um nome especial, por isso a Ursa Menor e a Ursa Maior são dois desses grupos que com outros, como Orion, Cassiopeia e Pegasus enchem o Céu de Luz.

 


[iii] Torrinha, Francisco. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Editorial Domingos Barreira, Porto, 1977.

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp.30 a 36

 

Path of Light and Shadow (Text 9)

However, despite these positive changes in the family life, other negative facts, not less important, were making damages in the psychological and moral domains. On a night near Easter, around nine o’clock, Amaral reminded his little boy the journey to the cinema, which he had promised the night before:

– Calm yourself down, my boy, since it isn’t time to go yet! – exclaimed the father with some irritation by seeing his little boy running anxiously around the table. – We’ll go to the box-office clerk only after dinner! It is still very early for such a worry! – Then, he added with courtesy:

– We should not bother the man before ten o’clock!... It’s necessary that he had dined well and that he is in a good mood for us to get the tickets. We’re going to his house tonight, because Sunday, on the day of the movie screening, there will be no more tickets, certainly it will be everything already sold out.

Meanwhile, by this time and speaking more with the heart, he whispered him:

– Calm yourself a bit more, my little boy, because we’ll go out home around nine o’clock, since although the way isn’t very long, it may be that the box-office clerk will answer us a little early.

With these words, Amaral sought also to quiet his Toninho, who had waited all day for that occasion to be able to see the tickets that would allow him to go for the first time to the cinema.

This anxiety made him unquiet and insistent; António did not stop turning around the table where they had eaten the meal of one more day.

 When the time came, Amaral told his little boy:

– Let’s go, let’s start walking to get the box-office clerk's house before ten o’clock! I want him to feel that we have a great will to buy the tickets. One for me, another for your mother and another for you. We will buy the tickets to the main level, so that we’ll be able to stay quieter, since the seats of the generic are cheaper but they’re noisier. I have saved up for this occasion, and I also do not want us to be in the middle of confusion there is almost always in the generic.

António should be ten years old by this time, he would be finishing primary education, but he had never been able to leave the space between his house and the school, which were three kilometers [about two miles] apart. His development and growth had not passed beyond the top [toy], the soccer games and the fishery on river Febros, which flew on the bed downstream of the house where they lived.

Some time after they had started the walk, Toninho asked his father:

– What movie are we going to watch? Is it like in the cowboys’ books that I read about the assaults to the stagecoaches or the Indians’ attacks? – he insisted with come curiosity because it was also great the joy of going for the first time to the cinema.

– It’s none of that, boy! – the father answered with some intolerance. – It’s the Ten Commandments movie: – You shall love the Lord thy God above all things. – Honor your father and your mother. – You shall not murder. – You shall not steal. – You shall not give false testimony against your neighbor… It’s a movie that tells the story of Israel’s people and that shows how Prince Moses had received the Tablets of the Law with the Ten Commandments written by God’s finger. And it shows how Moses had guided the Hebrew people from the way out of Egypt and on the way to the Promised Land.

With this explanation, silence was made between both, while they walked side by side through the footpath, created by the steps of men and women who covered it to get at river Douro and to catch the boat that transported them to the city to shop or to win the everyday bread; it was also demarcated by those who used it to work in the fields or to go shopping in the small stores that were closer their homes. In this silence they covered a good part of the path, but, eager for the desire of buying the tickets, Amaral and his little boy started chattering about the mysteries of the night:

– Oh! the sky is full of stars! – exclaimed Toninho, amazed.

– Yes, tonight is a beautiful night, a moonlit night – the father replied to him. – The stars are so many that it feels like grabbing them! – Then, he added with greater amazement: – Do you see those, up there? They form the Ursa Major constellation!

– What are constellations? – the boy asked with curiosity.

– Constellations are groups of stars. Ursa Major is that one up there – pointing as if it was a bit beyond his eyes. – It has seven stars, four that form a quadrilateral and three that form a line that serves as a tail.

Then, he continued to explain in a professorial way and remembering what he had learned in school and the Seminary when he studied with cousin Manecas, who came to be Judge Counselor: – Constellations [iii] are groups of stars that form a figure to which you give a special name, therefore Ursa Minor and Ursa Major are two of those groups that with others, like Orion, Cassiopeia and Pegasus fill the Sky with Light.

 


[iii] y of the Portuguese Language. Editorial Domingos Barreira, OTorrinha, Francisco. New Dictionarporto, 1977.

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 33 to 36.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 8)

    Perante este desafio, alguém se apressou a participar o sucedido ao Zé Damas e aos seus amigos. Em face disto, e como estes homens tinham fama de não ser covardes, combinaram entre si como deveriam atacar os provocadores. O Neca Guerra, se não falha a memória, montou numa bicicleta e veio na frente para se certificar onde estavam os forasteiros, indo depois combinar com os companheiros a melhor forma de atacar os malfeitores. Talvez por volta das dez e meia da noite, assomou à porta da venda do senhor Soares o Neca Guerra, que os desafiou cá para fora. Nessa altura, os forasteiros já tinham bebido o suficiente e o discernimento já não era o melhor, pegaram nas facas e saíram sem proteção para o confronto. ainda não tinham posto o pé na rua e já um fueiro caía sobre a primeira cabeça, ouvindo-se um estalido como se fosse de uma pequena bomba de carnaval; depois foi um tal malhar conforme iam saindo e ficando atordoados. Valeu a espingarda do representante do regedor que fez soar dois tiros para o ar, que afugentou os curiosos e terminou a pancadaria.

    Por volta de 1957, já trabalhavam pai, mãe e os filhos mais velhos, já entrava em casa o dinheiro suficiente para viverem uma vida digna e com a possibilidade de Maria fazer o que pensara quando começou a trabalhar no ateliê da Olivinha – deixar o emprego e tratar do seu mais pequenino. Para ela, este fora um momento de tristeza por deixar o trabalho, as colegas e a patroa que tanto estimara e ficara sempre reconhecida. Mas, era preciso tomar conta do menino, porque a idade da escola primária estava a chegar e era preciso fazer tudo para que não acontecesse o mesmo que acontecera ao Fernando, que não chegara a concluir a instrução primária.

    Nas horas vagas da tarde e sempre que lhe pediam, ia trabalhar na costura para casa das pessoas que estimava. A vida começava a sorrir e a felicidade de ambos estendia-se a toda a vizinhança. Maria era sincera e amiga de todos, estava sempre preparada para ajudar alguém que precisasse dos seus serviços ou a pedir aos seus para que o fizessem também.

    Ainda a morarem nesta mansarda, onde já não faltava o carinho e amizade das crianças com quem o Toninho brincava e dos seus pais, que eram os donos da propriedade, nem faltava o suficiente para viver e até dar a quem precisava, surgiu a Guerra Colonial; corria o ano de 1961. Três anos antes, Licínio assentara praça e começara a cumprir o serviço militar em Vendas Novas; tivera a sorte de passar à disponibilidade sem que a Guerra Colonial tivesse surgido. No entanto, com este conflito bélico, começaram a ser enviadas a maior parte das tropas no ativo para combater nas colónias, e como o Licínio tinha habilidade para a condução, fora chamado na situação de disponibilidade, para instruir condutores que na maior parte dos casos partiriam depois para o Ultramar.

    Este facto assustara-o imenso, pois não era certo que não tivesse de ir também para o ultramar, para uma das colónias onde as tragédias vinham bater às portas das pessoas e a todas as terras de Portugal. Foram milhares de militares que tombaram trespassados pelas balas ao lutarem pela defesa colonial. Mas, Licínio lá foi passando o tempo por cá até que o Exército o dispensou e não mais o voltaria a chamar.

    Neste preâmbulo, o Toninho tinha começado a frequentar a escola primária de Cabanões. Começava nesta altura a sua educação mais profunda e, tal como um pequeno pássaro, começava também a ganhar mais sentido de orientação e força para voar, começava a percorrer outras distâncias e a deixar ambientes para guardar na sua recordação. A neve pela manhã começava agora a fazer doer as mãos e as personagens dos seus jogos já não eram como dantes; os pais, com quem brincava e que aborrecia, já não eram os únicos na sua vida. Só os intervalos de tempo, em que não havia deveres para fazer ou recados para executar, lhe permitiam de novo viver e jogar com os sentimentos do tempo e da alegria de ser somente ele a brincar como queria. Entretanto, até esses raros momentos de liberdade estavam já carregados de perturbação; os deveres que não sabia para aprender na escola, o beijo que não lhe davam, o ralho e o medo com que o inspiravam na revolta do coração ou nos carinhos que já não estavam nas lágrimas que chorava. Tudo isto tornava-se nas sementes de outros “espinhos”, que haveria de sentir mais tarde quando tivesse a idade e o poder para abrir outras janelas e percorrer outros caminhos. O Fernando trabalhava como serralheiro na UTIC, vendendo nas horas vagas roupas, relógios e objetos de ouro, que lhe davam bastante lucro para poder guardar para a sua ida para a tropa, que já se aproximava, e para o casamento que também estava prestes a acontecer. Por sua vez, Maria passava o tempo a correr atrás do carteiro ao longo dos campos, pois já não era a primeira vez que ele levava de volta a carta do filho Licínio por ela não o ouvir chamar do fundo do caminho ou por outra razão qualquer. A carta e as notícias que traziam eram a consolação para o seu coração.

    Entretanto, durante algumas tardes, Maria fora trabalhar para a Senhora Maria Pinheiro, uma alma bondosa que tinha bastante idade, que a tratava tão bem que, apesar de já não ter grandes necessidades económicas, gostava muito de costurar para ela. Numa das tardes, esta senhora quis prendá-la com a cedência da sua casa, mediante o pagamento de uma renda entretanto combinada, visto sentir-se doente e ter de ir para casa de um familiar. Era uma casa grande, com todas as condições para a época, uma moradia com rés-do-chão e 1.º andar, com um grande quintal, cheio de árvores de fruto, o que permitia que toda a família vivesse à vontade e com um pouco mais de dignidade.

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 30 a 33.

Path of Light and Shadow (Text 8)

In the face of this challenge, someone hastened to transmit the incident to Zé Damas and his friends. In the face of this, and since these men had the fame of not being cowards, they agreed between themselves how they should attack the provokers. Neca Guerra, if I remember correctly, mounted on a bike and came in the front to make sure of where the outsiders were, going after to settle with the companions the best way to attack the evildoers. Maybe around half past ten at night, Neca Guerra showed up in the offing of Mr. Soares’ tavern and defied them to the outside. By that time, the outsiders had already drunk enough, and discernment was no longer the best, they took the knives and went out without protection to the confrontation. They had not yet put their feet outside, and an oxcart stake already fell over the first head, and a crack was heard as if it were from a little carnival bomb; then it was such a beating as they were coming out and getting stunned. It was worth the rifle of the chairman’s representative that made sound two shots up to the air, which scared away the curious ones and ended the pounding.

By 1957, the father, the mother and the oldest sons were already working, it entered now enough money so that they could live a decent life and with the possibility of Maria doing what she had thought when she began to work at Olivinha’s atelier – to leave the job and to take care of her littlest one. For her, this was a moment of sadness for leaving the work, the colleagues and the employer who she esteemed so much and who was always grateful. But it was necessary to take care of the little boy, because the age for elementary school was coming, and it was needed to do everything so that it did not happen the same it happened to Fernando, who did not come to finish primary education.

In the afternoon spare time and whenever she was asked, she went to work in sewing to the house of the people she esteemed. Life was beginning to smile and the happiness of both extended to all the neighborhood. Maria was sincere and friend of everyone, she was always prepared to help someone who needed her services or asking her family ones to do it too.

Still living in this poor house, where no longer lacked the kindness and the friendship of the children with whom Toninho played and of his parents, who were the owners of the property, nor it lacked enough to live and even to give to who needed, the Colonial War broke out; it was the year of 1961. Three years before, Licínio enlisted and had begun to do his military service in Vendas Novas; he had the luck to pass to the military reserve without the Colonial War having broken out. However, with this warlike conflict, the most of the active troops started to be sent to combat in the colonies, and since Licínio had the ability to drive, he was called in the availability situation, to instruct drivers who, in the majority of the cases, would leave to the overseas possessions.

This fact had frightened him very much, since it was not certain that he would not have to go also to the overseas territories, to one of the colonies where the tragedies came knocking on peoples’ doors and to every land of Portugal. They were thousands of soldiers who bit the dust trespassed by the bullets when they were fighting for the colonial defense. But Licínio was passing the time around here until the Army dispensed him and would no longer call him.

In this preamble, Toninho had begun to attend the elementary school of Cabanões. It began by this time his most profound education and, like a little bird, he began to get more sense of orientation and strength to fly, he began to cover other distances and to leave environments to keep in his remembrance. In the morning, snow started to make the hands hurt, and the characters of his games were no longer as before; the parents, with whom he played and who he nagged, were no longer the only ones in his life. Only the time intervals, during which there was no homework or errands to do, allowed him to live and play again with the feelings of time and of the joy of being only him playing as he wanted to. Meanwhile, even those rare moments of freedom were so loaded of disturbance; the homework he did not know to learn at school, the kiss someone did not give him, the reprimand and the fear with which others inspired him within the revolt of the heart or in the fondling that was no longer in the tears he cried. All this became the seeds of other “thorns”, which he would feel later when he had the age and the power to open other windows and to walk other paths. Fernando worked as an automobile blacksmith in the UTIC, selling in his spare time clothes, watches and gold objects, which gave him enough profit to be able to spare for his departure to the military service, which was already coming, and for the wedding, which was also about to happen. In turn, Maria passed the time running after the mailman through the fields, since it was no longer the first time he took back the letter of her son Licínio, because she did not hear him calling from the end of the track or for some other reason. The letter and the news they brought her were the consolation for her heart.

Meanwhile, during some afternoons, Maria had gone to work for Mrs. Maria Pinheiro, a kind soul who was quite old, who treated her so well that, despite she did no longer have great economic needs, she liked very much to sew for her. In one of those afternoons, this lady wanted to offer her the concession of her house, through the payment of a rent meanwhile settled, given that she felt sick and needed to go to a parent’s home. It was a big house, with all the conditions for that time, a detached house with a ground floor and a first floor, with a big backyard, full of fruit trees, which allowed that all family lived at ease and with a bit more dignity.

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 30 to 33.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 7)

    Mas a sorte continuava a turvá-los com os reveses que os atormentavam de novo. O casal e os filhos mais velhos não podiam cuidar do menino durante o dia e não havia maneira de encontrar uma pessoa que tomasse conta dele para que o filho Fernando pudesse dar continuação à aprendizagem escolar e terminar a 4.ª classe. Por outro lado, Maria saía de casa com o coração nas mãos, porque o seu rapaz era ainda uma criança que precisava de carinhos como o irmão a quem lavava no ribeiro para lhe tirar a sujidade. Maria entrava no ateliê com lágrimas nos olhos e cosia as roupinhas das crianças que as haviam de vestir, desejando com amor que não vivessem na mesma penúria. Assim ia passando os dias e confidenciando aos vizinhos as dificuldades que tinham, conforme se tornava mais conhecida na localidade. Por esta simplicidade no contar das aflições foi ganhando a confiança das famílias daquele lugar, de tal modo que algumas pessoas começaram a oferecer-se para ajudar, para tomar conta do seu menino durante as horas em que ela e toda a família estivessem fora de casa. No valor de todas as vontades, deve destacar-se, por uma razão vital, a vontade da dona Rosa Lazeira, que fazia questão de ajudar de qualquer modo, embora não pudesse ficar com a criança, porque o seu marido sofria de tuberculose e não queria que o menino viesse a sofrer também de tal doença.

    Espalhada pela comunidade a dificuldade de encontrar quem tomasse conta da criança, logo surgiram outras famílias a oferecer-se para ajudar, a Ti Chica, a família do Buer e a Ti Luzona. Foi esta última que mais tempo dedicou a cuidar do menino. Era uma família de trabalho e de grande respeitabilidade na terra. A Ti Luzona era uma mulher alta e destemida. Andava sempre com uma chibata na mão para tocar nos objetos estranhos que apareciam na rua ou para raspar nas orelhas daquele que fosse mais malandro. Vestia saias quase até aos pés, que a tornavam aparentemente ainda mais alta e mais austera. A sua figura contrastava com a do seu marido, que era um homem de coração tão grande e tão bondoso como o dela, mas muito mais baixo de estatura, ainda que mais atraente no olhar.

    O Toninho chamava-lhe a “mãe Luzona”, recebera um carinho tão semelhante ao que a mãe lhe dava que dificilmente a esqueceria. O Silvino, um dos filhos deste casal, era ferreiro e todos os dias de manhã chamava o Toninho para lhe fazer companhia nos trabalhos da forja. Ensinara-lhe a dar com jeito à manivela para que o ferro ficasse em brasa, depois, com o suor a escorrer-lhe pelo rosto, retirava o ferro do fogo, mergulhava-o por instantes na água e com uma cantilena a acompanhar martelava-o até ficar na forma que pretendia: picão, cinzel, um objeto de trabalho, conforme as encomendas que tinha. De tarde, a “mãe Luzona” dava a ambos um bom almoço, um prato bem cheio, dizendo que quem não era para comer também não era para trabalhar.

    Ao Toninho, depois do almoço, dava-lhe umas sopas de vinho e mandava-o dormir uma boa hora de sono. Dizia que era preciso fortalecer o rapaz, e as “sopas de burro cansado”, nome popular destas sopas, eram para ela o melhor remédio para o fortalecer.

    Já homem, o António ainda lembrará o amor com que esta mulher o tratara e a educação que lhe dera durante os anos em que estivera à sua guarda. A “mãe Luzona” não distinguia o amor aos filhos do amor a este menino.

    Entre os recados que fazia para ela, as brincadeiras com os amigos no largo das Menesas e o aconchego da família à noite, Toninho crescia nesta pureza de ambientes. O rio Febros e os campos de milho para a farinha ou de erva para o gado tornavam-se nos fatores estruturais da sua socialização. Aliás, o largo das Menesas era o ponto central do lugar, pois para lá convergiam a maior parte das pessoas que queriam encontrar-se na mercearia e venda de comes-e-bebes do senhor Soares. As crianças brincavam no largo, ao picão, à bugalhinha ou a jogar à bola, comprando de vez em quando castanhas, um pirolito ou um arranca-dentes à Ti Sisma, que era uma senhora que gostava muito das crianças da terra. Ao redor do largo, moravam alguns lavradores, onde de vez em quando havia festas com danças nos terreiros ou nas eiras, como nas festas das desfolhadas em que se juntavam as mais belas moças do lugar que eram disputadas no amor pelos jovens mais aventureiros.

    Também surgiam, às vezes, alguns desacatos, com alguns murros à mistura, mas rapidamente sossegados pela autoridade do regedor ou do seu representante. Só uma vez, numa noite de verão a situação foi mais complicada. Não era a primeira vez que vinham de outras freguesias homens que tinham fama de serem desordeiros, que com a sua chegada assustavam um pouco as gentes do lugar, principalmente as crianças, que fugiam a sete pés.

    Numa noite de verão, começou a constar-se que viriam alguns homens do lugar de Lijó, da freguesia de Vilar de Andorinho, para se baterem com o Zé Damas, o Neca Guerra e outros que também não eram fáceis de acomodar. Deveriam ser nove e meia da noite, quando chegaram ao lugar montados em bicicletas três desses forasteiros. Ao que parece, um deles tinha o nome de Gaudêncio e foi o primeiro a colocar em cima da mesa na loja do senhor Soares uma das facas de matar porcos que trazia. E, ainda antes de ter sido servido de um copo de vinho que tinha pedido, começara em altos berros a desafiar para a luta alguns dos nomes referidos.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 27 a 30.

 

Path of Light and Shadow (Text 7)

 

But luck continued to trouble them with the misfortunes that tormented them again. The couple and the oldest sons could not take care of the little boy during the day, and there was no way of finding a person who looked after him, so that the son Fernando could give continuation to the school learning and finish the 4th grade. On the other hand, Maria went out home with her heart in her hands, because her boy was still a child who needed tenderness like the brother whom she washed in the stream to take him the dirt. Maria entered the atelier with tears in her eyes and she sewed the clothes of the children who would dress them, wishing with love that they did not in the same penury. And so she was passing the days and disclosing to the neighbors the difficulties they had, as she was getting more known in the locality. Due to this simplicity when she was telling the afflictions, she was earning the trust of the families of that place, such that some people began to offer themselves to help, to take care of her little boy during the hours in which she and all the family were out of home. Within the value of all the wills, it should be pointed out, for a vital reason, the will of Mrs Rosa Lazeira, who insisted on helping anyway, even though she could not stay with the child, because her husband suffered from tuberculosis, and she did not want that the little boy came to suffer from such disease too.

Spread by the community the difficulty of finding someone who took care of the child, soon other families appeared offering themselves to help: Aunt Chica, Buer’s family, and Aunt Luzona. It was this last one who devoted more time looking after the little boy. They were a family of work and great respectability in the land. Aunt Luzona was a tall and fearless woman. She always carried a twig in her hand to touch the strange objects that appeared on the street or to hit on the ears of that who was more rogue. She dressed skirts almost down to the feet, which made her apparently even taller and severe. Her figure contrasted with that of her husband, who was a man of such a great heart and so kind as hers, but much more short-sized, though he was more attractive in the look.

Toninho called her “mom Luzona”, he had received a fondness so similar to that which his mother gave him, that he hardly would forget her. Silvino, one of the sons of this couple, was a blacksmith and everyday morning he called Toninho to make him company in the works of the forge. He had taught him to crank up carefully, so that the iron got red-hot; then, with the sweat dripping through his face, he removed the iron from the fire, dipped it for moments in water and with a refrain accompanying, he hammered it until it got the form he wanted: pickax, chisel, a work object, according to the orders he had. In the afternoon, “mom Luzona” gave both a good lunch, a very full plate, saying that who was not for eating was not either for working.

To Toninho, after lunch, she gave him wine soups and told him to sleep a good hour of sleep. She said that was necessary to strengthen the boy, and the “tired donkey soups”, the popular name of these soups, were to her the best remedy to strengthen him.

Already a man, António will still remember the love with which this woman treated him and the upbringing she gave her during the years he was at her care. “Mom Luzona” did not distinguish the love to her children from the love to this little boy.

Among the errands he did for her, the children’s plays with his friends in Menesas square and the comfort of the family at night. Toninho was growing in this pureness of environments. River Febros and the cornfields to the flour or the grass ones to the cattle became the structural factors of his socialization. Besides, Menesas square was the central point of the place, since to there converged the great part of the people who wanted to meet at the grocery store and selling of food and drink of Mr Soares. Children played in the square: throwing spikes to the ground, the oak gall or played ball, buying occasionally chestnuts, water with redcurrant syrup or a stretchable gummy candy to Aunt Sisma, who was an old lady who loved very much the land’s children. Around the square, lived some farmers, where from time to time there were feasts with dances in the yards or on threshing floors, like in the husking feasts where the most beautiful young girls of the place gathered, who were disputed in love by the most adventurer young boys.

It also occurred, sometimes, some disrespects, with some punches to the mix, but quickly calmed down by the authority of the head of the parish council or its representative. Only once, on a summer night, the situation was more complicated. It was not the first time that came from other parishes men who had the fame of being troublemakers, who with their arrival scared a bit the people of the place, especially the children, who ran for their lives.

On a summer night, it started to be said that some men would come from the place of Lijó, from the parish of Vilar de Andorinho, to fight with Zé Damas, Neca Guerra and others who were not also easy to accommodate. It should be half past nine at night, when three of those outsiders arrived at the place mounted on bikes. It seems that one of them was called Gaudêncio, and he was the first to put on the table of Mr Soares’ store one of the knives for killing pigs he carried. And, even before he was served a glass of wine he had asked, he had started in screams challenging some of the mentioned names to the fight.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 27 to 30.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 6)

    Durante bastante tempo, este fora o maior problema de consciência destes pais sobre os seus filhos, pelo sentimento de dor criado, ao saberem que para protegerem e criarem um precisavam de sacrificar outro nas tarefas da casa e ao abandono da escola. E, para que esta dor não fosse ainda maior, valia-lhes o poderem contar com as ajudas esporádicas de pessoas que viviam nas proximidades do seu lar, para que no regresso a casa, logo que terminado no fim da tarde o trabalho, Maria pudesse consertar no coração de todos a felicidade de cada dia.

    Depois do batizado do menino, a situação começou a melhorar bastante; já havia quem tomasse conta da criança durante o dia, as amizades dos vizinhos começavam a dar frutos no auxílio da casa e os meios económicos tinham superado a pobreza extrema. ao que parece, tudo estava a encaminhar-se para um bem-estar e alguma felicidade e tudo poderia vir a tornar-se ainda melhor, se algo de inesperado, pelo menos naquela ocasião, não tivesse acontecido – a casa onde moravam, e que lhes tinha sido cedida para o seu lar, tinha de ser restituída para um dos familiares do proprietário. a partir daquela altura (por volta do ano de 1952) e em pouco tempo, a família Amaral tinha que arranjar uma nova casa, tinha de resolver um novo e difícil problema.

    Nesta situação, seria mais uma vez necessária a ajuda do primo Zé, pois conhecia bem a terra e outras terras vizinhas. O Amaral contara-lhe o sucedido, ficando com a esperança de que ele haveria de arranjar solução para o problema. E assim acontecera, pois ainda antes do prazo indicado para deixarem a casa, já uma outra, apesar de bem mais pequenina e modesta, o primo Zé tinha encontrado e apalavrado o aluguer, que seria económico, porém, não deixando de se tornar num encargo que antes não tinham e as condições não eram ainda desafogadas.

    Mesmo assim, logo que decidida a situação, por ambas as partes, senhorio e caseiro concordaram que a muda deveria ser imediata, pois era muito importante deixar vaga a casa onde viviam, para desta maneira poderem mostrar a sua compreensão pela necessidade da casa que lhes tinha sido cedida gratuitamente e, em simultâneo, poder ser uma forma de agradecimento reforçada na gratidão por esta espécie de retribuição moral.

    Com a mudança de residência também mudavam de freguesia, passavam de Avintes para Vilar de Andorinho, para o lugar das Menesas e para um local a montante do rio Febros. Era uma casa térrea, pequena e já bastante deteriorada. Mas como o Amaral era da arte, depressa a tornara mais asseada, pintou-a, substituiu as telhas partidas, organizou melhor os espaços da habitação e cortou o mato que fechava o carreiro de acesso à entrada principal. Quem olhava para a sua localização, do lugar do centro das Menesas tomando a sua linha horizontal ou tomando a linha vertical da marginal do rio Febros na direção da pequena colina, poderia ficar com a impressão de que seriam mais uns anexos de serventia aos animais do proprietário e lavrador, do que seria uma casa para servir de habitação. No entanto, quem se aproximava das suas redondezas, depois de passar o lugar onde lavavam roupa as lavadeiras das Menesas e de atravessar a ponte romana que ligava o rio Febros nas duas margens, constatava tratar-se de uma casa, porventura, muito modesta, mas com uma beleza natural que impressionava esteticamente quem lá passava. Era também aprazível, porque a corrente da água do rio era composta por pequenas cascatas, que se formavam pela força da água saída dos moinhos de pedra e que escondiam, na sua maior ondulação, uma diversidade muito rica de peixes: barbos, trutas, bogas, escalos, ribeirinhas, etc., facto que entusiasmava um grande número de pescadores que por lá passavam e faziam questão de experimentar os seus dias de sorte numa boa pescaria. Outra das riquezas naturais daquela casa era o campo que ficava no fundo da escarpa, que se descia e subia para cultivar e colher os produtos agrícolas que nasciam naquela pequena planície. Estava cheio de árvores que produziam bons frutos e de choupos e carvalhos, onde as videiras se enrolavam e se enchiam todos os anos de uvas para comer e produzir vinho americano, que, engarrafado com a mistura de outra qualidade de vinho, durante pelo menos um ano, tornava-se num vinho bastante agradável para poder ser bebido principalmente no verão. Nas traseiras desta casa modesta, encontravam-se mais alguns aspetos enriquecedores do ambiente do lar, nomeadamente um pátio solarengo onde podiam brincar as crianças.

    O senhorio era um agricultor médio e a casa onde vivia era paredes meias com a casa agora habitada pela família Amaral. Pode dizer-se que o todo do prédio habitado pelas duas famílias formava um retângulo, tendo no centro um pátio interior que dava acesso aos aidos dos bois, das vacas e dos porcos, mas também era um grande pátio comum que servia para as crianças brincarem e crescerem com harmonia. De vez em quando, lá se ouvia o guinchar de um porco e sentia-se algum tempo depois o cheiro a carne assada. Apesar da diferença entre as profissões, e por isso o horário das ocupações ser muito diferente entre ambos, eram bastantes as vezes que havia ocasião para falar sobre a vida, o crescimento dos filhos e os desejos para o futuro. Aliás, as crianças estabeleceram facilmente um contacto afetivo e partilhado. Quantas vezes, por seu intermédio, Maria podia permutar os bens alimentares que tinha comprado, como, por exemplo, bacalhau e outros peixes por aqueles que este lavrador produzia em abundância, como milho, feijão, castanhas e outros. Estes e outros acontecimentos fortaleceram a amizade e a estima recíproca, acabaram por tornar-se durante algum tempo nas forças que uniam estas famílias e que eram as únicas a viver nesta colina e nos campos que se estendiam para bem longe desta casa de lavoura.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 24 a 27.

 

Path of Light and Shadow (Text 6)

 

For a long time, this had been the biggest problem of conscience of these parents about their children, by the feeling of pain created, when they knew that, to protect and raise one, they needed to sacrifice the other in the home tasks and to the school dropout. And, for this pain to not be even greater, it was worth that they could count with the sporadic helps from people who lived nearby their home, so that in the return to home, once the work was finished in the evening, Maria could arrange in everyone’s heart the happiness of each day.

After the boy’s christening, the situation began to better a lot; there was already someone who took care of the child during the day, the friendships of the neighbors were starting to give fruits in the aid to the house, and the economic means had surpassed the extreme poverty. Presumably, everything was going towards a well-being and some happiness, and everything could become even better, if something unexpected, at least on that occasion, would not have happened – the house where they lived, and which had been lent to be their home, had to be given back to one of the relatives of the owner, from that time on (about the year 1952), and in short time the family Amaral had to find a new house, they had to solve a new and difficult problem.

In this situation, it would be needed once more the help of Cousin Joe, since he knew well the land and other neighbor lands. Amaral had told him the happening, getting with the hope that he would find a solution to the problem. And so it happened, since even before the term for them to leave the house, already another one, although much smaller and modest, Cousin Joe had already found and bound by word the rent, which would be economic, however not ceasing to become a charge that they had not before, and the conditions were not yet well-off.

Even so, since the situation was settled, by both parts, landlord and tenant agreed that the removal had to be immediate, since it was very important to leave vacant the house where they lived, so that by this way they could show their understanding about the necessity of the house that had been lent to them freely and, at the same time, to be a reinforced way of thanking in the gratitude for this moral retribution.

With the removal of residence, they also changed parish: they passed from Avintes to Vilar de Andorinho, to the place of Menesas and to a place upstream the river Febros. It was a ground house, small and already very deteriorated. But since Amaral was from the craft, soon he had turned it tidier, he painted it, replaced the broken roof-tiles, he organized better the dwelling spaces and cut the brushwood that closed the access footpath to the main entrance. Those who looked to its location, from the place of the center of Menesas taking its horizontal line or taking the vertical line from the waterside of river Febros in the direction of the little hill, could get the impression that it would be some more annexes to serve as dwellings. However, to whom approached its surroundings, after passing the place where the washerwomen of Menesas washed the clothes and after crossing the Roman bridge that connected the river Febros on the two banks, it would be noticed that we were dealing with a house, perhaps very modest, but with a natural beauty that impressed aesthetically anyone who passed by. It was also pleasant, because the stream of the river water was composed by little cascades, which were formed by the strength of the water that left the stone mills and that hid, in its greatest undulation, a very rich diversity of fish: barbels, trouts, boces, chubs, etc., a fact that enthused a great number of fishermen who passed by there and insisted on trying their lucky days on a good catch. Another of the natural richnesses of that house was the field that was situated at the bottom of the scarp, through which one went down and up to cultivate and reap the products that sprang on that little plateau. It was full of trees that produced good fruits and of poplars and oak-trees, where the grape-vines wound themselves and got full of grapes every year to eat and to produce American wine, which, bottled with a mixture of another wine quality, for at least a year, became a very pleasurable wine to be able to be drunk especially in the summer. In the backyard of this modest house, there were some more enriching aspects of the home environment, namely a manorial yard where the children could play.

The landlord was an average farmer and the house where he lived was party-walled with the house now inhabited by the family Amaral. We may say that the whole of the building inhabited by the two families formed a rectangle, having at its center an inner yard that gave access to the courtyard for the oxen, the cows and the pigs, but also a large common patio that served for the children to play and grow up with harmony. Every now and then, there we heard the squeal of a pig, and after a while we felt the smell of roast meat. Despite the difference between professions, and therefore the schedule of the occupations being very different between both, there were many the times when they could talk about life, the growth of the sons and the wishes for the future. Besides, the children easily established an affective and shared contact. How many times, through her, Maria could exchange the food goods she had bought, like, for example, codfish and other fish by those that this peasant produced in abundance, like corn, beans, chestnuts and others. These and other happenings had strengthened the friendship and the reciprocal esteem, they ended up becoming for some time the forces that united these families and who were the only ones living on this hill and in the fields that extended far away from this farmhouse.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 24 to 27.

 

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 5)

    Estava-se nos princípios do mês de abril de 1950, mais propriamente no final da tarde do dia cinco. Depois de finalizarem o trabalho, quando o dinheiro dava e já não era muito cedo, Amaral e o seu filho Licínio costumavam embarcar na lancha de Avintes, que transportava as gentes que iam e vinham da cidade, dos seus trabalhos e do seu comércio.

    Naquela tarde fatídica, Amaral e o seu filho terminaram o trabalho um pouco mais cedo do que o costume, logo, como seria habitual nestas circunstâncias, viriam a pé para pouparem; no entanto, ao contrário do que seria habitual, naquela tarde trágica era vontade do Amaral regressarem a casa na lancha de Avintes.

    Porém, o Licínio tinha bastante fome naquele fim de tarde e pediu ao pai para comerem alguma coisa antes de embarcarem. O pai não queria fazer-lhe a vontade, pois só tinha dinheiro para os bilhetes; vir de transporte era mais rápido e evitava o cansaço da caminhada, que era o triplo do esforço depois de um dia de tanto trabalho. Entretanto, a insistência do rapaz foi tanta que ele não olhou ao problema de ficar sem dinheiro para a viagem e resolveu gastá-lo no aconchego do estômago de ambos. Quando acabaram de comer e beber (já que o Amaral gostava bem de um copo de vinho, pois ele era das terras do bom vinho, especialmente, do vinho do Porto), puseram-se a caminho por entre campos até à terra de Avintes.

    Entretanto, enquanto caminhavam de regresso, e sem nada saberem, acontecia a grande tragédia. A lancha em que viriam, se não fora a fome do Licínio, acabaria por afundar-se, ainda antes de estes terem chegado a casa. Sobre este acontecimento trágico, está escrito no Museu da Pessoa ([ii]) o seguinte:

    “Também havia barcos de passageiros que encostavam nas escadas. Era o caso do Barco das Padeiras, que transportava as pessoas para Rio Mau, Avintes e depois regressava ao Douro. Mais tarde fizeram umas lanchas para transportar passageiros, uma chamava-se a Foz de Sousa que era mais conhecida pelo nome “A Badalhoca”, que embateu nas pedras e foi ao fundo, mesmo em frente à Quinta da Paradela e morreram 28 pessoas. O acidente ocorreu no dia 5 de abril de 1950 e foi o desastre maior que houve no rio Douro até à data. Eu ainda era miúdo, tinha 12 ou 13 anos. A lancha ia para Avintes carregada de passageiros quando bateu numa pedra encostada à margem e começou a meter água. As pessoas começaram a cair todas para o mesmo lado até que o barco virou.”

    Maria estava em casa com os filhos mais novos, esperava sempre sem saber de que lado viriam os seus Amaral e Licínio; não era certo que viessem de camioneta ou de lancha e a maior parte das vezes até vinham a pé, como fora o caso naquela tarde de horror. Consumada a tragédia, os gritos de pedido de socorro depressa atravessaram como raios os corações daquela comunidade que, à toa, se lançara em direção ao leito onde a morte ceifava uma grande parte das vidas. Maria ficara agarrada aos seus meninos e quase louca de dor entre a certeza e a incerteza de aquela poder ser também a sua desgraça. apesar de não ser muito conhecida no lugar, já tinha granjeado o amor das pessoas, todas sabiam bem das rotinas diárias de cada um, logo, foi muito grande e imediata a comoção geral.

    Preparando-se num ápice, pegou nas crianças e saiu para a rua a gritar pelo seu “Zé”, como gostava de chamar-lhe e pelo seu menino “Cininho”, nome que também guardava no fundo da sua alma. Ainda não tinha dado muitos passos e com as lágrimas a cobrir-lhe a face ouviu uma voz que a chamava: – Mãe, mãe, somos nós! Estamos aqui! – exclamavam entre soluços. – Nós não viemos na lancha, nós viemos a pé – gritaram várias vezes, para a acalmar e a trazer à realidade.

    Quando Maria tomou verdadeira consciência da presença deles, abraçou-os e beijou-os com o coração dorido, mas com a alma a pular numa alegria contida. Depois de uma certa contemplação e de dar graças pelo mistério do conforto das almas, foram todos em direção ao rio, ao lugar da tragédia, para partilharem o amor e solidariedade com aqueles que sofriam pelo trágico acontecimento da perda dos seus entes queridos que não veriam mais com vida. Por lá estiveram bastante tempo, olhando aquela tragédia, ao mesmo tempo que se interrogavam sobre as circunstâncias da sua própria vida. Já muito tarde, regressaram a casa para comerem alguma coisa e deitarem-se unidos pelas dores, mas com a certeza de que estavam juntos para começarem o novo dia.

    Algum tempo depois desta onda de dramas e tragédias, o ciclo da vida parecia começar a voltar ao estado normal, alguma esperança começava a renascer nos pensamentos desta pobre família. Amaral e Licínio mudaram de patrão, o pai para um trabalho na mesma profissão, mas um pouco mais remunerado e o filho para uma fábrica onde passara a estar mais contente e a ter um salário melhor. Para reforçar este sentimento positivo, Maria fora convidada pela Dona Olívia ou Olivinha, como era mais conhecida em Avintes, a apresentar-se no seu ateliê, para iniciar a sua carreira na costura. Primeiro, como simples operária e mais tarde como mestra, função que desempenharia até ao dia em que, por sua vontade e por ter uma vida melhor, deixaria de trabalhar. Entretanto, começara também a ser pensado o dia do batizado do seu menino e o modo como deveriam convidar o primo Zé “torneiro” e esposa para serem padrinhos. Aliás, não só seriam o primo Zé e esposa os padrinhos do registo civil como seriam também a sua filha Rosa e o marido os padrinhos da igreja; tudo estava a ser pensado com humildade, mas com muito amor. Com isto, a azáfama da casa e do trabalho começavam a envolver os membros da família, que por algum tempo começaram a viver com a cabeça erguida e com vontade de superar todas as dificuldades, apesar de sacrificarem a ida à escola do filho Fernando, por não terem arranjado ainda alguém que ficasse como ama do seu menino António.


[ii] Museu Pessoa – Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira – Sou José Fernandes Marques Teixeira. Nasci no Muro dos Bacalhoeiros, n.º 111, a 22 de dezembro de 1946. Atualmente, moro na Rua da Fonte Taurina. Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira. Entrevistado por Patrícia Sousa, Lígia Costa e Sónia Moreira. São Paulo, dezembro de 1999. “O maior desastre no rio Douro”, Naufrágio.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 21 a 24

 

Path of Light and Shadow (Text 5)

 

We were in the beginnings of the month of April of 1950, more precisely in the end of the afternoon of day 5. After they finished the work, when the money sufficed and was no longer very soon, Amaral and his son Licínio used to embark in the motorboat of Avintes, which transported the peoples that went to and came from the city, from their works and from their commerce.

In that fatidic afternoon, Amaral and his son finished the work a bit earlier than usual, hence, as it would be habitual in these circumstances, they would come on foot to save money; however, contrary to what would usual, in that tragic afternoon it was Amaral’s will to return home in the motorboat of Avintes.

However, Licínio was very hungry in that evening and had asked his father to eat something before they embarked. The father did not want to comply with his son’s wish, since he only had money for the tickets; to come from transport was faster and avoided the tiredness of the walk, which was the triple of the effort after a day of so much work. Meanwhile, the insistence of the boy was such that he did not look to the problem of getting without money for the trip and he decided to spend it on the comfort of the stomach of both. When they had finished to eat and drink (as Amaral liked very much of a glass of wine, since he was from the lands of the good wine, especially, port wine), they set out across fields to the land of Avintes.

Meanwhile, while they walked back home, and without knowing anything, the great tragedy happened. The motorboat in which they would come, if it were not Licínio’s hunger, would end sinking, even before they had arrived home. About this tragic happening, it is written in Museu da Pessoa [Museum of the Person] ([ii]) the following:

“There were also passenger boats that leaned against the stairs. It was the case of the Barco das Padeiras [Bakers’ Boat], which transported the people to Rio Mau, Avintes and then it returned to the Douro’s River. Later, they made some motorboats to transport passengers: one was called Foz de Sousa [Sousa’s Mouth], which was more known by the name of “A Badalhoca” [The Dirty One], which collided with the stones and sank to the bottom, right in front of the Quinta da Paradela [Paradela’s Farmhouse] and 28 people died. The accident occurred on the 5th of April of 1950 and it was the greatest disaster that have always happened in Douro’s River until that date. I was still a kid, I had 12 or 13 years old. The motorboat was going to Avintes full of passengers when it hit a rock close to the riverbank and started to spring a leak. All the people began to fall to the same side until the boat had overturned.”

Maria was at home with her youngest sons, she always hoped without knowing from which side would come her Amaral and Licínio; it was not certain that they came by bus or by motorboat, and most of the times they even came on foot, like it was the case in that horror afternoon. When the tragedy was consummated, the screams of help soon pierced through the hearts of that community like lightning bolts, and the community threw itself, haphazardly, to the riverbed where death reaped a great part of the lives. Maria had remained attached to their little boys and almost crazy of pain between the certainty and the uncertainty of that may be also her disgrace, although she was not well known in the place, she had already won the people’s love, every one of them knew well the daily ruts of each other, hence, it was very great and immediate the general commotion.

All of a sudden, she prepared herself, took the children and went out to the street screaming for his “Joe”, like she liked to call him and for his little boy “Cininho”, a name that she also kept deep in her soul. She had not taken much steps yet, and with tears covering her face, she heard a voice that called: – Mom, mom, it’s us! We are here! – they exclaimed among hiccups. – We didn’t come in the motorboat; we came on foot – they shouted several times to calm her down and bring her back to reality.

When Maria had truly realized their presence, she hugged them and kissed them with the heart aching but with the soul jumping in a refrained joy. After a certain contemplation and after giving thanks for the comfort of the souls, they went all towards the river, to the place of the tragedy, to share the love and solidarity with those who were suffering due to the tragic happening of the loss of their loved ones who they would no longer see with life. They had been there for a long time, watching that tragedy, and at the same time they wondered about the circumstances of their own lives. Already very late, they returned home to eat something and go to bed united by the sorrows, but with the certainty that they were together to begin a new day.

Some time after this wave of dramas and tragedies, the cycle of life seemed to begin to return to its normal state, some hope began to be born again in the thoughts of this poor family. Amaral and Licínio changed their bosses: the father to a work in the same profession but a bit more paid, and the son to a factory where he started to be happier and to have a better salary. To reinforce this positive feeling, Maria had been invited by Mrs Olívia or Olivinha, as she was more known in Avintes, to present herself in her atelier, to begin her new career in needlework. First, as a simple workwoman and later as a mistress, a function she would perform until the day when, by her will and for having a better life, she would stop working. Meanwhile, she also began to think of his little boy’s christening and about the way they should invite the cousin Joe “turner” and his spouse to be godparents. Besides, not only Cousin Joe and his parents would be the godparents of the civil registration, but also their daughter Rosa and her husband would be the godparents of the church; everything was being thought of with humbleness, but with much love. With this, the bustle of home and of work started to involve the members of the family, that for a while they started to live with their heads up and with the will to surpass all the difficulties, although they were sacrificing the school attendance of their son Fernando, because they had not yet managed to find someone who stayed as a nanny of her boy António.

 


[ii] Museu Pessoa – Testimonial of José Fernandes Marques Teixeira – I am José Fernandes Marques Teixeira. I was born in the Wall of the Codfishing Ships, № 111, on the 22nd of December of 1946. Presently I live in the Street of the Taurine Spring. Testimonial of José Fernandes Marques Teixeira. Interviewed by Patrícia Sousa, Lígia Costa and Sónia Moreira. São Paulo, December of 1999. “The greatest disaster in the Douro River”, Shipwreck.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 21 to 24.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 4)

     Viajaram numa das últimas carreiras e, já ao anoitecer, lá chegaram a casa onde o marido e o filho Fernando os aguardavam com grande satisfação e não menor ansiedade. Bastante exaustos, mãe e filhos, chegaram ao lar levando com eles a claridade do seu anjinho, que agora enchia de luz e bênçãos a casa daquela pobre família. Uma casa da freguesia de Avintes, que ficava próxima da “Ti Cachaça”, a mercearia daquele lugar. Um lugar bastante próximo da praia do Areinho e do esteiro onde os barcos atracavam todos os dias, para transportar as gentes que se deslocavam de e para a cidade do Porto com desembarque no Cais da ribeira.

    – Oh! Há quanto tempo estávamos aqui numa sombra de pesadelo! – desabafou o marido com a voz embargada! – O Fernando não parava de perguntar: “Oh, pai! Quando é que a mãe e o nosso menino vêm?” E como eu não sabia o que fazer, por já estar a anoitecer e o caminho ser longo, cheguei a temer pelo pior. Graças a Deus que já cá estão! – concluiu mais sossegado. E continuou, dizendo: – Deixa-me agora pegar no menino enquanto descansas um pouco e te pões à vontade.

    Amaral não revelara logo a surpresa que lhe reservara, ele sabia bem do que Maria precisava para recompor-se e tornar-se na mulher que era. Depois de várias manifestações de afeto e enquanto os filhos se envolviam em volta do colo da mãe e beijavam com intermitência o bebé, Amaral presenteou-a com um caldo de galinha que tinha acabado de fazer. Em casa não faltavam galinhas nem coelhos, apesar de este espaço ter sido cedido só até ao dia em que fizesse falta, pois foi por caridade e estima ao primo Zé que o cederam temporariamente para refúgio desta família, que viera para esta terra na aventura por melhores dias. Malgrado a aflição por a falta de dinheiro ser cada vez maior, compensava-os a criação de animais, legumes e alguma fruta para acompanhar e fazer as delícias daquela pobreza encoberta.

    – Ah! homem, como cheira bem este caldo! Tira também uma malga para os meninos, que devem estar cheios de fome! – disse isto, olhando-os com tristeza e ao mesmo tempo a ofegar com um profundo sentimento maternal, um sentimento que só nos estados de santidade poderá emergir nas almas.

    Depois do consolo do pão e do caldo de galinha, era preciso ganhar a noite que já ia muito adiantada. O Amaral e o seu filho Licínio tinham de pôr-se a pé de madrugada para se porem a caminho do Porto, onde trabalhavam ganhando um pequeno salário para sustento de toda a família.

    Ainda antes de adormecerem, Maria interrogou o marido sobre a quem deixar o menino, logo que tivesse forças para ir trabalhar. Ela estava a ensaiar a confecção de roupinhas de criança, para mostrar à Olivinha que no seu ateliê em Avintes e no Porto, nas lojas onde comerciava, era muito apreciada neste tipo de moda. Tal como a maior parte das jovens do seu tempo, Maria tinha sido ensinada para ser uma boa esposa e boa dona de casa. Contudo, a pobreza dos salários do marido e do filho era razão vital para ela ter de acrescentar para a sobrevivência o conhecimento e a qualidade da confecção de roupas de criança, que afinal também tinha aprendido na arte de lavores.

    Amaral encolheu os ombros e, depois de um leve suspiro, exclamou:

    – Sossega, mulher! ainda agora passaste por bastantes dores e já estás a pensar onde deixar o nosso bebé para ires procurar o sustento que falta para o pão de cada dia! – disse isto para a ajudar a sossegar, pois ele bem sabia como seria difícil subsistir com salários tão baixos. Eram cinco bocas para alimentar, para vestir e viver com alguma dignidade.

    Depois, para a consolar, lá foi acrescentando:

    – Estamos numa terra de pessoas boas, portanto, há de haver uma alma caridosa que tome conta dele. Por outro lado, o nosso filho Fernando, no tempo que não tiver escola, também ajudará a tomar conta. – Mal sabia ele que esta seria a primeira machadada que daria no crescimento deste filho, pois ele haveria de perder o ano de escolaridade e até, ao que parece, nunca ter completado a instrução primária.

    Algumas horas de sono e esta família começava o dia com o despertar do novo para a continuação da caminhada da vida, com muito amor, mas cheia de espinhos e carregada de sofrimento. Para acrescentar a este rol de pobreza, sem que nada o fizesse prever, abriu--se na comunidade de Avintes um ciclo trágico, ainda que com uma mistura de felicidade milagrosa, pelo menos para esta família. Por um lado, porque Maria, quinze dias depois do parto, preparara uns modelos de roupa de criança para apresentar à dona Olívia, a senhora da moda que a recebeu no seu ateliê e que, depois de avaliar os modelos, lhe propôs que esperasse mais algum tempo até poder dar-lhe trabalho. Significava isto que, para ganhar dinheiro para um pouco mais de pão, teria de esperar ainda mais algum tempo.

    Entretanto, o marido e o seu Licínio sofriam cada vez mais nas canseiras das caminhadas de ida de Avintes para a cidade do Porto, e vice-versa, a maioria dos dias, a pé, pois a camioneta e a lancha, apesar de terem um custo económico não eram comportáveis diariamente. Por outro lado, ver sofrer o rapaz custava os olhos da cara. Ele apresentava uma inteligência invulgar, tinha passado da primeira classe para a terceira e terminado a instrução primária com distinção e louvor. Finalmente, custava ainda muito mais, porque ambos sabiam que tinham recusado a ajuda social, principalmente do professor Carvalho na obtenção do auxílio financeiro das gentes da freguesia, para a compra das roupas que o rapaz precisava e da inscrição num colégio em Coimbra, onde poderia estudar e vir a ser doutor. E toda esta recusa por uns vinte e cinco tostões diários que o Licínio iria ganhar como aprendiz numa fábrica de calçado, que estes pobres pais não podiam prescindir nem para os quais a Comissão de Ajuda Social fora capaz de conseguir alternativa. Tudo isto era bastante amargo e tornava a vida desta família num rosário de lamentos que Amaral afogava na massa com que cimentava as paredes e nas frases em latim, de sentido doloroso, que aprendera no Seminário quando ainda era rapaz.

    Contudo, a pior nuvem negra aproximava-se com força sinistra da terra onde viviam, com ela viria também a grande tragédia que enlutou bastantes famílias em Avintes e, se não fora o tempo ter jogado a favor do Amaral e do seu rapaz, também certamente teria enlutado esta.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 17 a 21.

 

Path of Light and Shadow (Text 4)

 

They traveled in one of the last routes and, already at nightfall, they arrived home, where the husband and the son Fernando awaited them with great satisfaction and not less anxiety. Very exhausted, mother and sons, they arrived home taking with them the brightness of their little angel, who now filled with light and blessings the house of that poor family. A house in the parish of Avintes, which was near “Aunt Cachaça [brandy]”, the grocery of that place. A place very close to the small sandy river shore and to the branch, where the boats came alongside every day, to transport the peoples who split from and to the city of Oporto with disembarkation at the riverside quay.

– Oh! How long we were here in a shadow of a nightmare! – the husband unburdened himself with his voice seized! – Fernando didn’t stop asking: “Dad! When will mom and our little boy come?” And since I didn’t know what to do, because it was already getting dark and the path was long, I feared the worst. Thank God you’re already here! – he concluded more serene. And he continued, saying: – Let me hold the boy while you rest a little and make yourself comfortable.

Amaral had not revealed yet the surprise he had reserved to her, he knew well what Maria needed to recover and become the woman she was. After several manifestations of affection, and while the sons wrapped themselves around the mother’s lap and kissed intermittently the baby, Amaral offered her a chicken broth he had just make. At home, there were plenty of chickens and rabbits, although this space was only yielded only until the day it was needed, since it was for charity and esteem by Cousin Joe that it was temporarily yielded to the refuge of this family, who had come to this land in the adventure for better days. In spite of the affliction due to the lack of money was even bigger, the creation of animals, vegetables and some fruits compensated them to garnish with and make the dainties of that covered poverty.

– Ah! Man, how good this broth smells! Take also a bowl for the kids, who must be hungry! – she said this, looking at them with sadness and at the same time gasping for breath with a profound maternal feeling, a feeling that only in the states of holiness may emerge within the souls.

After the consolations of the bread and the chicken broth, it was necessary to catch the night, which was already very advanced. Amaral and his son Licínio had to get up at daybreak to set off to Oporto, where they worked earning a little salary to the support of all the family.

Still before they fell asleep, Maria inquired her husband about who to leave the boy with, as soon as she had the strength to go to work. She was rehearsing the confection of children’s clothes, to show to Olivinha, who in her atelier in Avintes and in Oporto, in the shops where she traded, was very prized in this kind of fashion. Like most of the young girls of her time, Maria had been taught to be a good spouse and a good housewife. However, the poverty of the husband’s and the son’s wages was the vital reason for her to need to add to the survival the knowledge and the quality of the confection of children’s clothes, which after all she had learned in the embroidery art.

Amaral shrugged his shoulders and, after a slight suspiration, he exclaimed:

– Calm yourself down, woman! You just went through so much pain and you’re already thinking about where to leave our baby so that you search for the sustenance needed to everyday bread! – he said this to help her calm down, since he knew well how difficult it would be to subsist with so low wages. They were five mouths to feed, to dress and to live with some dignity.

After, to comfort her, he was then adding:

– We are in a land of good people; thus, there will be some charitable soul who takes care of him. On the other hand, our son Fernando, in the time he has no school, will also help to take care. – Little he knew that this would be the first ax stroke he would give in the growth of this son, since he would lose the schooling year and even, as it seems, he would never complete primary education.

Some hours of sleep, and this family started the day with the awakening of the new to the continuation of the walk of life, with much love, but full of thorns and loaded with suffering. To add something to this roll of poverty, without anything that made it predict, a tragic cycle has opened in the community of Avintes, even though with a mix of miraculous happiness, at least for this family. On the one hand, because Maria, fifteen days after the labor, had prepared some children’s clothes models to show to Mrs. Olivia, the fashion lady who had received her in her atelier and who, after evaluating the models, had proposed to her that she awaited some more time until she could give her work. This meant that, to earn money for a bit more bread, she would still have to wait some more time.

Meanwhile, her husband and her Licínio were suffering each more in the efforts of the walks from Avintes to Oporto city, and vice versa, most of the days, on foot, since the bus and the motorboat, although they had an economical cost, they were not daily affordable. On the other hand, to watch his boy suffering costed the eyes of the face. He showed an unusual intelligence, he had passed from the first year of school to the third one and had finished the primary education with distinction and praise. Finally, it cost even much more, because both knew that they had refused social aid, especially from teacher Carvalho in the obtainment of financial help from the peoples of the parish, to the purchase of the clothes the boy needed and of the enrollment in a private school in Coimbra, where he could study and come to be a graduate. And all this refuse for only some twenty-five daily “tostões” [more or less like one farthing] that Licínio would earn as an apprentice in a shoe factory, which these poor parents could not do without nor for whom even the Social Aid Commission was able to manage an alternative. All this was very bitter and made the life of this family a rosary of laments that Amaral drowned in the mortar with which he cemented the walls and in the sentences in Latin, of painful meaning, which he had learned in the Seminary when he was still a young boy.

However, the worst dark cloud was getting near with sinister force to the land where they lived, with it would also come the great tragedy that put so many families into mourning in Avintes and, if it were not the time to have played in favor of Amaral and his boy, it would certainly put this one into mourning too.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 17 to 21.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 3)

 

    Era esta a outra bênção que Maria ansiava naquela ocasião e que tanto pedira nas suas orações. A caridade é um dom que temos guardado no lado mais profundo da alma e que rejubila quando se sente glorificada. No caso de Maria, toda a caridade seria recebida com amor, ela era uma mulher que tinha aprendido, desde pequenina, a reconhecer e a agradecer o amor que lhe davam.

    Na tarde em que tivera alta, e antes de deixar a enfermaria das parturientes, despedira-se com afeto e gratidão dos médicos, enfermeiros e de todo o restante pessoal. Quisera reconhecer, daquela forma singela, o modo como a ampararam e lhe proporcionaram um ambiente de amor e carinho.

    Depois de vestido com as roupinhas que fizera antes, pegou ao colo o seu menino e embrulhou-o num modesto cobertor para o aquecer e o prender melhor. Com acenos às pessoas fora-se dirigindo para as escadas da saída para o átrio onde se encontravam os serviços administrativos do hospital e onde estariam à sua espera, o seu homem, que a beijara e saíra apressadamente para continuar o trabalho e não ter problemas com o patrão, o seu filho Licínio, o primo Zé “torneiro” e duas pessoas caridosas que arranjaram no local para o registo do menino. O primo Zé e as duas testemunhas, depois de felicitarem Maria e de afagarem o menino, apressaram--se para completarem as formalidades de assinar o documento de certificação do nascimento, para depois fazer-se o registo civil na freguesia de Miragaia.

    Não se sabe se no cumprimento do primo Zé a estas pessoas bondosas fora associada alguma compensação. O primo era muito discreto nas suas ações. Procurava não dar a entender o que fazia pelos outros e se nesta altura dera alguma recompensa monetária, nunca se soube qual fora o seu montante nem como fora dada. O primo Zé “torneiro” procurava ser bondoso e isso chegava-lhe para ser feliz e fazer felizes os outros.

    Depois deste momento formal, Maria despedira-se de todos, com a alegria de levar ao colo o seu anjo mais pequenino, ao mesmo tempo que com uma das mãos ia aconchegando ao ventre o outro filho enquanto saíam os três do hospital.

    O seu Licínio pouco mais teria que doze anos de idade, mas nos seus olhos poderia ver-se a alegria de ver o seu irmãozinho, mesmo no refulgir da imagem de sofrimento, que já tinha ganho no rol das horas amargas pelos trabalhos dolorosos de fazer e carregar massa para cimentar as paredes como aprendiz da construção.

    Já próximos da igreja da Torre dos Clérigos, o seu rapaz agarrara-se à saia da mãe e pedira-lhe que o deixasse olhar uma vez mais para o menino. Afinal, ele era também o seu menino, pois haveria de ser assim que o trataria enquanto não fosse homem. Depois de observá-lo por instantes, exclamara: – O menino é tão lindo que até parece um anjo!

    – Sim, sim, parece um anjo pequenino – respondera-lhe a mãe um pouco emocionada. E, afagando-o com ternura, acrescentara com sinceridade e algum mimo: – É como tu, quando nasceste, também eras assim como o nosso menino!

    Depois desta breve paragem, já num ponto intermédio entre o princípio e o fim do espaço que ladeava a Igreja da Torre dos Clérigos, Licínio agarrara a mãe com maior vigor para lhe pedir o que mais desejara fazer desde que saíram do hospital:

    – Mãe, deixe-me pegar no menino, deixe-me levá-lo ao colo, deixe-me que eu posso com ele – insistia já quase a choramingar.

    Este sinal de amor pelo irmãozinho fez, por momentos, Maria enfraquecer no seu receio. Também não tinha muita força para continuar com o menino ao colo; o ato de dar à luz, apesar da experiência, provocara-lhe sempre uma grande fraqueza. O desejo do seu Licínio parecera-lhe ser uma pequena ajuda para recuperar forças, depois, ele era um pequeno adolescente, mas bastante robusto, que já trabalhava para ajudar no sustento da família. Sem mais, pusera-se a jeito para que o Licínio segurasse nos braços o corpinho do bebé. Porém, a tragédia ia acontecendo: o cobertor que segurava o menino desenrolara-se e o anjinho, se não fora o olhar atento de Maria para o aparar instantaneamente da queda, ter-se-ia estatelado no chão, provavelmente caindo sobre os carris do elétrico, pois quando a mãe reparou, o seu rapaz já estaria só a segurar no cobertor.

    – Ah! Licínio, que atenção a tua! – gritara a mãe com grande aflição. – Se eu não tivesse reparado tão depressa, o menino teria caído ao chão. Foi para isso que pediste para o levar?! – advertira-o zangada e com frieza. Mas, num súbito, para amenizar a tristeza do seu rapaz, exclamara: – Desculpa, meu filho, eu ainda não estou em mim, não sei o que estou a dizer! Mas isto já está a passar e tu bem sabes que eu gosto muito de ti. E sei que tu não fizeste isto por mal, talvez o cobertor já não estivesse a prender bem o teu irmão…

    – Não sei como isto aconteceu! – exclamara o rapaz, ainda com receio. – Comecei a olhar para o menino e não reparei que ele estava a cair por entre o cobertor. Mãe, fiquei com tanto medo de o perder, que se me batesse não choraria! – exclamara o rapaz já mais confiante.

    – Bem, agora vou levá-lo eu! – dissera a mãe. Depois acrescentara: – Vamos caminhar mais depressa para ainda apanharmos a camioneta para irmos para a nossa casa. O teu pai e o teu irmão esperam-nos com ansiedade, já devem estar preocupados com o nosso atraso; quantas vezes deverão ter pensado em nós e em algo de mal que nos tenha acontecido; devem estar ansiosos por nos verem. – Dizia isto para voltar de novo a ver a alegria nos olhos do seu Licínio, enquanto caminhavam ao encontro da camioneta que os haveria de levar de regresso.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 14 a 17.

 

Path of Light and Shadow (Text 3)

 

It was this the other blessing that Maria yearned for on that occasion and that she begged so much in her prayers. Charity is a gift that we have kept in the most profound side of the soul and that rejoices when it feels glorified. In Maria’s case, all charity would be received with love; she was a woman who had learned, since she was a little girl, to recognize and to thank the love others gave to her.

In the afternoon in which she was discharged from the hospital, and before she left the nursery of the parturients, she took leave with affection and gratitude of the doctors, paramedics and of the rest of the personnel. She wanted to recognize, in that simple manner, the way they aided her and provided her an environment of love and kindness.

After he was dressed with the little clothes she had made before, she picked him up, wrapped him up in a modest blanket to warm him up and to grasp him better. With nods to the people, she was heading to the exit stairs to the hall where were the administrative services of the hospital and where they would be waiting for her: her husband, who kissed her and left to continue his work and to not have problems with his boss, her son Licínio, her cousin Joe “turner” and two charitable people they found in place for the record of the little boy. Cousin Joe and the two witnesses, after felicitating Maria and fondling the little boy, they hurried to complete the formalities of signing the certification document, so that they could make the civil record in the parish of Miragaia.

It is not known that if, in the greeting of cousin Joe to these kind people, had been associated some compensation. The cousin was very discrete in his actions. He tried not to give a hint of what he did for others and if by this time he had given some monetary reward, it was never known what was his amount nor how it was given. Cousin Joe “turner” tried to be kind, and that was enough for him to be happy and make others happy.

After this formal moment, Maria said goodbye to everybody, with the joy of carrying in her arms her littlest angel, and at the same time, she was tucking the other son in to her belly while the three were leaving the hospital.

Her Licínio little more was than twelve years old, but in his eyes, one could see the joy of seeing his little brother, even in the refulgence of the image of suffering, which he had got in the roll of the painful works of making and carrying mortar to cement the walls as a construction apprentice.

Already near to the church of Clérigo’s Tower, her boy clung to his mother’s skirt and asked her to let him look once more to the little boy. After all, he was also his little boy, since it would be as such that he would treat him while he was not a man yet. After observing him for moments, he exclaimed: – The boy is so beautiful that he looks like an angel!

– Yes, yes, he looks like a little angel – the mother answered him a bit touched. And, fondling him with tenderness, she added with sincerity and some cuddle: – He is like you, when you were born, you were also like our little boy!

After this brief stop, already in an intermediary point between the beginning and the end of the space that sided the church of the Clérigos Tower, Licínio clung to his mother with greater vigor to ask her what he most desired since they had left the hospital:

– Mom, let me hold the little boy, let me carry him in my arms, let me because I can hold him – he insisted already almost sniveling.

This sign of love for the little brother made, for moments, Maria weaken in her concern. She also had not much strength to continue carrying her little boy in her arms; the act of giving birth, despite the experience, had always caused her a great weakness. The desire of her Licínio seemed to be a little help to regain strength; besides, he was a little adolescent, but very robust, who already had a job to support his family. Without further ado, she put herself in position so that Licínio could hold in his arms the baby’s little body. However, the tragedy was going to happen: the blanket that was holding the boy unrolled itself and the little angel, if it was not the attentive look of Maria to catch him instantly from the fall, he would fall at full length on the ground, probably falling over the rails of the streetcar, since when the mother noticed it, her kid would be holding only the blanket.

– Ah! Licínio, what lack of attention of yours! – yelled the mother with great affliction. – If I had not noticed it so fast, the boy would have fallen on the ground. Was it for that that you asked me to take him?! – she admonished him angry and with coldness. But, suddenly, to soothe the sadness of her boy, she exclaimed: – I’m sorry, my son, I’m not in my right mind yet, I don’t know what I’m saying! But this is already passing and you know well that I love you very much. And I know that you didn’t mean this, maybe the blanket was no longer seizing well your brother…

– I don’t know how this happened! – exclaimed the boy, still afraid. – I started to look at the boy and didn’t notice that he was falling from between the blanket. Mom, I was so scared of losing him, that if you beat me, I wouldn’t cry! – exclaimed the boy now more confident.

– Well, now I will carry him! – said the mother. After, she added: – Let’s walk faster so that we still catch the bus to go to our home. Your father and your brother await us with anxiety, they should already be worried with our delay; how many times they should have thought about us and about something wrong that might have happened to us; they should be anxious to see us. – She said this to watch again the joy in the eyes of her Licínio, while they walked towards the bus that would take them back.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 14 a 17.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 2)

 

Sem poder conter-se por mais tempo, respondera pausadamente:

    – De facto, hoje não estou nos meus dias quanto à alegria que costumo manifestar. Quero que saibam que é a nossa última aula, que vou deixar a escola, chegou a ordem para a passagem à aposentação. Amanhã, já serei um professor reformado e, como pensei mais no trabalho do que na reforma, isto parece-me uma ilusão! – dissera estas palavras com um olhar apreensivo e distante.

    – Oh! Vai deixar-nos?! – exclamaram com tristeza.

    – Vou deixar-vos a vós e a toda a comunidade – ajuntara com mansidão e paz. Depois, percebendo que o ambiente começara a ficar pesado, incentivara-os a partilharem de alguma felicidade comum, dizendo: – Para nos animarmos um pouco mais, proponho para a aula de hoje uma reflexão sobre a seguinte questão: “Como esperam realizar os vossos sonhos?” Significa que cada um poderá falar ou escrever sobre os seus desejos e gozar da liberdade para voar pelo pensamento até ao lugar dos sonhos que gostaria de realizar.

    – Ok, professor! – responderam sem hesitar. Entretanto, sem que nada o fizesse prever, um outro aluno levantara o braço para o questionar.

    – Eu gostaria que, antes de falarmos dos nossos sonhos, pudéssemos ouvir o professor sobre o que escreveu no seu livro: “Crescendo Constroem-se os Sonhos” (i). – E, para o efeito, localizara de imediato a página 35, linha 21, começando a ler em voz alta: – “Afinal, vejo agora, com claridade, que a razão pela qual cada um se guia e rege é a razão da sua vida que, sendo original, dá-lhe o toque de qualidade que nos torna diferentes uns dos outros”. – Terminada a leitura deste excerto, comentara: – Deste pensamento poder-se--á concluir que para realizarmos os nossos sonhos, cada um deverá seguir a razão da sua vida. – Mas, continuando a análise, prosseguira nas suas observações, dizendo: – Quando chegamos à página 79, linha 14, o professor propõe-nos como fundamento último para a realização dos mesmos, que vivamos com perspetiva num “Mundo de idealidade”, o qual passo a citar: “Neste Mundo de Idealidade, os objetivos que percorremos tenderão para a realização transcendental, uma realização mais elevada que a realização ideal, já que será uma realização onde somos singularidades disponíveis e voluntárias que não servirão só na tradição porque querem realizar a História”. – Depois, para concluir, sugeriu afirmativamente: – No entanto, apesar de estes dois fundamentos serem esclarecedores para a compreensão da nossa dimensão real e ideal na realização dos nossos sonhos, creio que todos gostaríamos de saber se existe algo mais que desconheçamos, sobre as razões de nos propor este caminho, em especial, o do Mundo de idealidade para alcançarmos a singularidade em plenitude!

    – Bem, têm razão! Existe, de facto, algo mais – respondera o professor com total concordância. – Por isso, já que no primeiro fundamento não pareceu ter havido grande dificuldade na interpretação, vou limitar-me teoricamente ao fundamento da idealidade, julgando com esta explicação poder ajudar-vos a caminhar melhor na vivência da vossa vida. Sendo, também, minha preocupação apresentar-vos depois alguns fundamentos práticos, dado que neste caso serão as razões que serviram de fundamento para a proposta em questão.

    Neste sentido, começarei por dizer que, em todos os aspetos, o termo idealidade terá de estar relacionado como real; no entanto, sabendo nós que cada situação desejada e cada circunstância que a condiciona dificilmente coincidirão com a nossa vontade e possibilidade, tornar-se-á necessário que o termo seja concrescível com a nossa atitude voluntária, que o termo cresça com a nossa disposição dinâmica, para podermos conceber ser possível atingir o real. Será preciso que, pela nossa ação, ele se abra e se acrescente nos limites do ideal (como, por exemplo, no ideal de família), para poder manifestar-se depois nos domínios do realizar e do sentir na totalidade.

    A idealidade e o voluntarismo na motivação tornam-se emergentes na nossa ação. Só através de um limite ampliado (ou seja, através da idealidade), se podem abstrair todos os limites, mesmo nas circunstâncias em que julgaríamos racionalmente tal não ser possível. Ser voluntário é proceder por vontade própria, é proceder sem estar à espera de qualquer contrapartida. Proceder pela idealidade em relação à vida é também proceder voluntariamente com a disponibilidade que nos for possível para a interpretar em todas as dimensões que a constituem. Procedendo deste modo, mais facilmente compreenderemos que a vida, pela sua natureza dinâmica, surgirá em todas as formas afins, independentemente da nossa vontade, embora possamos conjugar toda a nossa força e inteligência para a defender e a tornar melhor, sem esquecer os limites da nossa fé, para podermos ser mais confiantes, sobretudo quando estivermos perante casos de grande incerteza. Logo, pela mesma razão, compreenderemos que a vida e que a nossa consciência sobre cada situação indicam uma globalidade que o poder humano será capaz de experimentar, de modo certo e seguro, embora dessa globalidade apenas possa apreender algumas partes, pois o homem é uma totalidade que participa da globalidade, mas isso só é possível na condição de essência e singularidade existencial.

    Quanto aos fundamentos práticos, que são neste caso as razões principais para a proposta que vos apresento, gostaria de começar por vos contar o que fui relacionando. Algo que terá a ver com aquilo que ressurgiu num caminho de luz e sombra.

 

    Às doze horas, do dia um dia vinte e quatro do mês de fevereiro, do ano de 1950, dera os primeiros “gritinhos” a criança do sexo masculino, que Maria tinha acabado de dar à luz.

   Foram longas horas de sofrimento, pelas dores que, em compasso, se alongaram até aos últimos instantes antes do nascimento. Maria gemia com brandura durante as dores de parto. Era uma mulher sofrida, que ao dar à luz também exorcizava a dureza da vida que a corroía nos dias de fome e nas muitas horas de sofrimento. Depois do momento de alívio, Maria mudara o rosto de sofrimento marcado por gemidos contidos, para um rosto de prece, louvando Nosso Senhor Jesus Cristo, pela graça de lhe conceder mais um filho, já que em todo o tempo, não manifestara com maior sacralidade outra qualquer vontade. É certo que era bastante a sua experiência nestes mistérios, já era mãe de seis rapazes, apesar de só três terem escapado aos surtos das “doenças ruins” e das quais só os doutores souberam o nome. Era mais um rapaz, o sétimo filho que acabara de nascer, porventura marcado no número, com uma simbologia especial, pois dizem que o sete é um número bíblico: sete são os céus, sete são os dias da semana, guardam-se os segredos a sete chaves, etc. Não foi a menina que dizia desejar, mas nestas coisas, da vontade de Deus, dizia também que Ele é que sabia oque era necessário e que nós deveríamos aceitar tudo, segundo a Sua vontade. Era o sétimo filho, que contava já na sua ainda jovem vida, já que tinha casado muito nova e muito pouco tempo depois do casamento começara a experiência da maternidade.

    Ao meio-dia de 24 de fevereiro de 1950, no Hospital Geral de Santo António, na cidade do Porto, Maria dava à luz mais um menino que fora registado nos serviços do hospital com o nome de António. Depois do parto, Maria beijara com doçura o seu menino, contemplara-o e afagara-o por algum tempo até o levarem para ser lavado e voltar de novo ao seu leito.

   Enquanto durara esta separação, agarrara-se aos lençóis e beijara-os como que a agradecer as bênçãos recebidas. E, sem querer que se notasse, deixou deslizar pela face algumas lágrimas que, ao formar pequenas gotas, lhe afagaram o rosto e lhe apagaram a sede de todo o sofrimento. a religiosidade de Maria acendia na sua alma a força e a vontade dos profetas e o nome que dera ao seu filho haveria de merecer a caridade das testemunhas do seu nascimento. Os registos no hospital obrigavam a estes tratos e ela era demasiado pobre para poder pagar a alguém. O nome António haveria de fazer recordar o divino Santo António e fazer sentir no coração o apelo da esmola a qualquer alma que estivesse no local do registo hospitalar e fosse bondosa para assinar o termo.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 9 a 14

 

Path of Light and Shadow (Text 2)

 

Without being able to refrain himself for much longer, he replied pausingly:

– In fact, today I’m not in my days regarding the joy I use to manifest. I want you to know that this is our last class, that I’m going to leave school, the order to the passage to retirement has come. Tomorrow, I will already be a retired teacher and, since I thought more about work than about retirement, this seems to me like an illusion! – he had said these words with an apprehensive and distant look.

– Oh! Are you going to let us?! – they exclaimed with sadness.

– I’m going to let you and all the community – he added with mildness and peace. Later, understanding that the atmosphere began to get heavy, he incited them to share some of the common happiness by saying: – For us to get ourselves a bit more animated, I propose for today’s class a reflection about the following question: “How do you expect to fulfill your dreams?” This means that each one may speak or write about their desires and enjoy the freedom to fly through thought up to the place of the dreams you’d like to fulfill.

– Ok, teacher! – they answered without hesitating. Meanwhile, without anything that made it predict, another student raised his arm to inquire him.

– I would like that, before we talk about our dreams, we could listen to the teacher about what he wrote in his book: “By Growing We Build the Dream” (i). – And, for the effect, he situated immediately the page 35, line 21, starting to read out loud: – “After all, I see now, with clarity, that the reason by which each one guides themselves is the reason of their lives, which, being original, gives them the touch of quality that makes us different from each other”. – Once the reading of this excerpt was finished, he commented: – From this thought, we may conclude that for us to fulfill our dreams, each one should follow the reason of their lives. – But, continuing the analysis, he proceeded in his observations, by saying: – When we get to page 79, line 14, the teacher proposes us as a last fundament to the realization of them, that we live with perspective in a “World of Ideality”, which I start to quote: “In this World of Ideality, the goals we go through will tend to the transcendental realization, a realization more elevated than the ideal realization, since it will be a realization where we are available and voluntary singularities that will not serve only in the tradition because they want to realize History”. – After, to conclude, he suggested affirmatively: – However, despite these two fundaments being elucidative to the comprehension of our real and ideal dimension in the realization of our dreams, I believe that we all would like to know if there is something more that we ignore, about the reasons of you proposing this path, especially, that of the World of ideality for us to reach fully the singularity!

– Well, you’re right! There is, in fact, something more – the teacher answered with total concordance. – Therefore, since in the first fundament didn’t seem to have great difficulty in the interpretation, I will limit myself theoretically to the fundament of ideality, and I think that with this explanation I may help you to walk better in the living of your life. And it is, also, my concern to present you later some practical fundaments, considering that in this case it will be the reasons that served to the proposal in question.

In this sense, I will start to say that, in all aspects, the term “ideality” will have to be related as real; however, because we know that each desired situation and each circumstance that conditions it will hardly coincide with our will and possibility, it will become necessary that the term is concrescible with our voluntary attitude, that the term grows with our dynamical mood, so that we are able to conceive as possible to reach the real. It will be necessary that, through our action, it opens itself up and adds itself on the limits of the ideal (as, for example, in the ideal of family), so that it may manifest itself later within the domains of the realization and of the feeling in totality.

Ideality and voluntarism in motivation become emergent in our action. Only through an amplified limit (that is, through ideality), may we abstract from all limits, even in the circumstances in which we would rationally think that such is not possible. To be voluntary is to proceed by self-will, it is to proceed without waiting for any compensation. To proceed by ideality towards life is also to proceed voluntarily with the availability that is possible to us to interpret it in all dimensions that constitute it. By proceeding this way, more easily we will comprehend that life, by its dynamical nature, will emerge in all similar forms, regardless of our will, although we may combine all our strength and intelligence to defend it and make it better, without forgetting the limits of our faith, so that we may be more confident, especially when we are before cases of great uncertainty. Hence, by the same reason, we will understand that life and our conscience about each situation indicate a globality that the human power will be able to experience, in a certain and sure way, although that globality can only apprehend some parts, since man is a totality that participates in globality, but that is only possible under the condition of essence and existential singularity.

Regarding the practical fundaments, which are in this case the main reasons for the proposal I present you, I would like to begin telling you what I was relating. Something that will have to do with what has resurged in a path of light and shadow.

 

By twelve o’clock of the day twenty-four of February of the year 1950, the male child gave his first little cries, which Maria had recently delivered.

It was long hours of suffering, by the pains that, in compass, prolonged to the last instants before the birth. Maria moaned blandly during the labor pains. She was a suffering woman, who, by giving birth also exorcised the hardness of the life that corroded her on the hunger days and in the many hours of suffering. After the relief moment, Maria had changed the face of the suffering marked by repressed groans to a face of prayer, praising our Lord Jesus Christ, for the grace of Him having conceded her one more son, since at all time, He no longer manifested with greater sacredness any other will. It is certain that it was sufficient her experience in these mysteries: she was already mother of six boys, despite only three have escaped the outbreak of the “evil diseases” and of which only the doctors knew the name. It was one more boy, the seventh who had been born now, perhaps marked on the number, with a special symbology, since they say seven is a biblical number: seven are the skies, seven are the days of the week, we keep secrets locked by seven keys, etc. It was not the girl she said to wish, but in these things, of God’s will, she also said that it was He Who knew what was necessary and that we ought to accept everything, according to His will. He was the seventh boy, who she counted in her yet young life, since she had married very young, and very little after the wedding she had already begun her experience of motherhood.

At noon of the day 24th of February of 1950, at the General Hospital of Saint Antony, in the city of Oporto, Maria gave birth to one more boy who was registered in hospital services with the name of António. After the labor, Maria kissed with sweetness her little boy, she contemplated him and caressed for a while until they took him to be washed and get back again to his bed.

While this separation lasted, she clung to the sheets and kissed them as if she was thanking the received blessings. And, without her wanting to notice, she let slip through her face some tears that, by forming little drops, caressed her face and quenched the source of all suffering. The religiousness of Maria lit in her soul the strength and the will of the prophets, and the name she gave to her son would deserve the charity of the witnesses of his birth. The records at the hospital forced to these procedures, and she was too poor to be able to pay someone. The name António would remind the divine Saint Antony and make feel in the heart the appeal to the alms to any soul who was in the place of the hospital record and who was kind to sign the term.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 9 to 14.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

Caminho de Luz e Sombra (Texto 1)

Prefácio

    Falar sobre o livro de um autor que já se conhece há vários anos é tarefa ingrata, pois parece soar a elogio falso. Porém, perante o desafio para escrever o prefácio desta obra, resta-me apresentar a minha humilde perspectiva sobre o que li.

    O livro apresenta várias facetas interessantes com uma atualidade e defesa de valores que precisam de permanecer na nossa sociedade para que haja esperança no futuro.

    Começamos por sentir um aperto no coração com o professor que vai largar os seus alunos, que lhe são tão queridos, não só pela proximidade afetiva que se desenvolve entre um professor e os seus alunos ao longo de um ano letivo, ou de vários, mas também pela partilha de saberes e pensamentos que vai deixar de ter continuidade, embora sinta que a semente ficou no pensamento e coração de alguns para poderem vir a ser cidadãos conscientes e ativos.

    Continuamos o percurso, recuando no tempo até à década de 50 do século passado, visitando uma época de vidas simples e difíceis, que eram simultaneamente vidas cheias de amor, fraternidade e solidariedade. É um período que muitos de nós não conhecemos, mas que com este livro passa a ser também nosso, porque o autor nos consegue transportar com enorme realismo a essa época com todo o colorido local. Para quem viveu nesse período e nesses locais, imagino que se deliciará a recordar esses acontecimentos e espaços que já não existirão (pelo menos, como naquela época). Para estes leitores, como para os seus familiares mais diretos, também representará um orgulho sentir que tudo o que fizeram no passado não foi em vão, pois existe alguém que não esqueceu esses tempos e que lhes está a agradecer da forma que melhor sabe: imortalizando esses momentos e essas pessoas através da escrita. Para os estudiosos, surge mais um testemunho de um tempo passado que não convirá esquecer: o desastre no rio Douro com uma lancha em 1950; o fantasma da Guerra Colonial (desde os receios dos jovens que partiam até à vida social em Moçambique nos anos 60, com alguns laivos cinematográficos); e os anos tumultuosos do pós-25 de Abril de 1974, a nível académico.

    Mas a obra não se limita a esse objetivo: surge encaixada na narrativa uma história imortal, cujo protagonista é Moisés, que nos envolve de uma forma avassaladora, tal como se estivéssemos realmente a acompanhar esses momentos que são tão caros a quem tem uma sensibilidade religiosa e emocionantes para qualquer ser humano que gosta de refletir sobre a condição humana.

    Finalmente, e como não poderia deixar de estar presente numa obra deste autor, marcamos encontro com a Filosofia, através de vários apontamentos, os quais mais uma vez nos lembram que a busca do saber, de respostas para e sobre a nossa existência, é uma característica indissociável do ser humano.

    São estes caminhos de Luz e Sombra que compõem uma vida e que se encontram vertidos em forma de livro, para serem apreciados até à última folha.

 

Maria de Fátima Dias

Setembro de 2012

 

(1)

    Não fora fácil adormecer na noite que antecedera a sua aposentação. Sentira que não iria despedir-se dos alunos, sem deixar transparecer alguma mágoa, por ter sido um pouco forçado a aposentar-se, mesmo sabendo que teria tempo suficiente para não ser penalizado no valor mensal da pensão. Tivera consciência de que, mesmo nestas condições, contrariava a sua vontade no que teria sido mais desejável – que a mesma tivesse surgido naturalmente, isto é, no limite máximo de tempo que poderia manter-se no ativo.

    Sentira com tristeza este acontecimento, mas o seu culminar teria sido muito mais amargo sem os desígnios da consciência do dever cumprido nem o sentimento de afeto das comunidades educativas de que fizera parte. Teria sido muito mais amargo, porque sempre acreditara que, quando chegasse este momento, surgisse com ele um sentimento mais profundo, julgara que seria mais reconhecido pela gratidão do Estado que sempre servira com a maior dedicação e carinho.

    Procura esquecer as razões da sua mágoa perante a ausência da atitude patronal no reconhecimento daquele momento. No entanto, refere com orgulho que aquele fora o epílogo mais solene da sua carreira, lembrando com alegria o que lhe fora permitido para a sua realização por parte das comunidades escolares; de um modo especial, da comunidade dos alunos, durante o tempo em que exercera o seu magistério.

    Este estado ansioso e de vigília também aconteceram pela interrogação sobre o modo como, a partir do dia seguinte, iria dar continuidade à sua vida, ansiando por manter uma atividade que não fosse muito diferente, no despertar de sentimentos, daquela que, entretanto, mudara na situação do estatuto. Por um lado, porque os alunos o ajudaram a viver com jovialidade e a ser exigente com os modos de ser e, por outro, porque naquela ocasião era o segundo ano que alguns dos alunos continuavam juntos no crescimento e desenvolvimento de níveis de aprendizagem diferentes. Em ambos os casos, partilharam sentimentos que o ensino e a aprendizagem inevitavelmente criam. Laços de afeto, que ficam na memória, que é preenchida no tempo, com a singeleza dos atos que a história da vida nos diz serem novos, mas que a metamorfose da realidade nos parece fazer crer que serão sempre os mesmos. As relações educativas modificam-se, mas parecem atemporais em certas realidades e em certos momentos da vida.

    A batalhar com as ideias que propusera a si mesmo, sobre o modo como lecionaria a última aula, adormecera já a madrugada ia bastante longa. Depois de três horas de sono, ainda agitadas pelos pensamentos anteriores, acordara com o relógio a despertar na hora marcada.

    Levantara-se como se nada de extraordinário tivesse acontecido e preparara-se sem dar quaisquer sinais que pudessem alertar a família para as angústias que cresciam dentro da sua alma. A viagem para a escola seria de cerca de quarenta quilómetros, o que lhe permitiria durante o tempo de percurso sintetizar as ideias que se propusera apresentar aos alunos para o teor da última aula.

    Entrara na escola, saudara todas as pessoas que vira antes de entrar para a sala de aula e que iria ver pela última vez nas condições de professor no ativo. Ficara em silêncio enquanto os alunos se sentavam e se dispunham como era habitual no início da aula. E, como não começara logo a ditar o sumário e a fazer a chamada, como era quase sempre o seu modo de proceder, esta atitude causara alguma surpresa e provocara algum silêncio, dando-lhe tempo para olhá-los com um sentimento de alma que nunca tivera antes. Sentira-se capaz de manter aquela situação até ao fim, acreditara por algum tempo que os tocaria o suficiente para ficarem marcados por uma espécie de paixão, que terminaria ali, para nascer nas suas almas, como forma de uma imagem de alguém, que passara na sua vida para os ajudar a aprender e a caminhar melhor. E, antes de dizer “até sempre”, ou “jamais nos esqueceremos dos momentos que passamos juntos”, como era sua vontade, um aluno entrecortara o silêncio, perguntando com delicadeza:

    – O professor está triste?

    – Não! – respondera baixinho.

    – Parece estar um pouco estranho – insistira o aluno com curiosidade.

    Depois, com alguma indiscrição, indagaram em conjunto:

    – Se calhar fomos nós que fizemos algo de errado, algo que não deveríamos ter feito!

    E como o silêncio continuara, exclamaram em voz alta e com mais objetividade:

    – Diga-nos o que se passa, professor! Não fique assim tão calado! Tire-nos desta angústia, por favor!

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 5 a 9.

 

Path of Light and Shadow (Text 1)

Preface

To speak about the book of the author we already know for several years is an ungrateful task, for it seems to sound like a false compliment. However, before the challenge to write the preface of this work, it remains for me to present my humble perspective about what I have read.

The book presents several interesting facets with an actuality and defense of the values that need to remain in our society, so that there may be hope in the future.

We begin to feel a sense of constriction of the heart with the teacher who is going to leave his students, who are so dear to him, not only by the affective closeness that is developed between a teacher and his students throughout a school year, or several ones, but also by the sharing of knowledges and thoughts that it will stop having continuity, although he feels that the seed had stayed in thought and in the heart of some, so that they may become conscious and active citizens.

We continue on the path, going back in time to the decade of the ’50s of the past century, visiting an epoch of simple and hard lives, which were simultaneously lives full of love, fraternity and solidarity. It is a period that most of us do not know, but that with this book comes to be also ours because the author manages to transport us with an enormous realism to that epoch with all the local coloring. For those who lived in that period and in those sites, I imagine that you will delight to remember those events and spaces which no longer exist (at least, not like at that time). For these readers, as for their closest relatives, it will also represent a pride to feel that everything they have done in the past was not in vain, since there is someone who did not forget those times and who is thanking them the best way he knows: by immortalizing those moments and those people through writing. For the studious ones, it comes up one more testimonial of a past time that should not be forgotten: the disaster in the river Douro with a motor-boat in 1950; the ghost of the Colonial War (from the fears of young ones who were departing to the social life in Mozambique in the ’60s, with some cinematographic smattering); and the tumultuous of the post-25th of April of 1974, on the academic level.

But the work does not limit itself to that goal: it emerges fit in the narrative an immortal story, whose protagonist is Moses, who involves in an overwhelming way, as if we were really following those moments which are so dear to who has a religious sensitivity and exciting to any human being who likes to reflect upon the human condition.

Finally, and since I could not stop being present in a work of this author, we make an appointment with Philosophy, through several notes, which remind us once more the search for knowledge, for answers to and about our existence, it is a characteristic indissociable from the human being.

It is these paths of Light and Shadow that constitute a life and that are turned into the form of a book, so that they are enjoyed to the last page.

 

Maria de Fátima Dias

September 2012

 

(1)

It had not been easy to sleep in the night that preceded his retirement. He had felt that he was not going to say goodbye to the students without letting some sorrow to become manifest, because he had been a bit forced to retire, even knowing that he would have enough time to not be penalized in the monthly value of the pension. He was aware that, even in these conditions, he was counteracting his will in what would have been more desirable – that it should have happened naturally, that is, in the maximum limit of time that he could keep himself in active service.

He had felt with sadness this event, but its culmination would have been much bitterer without the designs of the conscience of the duty done nor the feeling of affection of the educational communities he was part of. It would be much bitterer, because he had always believed that, when the moment came, it would emerge with it a deeper feeling, he had thought that it would be more acknowledged by the gratitude of the State he had always served with the greatest dedication and kindness.

He tries to forget the reasons for his grief before the absence of the employer’s attitude in the acknowledgment of that moment. However, he refers with pride that it was the most solemn epilogue of his career, remembering with joy that what had been permitted to him for his realization on the part of the school communities; in a special way, of the students’ community, during the time he had exerted his mastership.

This anxious state and of vigil also happened by the interrogation about the way how, from the following day, he would give continuity to his life, yearning for keeping an activity that was not very different, in the awakening of feelings, from that which, meanwhile, had changed in the status situation. On one hand, because the students helped him to live with joviality and to be demanding with the ways of being and, on the other, because on that occasion it was the second year in which some of the students continued together in the growth and development of different levels of learning. In both cases, they shared feelings that teaching and learning inevitably create. Bonds of affection, which stay in memory, which is filled in time, with the simplicity of the acts that the history of life tells to be new, but that the metamorphosis of reality seems to make us believe that they will always be the same. The educational relationships modify themselves, but they seem atemporal in certain realities and at certain moments of life.

Fighting with the ideas that he had proposed to himself, about the way he would teach his last lesson, he had felt asleep when the dawn was already very long. After three hours of sleep, still agitated by the previous thoughts, he had woken up with the clock going off at the set hour.

He got up as if nothing extraordinary had happened and he had prepared himself without giving any sign that might draw the family’s attention to the anguishes that grew inside his soul. The journey to school would be about forty kilometers [twenty-five miles], which would allow him during the time of the route to synthesize the ideas he had proposed to himself to present to his pupils for the tenor of the last lesson.

He had entered the school, had saluted all the people he had seen before he entered the classroom and that he would see for the last time in the conditions of a teacher in active service. He had remained in silence while the pupils were sitting down and arranging themselves as usual at the beginning of the class. And, since he had not begun to dictate the summary and to make the roll call, as it was always his way of proceeding, this attitude had caused some surprise and had provoked some silence, giving him time to look at them with a feeling of the soul that he never had before. He had felt capable of keeping that situation until the end, he had believed for a while that he would touch them enough for them to get marked by a kind of passion, which would end there, so that he would sprout in their souls, in a form of a picture of someone, who had passed by their lives to help them learn and walk better. And, before he said “so long”, or “we will never forget the moments which we’ve spent together”, as was his will, a student interrupted the silence, asking with delicacy:

– Teacher, are you sad?

– No! – he answered in a low voice.

– You seem to be a bit strange – the student insisted with curiosity.

Later, with some indiscretion, they inquired after together:

– Perhaps were we who did something wrong, something we shouldn’t have done!

And since the silence continued, they exclaimed out loud and with more objectivity:

– Tell us what’s going on, teacher! Don’t stay so quiet! Get us out of this anguish, please!

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 5 to 9.

 

Instantes de espírito

10.08.2022

     Sem preocupação de tempo e de horário entrava lentamente no barco que o haveria de levar até a um lado da sua escolha.
 
     Apesar de temporário no local começara a fazer-se rotina, cumprimentava o mestre da embarcação com um sorriso, num olhar de relâmpago fixava as margens e num olhar discreto apreendia os rostos dos restantes companheiros de viagem.
 
     Sentado e apeado na segurança pelo cumprimento das regras ia olhando intensamente através da objetiva, disparando a máquina e produzindo flashes de luz para registar os elementos naturais que apanhava.
 
     Barcos, pessoas, paisagens, tudo isto entre os movimentos ondulatórios da água que quebravam o silêncio sem espalhar surpresa, a não ser pelo girar dos motores, que mais ruidosos empurravam aqueles barcos em esforço para um pouco mais além.
 
     Fixado e amarrado agora ao cais, o velho mestre apressava-se a disparar cumprimentos de despedida e votos de um dia bem passado, entre as areias calmas e os banhos daquele mar.
 
     Aquelas pessoas, apesar de desconhecidas, significavam o seu ganha pão e era preciso manter um bom ânimo, depois, mesmo que sendo pobres, estas almas triunfam com a sua humildade e acreditam terem o " prémio dos céus "
 
     -Bom dia, até à próxima mestre!
 
     Despedia-se com um largo sorriso e já a comungar naquela mansidão.
 
     Entretanto, a tatear o caminho que o levava até à praia, refreava o ímpeto da arte a perscrutar na distância o horizonte que se erguia lá ao longe.
 
     Lentamente, como se quisesse deixar profundas pegadas no chão, forçava a palma dos pés e com os calcanhares cortava a areia até bem fundo e ao ponto de perderem toda a nudez com a areia que lhe cobria a sua brancura.
 
     Àquela hora, ainda um pouco matutina, o areal estava ainda fresco e sobre as camadas mais finas ainda aspergiam em salpicos as gotas que as golfadas de água tinham deixado antes.
 
     Mergulhado na imensidão daquela natureza oceânica, sentava-se no chão acariciar as conchas que num colorido astral o levavam até ao sonho de ver nas coisas simples os mistérios da Criação; em cada uma delas vivera um ser vivo e num limite de tempo a rolar pelo espaço sofrera também as penas da transformação.
 
     Ainda a contemplar naquela meditação fizera-se um silencio quase cúmplice que sem produzir palavra interrogara na intimidade:
-porquê, por que é que tudo tem de ser assim?
 
     Despedaçado na compreensão e agarrado aos silencios, sentira como caída do além a tanger a sua imaginação, uma mulher que numa passada leve se encaminhava ao encontro do mar.
 
     Levantara com elegância o olhar, tocara-lhe sem pensar em todo o rosto e quase impercetível nos gestos do olhar observara que aqueles olhos e aquele rosto de beleza estranha eram a expressão da vida na sua mais bela quietude
.
     De repente, desprenderam-se em si as amarras da desilusão que lhe provocaram aquelas conchas repletas de colorido, lindas, muito lindas, mas vazias de vida e cheias de solidão.
 
     A sua imaginação voltara a encher-se de mistério e o perdão da inocência dera-lhe de novo o elan de voltar a ser jovem.
 
Macedo Teixeira

"De graça recebeste,de graça dai."

25.07.2022

      Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspectos da misteriosa transcendência da minha vida.

     E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

     Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos actos.

     A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

     É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

     Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

     Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

     Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

     Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

     Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

     Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

Macedo Teixeira

“Freely you have received, freely give.”

25.07.2022

     Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

     And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

     Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

     Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

     It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

     Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

     However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

     It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

     We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

     Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

     I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

 

Macedo Teixeira

 

Amanhã Poderá Ser tarde

06.07.2022

      Quem não vê a sua própria vida, dificilmente verá a dos outros e de tudo o que o rodeará.

      Quero com isto dizer, de que será necessário prestarmos sempre atenção à nossa própria vida e ao mundo que nos rodeia; pensarmos nela, como um valor infinito e atentamente a escutarmos nas suas necessidades e desejos.

     Considerar a necessidade de existirmos dentro de uma ordem e organização vital e social, uma ordem que será sempre necessária em qualquer tempo da nossa existência, para que ainda que em sofrimento, possamos viver melhor ou pior neste mundo, enquanto possível como uma realidade inspiradora, quer atuando somente como indivíduos, quer atuando superiormente como membros de uma comunidade local e social.

     Não que este movimento introspetivo seja fácil nos dias de hoje; levamos a vida com tanta correria que nem nos apercebemos de que desejos pessoais são aqueles que temos em cada momento que vivemos. A maior parte das vezes surge a ilusão no automóvel, na chávena de café, no dito de espírito; “Olá, está bom? Como vai?...”; mais forte no imediato espontâneo do que na saudação e num cumprimento mais sereno e mais atento ao outro.

     Passamos sempre apressados, sem nos apercebermos do outro, nem darmos conta disso, algumas vezes a falarmos pelo telemóvel em voz alta, ou com os auscultadores colados aos ouvidos, correndo muitas vezes perigo, porque nem olhamos quando atravessamos a rua, movidos por uma responsabilidade muitas vezes turvada pela distração e esquecendo-nos da nossa vida, no que ela tem de melhor: o diálogo, a convivência, o acolhimento, etc.

      Servirmo-nos de tudo a correr e às vezes não temos sabor em nada; vale-nos ao menos a noite, porque nela descansamos e repousamos para o dia seguinte; apesar de às vezes, também dormirmos a correr pois o tempo parece fugir-nos e as preocupações parecem não nos dar descanso nem nos deixarem viver de outro modo.

      Estimados amigos, meus semelhantes, sei que estou a escrever sentimentos e ideias que todos já bem conhecem, mas tenho consciência de que às vezes é preciso que alguém nos faça pensar, refletir nas nossas atitudes; e o momento em que lemos algo, sobre a necessidade da sua lembrança, pode ser o sal para temperar a nossa consciência, o açúcar para adoçar os nossos sonhos ou a água para limparmos melhor algumas das pequenas manchas que todos temos; todos aprendemos com os sentimentos de recordação e com os exemplos dos outros, também!

     Sejam então as ideias que, entretanto, hoje vos transmito, algum açúcar para adoçar os vossos sonhos e os meus também, porque a vida precisa da nossa atenção, a começar logo em nós, para se poder estender aos outros, para se poder estender sobretudo àqueles que nos são os mais próximos.

     Não se poderá viver só a correr ou só a dormir; não se poderá viver só pelo transitório e efémero; a vida não é provisória, nem se conserta como se consertam os objetos.

     E eu com estes considerandos não pretenderei convidar-vos a andar a olharem para tudo e a prestarem atenção a tudo, isso não será possível, mas olharem para o essencial!

     Proponho que passem a olhar mais conforme as vossas possibilidades em todo o sentido e, a permanecerem nos atos sociais, conforme vos der mais jeito no vosso tempo e na vossa disposição, mas contendo a pressa porque ela é companheira da ansiedade.

      Proponho com elevado sentimento sobre o que seja digno, para apreciarem o que fazemos de nós e apreciarem as coisas que também seremos capazes de criar e organizar na natureza ou na comunidade. Pois se não prestamos atenção às coisas que criarmos e produzimos dentro da organização, se não as valorizarmos individual e socialmente, nem as defendermos agindo sempre como pessoas de bem, dando conta do que acontece de bom, pelo olhar mais atento e valorativo, ou quando for o caso, do que não estará em ordem ao bem social, do que irá pondo ou já estará a pôr em causa a nossa própria vida  ou a vida do grupo, de que servirá andar tão apressados na existência, só para podermos correr para qualquer lado, mas sem pensar na direção nem no valor dessa correria?

     A pressa justificar-se-á, com certos limites, mas só para chegarmos ao que fazemos e para gozarmos o que criamos.

      No entanto, se só tivermos pressa para andarmos em correrias e à toa; a vida não terá sabor e a nossa consciência perderá o sentido dos nossos sonhos e da nossa liberdade, esfalfar-nos-emos imenso e acabaremos por nos saturar de tudo!

     Quem não vê a sua própria vida no valor do dom que ela tem, dificilmente se aperceberá de que estará a competir em sociedade, que não deverá para ser, para o melhor e o mais importante, mas para a melhorar para si mesmo e para todos os outros e para a Humanidade.

     Se não prestarmos atenção ao que é profundamente humano e fundamental, para podermos envelhecer no Tempo com a esperança numa vida plena e saudável; porventura, com alguns sacrifícios e amarguras, mas realizada com atenção em cada tempo de espera, de trabalho ou de viagem. E se não dermos valor às coisas que temos, às casas, aos automóveis e estradas que construímos, se não dermos valor aos filhos que criamos com educação e amor, à mulher ou ao homem que nos inspiram, à conversa amiga que trocamos com o nosso semelhante; que significado terá a vida e que significados terão as coisas, que por vezes, com tanto suor e sofrimento fomos conseguindo realizar ao longo da nossa história?!

     Não vos convido a viverem e andarem precipitadamente ativos ou a serem demasiadamente moles nas vossas decisões, a minha proposta será no sentido de apreciarem sempre quem são, como criaturas e seres do Universo, que nasceram e vivem para apreciarem também as outras pessoas e todos os elementos que o constituem e o tornam admirável.

     Proponho que vivamos com humanidade diligente e crítica em atos descomprometidos e livres, atos democráticos, determinados e socialmente humanos, porque se não o fizermos, amanhã poderá ser tarde, para a libertação da nossa vida de toda e qualquer tragédia.

 

Macedo Teixeira

 

O Verão do Nosso Contentamento

21.06.2022

     São várias as formas do Tempo; a forma do dia ou do mês; da Estação do ano, da tarde, da manhã ou da noite; são várias as formas que dão forma a uma certa ordem da Vida e do Universo.

     Estamos quase no verão, uma estação do ano que é bastante desejada e bastante vivida pela maior parte das pessoas do nosso querido país e do mundo; uma estação que traz um pouco mais de calor para animar os corpos e despertá-los para uma certa parte da vida e das festas da vida.

     Uma Estação que perde um pouco da sua elegância para permitir elegância ao homem e à mulher; uma elegância mais subtil e partilhada pela liberdade de opções nos diferentes planos do Tempo da estação e de cada um dos seus dias.

     Dos dias porque, com a exceção dos que não podem ou não querem, podemos andar mais à vontade, mais frescos e com diversidades de objetos de adornos, roupas e cores; as senhoras a despontar com os vestidos elegantes nas cores e nas formas, e em jeito de moda, a combinar as emoções físicas com as emoções da beleza das cores e dos modelos.

     O verão traz consigo o maior período de férias; o tempo de mais liberdade para vestir, dormir e comer; o tempo de que o homem e a mulher dispõem de um modo mais familiar e mais voluntário.

     Cada família reúne-se de uma maneira diferente e a Sociedade funde-se em espaço de convívio e de lazer; cada plano do dia é vivido numa sequência de desejos e prazeres que têm em conta a participação do corpo do grupo e de cada um dos seus membros.

     É preciso voltar de novo a ter forças para o ano de trabalho seguinte; é preciso ganhar vontade para enfrentar outros obstáculos que irão surgir e, quem sabe, se mais complicados que no ano que agora gozamos?!

     O verão traz consigo uma Estação que permite o convívio em modos e maneiras mais semelhantes: a praia, a piscina ou o campo; espaços físicos para a reunião da comunidade com motivações diferentes, mas com objetivos semelhantes; libertar-se da fadiga, fazer amizades e viver a vida, festejando-a com elegância na diversão.

     Nesta ocasião mais especial, até os planos do dia nos parecem ajudar a despertar para acontecimentos mais propícios a cada uma das ocasiões: entre a expectativa, talvez de manhã e também durante a tarde, para a resolução das tarefas ou vivências do lazer e do recreio (para quem está de férias), ao pôr do Sol, pela delícia de uma bebida ou um gelado; um pouco de “cavaqueira”; e não muito raras vezes, surgem à noite (as festas, os encontros sociais, a reunião de família, a convivência no caminhar em grupo a pé pela marginal, ou entrar numa esplanada para beber uma bebida fresca ou mordiscar um gelado, como quem saboreia uma delícia); atos que podem ser semelhantes em todas as estações do ano, mas que nesta a que chamamos Verão parecem ter outro sabor!

     E o que é certo, é que todos partilhamos desta divisão aparentemente sucessiva, e de um modo ou de outro, desfrutamos das suas evidências; reconhecendo na transcendência, que umas vezes é Deus que mais precisa do Mundo, e outras vezes é o Homem que dele mais partilha e nele parece disfrutar melhor de um maior consolo.

     Sejam, então, a beleza e o mistério da Vida, as sementes das nossas esperanças, num futuro para os nossos sonhos que ainda almejamos realizar, pois ao que parece, as realidades das estações do ano parecem antecipadamente quererem falar por si.

     Os pescadores sabem na experiência qual é o seu presente, os agricultores sabem qual o seu passado e formulam votos em cada futuro presente para que seja promissor entre o plantar das sementes até ao colher dos frutos, e todos nós, também desejamos esperançadamente saber, quais os nossos sonhos vindouros, como vivê-los em cada estação do ano, admitindo e sonhando entre o esplendor de um tempo cada mais leve e mais liberto, para os poderemos viver ainda melhor, em cada verão do nosso contentamento.

 

Macedo Teixeira

 
É BOM LEMBRAR
 
Quando a Virtude é Circunstancial!...
06.06.2022
 
     A virtude será uma ilusão, se a justiça que a informa e lhe dá conteúdo não se consubstanciar no caminho da liberdade, assente na verdade, responsabilidade e respeito!
 
    No trajeto percorrido por cada um, sente-se a alegria e o entusiasmo quando este trajeto veicula uma direção coordenada e emana da Liberdade, que o distingue na estrada da vida e o socorre em qualquer estado de solidão. Aliás, é nesta força que reside toda a ação humana, mesmo que sejam diversas as direções percorridas e diferentes os modos de coordenação dos trajetos.
 
    É por esta direção coordenada e responsável que se podem evitar as “malhas” da contradição pessoal e do sofrimento social. É por esta coordenação que se pode romper com o circunstancial, como razão para todos os nossos erros e fonte de todo o mal. Se o homem é com as suas circunstâncias (causas que condicionam o seu comportamento), o homem deve viver pela resolução dessas causas e não pela acomodação às mesmas.
 
    Quando a virtude é circunstancial, a felicidade não tem lugar. Se amarmos uma mulher só pela virtude de ser bela, então a virtude não está em ela ser perfeita, mas só naquilo que é perfeito; ninguém pode ser feliz só pela “beleza da montra”.
 
    Quando a virtude é circunstancial ao tempo em que vivemos, como é o caso dos dias de hoje, tudo passa a parecer ser lícito e, se alguém atrapalha a opinião geral, está sujeito a situações de descrédito e até de desvalor nas suas opiniões.
 
     Não desejo ser categórico, num tal juízo negativo e faço votos para me vir a enganar no futuro, mas ainda que o não deseje, na dúvida começo cada vez mais acreditar, que o grande erro que a Humanidade estará a cometer e a de estar a tornar cada vez mais a virtude algo circunstancial (o que interessará é persuadir e convencer as massas) , ainda que o que se diga possa ou não ser verdadeiro, numa palavra “o pensamento não terá que ter a honra da verdade como garantia!"
.
     Os exemplos, são por demais evidentes e isso me leva a pensar que não estarei a delirar. Basta verificar como grandes “famílias” se instalam nas circunstâncias políticas, económicas e religiosas; como elas criam divisões na humanidade e estados de solidão naqueles que não estão de acordo com estas novas formas de ditadura, “uma pessoa um voto” mas onde está a aceitação de “uma pessoa, uma ideia?”
 
     Vivemos na atualidade pelo exagero da separação da nossa individualidade pela fusão forçada no eu coletivo; negligenciamos o ponto de referência e apoio que reside no centro de decisões pessoais; desnuclearizamos a família, o Estado e os sectores de produção: em nome de uma pseudoabertura, a uma cabeça, uma decisão (muitas vezes, somente contrária).
 
     Evitamos, cada vez mais, por vergonha das palavras, o ideal axiológico que fermenta em cada homem: mostrando-nos moralistas nos pensamentos, para termos amigos no café ou nos corredores do teatro.
 
     Entre o abraço e o beijo já não reside a singularidade do tempo que recheia e embeleza o ideal prático, de quem ama com responsabilidade e deverá ter como desígnio a cidadania autêntica.
 
     Seja-me permitida esta observação, ainda que generosa, até a mulher, salvo as devidas exceções, se tornou parte integrante neste processo; aliás, cabe-lhe também a culpa de não perceber que progressivamente está a substituir uma estruturação possessivamente imposta pelo homem, por uma inconsciente “euforia” de desejos, de ambos, que espalham imagens de desinteresse pelo futuro do grupo da família, que, como se sabe, só é possível pelo casamento, união, relação, (seja lá como for!) mas sempre com a consequente responsabilidade mútua, no par ou mesmo na atitude individual.
 
     Todos somos culpados, e esta ordem de razões negativas não poderá continuar sem uma reflexão sobre as suas consequências futuras, para que a nossa vida em sociedade seja uma força pelo desejo de nos tornarmos cada vez mais humanos:sermos contra a guerra, desejarmos a paz, vivermos com honra e combatermos contra a pobreza, luxúria, devassidão, desigualdade, injustiça, numa palavra "sermos e vivermos como pessoa, por inteiro!"
 
     A liberdade sem coordenação, coesão social e responsabilidade, não permitirá a felicidade, e esta, é um permanente estar-a-caminho, mas é imperioso consciencializarmo-nos desse estar a caminho , logo, ter como centro de atitudes, não a posse trivial dos desejos e vontades pessoais , mas a responsabilidade e o diálogo aberto a todos, mesmo que não sejam do nosso partido ou da nossa religião, ou que não estejam de acordo com a nossa atitude numa relação mais íntima.
 
     Não é possível uma socialização padronizada como qualquer sistema fabril, nem uma assimilação automática: em que nada se discute, desde que a maioria esteja de acordo e que nada pareça mal, desde que seja moderno ou que" passe a ser moda"
 
     Advogar nas circunstâncias é renunciar à força criadora que está em nós; é ignorarmos a nossa vocação ética universalista e perdermos o respeito e honra, que são a nossa pedra-de-toque "no Caminho, na Verdade e na Vida"
 
Macedo Teixeira

MOMENTOS DE REFLEXÃO

18.05.2022

Vida, Um Pão e Um Sorriso.
 
 
     Ao romper da manhã, acordara com o som magnífico do chilrear dos passarinhos, sentira-os naquele momento um pouco mais intensos do que era habitual, até parecia que no seu frenesim queriam também chamá-lo lá para fora.
     Sondara no seu silêncio de encanto e fora desinteressadamente concluindo: sossega homem, que é a Primavera, ela com os seus sinais. Olha que não é outra coisa, não é mais do que isso, apenas sinais!...
 
     Às vezes, sem sabermos porquê, prega-nos uma tal discórdia e ficamos tão tontos que já nem a beleza das estações do ano, nos trazem alegria para vivermos melhor e consolo para superarmos as nossas angústias na diminuição do sofrimento.
 
     Mesmo assim, um pouco indiferente à curiosidade, não resistira em abrir as janelas na direção daquela melodia harmoniosa, apesar de um pouco mais persistente do que o habitual, pois ainda antes de se ter arranjado e feito a sua higiene matinal, sentira-se desafiado pela surpresa que entretanto o inspirava, para ir ver sem ter desejado nem saber que ficaria tão de repente encantado com o ambiente que observava e que naquele momento, despertava em si a diferença da certeza de estar a viver uma felicidade para além da simples rotina.
 
     O ruido pela abertura das janelas, afastara os pássaros em alvoroço, que voando num torvelinho fizeram uma tangente à vidraça, fora um movimento tão singular no significado, que se traduzira, como se lhe quisessem agradecer por ter atendido ao pedido.
 
      Mas quem dera, que ao menos soubessem eles, que o estavam a presentear com uma das mais belas surpresas da nossa existência; acordar para a vida e vivê-la para além das nossas vidraças.
 
      Quedado no silêncio da quietude que vislumbrava, sentira-se por instantes atraído para longe, depois tocado pelos raios solares pudera ver ao perto entre o espaço verdejante as tonalidades da manhã que também acordavam consigo.
 
     Ainda pudera, por algum tempo, distinguir naquele quadro natural, algumas árvores que se agitavam para o nascimento das folhas e das flores, que entretanto, em pequenos berços se vão formando entre as pernadas e ao prepararem-se vão-se alegrando para receberem os frutos que delas hão - de nascer.
 
     Mas os passarinhos, que naquela manhã procederam no alvoroço com mais insistência, não quiseram senão que ele visse também uns cordeirinhos que ladinos iam correndo atrás das mães, que sem canseiras procuravam alimento para comerem. Que também visse que eles não só as não deixavam livres nos movimentos como lhes tocavam sempre com as patitas para as fazerem parar e assim puderem mamar até à satisfação.
 
     Que quadro maravilhoso, que sinais tão evidentes! A Criação e as criaturas, como são fascinantes as belezas da relação maternal na fartura das dádivas de Deus.
 
     Neste esplendor momentâneo, imaginara imenso, recordara-se de si e dos outros, recordara-se das criaturas e do Universo; descobrira como no imprevisível da mente, perante a pobreza do infeliz há sempre forças inexplicáveis que a transformam e a levantam.
 
     Desejara ter ficado por ali, aquele quadro natural enchera-o de luz e de força para se erguer de novo e voltar a dar conta da beleza do Tempo e das Formas; acordar para a vida e vivê-la para além das vidraças.
 
     Mas naquele chamamento de Primavera, havia também algo de estranho e doloroso, o sinal de carinho daquelas aves fora de preparação para uma realidade que contrastava com a paz que sentira e, que haveria de ver com amargura uns minutos depois no caminho que entretanto continuara a peregrinar; o caminho da existência e das suas contradições.
 
     Desfolhara as primeiras páginas duma revista de notícias e dera de caras com uma criança que levava uma braçada de tijolos, trabalho infantil, trabalho para matar a fome de famílias pobres. Andara um pouco mais e, em evidência, na terra árida sobre o pó elevavam-se uma malga de alumínio e um tacho empastado de terra para cozinhar sabe-se- lá o QUÊ?!
 
     Junto deles e naquela solidão prostravam-se duas crianças com uns olhitos que olhavam perdidos no fundo da escravidão; pois daquela terra só as lágrimas poderiam fecundar. E ainda antes de chegar ao fim da leitura, já quase a soluçar, deparara-se com uma mulher ainda jovem, que sentada sobre uma lixeira lia um livro, a prenda que fora rejeitada e que ela recebera como prémio de sufocar entre o lixo com as roupas sujas de lama para poder procurar o pão.
 
     Dali em diante, agradecera em silêncio àqueles pássaros que o fizeram acordar de novo para a Vida, gritara por auxílio e socorro de todos e pensara no que haveria de levar para o Caminho.
 
     Solicitara aos Ricos de todo o Mundo. Uni-vos! Socorrei os pobres e famintos, que a sua vida é o vosso suor do rosto.
 
     Perplexo, entre a amargura, prometera desde então, levar sempre consigo a Vida, um Pão e um Sorriso.
 
Macedo Teixeira

“Juventude, idade de ouro!”

11.04.2022

Macedo Teixeira

      Querer é Poder – porque o ser humano é capaz de sentir, sonhar e amar; querer e poder ser diferente, mesmo na angústia, no sofrimento ou mal-estar em geral.

 

     Nesta plenitude contraditória, surge a existência prodigiosa do ser humano, referente de outro infinito, cuja grandeza se glorifica em todas as criaturas; movimentando-se entre elas, o Homem, esse ser, capaz de se reconhecer em toda a complexidade de constrangimentos que o envolvem e o suspendem, mas só enquanto este não se liberta!

 

     A Juventude é determinada, pela sua real coragem, pelo seu entusiasmo no gosto de viver entre o que há de mais belo; num sorriso de esperança e num desejo de em cada dia sentir-se melhor, mais feliz e mais justo. Vivendo na abertura gratuita ao outro e na vontade comprometedora do seu élan vital, é sem sombra de dúvida, a idade de ouro, a idade que levará o homem pelo caminho até à consubstanciação da sua Fé, da sua Esperança e da sua Realização, no tempo que se há de seguir por todos os dias da sua vida.

 

     Este comportamento, franco e promissor, é o maior valor espiritual que orienta o jovem em toda a sua caminhada, que vai sendo histórica, no sentido supremo da vida; valor que permitirá exclamar com solenidade e respeito, por condições de felicidade responsável no presente e no futuro, pelos juros do " capital" que vai sendo investido, no trabalho, no estudo, no desporto, na música, na ciência, sempre perante as maiores ou menores dificuldades.

 

     Acredito que a pobreza no Mundo irá diminuindo com a melhor organização social Mundial, sobretudo na melhor distribuição dos bens alimentares e económicos. O Mundo será certamente, mais rico e mais próspero, quando o “nosso querer” se revelar mais profundo e mais global, nos interesses sócio-políticos da vida da nossa sociedade.

 

     Será mais livre, quando for mais aberto e dialogante entre pensamento de todos os povos: o exemplo mais poderoso e mais determinante poderá vir de vós, pela vossa formação mais cuidada nos domínios científicos e tecnológicos mais modernos e, acima de tudo, pela elevação no ato de julgar: ser Verdadeiro,Respeitoso e Responsável

 

     Será este o Capital propiciador para uma riqueza económica mais equilibrada, permitindo, por certo, uma afirmação mais convicta e respeitável sobre a dignidade humana, neste mundo, ainda tão conturbado e confuso.

 

     A dignidade de um povo reflete-se nas suas gentes, especialmente, nas pessoas mais jovens; pelo seu interesse, pela sua grande vontade em tornar o Mundo melhor, no seu desejo de afirmação pessoal e ainda pela sinceridade no cumprimento dos objetivos universais da Humanidade

 

     Olhem, que os mais velhos e as crianças sempre vos procuraram seguir, mas, já não são muito raras as vezes, em que nos nossos dias, teimais em deixá-los ancorados no seu estado de insegurança. Os ventos da sua fortuna fustigarão toda a formação moral e ética do mundo, e as instituições serão as primeiras responsáveis, pois apesar do esforço global que têm feito, não tem sabido o suficiente, como evitar e controlar tal perigo.

 

     Não se poderá continuar a justificar tudo em nome da liberdade; permitindo-nos à incapacidade e ao servilismo comprometido: a liberdade impessoal termina onde começa a responsabilidade e o empenhamento de todos.

 

     Se vós, jovens, consentirdes por indiferença ou alheamento, na destruição de tudo quanto vos reverencia no ato volitivo e na nobreza de objetivos; não dignificais a força e a beleza criadora, e melhor fora que os vertebrados que somos, nunca tivéssemos sido capazes de reconhecer a nossa natureza.

 

     Uma natureza, aparentemente contraditória, quando se é capaz de reconhece até onde podemos ser livres, por nos julgarmos diferentes e mais capazes que os seres irracionais; mas não compreendermos voluntariamente que perante o Criador seremos apenas criaturas, embora com funções diferentes, mas entre o mesmo Universo, só seremos parcialmente livres, por podermos ser autónomos nas decisões e capacidades de realização de toda a ação humana.

 

     Importa, por isso, que o presente deva consolidar-se num real autêntico de liberdade, justiça, vontade e ação; sendo a vossa força, neste período da vida, mais actuante e exigente no sentido ético e político; a juventude será a classe mais capaz para o realizar; evitando tanto quanto possível, nesta idade que sendo a mais empolgante e dominadora, seja impedida da sua afirmação na escola ou no trabalho, na saúde ou na diversão, na amizade ou na temperança, no desporto ou na música, em tudo quanto alicerça e consubstancia a vida na sua totalidade terrena.

 

     Tudo isto é possível, sem o recurso a qualquer ato de violência, de imobilismo ou inépcia, de raiva ou de rancor, antes, pelo recurso da inteligência e da vontade, no diálogo, em silêncio ou com os outros; pelo encontro amigo e sem reservas ocultas; ainda que nos cause embaraço, mas, não podemos amar ninguém, se não formos capazes de dar o nosso melhor.

 

     Tenhamos consciência, e vós jovens nos alertem com o vosso exemplo, na necessidade humana de dar, sempre que para tal sejamos solicitados. Deus nos premiará, mas, ficará mais radiante; se o reconhecerdes sem vaidades nem ostentações revivendo em cada momento, uma abertura possível, mais brilhante e mais sentida.

 

     Com o tempo compreendereis que o homem é como um leve pássaro que salta de pernada em pernada, até encontrar a forma de decidir e optar na sua qualquer condição. Caminha “voando”, pensa sonhando e decide-se nunca convencido de ter feito tudo; rejubilando garbosamente, quando pensa ter feito o melhor que lhe foi possível e capaz.

 

     Em vós se reúne a esperança que fortifica os mais velhos e dá alento ao futuro, justificando sem reservas a entrega do facho que é a luz e a semente da glória. Nestas circunstâncias, existe a essência do querer e do poder, para vencer os obstáculos da iniquidade e do imobilismo tendentes a impedir a revitalização dos objetivos supremos da juventude e da humanidade.

Instantes de Movimento e Vida

03.03.2022

Macedo Teixeira

      Fixara da agenda os assuntos a tratar naquele dia, abrira sem ansiedade o seu computador e lera seletivamente as mensagens que, entretanto, chegaram à sua caixa de correio. Passara rapidamente os olhos pelas notícias dos jornais diários, sublinhara os acontecimentos mais importantes e preparara-se um pouco melhor para sair até ao primeiro local donde habitualmente entrava para entre o sabor de uma xícara de café dar azo aos primeiros desabafos sociais; o proprietário do café era um homem simpático e gostava da asserção das coisas da bola, principalmente do seu clube desportivo, de que era um grande fã.

     Nestes gestos de cordialidade e de registo social, verificava-se uma espécie de interlúdio para os Instantes da composição de mais um dia e que, nos acontecimentos mais gerais, se previa complexo e sempre algo imprevisível.

     Assumia-se numa mistura de ingredientes plasmada de movimento e vida, que com o intercalar dos diversos trechos sociais se tornava na origem de uma composição complexa a ser narrada pela história da pegada humana.

     Ataviara-se melhor e com um aprumo mais rigoroso descera até à garagem do seu andar para pegar no seu automóvel de cor preta e já usado, mas muito limpo, e ainda com uma aparência de sinal bastante positivo; o automóvel não era apenas o seu meio de transporte, também representava um pouco do valor económico da sua riqueza conseguida na honra e dignidade do trabalho.

      Naquele dia o café não estava tão cheio como de costume, era um tempo de férias escolares e a escola que ficava próxima, apesar de ser um lugar para os mais pequeninos, dava-lhe uma garantia de maior trabalho, não só os pais das crianças como também funcionários e professores acorriam durante esse período formando a maior parte das vezes uma enchente de pessoas.

      Mesmo assim, aquele homem que servia no café de forma lesta e atenciosa estava com um ar sorridente para todos os que iam chegando, quer para ocuparem as mesas, quer para ficarem de pé pregados no balcão durante um tempo que não se alongava para além do saborear o paladar aconchegante que tem em Portugal uma xícara de café.

     Fizera o mesmo, cumprimentara e sorrira de igual modo para os presentes, havia entre ambos uma amizade gerada pela convivência que depressa se estendia num ambiente de carinho, mesmo aos mais estranhos; o ambiente social urbano será certamente um pouco diferente daquele que decorre de uma matriz de envolvência campesina, é de crer que só o ato de tomar café se apresenta como uma realidade de sentido transversal, in actu.

     Naquele dia o espaço, que estava mais vazio do que o habitual, não lhe seria vantajoso para aligeirar o momento da saída. Não dispunha de grande satisfação nem de grande tempo para poder tagarelar sobre as realidades mais simples ou então complexas pelas confusões muitas vezes reinantes em cada situação, como são as dos encontros desportivos e dos resultados do futebol, que na maior parte das vezes são sentidos apenas como expressão do resultado da vitória, do resultado do neutro ou do resultado da derrota, numa atividade social desportiva que acima de tudo deverá ter como finalidade a convivência entre pessoas, o seu recreio e o seu lazer.

     De qualquer forma, mesmo assim, esta será sempre uma realidade agradável e não terá em nenhuma situação, por muito complicada que seja, nada de grave ou de tamanha insatisfação que não possa ser compensada por outras realidades sociais; não será como a realidade da fome e da miséria humanas, que destroem e matam a vida sem lhes darem nenhuma compensação nem lhes permitirem qualquer retorno.

      Sem demonstrar desencanto nem dar sinal de tédio, despedira-se com um “Até à próxima”, misturando-se entre os demais nas despedidas agradáveis e de bom senso; há nestes lugares e nestes locais de natureza rural uma certa simbiose na amizade, que fraquejará no seu encanto quando se esquecem os pormenores da simpatia, do respeito e da elegância na conduta; o ser humano aqui torna-se mais transparente.

     Entrara no carro e com delicadeza mantivera por alguns segundos o motor a trabalhar sereno e sem pressa, assinalara depois o pisca na direção a seguir e pusera-se a caminho. Com o rádio ligado em tom suave, deixara-se embalar levemente por uma linda canção a que, sem grande força, não resistira a trautear na intermitência alguns dos versos da melodia.

      Entretanto começara a pensar na primeira coisa que deveria tratar naquele dia, a situação em que se encontrava não era nada agradável e daí evidenciar alguma perturbação no seu ânimo.

     Precisava de encontrar o gerente do banco a quem ia recorrer a um empréstimo, necessitava que este se mantivesse atencioso e humano para lhe conceder um pedido de crédito, em situações já especiais de idade, pois tinha uma prestação global vencida no tribunal da casa de habitação que comprara, ainda como inquilino e que acontecera numa razão inesperada e bastante posterior ao contrato de promessa de venda, pois no momento da sua promessa de compra, acreditara que não teria de ir até uma situação daquelas, para ter de comprar em tribunal, e já em tão avançado estado na idade para um tempo razoável num crédito à habitação.

     Sendo no caso, por razões de incompreensão e de injustiça, de algumas pessoas que levaram numa contenda egoísta a que o caso tivesse de ser resolvido à força e sem prévio conhecimento do inquilino, nos termos da Justiça por venda por licitação de um comerciante em hasta pública no Tribunal da Comarca.

     Necessitava de encontrar naquele momento alguém que compreendesse a aflição, pois tinha apenas quinze dias para cobrir a oferta que fora feita ao Tribunal, que confiasse na honra e na seriedade da pessoa e estivesse disposto a correr algum risco aparente perante a administração do banco no entendimento que poderiam fazer da sua competência e zelo na defesa do dinheiro da instituição.

     Como se procurasse no movimento a resposta que procurava, olhara desinteressadamente para as realidades que avistara naqueles instantes, uma mulher com uma criança ao colo anunciando um quadro de maternidade que lhe lembrara a mãe quando caminhara com ele a gritar para pedir socorro perante a gravidade do ferimento que lhe abrira a água fervente quando era ainda pequenino e a sua mãe dormitava sobre a mesa.

     Lembrara-se de que ela fora buscar forças sem saber onde para sulcar as águas que, alvoroçadas, naquele dia de inverno corriam barrentas e enchiam com uma força medonha o carreiro que a mãe com ele a gemer de dor e abraçados na tragédia tivera de percorrer até à primeira povoação.

     Um pouco mais adiante, reparara num enorme camião carregado de troncos de madeira que rasgava a estrada sem piedade na alegria expressiva do condutor que parecia segurar o volante como se este fosse a rédea de um cavalo que teria de domar num certo tempo e entre uma certa distância; aquele homem dera-lhe força e coragem para acelerar a velocidade e ir sem tibieza ao encontro de um pouco de felicidade no dinheiro que procurava e na casa que passaria a ser definitivamente sua; tornara-se de repente um jovem repleto de loucura e de sonho.

     Na azáfama do caminho a percorrer misturara a emoção com alguma lucidez; sentira-se turvo por instantes, mas depressa fora acordado por um taxista que procurava na distância alguém para transportar, sabe-se lá quem!

    Talvez uma pessoa como ele, que procurasse naquele instante os sonhos, mesmo que não pudesse revelá-los por não lhe conhecer rigorosamente a origem, uma casa, um carro, um curso para um filho, um emprego para a filha ou, simplesmente, que o levasse até um lugar sagrado onde pudesse encontrar a paz para uma desavença havida no seu lar.

    Entrara no banco possuído de uma coragem e de uma força que jamais certamente algum gerente sentira; decidido, fora expedito na explicação do que pretendia, e ao cabo de pouco tempo o gerente estava a colocar-lhe condições de pegar ou largar.

    Respirara fundo, ouvira a sua mulher e lembrara-se num ímpeto de surpresa de que o que lhe acontecera não fora senão mais um acontecimento para o pôr à prova perante outras circunstâncias ainda mais difíceis.

    Aquela mulher que segurava a criança ao colo não era nenhuma gigante, mas parecia ter uma força que não emanava da sua doçura; era a vida agreste que pulsava nela e naquela ocasião.

     O condutor não era um domador de cavalos, mas encarnava a luta da natureza para conseguir os seus fins.

    O taxista não era intolerante, naquele momento era o guia que, em certo desencanto da vida, vai buscar dentro da alma um dito de espírito para alegrar na solidão humana ou no corpo por um grito de buzina para acordar aquele que adormece desencantado pelo peso do sofrimento e da amargura nos caminhos ásperos da vida.

    Assim somos os seres humanos, e em cada instante que vivemos há um movimento e um acaso a experimentarem a nossa vida.

O Vale e a Montanha

10.02.2022

Macedo Teixeira

     Entre o Vale e a Montanha vive um sonho de silêncio e de distância, tão semelhante ao sonho da grandeza que se vive e se experimenta, na distância que nos separa no que queremos realizar e do que em cada dia vamos realizando.

     Há uma distância calculada pelos atos do nosso dia-a-dia e um sonho que vai sendo realizado em cada uma dessas metas que percorremos e que nos levam até ao silêncio da certeza; que a grandeza que se vive e se experimenta, na vontade de se ser alguém, se torna possível e realizável.

    A certeza do que ouvimos um dia, àqueles que nos inspiraram acerca do Mundo e dos seus elementos, da sua natureza e da nossa responsabilidade na sua consequente transformação e mudança, não era uma história, a que só eles como mais velhos tinham tido acesso, mas que nós como jovens só poderíamos sonhar, mas não ver a realidade, nem sequer superar o seu próprio sonho.

     De facto, só o entusiasmo e o tempo pareciam estar a nosso favor; o entusiasmo para sermos um dia semelhantes aos que ouvíamos, ser como os professores, os pais ou os amigos mais velhos; o entusiasmo de também um dia, nos tornarmos capazes de disputar a aventura e o credo na nossa inteligência e gosto pelo servir a vida e adquirir toda a satisfação que em cada dia víamos os outros viver; os que nos ensinavam ou aqueles que nos favoreciam no respeito e na distinção de serem mais velhos no meio da nossa juventude.

     O tempo que nos sossegava, porque era necessário esperar a altura certa e a idade perdoava qualquer atraso na colheita dos conhecimentos e ensinamentos; éramos suficientemente jovens para nos prepararmos para o futuro.

    Tínhamos a nosso favor estes dois aspetos fundamentais que nos davam força e esperança de um dia virmos a ser alguém; talvez, como os nossos pais ou os nossos avós, quem sabia?!

    Era o desejo de imitação nas grandes obras e nas grandes causas; na justiça, no amor, na liberdade, no empenhamento; nas causas que entusiasmam qualquer jovem e qualquer pessoa mais velha; as causas, afinal, pelas quais lutamos para sermos homens num reino diferente dos reinos naturais.

     Valeu a pena esperar, dirão aqueles que estão hoje na inquietação da vida e na realização dos desejos por que tanto ansiavam; outros dirão, debaixo da dúvida, que a vida é uma ilusão e que os sonhos que lhes ensinaram a sonhar não passavam de construções sociais necessárias ao interesse da sociedade; outros ainda, quem sabe! estarão a sofrer as penas de um futuro pouco orientado ou de soluções sociais sem sorte e sem riqueza, vivendo atrás de grades ou numa fuga à vida e à sua maravilhosa doçura, para salvarem o corpo, até que as teias da Lei não deixem antecipar mais o tempo, nem fugir para mais lado nenhum.

     Planos semelhantes a vales, onde vivemos a nossa vida e a desejamos manter intocável, no sonho de a realizarmos pela subida até às montanhas da nossa imaginação; sem nunca nos perdermos, nem perdermos a certeza de que valeu a pena esperar pelo dia de sermos homens e mulheres, como foram os que nos acompanharam quando ainda éramos crianças.

     Entre o Vale e a Montanha vive um sonho de silêncio, tão comparável à vida humana e ao Homem e a tudo o que ambos têm; a diferença está nos planos, porque um é o pino da Montanha e o outro é o plano da vida; por um sobe-se e desce-se e por outro caminha-se e vive-se…

     Que os homens e as mulheres deste mundo saibam distinguir a diferença e aprendam a esperar pelo seu tempo e pela sua oportunidade; a Montanha lá estará e o Sonho é eternamente certeza.

 

COMUNICANDO !

03.02.2022

Macedo Teixeira

     Vivemos entre momentos, sensações, estalar de nervos, vontade ser e de resistir. Cada um tem força, tem desejos, tem medos, mas também tem paz e alguma harmonia.

     E entre tudo isto, cada um parece ser sempre uma unidade a realizar-se num infinito intocável e sempre completamente oculto.

    Depois, neste movimento carregado de presenças conhecidas e do que é estranho, surgem as formas da beleza natural e da beleza humana, que entretanto, se vão guardando entre o nosso pensamento e a transformação no sentido do futuro.

     Entretanto, levantadas do silêncio, do mistério e num propósito singular erguem-se os corpos num gesto virginal e sereno a rodopiar entre segredos para os efeitos da criação no conjunto dos mistérios insondáveis do Criador...

aí... como é bela a Vida!

     Prosseguindo na contemplação dos diversos elementos, em fascínio sentimos silêncios e sonoridades, que vão criando no espírito e na matéria uma espécie de síntese a proporcionem a abertura para à visão do que é eterno, para a visão de um sonho que procuramos ansiosamente em cada instante da nossa existência.

     E aí, perante o imprevisível mistério da vida, chego a pensar... aí como eu gostaria ao menos, de poder fixar nem que fosse por um pouquinho de tempo, esse lampejo de amor e de luz divina, para não ter mais nenhuma dúvida e poder desejar nem que fosse apenas por um instante temporal um outro raio dessa luz que me parecesse ser semelhante ao anterior.

     Porém, ao que parece, na vida em movimento nada voltará a ser igual...

    Então, acreditando na impossibilidade de algo ser sempre como desejaríamos, aproveitemos ao menos o melhor de cada momento comunicando,    entretanto, até à eternidade!

 

A MINHA HISTÓRIA/recordando a infância

24.01.2022

Macedo Teixeira

     A personalidade de uma criança, a sua memória e a sua imaginação têm que ser construídas com conteúdos puros, acontecimentos com alguma plasticidade, amor, sinceridade, verdade.

     É nestes valores que se formam as maneiras da sensibilidade e os diversos pensamentos que muito cedo serão repartidos na caminhada da nossa vida e no valor da expressão que lhe vamos dando à medida que crescemos e nos tornamos homens.

     Quem não se lembra de alguns dos momentos da sua meninice? Daqueles momentos que facilitaram a abertura da nossa memória pelas traquinices consentidas e pelas brincadeiras atordoadas de emoção.

     Era menino e gostava tanto de pescar, que me esquecia do comer e da promessa de chegar cedo, que tinha feito à minha mãe. Depois da escola ou aos fins de semana pegava numa cana com linha e anzol, metia um bocado de pão no bolso e lá ia à procura do melhor pesqueiro que houvesse próximo de onde morava.

     Atirava algumas pedrinhas aos peixes, brincava com eles, sem ter consciência disso! Depois, gostava de os atacar com todas as minhas habilidades, com pedras maiores afastava-os uns dos outros, a água formava círculos concêntricos e uma certa ondulação que os confundia.

     Depois, esperava que esta voltasse à normalidade e à sua limpidez, entre uma bolinha de pão que a colocava no anzol a servir de isco.

     Para os iludir ainda mais, atirava à água bastantes bocadinhos de pão para os atrair, e como consequência não tardava a trazer para cima uma ‘boga’, um ‘escalo’ ou um ‘barbo’, que manifestavam tanta vida como aquela que é própria de uma natureza pura.

     Foram momentos que tive e que devem ser semelhantes a todas as crianças, senão nos factos, pelo menos nos desejos e na vontade de experimentar. Momentos que temos num certo tempo que são bons quando realizados ou são tristes quando insatisfeitos ou irrealizáveis por qualquer razão, mas que nem por isso deixaremos de estar alegres e de ser crianças sadias.

     Foram sensibilidades da inocência e da pureza do nosso espírito; foram elas que nos deram força, nos alimentaram de ternura e até nos guindaram da solidão das tristezas ou das alegrias quando sós ou quando ainda não tínhamos grupo para as manifestarmos.

     Foram o prémio de um valor que exaltava a nossa alma de pequeninos e nos abria os sonhos das ilusões passageiras que, apesar de tudo, tinham uma graça especial.

    Quem não se lembra de pouco ter dormido na noite em que lhe tinham dado alguma coisa para calçar ou vestir, jogar ou passear, principalmente na noite de Natal?

     Quem não sentiu que a noite era demasiado longa e o dia tardava a nascer, para podermos ver e mostrar o que nos tinham dado? Fossem umas botas de cabedal duro e forte para atestarem alguma humildade económica, fossem uns belos sapatos de verniz para estrearmos em cerimónia ou prendarmos os valores materiais da vida de quem tinha um pouco mais para gastar e podia viver economicamente melhor.

     Quem não se lembra destas palpitações nervosas pela causa de uma realidade que era necessária, mas que para nós era uma prenda que fazia notar e, ao mesmo tempo, nos fazia dizer: “Vês o que eu tenho novo, não é bonito?!”

     As maneiras da sensibilidade são várias e serão tanto mais ricas quanto mais história factual tiverem.

    A todos sem exceção é reconhecida a sua vida e a qualidade igual que esta deve ter; se diferenças houver, serão naturais e por qualquer razão que não será da nossa conta. Essas qualidades não criarão sentimentos de abaixamento social em quem as viveu e experimentou; se forem pobres os objetos com que brincáramos, terão o sabor da recordação de como foram experimentados no efeito da diversão e não pelas capacidades tecnológicas ou culturais que possuíam.

    Ainda toco nas minhas recordações com uma sensibilidade cheia de desejo de aí permanecer. Não se pode parar o tempo da nossa história, mas os quadros com que a pintamos revelam, em certos casos, momentos de pormenor que jamais poderemos esquecer.

    Quando era menino brincava com as coisas pelo prazer de as ter e as utilizar para a minha satisfação. Sabia lá eu, que brincava com os meus próprios sonhos. Afinal, nós temos os nossos sonhos reais, que não são fantasias nem nos deixam no vazio da lembrança. São mesmo realidades que nos acontecem ou que nós as provocamos e que depois causam uma brilhante recordação.

    E mesmo que ao crescermos tenhamos passado maus bocados, são relevantes os pormenores que nos fascinam pela impressão de regresso ao tempo como sensação de libertação causada pelo bem-estar social por havermos conseguido superar as dificuldades.

    Em menino lembro-me de ir para o rio, eu chamava-lhe o regato, e tinha até nomes para identificar o lugar onde nadava com os meus companheiros e onde pescávamos lindos peixes.

    Questão de pormenor, mas que dão um enfeite simples e natural e fazem avivar a nossa proximidade.

    Em certas ocasiões do ano, principalmente no Verão procurava as elevações feitas pelos lavradores para represar as águas e onde corresse um fio pequenino de água arranjava-o como queria para fazer um moinho.

    Com um figo dos maiores que ia buscar à figueira que lá havia, cravava a toda a volta pequenas lascas de madeira de caixas de fósforos ou de pauzinhos pequeninos que alisava carinhosamente.

    Atravessava-o com um pau na vertical com a altura de 30 a 40 cm e com a base exterior ao figo com o bico bem afiado pousava-o sobre um caco de argila com um buraquinho no centro onde a azenha se movia. A sua velocidade no movimento era conforme à biquinha de água que eu previamente preparava.

    Não podia esquecer-me de construir uns pequenos muros até à altura do pau do moinho, onde depois suspendia uma barrinha de arame ou de madeira com um anel em arame fino ao centro onde rodava o pau da azenha na vertical superior.

   Ficava horas a olhá-lo, a vê-lo rodar e a jorrar água em seu redor. Só o largava para regressar a casa, mas no outro dia ia vê-lo de novo.

   Quando a corrente da água aumentava pela alteração dos caudais do rio, eu não podia brincar mais com o meu moinho. Tinha de esperar por outro ano e pela estação do Verão, que era a que me permitia viver este pequeno sonho.

    Fazia outras coisas, bem sei, mas cada uma delas era diferente no embalar da vida e na esperança de viver mais.

    Cada um destes momentos humedecera de perfume a minha sensibilidade, abriram-me tempos de ansiedade para ser alguém na vida. Criaram-me desejos de vir a ser no futuro o meu próprio sonho, à medida que ia sonhando.”

 

“Aquele a quem Nosso Senhor deu o talento de escrever, escreva como quem reza. ” — Padre Américo.


Saber Pensar… É Necessário!

27.12.2021

Macedo Teixeira

     Ainda mal nos tínhamos acomodado na tasca do ti’ Manel e já a sua ira começara a revelar-se:

     — Vocês sabem lá pensar! Nem sequer sabem correr, quanto mais pensar!... E haverá quem procure o saber, nesta aldeia? Se calhar preferem viver na ignorância?!…

     Essa é boa!... Ainda estou a pensar no que disse aquele palerma!... Mas quem pensará ele que é? Se calhar anda a pensar que é um médico! Um médico como aqueles que tratam dos males da cabeça, os doentes mentais!...

    Hum!… cá para mim aquele patife, com a sua léria, quis insultar toda a gente!... Então, eu não sei pensar?! Serei um ignorante ou um atrasado mental?

     Ora, se eu fosse um ignorante, não saberia fazer nada e, se fosse um atrasado mental, não andaria por aí à solta, com certeza que já me teriam internado num manicómio!

     Isso… de com falinhas mansas estar a chamar-nos malucos é que eu não admito a ninguém!... Sempre me desenrasquei na vida, sempre soube como viver através do trabalho e da minha habilidade e não precisei de muita escola! Tenho ganhado dinheiro para sustentar a família, não roubo nada a ninguém, sou honrado e trabalhador, por isso não sou nenhum burro, sei pensar e sei fazer as coisas; os burros é que não sabem!... Sim, esses é que não sabem, não sabem pensar, nem sabem fazer nada por eles mesmos, é preciso carregá-los e guiá-los pelo caminho para nos ajudarem! Mas infelizmente não são só as alimárias que não sabem pensar, coitadinhas!.. Há por aí tanto burro em forma de gente que que só sabem dizer mal dos outros, e eu nem para bestas de carga os queria.

       Para apanhar o fio da meada, interrogara sem hesitar:

     — Que está para aí a dizer, amigo Pedro?! Que bicho é que lhe mordeu, para estar assim tão zangado?!

     — Deixe-me cá… amigo João: quando a gente ouve da boca de alguns palermas certas afirmações de malcriadez, até fica com suores frios e a falar sozinhos…

     Num instante, seguira-se um arrazoado de lamentações que, sem esperar mais perguntas e já um pouco mais calmo, o homem começara a contar o que lhe acontecera:

     — Oh, amigo João, não é que hoje, nas primeiras horas da manhã, resolvi passar pela casa do povo para saber novidades da Previdência. Entretanto, ao chegar às proximidades da porta da entrada, reparei que estavam juntos vários amigos que eu já não via há algum tempo, estando com eles uns cavalheiros que eu não conhecia. Parei e saudei-os com um cumprimento de mão bem apertada; pois eu sempre me soube dar ao respeito, pensando sempre que, onde estiver um amigo, também nos merece consideração e respeito quem estiver com ele.

     Mas fique já a saber, amigo João, que embora seja com mágoa o que eu lhe digo, que antes eu tivesse sido malcriado e não tivesse parado nem cumprimentado ninguém; pois não me tinha incomodado ao ouvir certas palermices de cavalheiros que não sabem comportar-se nem ter respeito por ninguém.

     Inquieto, tentara apanhar o fio da meada e interrogara sem hesitar:

     — Mas, o que foi que esses cavalheiros disseram, que foi assim tão grave!?

     — Eu explico melhor:

    Um desses cavalheiros que falava com os meus amigos, cuja relação de amizade eu nem cheguei a descobrir, dizia ter aprendido muito na escola, principalmente quando estudara na Universidade.

     Porém, a certa altura da conversa, começou a dizer que a maior parte das pessoas era ignorante e que na nossa aldeia também não havia ninguém que soubesse pensar.

     Quando ouvi esta blasfémia, para não ficar como os meus amigos em silêncio e dar azo ao dito de que “quem cala consente”, intervim imediatamente:

     — Ora, ora… eu não sei a quem é que o cavalheiro quer chegar com esse tipo de conversa! Mas essa de dizer que na nossa aldeia são todos uns ignorantes e ninguém sabe pensar, é que eu não lhe admito, e se os meus amigos não se importam da desonra com as palavras, isso é lá com eles, mas comigo, isso é que não!..

     E sabe, meu amigo Pedro, que aquele cavalheiro, não se sentindo completamente satisfeito com a ofensa que já tinha feito a todos nós, voltou-se diretamente para mim e de rajada, vociferou:

     — Mas você acha que sabe pensar? Você nem sequer sabe correr, quanto mais pensar!...

     A remoer estas palavras indesejáveis, amansara lentamente a expressão num certo lamento moral:

    — Oh, amigo João, mas para que é que eu parei no caminho e não segui a direito. Parei para respeitar com cordialidade as pessoas e afinal acabei por ouvir aquele palerma a passar-nos um atestado de ignorantes e de atrasados mentais.

     Entretanto, com o eco deste lamento produzira-se um ambiente propício à compreensão da expressão que causara tanta perturbação e discordância.

    — Olhe que se calhar não será tanto assim, amigo Pedro: Ao que parece essa pessoa não teve intenção de o magoar e muito menos de o julgar incapaz. É verdade que poderia ter sido mais explícito, mas decerto que ele não se estava a referir a nada do valor mental e muito menos a qualquer perturbação.

     Esta probabilidade aduzida nesta altura não o acalmara e fizera-o crispar-se num sentimento negativo mais acusador:

     — Ora, ora, balela é o que isso é, amigo João! Não ponha água benta nessa criatura, esse cavalheiro não tem desculpa, foi malcriado comigo!

     — Bem, eu não quero de maneira nenhuma contrariá-lo e muito menos pretender desculpar alguém quando se comporta com má educação. Mas se me permite continuar a dizer o que entendi dessas palavras, eu…

     Sem esperar que o amigo deduzisse a anuência, incentivara-o ao diálogo:

     — Sim, sim, amigo João! Pode falar, que eu estou a escutá-lo!

    — Pois bem, tolerando o facto de o cavalheiro não ter sido mais explícito nas palavras que proferira, que por dever lhe competia sê-lo, pois não chega fazermos perguntas ou afirmações, é necessário também elucidarmos as pessoas, especialmente quando nos dirigimos a alguém. Contudo, não depreendo categoricamente no sentido da expressão que a pessoa a que se refere tenha porventura querido ofendê-lo, pondo em dúvida a sua sanidade mental, pois eu também julgo que a maior parte das pessoas da nossa aldeia ou de outra terra qualquer não sabe pensar bem, quer dizer, não aprenderam a pensar corretamente, não aprenderam a pensar através das leis do pensar com correção, num pensamento válido e verdadeiro.

    — Ó amigo João, eu já vi que consigo também não adianta: o amigo é crente nas falinhas mansas das pessoas, mas eu não acredito; para mim isso são balelas, pois nós somos como qualquer animal: quando nos tratam mal, reagimos, pois lá diz o ditado que “quem cala consente”.

    — Não seja assim, senhor Pedro, você sabe que eu o respeito, que fico triste quando você está triste, fico feliz quando você está feliz, acreditamos um no outro, e olhe que nós não somos nenhuns sábios!

    — Tem razão, amigo João, eu exaltei-me. O nosso respeito é muito mais forte do que qualquer querela.

    — Vê… como o senhor lá chegou?

    — Como, não entendo?

    — Pois, se o nosso respeito e a consideração são mais fortes do que cada um de nós, então isso quer dizer que há algo que nos supera, e se o respeito é algo que nos supera, então quer dizer que deveremos procurar saber o que nos está a levar à discórdia!

   — Não estou a entender a sua lógica!

   — Eu explico:

    Sabe? Os homens foram descobrindo e chegaram à conclusão de que não chegava estudar só a Natureza para descobrir a Verdade; descobriram que também era preciso conhecerem o Homem, conhecerem as suas capacidades e saberem como melhorá-las, para comunicar numa linguagem correta e com um pensamento correto.

     — Está a dizer-me que aprenderam a ler?!

     — Isso mesmo! E não só… Eu explico melhor:

     Não é verdade que o Homem é único, e que fica feliz quando os outros o entendem bem?

     — Sim, é verdade!

    — E não é verdade que o todo o homem fica ainda mais feliz quando sente que essa satisfação se alargou aos amigos?

     — Sim, é verdade, mas continuo a não entender aonde o amigo João quer chegar!

     — Então se é assim, pela mesma ordem de razões, poderemos concluir que quando os amigos ficam descontentes, ele também ficará descontente?!

     — Sim, com certeza!

     — Mas não deixa de lhes ter amizade?

     — Não!

     — Então imagine algo simples:

    Quando os seus amigos estão consigo e chega alguém que também é amigo de alguns e se junta, o senhor fica contente?

     — Sim!

     — E se eles, além disso, participarem no diálogo?

     — Fico ainda mais contente!

     — E se eles saírem e nem sequer se despedirem?

     — Fico triste!

     — E porquê?

    — Porque os respeito incondicionalmente, não posso exigir que todos compreendam, mas confesso que na amizade me sinto um verdadeiro homem!

    — E isso só será para si, ou espera que eles procedam também com amizade para os outros?

   — Será para mim e também para os outros; não só eu, como os meus amigos e como os demais semelhantes!

    — Pois bem, sendo assim poderemos concluir das suas palavras que a amizade se manifesta na nossa sensibilidade, e não apenas em nós, mas também nos outros, e que esta amizade vai do mais simples para o mais complexo, e como seres únicos que somos, somos também ignorantes quando desconhecemos?

   — É verdade!

  — E já agora, na nossa modesta opinião, poderemos concluir com razão que procuramos não nos desrespeitar nos nossos juízos, pelo valor da nossa amizade e que ela nos faz descobrir também os nossos limites.

   — Quero acreditar no que diz, amigo João! Pelos vistos você parece ter razão! A nossa amizade ajuda-nos a resolver os nossos problemas, a descobrir melhores soluções.

  — Sendo assim, poderemos concluir que o homem não só aprendeu a ler, como aprendeu que era necessário saber pensar bem, para não ferir a amizade do outro nem ser incorreto nos seus juízos.

   — É verdade!...

  — E acha que só saber ler será suficiente? Não será também necessário saber escrever e falar gramaticalmente bem?

  — Sim, estou de acordo… Também é preciso sabermos as regras gramaticais para falarmos e escrevermos com correção!

   — E o que é que fazemos quando não sabemos aplicar os tempos verbais?

   — Vamos a uma gramática para saber conjugar os tempos!

   — E então como poderemos nós chamar a essa passagem de conhecimento?

   — Talvez a passagem da ignorância ao saber…

   — E como foi que procedemos?

   — Procedemos pela procura!

   E acha que todas as pessoas da nossa aldeia farão isso, ou escreverão e falarão como lhes vem à cabeça?

   — Penso que alguns falarão e escreverão como lhes vem à cabeça!

   — Ora, sendo assim, e se o amigo Pedro estiver de acordo comigo, então nem todas as pessoas falarão nem escreverão bem?...

   — Certamente que sim!...

   — Então o mesmo se passará com o saber pensar, isto é, nem todos saberão pensar bem, porque nem todos aprendem e estudam, quando precisam, as leis do pensar lógico e verdadeiro. É que, assim como os homens descobriram a gramática para falarem e escreverem bem, também descobriram a lógica e suas leis para saberem pensar com correção, num pensamento válido e verdadeiro. Ora, quando o homem não procura conhecer a gramática, é ignorante, porque não sabe e não procura. Está a ver, amigo João, o que certamente o homem lhe quis dizer?

   — Quer dizer: então quando alguém não procura o saber, é ignorante?

   — Isso mesmo! Pois se nós somos sempre ignorantes, porque não conhecemos tudo, deixamos de o ser quando procuramos o saber, o que não se passará com aquele que permanece no desconhecimento e não procura o saber. Com isso, adquire o estatuto de ignorante, porque não procura saber como fazer melhor, julgando que já sabe tudo.

  — Estou a ver, amigo João… Ao que parece, talvez tenha feito um juízo errado…
 

Uma Boa Vontade

07.12.2021
Macedo Teixeira
 

      Kant, filósofo alemão (Königsberg, 1724-1804), deixou-nos do seu pensamento ético uma raiz científica que semeada em cada um, com prudência e lucidez, germinará elementos para a experiência da vida sem ser necessário perder a liberdade de presença ou embotar-se de comoção pela experiência da mesma. O que quero dizer, vou fazê-lo em modo breve e objetivo, estando consciente das inquietações que poderão surgir pela escassez de elementos ou outras interpretações mais desejáveis. Vejamos, então, ao que me refiro:

     – René Descartes (filósofo francês – séc. XVII), no plano do conhecimento, reclama a autonomia do sujeito de conhecimento e no plano moral revela-se estoicista, e a submissão ao mundo é para ele a última palavra sobre a moralidade. Cito, para o efeito, Manuel Lourenço, que diz de Descartes o seguinte: A sua moral provisória pressupõe a subordinação dos desejos do eu pensante à ordem das coisas.

      Emmanuel Kant inverte o ponto de vista de Descartes e introduz na própria moral o primado do sujeito. Aliás, a preocupação dominante do pensamento ético kantiano é, de facto, a do estabelecimento do princípio supremo de moralidade no sujeito autónomo que cada homem representa enquanto ser moral.

      – E como assegura Kant a autonomia do sujeito na ação moral?

       Se o esforço original do seu pensamento ético é mais de compreender e justificar os princípios que fundamentam a ação moral do que propor novos valores morais, a sua caracterização moral aponta para o sentido determinador das condições formais da moralidade, tal como na Crítica da Razão Pura tinha determinado as condições transcendentais do conhecimento.

      Assim sendo, dizia Kant que o fundamento dos valores morais não estava na sensibilidade nem em nenhum princípio transcendente, emanava da própria Razão Prática e Moral. Para o efeito, propôs-se na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática desenvolver as teses fundamentais sobre o problema da moral.

     – Que sentido atribui, então, o pensador à ação moral?

    Trata-se, em seu entender, numa caracterização geral, duma zona privilegiada da conduta humana, onde o homem pode subtrair-se ao determinismo dos fenómenos naturais, assumir-se duma forma livre como pessoa e autodeterminar o seu próprio destino. É este o sentido do seu Primado da Razão Prática; só no plano moral o homem pode ter acesso aos ideais da razão, ultrapassando os limites cognitivos do entendimento.

     É esta a raiz científica, que semeada na razão de cada pessoa e plantada no coração de todos, permitirá, certamente, a resolução de muitas incompreensões humanas. É o próprio Kant que diz na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade.”

     De facto, os talentos do espírito; a argúcia de espírito, de julgar, discernimento ou as qualidades do temperamento, como a coragem, decisão e constância de propósito são dons naturais que são bons e desejáveis; mas podem tornar-se extremamente maus se a vontade que haja fazer uso deles não for uma boa vontade. O mesmo acontece com os dons da fortuna – poder, riqueza, saúde e os dons da felicidade – bem-estar, contentamento e sorte. São qualidades que são favoráveis a esta boa vontade, mas não têm um valor íntimo absoluto; pelo contrário, pressupõem ainda e sempre uma boa vontade. Moderação, reflexão, autodomínio e calma; não podem declarar-se qualidades boas sem reservas; sem os princípios de uma boa vontade, podem tornar-se más.

     Só “a boa vontade parece constituir a condição indispensável do próprio facto de sermos dignos de felicidade”.

    Emmanuel Kant é incisivo a este propósito quando diz: “a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se quiser, a soma de todas as inclinações”.

     E termina esta sua primeira grande preocupação com o chamar de atenção para a faculdade prática que é a Razão e para o poder que esta deve exercer na influência sobre a vontade e o seu verdadeiro destino que deverá ser produzir uma vontade, não só boa, quiçá, como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma… Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade.

   A partir desta ideia de raiz, uma outra se expande e ganha movimento – é a ideia de Dever, que ganha dimensão conceitual na afirmação de ações conformes ou contrárias ao Dever, não se cansando o filósofo de fazer sentir o valor da diferença entre as ações que são conformes e as que são contrárias, quiçá, e na sua neutralidade filosófica não se cansando de demonstrar um carinho particular pelo conceito de Dever que deve estar na base do da boa vontade…

 

Instantes de Espírito de Movimento e Vida

23.11.2021

Macedo Teixeira

      Sem preocupação de tempo, nem opção rígida de horário de partida dos pequenos barcos a motor da parte da manhã que faziam o transporte fluvial de ida e volta pela ria, dirigia-se a um dos locais determinados e entrava no barco que seguia com destino ao porto fluvial de desembarque, conforme o bilhete de passagem, comprado no dia anterior e o desejo de após o desembarque poder ir ao encontro por terra da praia marítima escolhida em cada um dos dias em que se alojara naquela vasta zona balnear.

      Sem uma opção, pelo menos tão rígida, como aquela que tinha de ter quando pretendia regressar à tarde, para chegar ainda a tempo de poder almoçar dentro da hora até ao horário-limite de almoço permitido pelo hotel.

     Aqueles locais de embarque e desembarque no porto da ria eram os que naquela zona terrestre ficavam mais próximos do hotel onde se alojara durante os dias de férias que por ali passara e eram também os locais por indicação desta unidade hoteleira onde se encontravam os barcos autorizados à responsabilidade do hotel que permitiam o acesso dos turistas pelo litoral da ria até às várias ilhas que constituíam as suas partes e que entre o percurso de uma grande extensão fluvial se poderia apreciar nas suas belezas naturais terrestre e fluvial, que entretanto a separavam da imensidão do mar, que se avistava ao longe, à medida que nos íamos aproximando do porto, em direção a cada uma das ilhas escolhidas pelos passageiros embarcados.

     Chegados aí, depois de o barco ficar devidamente ancorado e as pessoas serem rapidamente amparadas pelo pessoal de bordo, os passageiros procuravam sair com grande atenção e sem atropelo, especialmente aqueles que seguiam acompanhados de crianças mais pequenas, sobretudo com maior preocupação na subida da escada do barco, que era acentuadamente vertical e continha vários lanços até se chegar à plataforma superior para se poder pisar terra firme.

      Depois da passagem pelas barreiras de controlo de saída do porto fluvial, cada pessoa iniciava uma caminhada maior ou menor até ao local da praia escolhida pelos caminhos tratados pelos serviços municipais.

    Caminhos que embora fossem arenosos e ladeados de alguma vegetação rasteira e agreste, em compensação surgiam entremeados com lindas flores do monte, que erguidas entre as areias e apreciadas na beleza da extensão, se amontoavam parecendo formar baixos-relevos semelhantes a um certo tipo de dunas.

     Caminhos que iam naturalmente dar a uma pequena praça organizada pelos serviços públicos, com alguns arruamentos cruzados e ladeados de árvores e casas de habitação, de comércio e de restauração, que entretanto serviam de apoio a todos os veraneantes que por ali passavam, fossem estrangeiros ou nacionais, e embelezavam no conjunto todo o espaço natural daquelas ilhas de águas mansas e limpas que separavam o oceano Atlântico, para se dirigirem ao encontro do areal e da praia marítima, escolhida com a compra do bilhete para aquele destino em cada um dos dias de férias em que por lá permaneciam.

    Apesar de saber-se, como passageiro daquele barco, ao cabo de pouco tempo, ser novo naquelas viagens e certamente temporário naquela localidade, começara a fazer-se entre si e a tripulação do barco alguma rotina manifestada num sentimento alegre mais notado por viajar certamente mais vezes naquele barco e revelar na sua singularidade de afetos, que lhe era característica, uma delicadeza mais incomum no cumprimento geral e amistoso a todos os presentes, sempre com maior relevância à tripulação na pessoa do mestre da embarcação.

     De seguida, com um sorriso e num olhar-relâmpago, entretinha-se a fixar as margens da ria para, entre um olhar discreto, apreender também os rostos dos outros companheiros de viagem, tentando num instante meditar e descobrir, ainda que momentaneamente, alguns sinais dos seus estados de alma naquilo que porventura mais os preocupava e qual o melhor momento em cada uma daquelas viagens e naqueles dias de férias, que aos poucos para ele se iam aproximando do fim.

     Depois de entrar na embarcação, sentava-se num dos lugares que, entretanto, encontrava desocupado, mas procurando sempre na sua escolha ir ao encontro do gosto e do prazer pela arte fotográfica, que desejava sentir em cada uma das viagens que realizava nas primeiras horas da manhã e no regresso nas primeiras horas da tarde.

     Mantinha, entretanto, como os demais a devida atenção às instruções de segurança e ao cumprimento das regras, colocando um colete salva-vidas e mantendo-se firme no lugar, pelo menos enquanto o barco se encontrava a fazer manobras de embarque, de partida e de chegada. Mesmo assim, lá ia olhando mais intensamente na direção dos lugares e das pessoas e entre a distância que alcançava pela visão para através da objetiva da sua máquina fotográfica, encontrar o ambiente próprio até à captação das imagens a fixar em cada momento.

     Disparando a máquina cada vez com maior insistência, chamava com estes movimentos a atenção dos outros companheiros de viagem, induzindo-os através deste modo a olharem também para os diferentes lugares e paisagens que iam avistando e lhes acabavam por revelar maior fascínio e também maior interesse.

     Entretanto, entre o encanto dos lugares alcançados pela visão natural de cada um e os flashes de luz produzidos pela máquina, que enchiam de luz o ambiente em cada fotografia tirada, também com estes gestos acabava por despertar maior interesse nos outros viajantes e, com este modo artístico, ainda que em silêncio, convidava-os a contemplar os espaços envolventes, que iam ficando para trás nos movimentos das águas que produziam uma vontade contemplativa da beleza que encerra o todo em cada momento, enquanto este ia registando seletivamente em cada fotografia as imagens mais belas dos elementos naturais que ia vendo enquanto o barco se dirigia até ao porto de desembarque.

    Barcos, pessoas, paisagens, tudo isto entre os movimentos ondulatórios da água que quebravam o silêncio sem espalhar surpresa, a não ser pelo girar dos motores, que, mais ruidosos, empurravam aqueles barcos em esforço para sulcar as águas até um pouco mais além.

    Chegados ao porto de destino, fixado o barco na posição e amarrado agora ao cais, o velho mestre apressava-se a disparar cumprimentos de despedida e votos de um dia bem passado, entre as areias calmas e os banhos daquele mar, que ele só poderia em cada viagem avistar ao longe. Aquelas pessoas que ele diariamente transportava, apesar de desconhecidas, significavam o seu ganha-pão, e era preciso manter um bom ânimo; depois, mesmo que sendo pobres estes trabalhadores e trabalhem no que não causa mediatismo, estas almas triunfam com a sua humildade e acreditam com fé terem pelo menos um dia o “prémio dos céus”.

     — Bom dia! Até à próxima, mestre! — despedia-se aquele viajante num tom familiar e com um largo sorriso já a comungar naquela mansidão.

     Entretanto, meio entretido nos seus pensamentos, começava a tatear o caminho que o levaria até à praia, mas o seu deslumbramento era de tal forma expectante que, parando de vez em quando, como se quisesse fazer meditação, refreava por instantes o ímpeto da arte fotográfica, para poder perscrutar na distância o horizonte que se erguia lá ao longe, pelo menos enquanto não se agitava no andar, para de modo mais intencional dirigir-se até à parte superior do areal que avistava e onde iria depois passar algumas horas do dia.

     Alcançado o lugar para colocar a sua roupa exterior e mais alguns apetrechos que levava consigo, preparava-se vestindo uns calções de banho, protegendo a pele da maior parte do corpo com um creme próprio e os olhos com uns óculos de sol apropriados para poder ver mais longe e deixar-se também tocar pelos raios solares na maior parte do seu corpo.

      Procurava encontrar um lugar na areia e na parte menos elevada, mas dentro de um raio de proteção dos seus haveres, quer pela possibilidade de visão entre ele e a distância das proximidades da borda do mar, quer sobretudo pela razão de, quando desejasse tomar banho ou desejasse aproximar-se simplesmente do mar para molhar os pés e para sentir o prazer da espuma deixada no fim de cada ondulação no areal, pudesse continuar a observar se tudo estava bem ou se, por uma razão inesperada da subida das águas, tivesse de os retirar para um lugar mais seguro.

     Nas primeiras horas da manhã, a praia ainda tinha pouca gente, e o litoral encontrava-se quase vazio. Alguns dos veraneantes gostavam de dormir até tarde, e outros preferiam a praia da parte da tarde, daí que era quase um hábito que mantinha regularmente, de, após pouco tempo depois de chegar à praia e alocar-se no lugar com os seus haveres, dirigir-se até às proximidades do mar e caminhar pela orla marítima num vaivém durante algum tempo, como se com estes gestos despertasse instantes de espírito, e na caminhada quisesse deixar profundas pegadas no chão, pois durante o seu percurso junto ao mar forçava a planta dos pés, e com os calcanhares cortava a areia até bem fundo, ao ponto de os pés mergulharem na superfície e perderem toda a sua nudez com a areia, que lhe cobria a brancura.

     Àquela hora, ainda um pouco matutina, o areal estava ainda fresco, e sobre as camadas mais finas ainda aspergiam em salpicos as gotas que as golfadas de água tinham deixado antes.

     Mergulhado na imensidão daquela natureza oceânica, sentava-se no chão a acariciar as conchas que, num colorido astral, o levavam até ao sonho de ver nas coisas simples os mistérios da Criação; em cada uma delas sabia que vivera um ser vivo e que num limite de tempo a rolar pelo espaço acabara por sofrer também as penas da transformação dos elementos do Universo.

     Entretanto, ainda a contemplar aquelas conchas vazias e mergulhado naquela meditação, fizera-se nele um silêncio quase cúmplice, pois, sem produzir palavra, interrogara-se:

    — Porquê isto, porque é que tudo se transforma, porque é que tudo tem de ser assim: princípio, meio e fim?

     Despedaçado nesta incompreensão e agarrado aos silêncios que o envolviam, sentira de repente, como caída do além a tanger a sua imaginação, uma mulher que, numa passada leve, se encaminhava ao encontro do mar.

     Levantara com elegância o seu olhar, tocara-lhe discretamente pela visão em todo o rosto e, sem pensar em nada que não fosse sonho, quase impercetível nos gestos do olhar, meditara no fascínio que os olhos daquela mulher despertara em si, pensando que aquele rosto de beleza estranha seria a expressão da vida na sua mais bela quietude.

      De repente, acordara de toda a angústia e inquietude própria da mudança, depois desprenderam-se em si as amarras da desilusão que lhe provocaram aquelas conchas belas e repletas de lindo colorido, conchas lindas, conchas muito lindas, mas inertes e vazias de vida e cheias de solidão.

       Por um instante, entre a recordação e o fascínio daquela aparição feminina, a sua imaginação voltara a encher-se de mistério, e o perdão da inocência dera-lhe de novo o élan de voltar a sentir-se capaz de viver com alegria em cada instante de espírito que lhe fosse próprio na sua existência.

 

Uma Luz Na Minha Vida

12.11.2021

Macedo Teixeira

     Fiquei dominado (e confesso que me envolvi), durante algum tempo daquela noite, num silêncio de acordo, para descansar a cabeça e contemplar a recordação dum acontecimento tão humano que se passou num dia destes em que tive de visitar Lisboa.

     Eu era um elemento de um grupo que participava num congresso cheio de surpresas e emoções; estava muito fatigado porque não tinha grande experiência da pressão das grandes multidões (nem sabia bem como fazer) quando nessa tarde chegasse o meu momento de responsabilidade na ação de congressista, quando chegasse o tempo de defender, de um modo mais direto, os objetivos que me levaram à reunião com aquele grupo de pessoas e na capital do nosso país.

     Encontrava-me numa grande cidade e, apesar de fazer parte de um processo social, sentia-me só; sentia-me como se fosse uma peça de uma engrenagem que só entra em funções, mas não manifesta sentimentos. A diplomacia toma conta da moral e dos seus fins; tudo parece reduzir-se a gestos simples que nem sabemos ao certo se os estaremos a interpretar bem!...

     No intervalo, saí para almoçar. Tendo por algum tempo conquistado a minha maior liberdade, atirei com as palavras para uma qualquer pessoa e num qualquer lugar por onde ia passando à procura do sítio para comer.

     Não escolhi, não tinha vontade de escolher fosse o que fosse, o que queria era manter o equilíbrio e afinar a memória para me sentir mais vivo. Queria libertar-me da tensão que a expectativa me havia criado e forçar a vida que me traz ao peito e me desperta nas minhas emoções. Queria, enfim, ser um sujeito elementar, mas também ter no acontecimento a facilidade de me emocionar pela viagem, pela cidade e pelas pessoas – ser um ser de carne e osso.

     - Posso ver? – perguntei, com delicadeza e respeito pela idade daquela linda senhora.

     - Esteja à vontade, menino! – exclamou, com apreensão e curiosidade. E com alguma pacatez e mansidão, lá foi dizendo: - Veja, que há coisas muito bonitas e boas!...

     Tenho no meu temperamento a ingenuidade consentida de tudo ver e apreciar com espontaneidade e elevação. Dou valor às coisas e às pessoas, sem estar preocupado com o que sinto sobre esta atitude. Às vezes, a conversar com os amigos, digo que gosto de inventar paraísos artificiais, jogar com o tempo e correr atrás dele, para não chegar atrasado aos deveres.

     Gosto de nunca estar só, nem que seja com a conexão da vitalidade das pessoas e dos objetos que embelezam e enfeitam as montras dos estabelecimentos.

     Das cidades, gosto do jogo de luzes e de gestos que os espíritos transcrevem e cujos movimentos lhe dão uma certa graça. Mas fico atordoado pela impressão que me causam na sua estranheza e embriaguez; atordoado pelas ilusões do seu fascínio e pelo pânico da sua solidão.

     Passou um certo tempo em que me preguei ao enlevo daquela senhora e à voz tranquila com que ia comunicando com os outros compradores que revelavam ter mais pressa no seu atendimento.

     - Já viu o que queria? – perguntou, com insistência.

     - Já, já vi o que queria, estimada senhora. – respondi com alguma ternura.

     Foi esta voz, já um pouco trémula, menos adocicada e mais altiva, que me integrou imediatamente no meu gesto social, sobretudo no meu gesto de amor, para trazer para os meus familiares objetos de recordação das terras que ia visitando.

     Naquele intervalo, conquistei a minha liberdade e a capacidade de continuar a dedicar um pouquinho mais de atenção aos meus; lembrar-me de quando era menino e ficar ansiosamente à espera daqueles que me trouxeram a este mundo e me deixavam às vezes a brincar com os meus “autocarros” feitos de caixas de camisa, sobretudo quando tinham de tratar de assuntos em terras mais distantes.

     Os meus pais traziam sempre dessas terras uma pequena lembrança, alguma coisa para eu poder brincar! Eles nunca se esqueciam de mim, ainda que fossem brinquedos bastante singelos na expressão da criatividade do homem, para os meus pais tendiam a elevar-se no amor de Deus.

     Os objetos da minha infância estão ainda tão vincados na minha memória e servem-me tanto nas minhas fugas para o vivido que, em certas ocasiões de desespero, desejo ardentemente voltar de novo às ilusões de criança e voltar a inventar os brinquedos que nunca me deixaram só e sempre me pareceram dialogar comigo. Pois quando na necessidade  de consubstanciar-me nos sentimentos da recordação e da alegria que os meus brinquedos, simples e singulares, produziram na minha infância e no meu crescimento, confesso que, sem este raio de luz que me ilumina a memória (e no limite me ajuda e me socorre, sobretudo quando as forças me faltam para continuar), certamente que perante as tentações momentâneas em que vivemos no nosso dia a dia, já teria com certeza soçobrado na minha existência e,  com certeza, também já teria perdido o sentido do valor da vida! Teria ficado entalado entre as tensões e o sofrimento da ingratidão e do desrespeito pela pessoa humana, teria perdido o interesse e o gosto pelas convicções ou teria quebrado, na ética, pela fúria na desforra por atos de qualquer violência.

     Esta insistência do coração não tonifica apenas os estados de desertificação humana, serve, especialmente, para manter a atração natural no jogo da vida e da família.

     As crianças lembram-se dos pais, não só pela figura espiritual da ternura e do carinho, mas também pela alegria de qualquer “prémio”, ainda que por muito singelo que este seja; sentem-se sempre muito ansiosas, sobretudo pelas prendas que supõem poder vir a receber; são como relógios que, “ao bater das horas”, o fazem em sintonia pela pergunta permanente: - Mãe, quando é que o pai vem, quando é que ele chega?!...

     Não creio que estes hábitos tenham acabado, mas já não vejo como prática de outros tempos.

     Sei que os pais andam mais preocupados com as situações que a vida hoje exige; sei também que não estão tão sensibilizados para procurarem, por si mesmos, o que são as partes dos seus desejos e da sua satisfação; nem verem nos filhos, com pormenor no sentimento de amor, a emoção da sua expectativa no lapso de tempo que decorre entre a promessa do “prémio” prometido e a concretização pela obtenção do desejado.

     Os objetos de diversão e de brincadeira são, nos dias de hoje, muito mais complicados; exigem uma participação diferente para a compra e para a compreensão da máquina.

     As crianças já não brincam como outrora, com objetos simples e de fácil acesso na explicação. E hoje é muito mais frequente as empresas de venda direta baterem facilmente à nossa porta, para mostrarem o que há de mais moderno e encantador aos olhos de uma criança.

     Os pais já não precisam de procurar tanto para poderem escolher os brinquedos para os seus filhos, já não têm esse gosto, tudo está “a um passo de distância” e, mesmo que não haja dinheiro na ocasião desejada, poderá comprar-se a crédito, sob certas condições, se se desejar e houver confiança da outra parte!  

     E quando os filhos têm tudo facilmente, sem precisarem de esperar algum tempo pelo “prémio” dos pais, sobretudo sem terem de esperar que haja dinheiro e o momento seja apropriado, também já pouco se lembrarão dos seus pais se estes estiverem ausentes; o excesso material tende a suprimir a carência do amor na vida familiar!

     Ciclo de contração e desaparecimento; ciclo de silêncio e de frio, ciclo que tenderá a arrefecer até à desagregação radical dos sentimentos de família!

     Como se acordasse após esta meditação, animei de novo e escolhi, naquela montra onde a tal linda senhora as tinha em exposição, um conjunto de prendas, objetos que distinguiam os meus sentimentos de partilha afetiva. Nós gostamos dos filhos por igual, mas concentramo-nos no gosto de cada um e excitamo-nos, como eles se excitam, nas suas preferências particulares!

     Para a rapariga, uma coisa que diga mais diretamente respeito ao seu mundo feminino; para os rapazes, algo que afirme a partilha, a cooperação e também a sua preferência!

     Para nós, uma coisa que nos lembre que existimos, que não somos uma peça velha e já deitada ao lixo.

     - Quanto é? – perguntei, com algum carinho.

     A senhora olhou-me profundamente e demorou algum tempo a responder. Não sei se eu lhe fazia recordar alguém. Um filho, talvez! Quem sabe?...

     Como não tinha máquina de somar e as parcelas eram várias, pegou num caderninho e começou a rabiscar os números. “– Um, mais três…mais sete…são…”, a memória faltava-lhe e eu tinha-lhe tomado a emoção. Eu não era um qualquer! Não era, porque ela olhou-me com tanta profundidade e quietude, que eu também senti com emoção que ela ficou presa a mim.

     - Some o menino! Já tenho alguma dificuldade! A vista já não é o que era… – dizia a senhora em comentários divinos.

     Peguei no caderno e somei rapidamente as parcelas. Tirei o dinheiro do bolso e paguei-lhe.

     Não fiz qualquer comentário, mas aquela cena tão sensível ficar-me-á para sempre gravada na memória.

     E é por “esta e outras luzes” que têm iluminado a minha vida que jamais me esquecerei de que ainda existem pessoas no mundo, que, de modo puro e sincero, confiam na honestidade do seu semelhante, mesmo sabendo que estão tão misturadas entre o bem e o mal as sementes dos frutos humanos e que alguns desses frutos ao longo do tempo ficaram tão maus e tão cobertos de ingratidão, que até mesmo perante a fé no ser humano, chegam a pôr em dúvida a nossa semelhança entre todos os nossos semelhantes.

     Julgo que, apesar de ter ficado um pouco turvo de emoção pela confiança que em mim depositara aquela linda senhora, não me terei enganado a somar aquela simples e pequena conta. Julgo também que lhe paguei o valor exato que ela me pedira pelas prendas que eu escolhera e comprara. Julgo que eu próprio servira como um ajudante no socorro da sua memória que aos poucos já lhe ia faltando.

     Atesto o que digo com grande emoção e dou graças pela profunda gratidão manifestada por aquela linda senhora. Dou graças, sobretudo, por, com tanta franqueza, sem saber quem eu era, ter confiado completamente em mim. E, ainda muito mais, por me ter avivado não só o meu sonho de menino, mas também de pai, para continuar a levar sempre prendas para os meus familiares e também não me esquecer do Mundo em que vivemos, de modo a que, sempre que me for oportuno, o ajude a limpar com a força da Verdade e da Luz sagrada da vida, sempre conforme me for sendo possível e as condições mo forem permitindo!

     Oxalá que esta história verdadeira possa também ajudar a aumentar a nossa bondade e a nossa maior crença neste nosso mundo, que está em grande crise de valores, que continua a necessitar deste e de outros bons exemplos, que mostrem, através da experiência, que o ser humano também é capaz do seu melhor.

 

O Poder da Arte no Sonho (IV)

08.10.2021

Macedo Teixeira
 

     Não há associativismo cultural sem aventura nem desenvolvimento sem história; mas nem sempre a aventura nos conduziu ao brilho mais intenso e nem sempre a história foi fácil ou apetecível de escrever. São as cambiantes de uma qualquer realização; que todos mais ou menos reconhecemos serem complicadas, mas na maioria dos casos nunca nos lembramos delas nem da sua complicação. Vamos aprendendo ao longo do tempo que nada acontece sem que uma razão anterior ou momentânea esteja presente em tudo quanto fazemos, pensamos e dizemos, mas concluindo também que, se estivéssemos plenamente certos dos efeitos e consequências e completamente conscientes de todos os factos que realizamos; certamente, muito pouco faríamos e, se calhar, só o que fôssemos obrigados; logo, não haveria tunas, nem campos de futebol; nem parques de diversão; nem pontes nem escolas; a nossa vida não se via da nossa janela nem da janela dos sonhos de um qualquer campeão.

     Será uma razão que escolherá no gosto e no desejo e entroncará na Moral, como meta do bem superior e dos projetos que cada um em particular e todos em geral somos capazes de conceber; ninguém, por mais alheado que seja, quer sentir-se inválido no Mundo; sentir que faz alguma coisa e que os outros não reparam no que faz.

    Será uma razão legítima e ao mesmo tempo essencial; será uma razão de ordem e de respeito; será uma razão da verdade, cujos limites não compreendemos totalmente e, dos que conhecemos, só em parte os aplicamos com a exigência que nos vem de raiz: ninguém quer ser ignorante e ninguém quer ser inútil.

    Será esta razão que está presente nas instituições culturais; porque são escolas de valores e de formação; de reunião e de convívio e centros de interesse na descoberta de aventuras, que nascem algumas vezes dentro delas e se espalham por outras nascentes, mais apelativas e capazes de nos iludirem mais.

     E tenham a certeza de que nada surgirá de grandioso, sem que uma ligeira ilusão nos acompanhe como peregrina; só por ela nos agigantamos e formulamos realidades aparentemente inatingíveis; por ela nos apaixonamos; lutamos por um lugar nas nossas atividades; caçamos na mira de encontrarmos caça; sorrimos para uma mulher na esperança de que ela venha a ser a mãe dos nossos filhos; ou defendemos a Pátria com a fé de que servi-la é honrar a sociedade e acima de tudo respeitar as leis de Deus.

    Felizes dos que sabem interpretar cedo esta necessidade e não se desviam dos caminhos que a unem em longas vias de acesso; porque preparam o caminho para si e para os seus e preparam também os espaços que classificam as terras que os viram nascer; as terras que os filiam e classificam como filhos mais amigos ou mais desinteressados e esquecidos.

    Não é verdade que qualquer comunidade, como local de vivência, se torna no centro de referência indicadora; conforme os seus valores humanos da vida cultural, religiosa, económica e industrial? Isto é, cada um de nós se identifica ou não com os modelos de retidão, inteligência e verdade que notabilizaram a terra em que nascemos?

     Não é verdade que sentimos orgulho de pertencermos a uma qualquer comunidade, sobretudo quando ela é recheada por tantos vultos que engrandeceram a História, nas letras, nas artes, na religião, no desporto, na ciência?

     Será também, como resultado do poder da Arte no sonho, que poderemos, de modo especial, evocar os feitos e factos que tornaram mais aguerridas as comunidades; porém, será necessário continuar a fortalecer este poder no sonho de cada um, pois, com alguma mágoa, já vamos vendo passar no caminho do presente, através das janelas e dos pergaminhos das comunidades, porventura até nas mais recentes, algumas dificuldades e obstáculos que começam a dominar as vontades mais jovens; significa que precisamos de novos guerreiros, porque os principais estão envelhecidos; alguma da sua atividade desanimou e anda pouco motivada; os atrativos universais da Arte foram abalados por outros modos, que, sendo importantes, foram demasiado valorizados; e a juventude nem pergunta porque vai; ocorre em multidões e deixa na solidão estes valores, e só por muita necessidade se fortalecem em Beethoven, Chopin, Mozart, Gauguin, Shakespeare, Camões, Cecil B. DeMille, Miguel Ângelo, etc., que lhes servem de baías e que lhes dão força até à salvação e ao encontro dum novo dia.

    Oxalá estas palavras possam sensibilizar os leitores; sulcar em cada um de vós o ânimo que está escondido, para a mobilização de todas as sensibilidades e ideologias na defesa dos valores dos nossos sonhos.

     Que nesta reflexão brindemos à amizade, ao convívio e ao gosto pela diferença, porque a Arte é una, as canções são várias, e as emoções são variáveis.

     Que os violinos se alegrem, que as flautas soprem ventos de glória; que os bombos soltem ecos de festança e que todos nós possamos admirar o poder da Arte no sonho.

The Power of the Art in the Dream (IV)

08.10.2021
Macedo Teixeira
 

     There is no cultural associativism without adventure or development without history; but not always adventure lead us to the most intense blaze and not always history was easy or appetizing to write. They are the tints of any realization; which we all recognize more or less to be complicated, but in most of the cases we never remember them or their complication. We go learning through time that nothing happens if a former or momentary reason is not present in all we do, think and say, but also concluding that, if we were fully sure about the effects and consequences, and completely aware of all the facts we realize; certainly, we would do very little and, probably, only what we were forced to; therefore, there would be no musical groups, nor football-fields; nor amusement parks; nor bridges nor schools; our life would not be seen from our window nor from the window of the dreams of any champion.

     It will be a reason that will choose in liking and in wish and will join in Moral, as aim of the superior good and of the projects that each one in particular and all in general are capable of conceiving; no one, be he or she the most absent-minded, wants to feel himself or herself invalid in the world; feel that he or she does something and that the others do not notice what he or she does.

     It will be a legitimate reason and, at the same time, essential; it will be a reason of order and respect; it will be a reason of truth, limits of which we do not fully understand and, of those we know, only in part we apply with the exigency that comes from our root: no one wants to be ignorant and no one wants to be useless.

    It will be this reason that is present in cultural institutions; because they are schools of values and of formation; of reunion and of social intercourse, and centers of interest in the discovery of adventures, which spring up sometimes inside of them and spread by other springs, more appealing and capable of illuding us more.

     And be sure that nothing grandiose will rise, without a slight illusion to accompany us as pilgrim; only by it we assume gigantic proportions and formulate realities apparently unattainable; by it we get impassioned; we fight for a place in our activities; we hunt with the aim of finding game; we smile to a woman with the hope that she will be the mother of our children; or we defend the fatherland with the faith that to serve it is to honor society and above all to respect the laws of God.

     Happy are those who know how to interpret soon this need and do not swerve from the paths that unite it in long ways of access; because they prepare the path for themselves and for their family, and also prepare the spaces that classify the lands of their birth; the lands that affiliate and classify them as sons and daughters more friends or more disinterested and forgotten.

     Is it not true that any community, as a place of experience, becomes the center of indicatory reference; according to its human values of cultural, religious, economic and industrial life? That is, each one of us identifies himself or herself or not with the models of righteousness, intelligence and truth that made notable the land where we were born?

    Is it not true that we feel pride of belonging to any community, especially when it is full of so many people of importance who exalted the History, in literature, in arts, in religion, in sports, in science?

    It will also be, as a result of the power of the Art in the dream, that we will can, in a special way, evoke the feats and facts that rendered braver the communities; however, it will be necessary to continue to strengthen this power in the dream of each one, since, with some sorrow, we are already seeing pass on the path of the present, through the windows and the parchments of the communities, perhaps even in the most recent, some difficulties and obstacles that begin to dominate the younger wills; it means that we need new warriors, because the principal ones are aged; some of their activity disheartened and is little motivated; the universal attractions of the Art were shaken by other manners, which, being important, were overrated; and youth does not even ask why it goes; it occurs in multitudes and leaves in solitude these values, and only by much necessity they are strengthened in Beethoven, Chopin, Mozart, Gauguin, Shakespeare, Camões, Cecil B. DeMille, Michelangelo, etc., who serve them as bays and give them strength to salvation and to the meeting of a new day.

   May these words touch the readers; furrow in each one of you the spirit that is hidden, to the mobilization of all sensibilities and ideologies in the defense of the values of our dreams.

    Let us, in this reflection, toast to friendship, to intimacy and to the liking of difference, because Art is one only, songs are many, and emotions are variable.

    Let the violins rejoice, let the flutes blow winds of glory; let the drums release echoes of festivity and may we all admire the power of the Art in the dream.

O Poder da Arte no Sonho (III)

28.09.2021

Macedo Teixeira
 

     Quando a tuna tocava nos lugares públicos, existia uma grande preocupação de rigor; desde o modo como caminhavam até ao modo como atuavam. A Tuna Musical tornou­‑se numa motivação perfeita de muitos jovens e adultos que a serviram com inteira dedicação e a ajudaram a escrever nas páginas da sua história belos acontecimentos e espetáculos musicais. Em terras portuguesas ou em terras estrangeiras, vi-a reverenciar com profunda satisfação; vi um alcaide espanhol deslumbrar-se ao escutá­‑la; ficou tão entusiasmado que, em abraço, nos replicou: “Até à próxima, amigos; foram brilhantes! Gostei muito!...” Portanto, julgo que estes factos são reveladores das nossas capacidades e das nossas características; o empenhamento e a responsabilidade de fazer das obras as cestas do nosso alimento e da nossa vigilância. Por muito simples ou complexas, grandes ou pequenas que sejam, elas induzem-nos na sua descoberta e na sua afirmação; são, aliás, duas das realidades que ajudam a completar a nossa compreensão em relação ao significado que tem o servir os outros através das associações e através da gratidão voluntária; são, aliás, as respostas mais concretas para a explicação do nosso sentimento de felicidade, pelo dever cumprido; pois a maioria das vezes, em final de carreira, cada um exclamando para si: “Trabalhei muito, sofri dissabores, não faz mal, estou feliz!...”

     Seja esta meditação sobre o poder da arte no sonho, mas também na vida, uma meditação serena e sem revanchismos de nenhuma espécie nem ensombramentos de nenhum lugar. Só assim se pode entender o porquê da solenidade dos atos e a simplicidade das partes que os compõem. Por mim e pela minha sensibilidade, tudo estou a fazer para que o que escrevo seja o testemunho da minha admiração.

     A Música tem também esta particularidade: servir o Homem na mudança de humor e sentido de interpretação da vida; facilitar-lhe o caminho para que a nossa caminhada não seja interrompida pelo desânimo e pela fraqueza. Tocam os tambores, gritam os cornetins, tangem-se os pratos, e o alvoroço é imediato; o povo acorre às praças, e as marchas levam-nos até ao fim dos nossos destinos.

     E bem necessitamos desta agitação e pressa para mudarmos o nosso humor para uma autenticidade real; para uma autenticidade que faça de novo despertar a vida para novos compromissos sociais; para novos esforços para pôr em marcha os nossos ideais de recreio, desporto e cultura. Já todos nos apercebemos que é do diálogo que nos alimentamos para a descoberta do que são os outros e do que somos nós; já todos nos demos conta de que a nossa casa é um lugar especial, mas ao menos de vez em quando, podemos partilhar com os outros os nossos gostos e os nossos desejos; sermos amigos e vivermos a amizade na prática e pela reunião! É esse o sentido que voluntariamente devemos seguir; sentir necessidade de nos reunirmos, sem outro interesse que não seja o interesse humano no gregarismo da vida. É esse o significado das obras e do pensamento dos homens que as criam e dos que as mantêm com o mesmo espírito; pelo perpetuar no tempo a responsabilidade do seu significado para com as comunidades em geral, mas, de modo particular, para com os povos, que lhe dão vida e são parte integrante dos seus sucessos e dos seus fracassos.

The Power of the Art in the Dream (III)

28.09.2021
Macedo Teixeira
 

     When the musical group played in public places, there was a big concern of rigorousness; from the way they walked to the way they acted. The Musical Group became a perfect motivation of many young people and adults who served it with full dedication and helped it to write on the pages of its history beautiful events and musical shows. In Portuguese lands or in foreign lands, I saw it revere with profound satisfaction; I saw a Spanish alcayde get dazzled while listening to it; he got so excited that, in a hug, he replied to us: “See you next time, my friends; you were brilliant! I liked a lot!...” So, I think these facts are revealing of our abilities and our characteristics; the determination and the responsibility of making of the opuses the basket of our food and of our surveillance. No matter how simple or complex, big or small they might be, they induce us to their discovery and to their affirmation; they are, furthermore, two realities that help to complete our understanding in relation to the meaning that has the serving to the others through associations and through the voluntary gratitude; they are, furthermore, the most concrete answers to the explanation of our feeling of happiness, for our fulfilled duty; since, most often, at the end of career, each one exclaiming to oneself: “I worked a lot, I suffered annoyances, but it is alright, I am happy!...”

     Be this meditation about the power of the art in the dream, but also in life, a serene meditation and without revanchisms of any kind and without gloomings of any place. Only that way one can understand the reason of the solemnity of the acts and the simplicity of the parts that compound them. By myself and by my sensibility, I am doing all I can so that what I write is the testimony of my admiration.

Music also has this particularity: to serve Man in the change of humor and sense of interpretation of life; to facilitate the path so that our tramp is not interrupted by discouragement and by weakness. Drums are beaten, trumpets scream, cymbals are played, and enthusiasm is immediate; people come in haste to the squares, and marches carry us to the end of our destinations.

     And we really need this agitation and hurry to change our humor to a real authenticity; to an authenticity that makes again life awaken to new social compromises; to new efforts to set in motion our ideals of recreation, sports and culture. We have already noticed that it is from dialog we feed ourselves to the discovery of what the others and of what we are; we have already become aware that our home is a special place, but at least sometimes, we may share with others our likings and our wishes; be friends and live friendship in practice and by meeting! It is that the sense we should voluntarily follow; to feel need of coming together, without other interest than the human interest in the gregariousness of life. It is that the meaning of the works and of the thoughts of men who create them, and of those who maintain them with the same spirit; by perpetuating in time the responsibility of their meaning to the communities in general, but in a particular way to the peoples, who give them life and are an integrant part of their successes and of their failures.

 

O Poder da Arte no Sonho (II)

21.09.2021

Macedo Teixeira
 

     Tratar-se-á, como dissemos, de outros limites de coincidência, muito diferentes dos habituais, a que estamos habituados e pelos quais a nossa alma sossega e encontra a sua nobreza e a raiz do seu caráter; tratar-se-á dos limites que sinalizam a capacidade de criar e imaginar a vida para além da existência.

     Talvez por isso poder-se-á destacar como exemplo a Música, que, como forma de arte, terá na Ciência e na Arte em geral uma preferência que vai para além dos gostos e das escutas; porque sendo uma linguagem, do que fala e conta; fá-lo por canto ou por instrumentos, ou ambos, símbolos, que podem entoar a paz, mas também despertarem o sonho, ainda que cantem a Guerra ou exaltem o combate, pois é o sonho que comanda a vida.

     Será por isso que a música surgirá onde a palavra não será suficiente porque não será suficiente para abarcar as figuras musicais, que são manchas longas que se decompõem em muitos elementos e em muitas formas; que são, afinal, energias sonoras, gestuais, que afinam os sentimentos, agitam o coração e interpelam os sonhos.

     Talvez por isso, quem sabe! seja a Música um dos céus onde Deus dorme e pensa e onde encarrega os anjos de O acordar ao som de uma nova canção que os homens fazem e criam enquanto Ele sonha e a Obra do Mundo progride.

     A Música é, sem dúvida, um raio de luz que espalha um clarão pelo lugar e pelos sentimentos de quem a escuta, de que só com algumas exceções não se sentem os seus efeitos e não se desejam reproduzir. Quantas vezes cada um de nós foi o intérprete de uma qualquer canção numa qualquer parte do dia; trauteando com muita satisfação o que o cantor original primava pela aplicação? Quantas vezes somos imitadores na partilha de uma das raras belezas do Universo por efeitos de um contacto sonoro que se espalha pelos outros e se torna na principal companhia do dia­‑a­‑dia de cada um? Quantas vezes somos exemplos de uma alegria passageira que transmite aos outros por encadeamento um bem-estar e uma imagem tão apetecível que com raridade não escapamos ao dito do companheiro ou amigo: “Ah! hoje andas muito satisfeito; andas de boa ‘catadura’!”

     A satisfação da vida traduz-se também por cantos e versos, por alegrias e sorrisos; por trabalho e construção; traduz-se pela união de sentimentos e vontades de realizar com a máxima emoção e a máxima responsabilidade o que se pensa e o que se deseja, como legítimos valores do nosso espírito e do nosso intelecto. Assisti nos anos 70 algumas vezes aos ensaios de uma tuna e ao frenesim que estes implicavam. Uns arranjavam as cordas do violão, outros as do violino; ouviam-se sopros de trompete e saxofone; raspadas de baixo e contrabaixo; aqui e ali, ditos de desafinação, às vezes alguma surpresa nas estranhas belezas da acústica; movimentos de uma inquietação própria de quem esperava o maestro, que dava a ajuda final; e o silêncio da sala só se interrompia pelo arquear da batuta para a ordem do ritmo e a síntese do tempo; a música fazia o resto no trabalho do que é perfeito e na realização de quem tocava. A noite ia já alta e nada mais se ouvia na casa até ao findar do ensaio, e do aparecer dos sorrisos das garotas e dos gracejos dos jovens da minha idade.

The Power of the Art in the Dream (II)

21.09.2021
Macedo Teixeira
 

     The question is, as we said, of other limits of coincidence, very different from the usual, to which we are used to and by which our soul calms down and finds its nobility and the root of its character; the question is of limits that signal the ability to create and imagine life beyond existence.

     Perhaps because of that, one might point out Music as an example, that, as a form of art, will have in Science and in Art in general a preference that goes beyond likes and listenings; because being a language of what speaks and tells; it does it by song or by instruments, or both, symbols, which may sing peace, but may also wake the dream, even if they sing War or exalt combat, for it is the dream that commands life.

     It will be because of that, that music will arise where words will not suffice because it will not suffice to embrace musical figures, which are long spots that decompose themselves in many elements and in many forms; which are, after all, sonorous, gestural energies that refine the feelings, agitate the heart and interpellate the dreams.

     Perhaps because of that, who knows! Music is one of the heavens where God sleeps and thinks, and where He charges the angels with waking Him up to the sound of a new song that men make and create while He dreams and the Work of the World progresses.

     Music is, without doubt, a ray of light that spreads a gleam over the place and over the feelings of who listens to it, of what with only some exceptions its effects are not felt and do not wish to reproduce. How many times each one of us was the performer of any song in any part of the day; humming with much satisfaction what the original singer excelled by application? How many times are we imitators in the share of one of the rare beauties of the Universe by effect of a sonorous contact that spreads over the others and becomes the main company of each one’s everyday life? How many times are we examples of a transitory joy that transmits to the others by chaining a well-being and an image so desirable that rarely we do not escape from the saying: “Oh, today you are very satisfied; you look good!”

     The satisfaction of life is translated into songs and verses, into joys and smiles; into work and construction; it is translated into the union of feelings and wills to realize with maximum emotion and with maximum responsibility what one thinks and wishes, as legitimate values of our spirit and of our intellect. I assisted some times in the seventies to the rehearsals of a musical group and to the frenzy these implied. Some arranged the French guitar strings, others the ones of the violin; blows of trumpet and saxophone were heard; scratches of bass and double bass; here and there, sayings of dissonance, sometimes some surprise in the strange beauties of acoustics; movements of an inquietude proper of who expected the conductor, who gave the final help; and the silence of the room was only interrupted by the curving of the baton for the order of rhythm and the synthesis of time; music did the rest on the work of what is perfect and on the realization of who played. It was already late night and nothing more was heard in the house until the end of the rehearsal, and of the appearing of the smiles of the girls and of the merriness of the youth of my age.

O Poder da Arte no Sonho (I)

09.09.2021

Macedo Teixeira
 
“A harmonia dos sons e a beleza das formas compõem um quadro com um instante de infinito.”
 

     Para enquadrar o tema da Arte e desenvolver a questão que nos propomos sobre o poder da Arte no sonho, gostaríamos de citar Mário Soares, através de um pensamento que proferiu, durante a recepção solene na Academia Francesa, em 15 de fevereiro de 1993 e que intitulou o Direito ao Sonho:

     “Os homens buscam ansiosos novos caminhos, conscientes como estão de que se encontram esgotadas as vias tentadas no passado para resolver o difícil problema da conciliação da liberdade individual com o direito de todos a uma vida digna, em clima de paz social e de ativa solidariedade.” Eis algumas palavras que poderão ajudar na síntese à nossa exposição, que tem como temática aspetos que estarão certamente, em parte ou no todo, profundamente ligados àqueles que citámos. De facto, o poder da Arte manifesta-se em realidades conhecidas ou imaginárias que poderão verificar-se no sonho de qualquer homem, de qualquer obra ou de qualquer comunidade; aliás, o sonho será ainda mais legítimo quando este remete para a liberdade e para a descoberta de novos caminhos para a vida e para a paz, porque, sendo o sonho um direito natural da vida e do homem, será também um direito à possibilidade da realização humana na liberdade de sonhar e de descobrir, conjuntamente com a liberdade de viver e de sentir-se em paz e harmonia.

     De facto, o motivo que nos convida a esta meditação faz parte de uma caminhada humana que tem sido marcada por inúmeras circunstâncias; diversas dificuldades e factos mais ou menos penosos. Um custo variável que define e caracteriza o esforço que une a honra com a glória, o sucesso com a exaltação, o fracasso com o desânimo, a luz com a graça e a vida com o sonho. Prémios e dissabores de uma história que é única… Uma narrativa que poderá descrever a solidariedade entre os homens e poderá explicar por feitos e factos que sentimentos os unem, e que mistério os envolve na procura de algo que está inevitavelmente para além da arte; algo que não se resumirá nem se poderá descrever com a mesma coincidência, “com que se bebe porque se tem sede” ou “se abre os olhos porque se quer ver”, porque na expressão da arte, estará contida a vontade de sonhar e do sonho.

      Tratar-se-á de limites de coincidência que serão tangentes aos desejos humanos, aos efeitos das obras; à utilidade dos bens; nomeadamente musicais, esculturais, pictóricos, mas também coincidentes com Deus, que nos faz coincidir com a Sua Obra e nos torna membros do nosso destino e eleitos da Sua História. Só deste modo se pode explicar o entusiasmo com que trabalhamos e pensamos para servir os outros e mostrarmos a nossa validade; só deste modo e por esta forma, poderemos entender o poder da Arte no sonho.

     É evidente que são muito gratificantes as palavras amigas que ouvimos aos outros, que nos amam e são nossos amigos; os momentos raros que vivemos, em certas ocasiões da vida, que nos exaltam e fazem emocionar, porque como membros da sociedade nos sentimos bem, quando ela nos reconhece no bem que praticamos, dando-nos dignidade, honra e solenidade, mas se fossem apenas estes os fatores de coesão e de empenhamento e não existissem outros que nos transcendem na sua localização e visualidade, a solidariedade social e o desejo por qualquer boa causa não durariam muito e o sentimento de esforço coletivo rapidamente acabaria; pois as palavras amigas são escassas e os momentos solenes são muito raros.

The Power of the Art in the Dream (I)

09.09.2021
Macedo Teixeira
 

            “The harmony of sounds and the beauty of forms compose a picture with an instant of infinity.”

     To fit in the theme of Art and develop the question we propose ourselves about the power of the Art in the dream, we would like to quote Mário Soares, through a thought he uttered, during the solemn reception at the French Academy, on 15 February 1993, and that he entitled The Right to Dream:

     “Men search anxious for new paths, aware as they are that the ways tried in the past are wasted to resolve the difficult problem of conciliation of individual liberty with the right of all to a decent life, in an atmosphere of social peace and active solidarity.” Here are some words that may help in the synthesis of our exposition, which has as theme aspects that will be certainly, in part or in whole, deeply connected to those we have quoted. In fact, the power of the Art manifests itself in known or imaginary realities that might take place in a dream of any man, of any work or of any community; besides, the dream will be even more legitimate when it forwards to freedom and to the discovery of new paths for life and for peace, because, being the dream a natural right of life and of man, it will be also a right to the possibility of human realization in the freedom of dreaming and of discovering, in conjunction with the freedom of living and of feeling oneself in peace and harmony.

     In fact, the motive that invites us to this meditation is part of a human journey which has been marked by numberless circumstances; several difficulties and more or less painful facts. A variable cost that defines and characterizes the effort that unites honor with glory, success with exaltation, failure with discouragement, light with grace and life with dream. Prizes and unpleasantnesses of a story which is unique… A narrative that might describe the solidarity between men and that might explain by feats and facts which feelings bind them, and what mystery involves them in the search of something that is inevitably beyond art; something that will not be summed up or might be described with the same coincidence, “with which one drinks because he or her is thirsty” or “one opens his or her eyes because one wants to see”, because in the expression of the art, it will be contained the will of dreaming and of the dream.

     The question is of limits of coincidence that will be tangent to human wishes, to the effects of the works; to the utility of goods; namely musical, sculptural, pictorial, but also coincident with God, Who makes us coincide with His Work and makes us members of our destiny and elect of His History. Only by this way one can explain the enthusiasm with which we work and think to serve the others and to show our vigor; only by this way and by this form, we may understand the power of the Art in the dream.

     It is evident that are very gratifying the friendly words we hear from others, who love us and are our friends; the rare moments we live, on occasions of life, which exalt us and thrill us, because as members of society we feel well, when it acknowledges us in the good we practice, giving us dignity, honor and solemnity, but if were only these the factors of cohesion and of commitment and were there not others that transcend us at their location and visuality, the social solidarity and the wish for any good cause would not last very long, and the feeling of collective effort would soon end; for the friendly words are scarce and the solemn moments are very rare.

 

Instantes de espírito

20.08.2021
 
Macedo Teixeira
     Tenho meditado na Criação e no criado, sobretudo na origem visível da Criatura
.
     Neste sentido, tudo me tem levado a crer, ressalvando as excepções, que em qualquer elemento vivo comum haverá uma das partes que no processo da Criação permanente estará provavelmente numa densidade mais profunda que a outra.
 
     Poderá ser que uma delas seja a única ou simplesmente seja a predominante ou até se possam alternar assumindo instantaneamente cada uma de per si a condição natural para o que é condicionada.
 
     Assim, se é importante apurar na relação esta possível condição natural, será ainda mais importante apurar como apreendermos esta relevância para a nossa socialização, sobretudo para vivermos e comunicarmos.
 
     Certamente, sempre com emoções e diferenças nos processos de comunicação , mas também sempre numa estruturação elevada no equilíbrio com vista a evitar rupturas psíquicas nas nossas mentalidades
 
Pode ser uma imagem de ao ar livre e texto
        
        (Texto de autor desconhecido)
 
 

Entre o receio e a vitalidade (texto II)

08.08.2021
 
 
Macedo Teixeira
 

     Rapidamente e em face da penumbra em que nos encontramos, infelizmente nestes últimos tempos, passara a reconhecer e a justificar embora sempre com a devida moderação, serem movimentos tão necessários e tão urgentes que voltemos a efetuar para ganharmos mais vida e sermos mais felizes.

 

      Movimentos a acontecerem, entre o estranho e a vitalidade, para que possamos também romper com os nossos estados de solidão e, com maior otimismo, voltarmos a ganhar confiança para agirmos entre o melhor das nossas ações, das ações para a nossa educação, socialização e para a necessária libertação dos estados abúlicos em que nos encontramos.

 

      Confesso, de que este fora um sentimento demasiado negativo, um sentimento em que acabara por cair ao longo do tempo, um sentimento que sempre me perturbara ao longo da vida, mas mesmo sem lhe querer dar grande atenção, sentia de quando em vez  perante o apelo da minha consciência, uma certa vontade para a mudança, uma vez que os ditames do conhecimento me revelavam com insistência, de que esta atitude acabaria por me inquietar em relação à contradição com a lógica natural da vida, que deverá consistir na lógica da vontade de se crescer, da vontade de nos desenvolvermos integralmente e na lógica de se permitir que a nossa socialização aconteça no modo cultural, no modo diverso e no modo plural.

 

       Lógica e Razão começavam a fazer sentido e vieram a confirmar-se num tempo, em que por penoso e trágico já nos vai parecendo durar uma eternidade.

 

     Num tempo em que o inesperado acontecera, (surgindo no meu sentimento semelhante a uma “bofetada”, que surgira numa espécie de repreensão, pela minha teimosia em não ver o que havia de melhor no calor humano das multidões), pois nos dias de hoje, pela crise da doença do COVID-19, em que estamos a viver, e em que esta terrível doença continua a teimar em não nos deixar libertos da ansiedade e do sofrimento, continuando a impelir-nos a viver com um sentido de grande rigor, procurando atender às orientações e às regras sanitárias e, mesmo assim, quase sempre a sentir como se andássemos a fugir uns dos outros, por nos encontrarmos tolhidos entre um sentimento geral de doença e de tragédia.

 

      Mas, ainda que eu seja hoje muito mais tolerante, continuo a não ressalvar por completo a razão de não continuar a tender a evitar as grandes multidões, mesmo sem necessitar dos aconselhamentos médicos e científicos, mantendo com reservas os ajuntamentos para evitar os receios que têm sido decorrentes pela ação desenfreada e ilegal de alguns grupos muito numerosos, um receio que não surgirá certamente só em mim pois vivemos numa situação anormal de crise da nossa saúde, por efeito da diversidade de certas doenças muito graves, nomeadamente aquelas que resultam do COVID 19, mas também por outras razões, que a seguir explicarei melhor!

 

     Atualmente o Mundo tem milhões de milhões de pessoas (cerca de 7.000 milhões), que dormem, trabalham e acordam nesta “bola giratória”, ora em face disso, como continua ainda a ser maioritariamente possível considerar-se que a melhor razão do ato de conviver seja menos apreciável nos pequenos grupos e, sempre muito mais empolgante e desejável em grandes grupos?!

 

     Grupos, que na maioria das vezes, possuem objetivos prévios bem definidos, e que mesmo assim em alguns dos casos acabem por descambar para a tragédia: seja em razão  da fúria duma multidão perante a competição das equipas nos estádios desportivos, seja a fúria duma multidão em greves consideradas mais ou menos pacíficas e, que algumas das vezes, também tendam a resvalar para o confronto, sejam entre os diferentes grupos que se opõem, sejam entre as forças policiais e os manifestantes em ação quer na rua mais singular, quer nos grandes movimentos e em espaços públicos.

 

     Apesar de tudo aquilo que considerei de errado na ordem das multidões, na minha avaliação ainda continuo a interrogar-me se esse conviver emocional não poderia vir no futuro a ser diferente no concorrer para a essência da nossa matriz, que é ser Pessoa e é ser-se humano?!

 

     Sobretudo, vir a ser diferente naquelas multidões em que as pessoas ao conviverem socialmente e em grandes grupos, sem objetivos rígidos e sem motivações determinadas, pelas expectativas da sua revolta ou do gosto e prazer de saírem vencedores em qualquer jogo, se neste caso e desejando ardentemente que tal se torne possível agora e no futuro permanente.

 

      Dizia eu _ se as pessoas não começariam a sentir uma outra emoção, porventura menos emocional, mas muito mais acolhedora e diferente, uma emoção que não fosse apenas a emoção do prazer de caminhar ou de partilhar convicções com os outros, com ou sem objetivos definidos, e se não seria afinal uma razão mais abrangente e determinante para sermos mais felizes e mais “semelhantes com o nosso próximo”, ao manifestarmos mais amor ao outro, e sermos mais humildes e tolerantes, quando no caso em multidão ou em grandes grupos e num modo espontâneo, fosse quando caminhamos nos trilhos da natureza, ou na marina de um porto de mar, ou numa longa passeata pela praia a marcar a reia com a palma dos nossos pés, ou por um outro lugar qualquer?

 

     De facto, interroguei-me muitas vezes sobre a inexistência de tais possibilidades, tanto mais que ouvia falar do “calor humano”, mas tinha a impressão de que jamais o sentira, e com alguma insensatez sentia e associava esse sentimento mais ao exibicionismo e amostragem do que a uma qualquer energia espiritual que fosse boa e soubesse bem!

 

     Também este sentimento tinha fundamento numa certa amostragem exagerada de aspetos que são da intimidade humana e, exigem em meu entender respeito e retidão, por serem princípios essenciais à vida de cada um: os concertos de rock, certos ajuntamentos sociais, têm constituído belas emoções e fatores de libertação , mas em certos casos, têm-se tornado tão exagerados por ultrapassarem todos os limites para a defesa da vida humana, sobretudo quando no desnorte descambam para a luxúria, para a perversão e para o sair de si e da sua consciência por excesso de álcool e a ação dos efeitos alucinogénios.

 

     Um sentimento, que não deixa de ser de alguma admiração pelas grandes multidões, mas ao mesmo tempo de rejeição por grande parte dos traços sociais e estéticos que elas têm evidenciado.

 

     Uma impressão que continuo a manter em relação aos exageros e às suas tragédias, mas que hoje nutro e compenso com uma outra impressão que vivi e sem me aperceber bem da sua grande importância, porque não nutria nenhuma vontade em me envolver em tais acontecimentos ( mas que nos dias de hoje me desperta cada vez mais), para a vontade de ser mais tolerante em relação às multidões, pois afinal  sem lhes dar na ocasião o valor, ainda que moderado que agora já lhes vou dando, tornara-se em algo que gravei inconscientemente na memória e que resultou de um momento fugaz que vivi entre dois tempos; tempos que me integraram num prazer indemonstrável e numa sensação aproximada à quietude e leveza do ser, sobre as multidões em serenidade e em silêncio e sobre o vazio emocional e belo que depois de findas fica nos lugares e em nós, quando as pessoas se vão separando para outros destinos, deixando os lugares  desertos e a pairar durante algum tempo o silêncio e a nostalgia, que antes fora preenchido com aquilo que eu simulava ouvir dizer, como era bom “o calor das multidões”

 

      Bela emoção que eu vivi em dois tempos; o tempo de chegada à multidão espontânea e o tempo de partida, mas acima de tudo, bela expressão que nos dá o tempo em que nos encontramos reunidos e, em que as multidões dão forma a um “rosto imaginário” e a uma impressão, que apesar de durar pouco, parece durar para sempre. Que pena, que as multidões não possam mais vezes constituir-se como tal, conviverem serenas e sem grandes exageros e nunca se deixarem envolver em movimentos com tragédias.

 

     Deus tem razão, Ele criou o Homem e multiplicou-o no maior problema divino, pois a maioria dos seres humanos ainda não sabe que ao viver-se em conjunto se vive mais feliz, e isso é natural porque não temos que inventar se soubermos viver em harmonia.

 

     Talvez agora, neste momento de efeitos trágicos, jamais inimagináveis por todo o Mundo, possamos de aqui a uns tempos compreender melhor que a presença das pessoas, a possibilidade sem medo de poder ir aos lugares que antes eram vulgares entre a Natureza distante, conversar sem pressa com alguém que nos possa escutar, falar de Deus e da importância das suas Leis, sem ter receio de ficar sozinho, porque o grupo ainda dá primazia ao que é vulgar e aprecia mais o “poder de ganhar e ser o primeiro em tudo”. Ou dito de outra maneira, ainda parece que continuamos a pensar ser mais importante o valor de qualquer ideologia política, religiosa, financeira, desportiva ou outra qualquer, do que a Vida, o Homem e Deus!

 

     Oxalá que o mundo, sobretudo o mundo social e humano, quando for capaz pela compreensão, e possa assim de uma vez por todas, passar a considerar a Pessoa humana como o valor mais valioso entre os valores dos dons divinos, e o receio passe a ceder o lugar, à vontade de sermos unidade na diversidade, em Comunhão com” Aquele que É tudo em todos”

 

Entre o receio e a vitalidade (I)

04.08.2021

Macedo Teixeira
 

     Às vezes penso que é por gostarmos muito de uma coisa, que a inventamos quando não a vemos; ou a sonhamos quando não a temos.

 

     Às vezes também acredito de que necessitamos destes exercícios imaginativos para superar muitas das carências que temos e muitas das dificuldades que vamos encontrando no nosso caminho.

 

     Mas às vezes também somos surpreendidos, porque já não poderemos inventar mais nada na semelhança do que parece ser semelhante, e então lá vamos continuando a viver, algumas vezes entre o doce e o amargo, aceitando a realidade tal como ela é para se tornar em recordação entre as tantas recordações que já vivêramos antes.

 

     Princípio e fim a traduzir-se num escólio de palavras para uma espécie de considerações em desabafo, a propósito dum imaginário qualquer, que poderá se assemelhar a um “rosto” simbólico visionado numa grande multidão, por entre o corpo compacto que esta tende a adquirir em movimento, e que na beleza da sua compostura poderá proporcionar, entre a duração fugaz de um lapso de tempo natural, a impressão de algo que num instante pareça brilhar tanto como as estrelas em certas ocasiões.

 

     Tudo isto, para explicar que até há pouco tempo atrás, ainda não tinha formada na minha consciência, uma ideia clara acerca deste assunto que está relacionado com a questão das multidões, apesar de às vezes em meu pensamento sentir uma estranha e acutilante vontade para o desejo de o conhecer e, sentir de quando em vez, um enorme apetite e uma grande curiosidade em experimentar e viver uma situação destas até à ínfima perceção de tal realidade.

 

     Afinal, desejava conhecer qual o efeito que teria sobre nós quando na experiência de nos encontrarmos entre uma grande multidão, entre um amontoado enorme de pessoas, fosse quando caminhando sem rumo ou fosse quando nos situando sem nenhuma preocupação especial, quando nos situando até algo distraídos e num ambiente de massas num qualquer espaço citadino ou rural.

 

     Desejava vivenciar uma tal experiência num movimento qualquer, talvez entre a orla marítima de um oceano, ou entre uma longa praia e a aparente infinitude do horizonte, num espaço de uma grande marina repleta de pessoas a caminhar em recreio tranquilo, em movimentos diversos e plurais ou mesmo entre a ação de uma competição extraordinariamente aguerrida, fosse esta de ordem desportiva, cultural, ou associativa, ou então, experienciar num simples convívio como assistente num daqueles grandes concertos musicais ou num dos grandes festivais gastronómicos, enfim, no meio de grupos de multidões acaloradas e que envolvessem muita gente.

 

      Deveria ser - pensava eu, uma realidade que movimentasse grandes massas e maioritariamente diversas no fenómeno cultural e social.

 

     Desejava, apesar da desconfiança, conhecer uma tal realidade e experimentá-la em concreto, já que sempre tivera a impressão e ainda que tivesse ouvido algumas vezes dizer o contrário, no meu pensamento sempre considerara de que esta não me afetaria grande coisa, certamente eu seria simplesmente mais uma pessoa a acrescentar ao grupo, mais uma pessoa que se juntaria a todos os outros, mas sem jamais se alterar na sensibilidade e no seu comportamento, a fazer  número no aglomerado, mas sem deixar de ser  um simples estranho no meio duma  estranha multidão!

 

     Tivera sempre uma grande preocupação, e especialmente em certos casos, sentia ser necessário manter a força natural que me impelia para o afastamento dos grandes grupos, que achava serem sempre mais ou menos ruidosos, e que por isso tendia sempre a manter-me mais afastado das grandes multidões.

 

     Reconheço, de que este estado de espírito fora exageradamente negativo, e que só poderia ter resultado de um sentimento enraizado nas grandes tragédias, sobretudo em algumas das tragédias que foram decorrendo nestes últimos tempos, as quais sempre me pareceram estarem na base dos grandes ajuntamentos e das grandes multidões, já que as pessoas quando enfurecidas pareciam tender a destruir e a matar toda a vida social e cultural, perante a ação  o movimento a tender para o caos das desordens, para violência e a destruição entre o imprevisível das suas consequências.

 

     Mas, afinal, “Deus Escreve Direito por linhas tortas” pois, não fora preciso passar muito mais tempo, desde que eu começara a pensar nesta questão, para começar a mudar de opinião, pois ao contrário do que eu pensava, como sendo esta questão algo demasiadamente negativa e imprópria para a tranquilidade da vida humana, perante o isolamento social em que temos vivido, em resultado da doença do COVID – 19,  rapidamente passara a reconhecer o quanto os convívios ou mesmo certas manifestações, quando ordeiras e com razões legítimas para o bem da sociedade, passara a reconhecer como estas nos fazem tanta falta para podermos viver e inquietar-nos, dentro do quanto baste, como seres gregários e de afetos, que somos, mas também e, sempre que necessário, podermos em discórdia e crítica social partilharmos em multidão, o nosso desagrado perante todas as injustiças, que nos sejam impostas por qualquer forma de poder que atente contra a nossa dignidade.

 

Macedo Teixeira

PROPOSTA DE REFLEXÃO

16.07.2021

Macedo Teixeira

     Ao que parece, numa opinião geral e corrente, será porventura sempre mais fácil pronunciarmos que se faz o BEM, quando se praticam boas ações do que, quando confrontados perante tal realidade, o possamos vir a fazer tal e qual, como o pronunciáramos e o pensáramos antes, isto para procedermos em coincidência!

 

     É o que nos dias de hoje, mais parece ser provável acontecer, sobretudo, no caso daquelas situações que se tornam mais dissemelhantes entre o nosso pensar e o nosso fazer.

 

     Possivelmente, ressalvando algumas exceções, na altura em temos de decidir sobre o que fazer, parece tendermos mais a resvalar nas nossas ações para o lado mais negativo e contraditório, já que em lugar de honrarmos em pensamento e ação a nossa palavra, tendamos pela nossa maior fraqueza, a ser mais dominados pela força do aforismo:

 

     “Não olhes para o que eu faço, olha antes para o que eu digo!”

 

     Sentir-se na condição de pobre e viver-se como pobre não será naturalmente fácil para ninguém (quer ricos, quer pobres), como não será fácil adquirir naturalmente o modo de procedimento, fazer o BEM com a mesma força com que o apregoamos, sobretudo quando se é materialmente rico e poderoso socialmente.

 

     Creio, muito embora discorde, de que será muito difícil as pessoas decidirem seguir por este caminho de modo natural, e então lá surgirá de novo, a vontade de evocarmos a metáfora, pela recordação evangélica: “É mais fácil um camelo passar pelo buraco de uma agulha do que um rico entrar no Reino de Deus.” (Mateus 19:24.)

 

     Somos seres humanos, seres que têm Fé no bem de hoje, mas também seres que rapidamente têm medo da falta de socorro e do mal do amanhã. Talvez seja por esta inquietação que dificilmente nos entregaremos completamente e sem reservas. Nos doemos incondicionalmente Àquele que tudo sabe melhor daquilo que precisamos; prometemos fazê-lo, mas falta-nos a coragem para darmos “de graça aquilo que recebemos de graça”! (Mateus 10:8.)

     Não é fácil desprendermo-nos completamente daquilo que temos de bens, tantas vezes ganhos com tanto sofrimento e sacrifício, e sabe-se lá _com quanta dor em que muitas vezes surge misturada com uma felicidade aparente.

 

     Mas ao verificar-se o que está a acontecer em todo o Mundo, pelo aumento galopante dum sentimento e estado de consciência tão negativos, sobretudo sobre o valor da vida humana, dá para observar que, no meio de todas as criaturas, aquelas que pela sua evidência, no amontoar da riqueza, em si já tão desproporcionada, vão-se cada vez mais esquivando à prática da equidade, justificando pela indiferença, a razão de não terem culpa de haver pobreza no mundo!

 

     Ora, tendo em conta, o que a certa altura acontece na mensagem do poema que escolhi para “A Minha Proposta de Reflexão”, parece-me que atualmente a usura está muito acima da Caridade, tornando-se com isso, numa prática a ser levada a cabo, mais pela avareza e pela falta de amor ao seu semelhante.

 

     E com esta atitude, começa a negar-se a vontade de proceder-se maioritariamente em benefício do Bem, apesar de tudo, acautelando sempre no que nos é necessário, para que levianamente não possamos vir a ficar mais pobres do que os pobres que socorrêramos, quando éramos mais ricos!

 

     Segue-se o exemplo (ainda que possa dar origem a outras interpretações) porém, como se poderá concluir também no poema escolhido, o mendigo que pede esmola, apesar de ser um mendigo não deixou de socorrer aquele que lhe parecera, apesar de tudo, ser muito rico e poderoso, deixando-se levar pelo amor ao semelhante, (sem olhar ao valor da sua aparência)

 

     Creio que a usura atual estará para além do receio do amanhã (que no mendigo ainda seria justificável), pois também começo a acreditar que o comportamento de uns tantos poderosos, nos dias de hoje, que será mais justificável pela avidez do lucro do que pelo receio do amanhã, em não terem o suficiente para continuarem a viver bem e com abundância.

 

     É por isso, que também começo a pensar, que infelizmente, serão cada vez menos aqueles que ainda irão praticando o altruísmo e que ainda continuarão a deixar-se levar pela paixão e amor aos outros, praticando a compaixão e amor em todo o tipo de atividades sociais!

 

     Oxalá que as mentalidades mudem e que comece de novo a aumentar o número daqueles que vão sendo inspirados no seu dia-a-dia, para viverem voluntariamente sob a Esperança e a vontade de partilhar.

 

     De partilharem independentemente das aparências, e que vá aumentando o sentido de confiarem mais na Caridade, como sendo o maior valor da riqueza da nossa vida, que não deixará de ser material, mas sempre num tempo efémero e, então, que possamos contradizer o poeta, com o seguinte pensamento:

 

     Como ri com alegria

     por ter tido a coragem

     de me dar todo a Ti!

 

     O Grão de Trigo e o Grão de Oiro

 

     IA EU pelo caminho da aldeia,

     pedindo de porta em porta,

     quando o teu carro de oiro

     apareceu ao longe,

     como sonho magnífico.

 

     E eu perguntava, maravilhado,

     quem seria aquele Rei dos reis.

     As minhas esperanças

     voaram até ao céu,

     e pensei que os meus dias maus

     tinham acabado.

 

     E fiquei à espera de esmolas espontâneas,

     tesouros atirados ao pó.

     O carro parou a meu lado.

     Olhaste-me e desceste sorrindo.

     Senti que por fim

     tinha conseguido a felicidade da vida.

 

     Mas de repente

     Estendeste-me a mão direita:

 

     — Podes dar-me alguma coisa?

     Ah! De que se havia de lembrar

     A tua realeza!

     Pedir esmola a um mendigo!

 

     Eu estava confuso

     e não sabia que fazer.

     A seguir, muito devagar,

     tirei do meu saco um grãozinho de trigo

     e dei-to.

 

     Mas qual não foi a minha surpresa,

     quando, à tarde,

     ao despejar o meu saco no chão,

     encontrei naquele miserável monte

     um grãozinho de oiro.

 

     Como chorei amargamente

     por não ter tido a coragem

     para me dar todo a ti!

 

     RABINDRANATH TAGORE, “O Coração da Primavera”, Editorial A. O. – Braga, 2.ª edição, 1981, pp. 59, 60

 

AS FORMAS DO TEMPO

21.06.2021

Macedo Teixeira

     São várias as formas do Tempo; a forma do dia ou do mês; da Estação do ano, da tarde, da manhã ou da noite; são várias as formas que dão forma a uma certa ordem da Vida e do Universo.

     Encontramo-nos no verão, uma estação do ano que é bastante desejada e bastante vivida pela maior parte das pessoas do nosso querido país e do mundo; uma estação que traz um pouco mais de calor para animar os corpos e despertá-los para uma certa parte da vida e das festas da vida.

     Uma Estação que perde um pouco da sua elegância para permitir elegância ao homem e à mulher; uma elegância mais subtil e partilhada pela liberdade de opções nos diferentes planos do Tempo da estação e de cada um dos seus dias. Dos dias porque, com a exceção dos que não podem ou não querem, podemos andar mais à vontade, mais frescos e com diversidades de objetos de adornos, roupas e cores; as senhoras a despontar com os vestidos elegantes nas cores e nas formas, e em jeito de moda, a combinar as emoções físicas com as emoções da beleza das cores e dos modelos.

      O verão traz consigo o maior período de férias; o tempo de mais liberdade para vestir, dormir e comer; o tempo de que o homem e a mulher dispõem de um modo mais familiar e mais voluntário.

     Cada família reúne-se de uma maneira diferente e a Sociedade funde-se em espaço de convívio e de lazer; cada plano do dia é vivido numa sequência de desejos e prazeres que têm em conta a participação do corpo do grupo e de cada um dos seus membros.

     É preciso voltar de novo a ter forças para o ano de trabalho seguinte; é preciso ganhar vontade para enfrentar outros obstáculos que irão surgir e, quem sabe, se mais complicados que no ano que agora gozamos? O verão traz consigo uma Estação que permite o convívio em modos e maneiras mais semelhantes: a praia, a piscina ou o campo; espaços físicos para a reunião da comunidade com motivações diferentes, mas com objetivos semelhantes; libertar-se da fadiga, fazer amizades e viver a vida, festejando-a.

      Até os planos do dia nos ajudam a despertar para acontecimentos inerentes a cada uma das ocasiões: de manhã e de tarde, para a resolução das tarefas ou vivências do lazer e do recreio (para quem está de férias), ao pôr do Sol, pela delícia de uma bebida ou um gelado; um pouco de “cavaqueira”; à noite (as festas, os encontros sociais e culturais, a reunião de família, o caminhar a pé pela marginal); atos que podem ser semelhantes em todas as estações do ano, mas que nesta têm outro sabor. Sabe-se lá porque é que até a divisão do Tempo ganha razões, umas vezes mais humanas, outras vezes mais naturais!

      O que é certo é que todos partilhamos desta divisão, e de um modo ou de outro desfrutamos das suas evidências; reconhecendo que umas vezes é Deus que mais precisa do Mundo, e outras vezes é o Homem que dele mais partilha.

     Sejam a beleza e o mistério da Vida as sementes das nossas esperanças num futuro dos nossos sonhos, porque as realidades das estações do ano falam por si, e os pescadores sabem qual é o seu presente, os agricultores sabem qual é o seu passado, e todos nós desejamos saber quais os nossos sonhos e como vivê-los em cada estação e de um modo diferente em cada verão.

 

UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA

07.06.2021

Macedo Teixeira

 

     Ainda mal nos tínhamos acomodado na esplanada do café e já a sua amargura começara a revelar-se.

 

     – Sabe, estas ideias do Iluminismo, sempre mal entendidas nos seus limites, continuam hoje a espumar-se nas “modas” da ocasião.

 

     Subitamente, para poder apanhar o fio da meada, interroguei com cuidado: – Não estou a perceber!?...

 

     Sem me dar tempo para pensar, continuou:

 

     – Cada vez fico mais perplexo com a facilidade com que se apregoa a solidariedade. A palavra está a ficar tão gasta que mal se ouve em relação às coisas certas.

 

     – Coisas certas?! Que coisas certas? – perguntei mais tranquilo

.

     – Sim!... Sim!... Coisas certas! – ripostou de rajada. – Realidades, em que o ato seja certeiro e puro na ajuda ou no socorro.

 

     – Quer dar um exemplo?! – questionei-o, para saber melhor da sua amargura.

 

    – Sabe, eu vou dar-lhe um exemplo, mas com algum receio, parece que as pessoas hoje são breves nos lamentos, mas rapidamente se acomodam; julgo que prestam mais atenção à parte do que ao todo.

 

     Senão vejamos! Não é verdade que somos um povo solidário e estamos sempre prontos para a solidariedade?

 

     – É verdade! – respondi, sem hesitar.

 

     – Mas, não é verdade também que hoje a solidariedade é praticada com espalhafato e badalada de mais? – interrogou, explicando o que pensava.

 

     – No socorro, a solidariedade anda misturada com o “espetáculo”; na família, com os interesses; na competência profissional, com a posição de cada um; na ajuda e partilha de sentimentos, com os grupos e a influência da divisão que têm provocado.

 

     E ainda a agravar mais este drama, quando devia poder continuar a juntar-se o esforço que a sociedade estava a fazer pela solidariedade de todos na convergência do estreitar da separação entre ricos e pobres, até este sentido se tornou contraditório. Uns ganham, gastam e esbanjam como se não houvesse limite; o povo fica em silêncio, chegando a aceitar como tabu os capitalistas dos milhões. Outros quase não ganham para comer, os operários dos “tostões”; o povo lamenta, mas acomoda-se perante a existência de piores situações; os mendigos aos montões.

 

     Entretanto, já dilacerados com a explicação, ficamos em silêncio, não dissemos palavra, até poder desabafar, amenizando: – Tem toda a razão, meu amigo! Felicito-o por este diálogo fraterno; mas, apesar de tudo isto, a Solidariedade continuará a ser uma questão de consciência.

 

ESTRANHOS, NUM MUNDO QUE NOS FOI CONFIADO!

20.05.2021

Macedo Teixeira

 

     Desde pequeninos, que em tudo vamos querendo ser bons e sermos os primeiros (estimulados em parte pela educação que vamos recebendo), conquistar a apreciação dos amigos, conseguirmos ser notados na nossa personalidade, obter riqueza de conhecimentos, ganhar riqueza no estatuto social, aumentar o poder económico, etc.

 

     Nada em que no nosso querer nos faça notar a diferença, nada que faça com que achemos estranha esta atitude e não mudemos nesta vontade.

 

    Cresce, como se fosse uma aspiração natural, desejável e saudável, para nos tornarmos nos exemplos do amanhã, pensando que só com com estas aprendizagens é que nos poderemos tornar homens, no verdadeiro sentido da palavra: sermos pais extremosos, sermos um valor para a família, sermos um amigo estimável, sermos um exemplo a seguir; enfim, existir na sociedade com uma tal determinação que já desde pequeninos nos vai sendo propalada:

 

    __ ser um cidadão a rondar o autoritário e determinado “a ser vencedor, numa sociedade competitiva”, tudo sucessos, nada de fracassos, a moral pouco importará,” os valores”, só os do lucro é que serão importantes, o resto é fraqueza e incapacidade!

 

     Mas, entretanto, em silêncio e sem fazer alarde, um poder invisível nos vai tomando conta da mente em cada instante, passando despercebido nesta ordem social, despercebido de que o tempo vai passando, ou melhor, à medida que nós vamos passando (pois o tempo fica; nós é que vamos passando), e então, quase sem darmos por esse efeito, é que nos vamos apercebendo e às vezes já muito tarde, de que foram concorrendo para o nosso bem ou mal-estar, certas circunstâncias ou aspetos, mais ou menos incisivos na nossa personalidade, tornando-nos nos principais agentes das nossas melhores ou piores atitudes (embora, não possamos nunca desresponsabilizar o papel que deverão ter os (Estados e suas Instituições), que intervêm na nossa orientação, seja para a Educação ou para o socorro na fome, na peste, na guerra, nas catástrofes naturais, ou no auxilio financeiro e na melhoria permanente da “Nossa Casa Comum” sobretudo pela conservação e criação de postos de trabalho, para que o ser humano possa viver honradamente, em suma, também devendo atuar com firmeza na Organização da vida do Mundo)

 

     Com o passar idade, apercebemos-mos de que temos sido também responsáveis pelo desenvolvimento da ideia, que ganha cada vez mais força “de Uma Sociedade Competitiva”, já que, como sujeitos livres e autónomos, persistimos em continuar a tentar que na Educação se continue a pensar e a fazer questão, de em tudo sermos os primeiros, sermos sempre vitoriosos e não aceitarmos perder nem sermos perdedores, nem aceitarmos, quando inevitáveis, os fracassos nem as frustrações de qualquer derrota.

 

    Com este imperativo, de tudo querer vencer a qualquer preço, acabamos por nos esquecer de pensarmos primeiro em viver e ser, viver simplesmente e amar sem condições, tendo em conta o dom e o bem da vida.

 

    Depois, achando-nos livres e autónomos, não serão raras as vezes em que nos deixamos levar pelas aparências (do que é vantajoso, do que tem interesse, no que vale a pena apostar!), deixando-nos enredar pelo que parece ser belo e fascinante e, só verificando mais tarde, de que tal não passou duma simples sombra do que será a própria beleza, na sua beatitude e eternidade!

 

     Por fim, vamo-nos agarrando ao Mundo, como se pudéssemos ter nele mais do que a possibilidade de sermos passageiros, numa viagem que começou num determinado lapso de tempo, que sendo finito deixa de ser eterno e, às vezes não nos damos ao trabalho de pensar, de que como sujeitos viemos ao Mundo e vamos passando enquanto possível e até qualquer dia, e então, às vezes ainda muito a custo, lá iremos percebendo e reconhecendo no amor próprio, que entre o finito e o nada, deverá haver certamente: o Infinito e a Eternidade!

 

     Não sei como entender esta contradição, entre tudo querermos sabendo de antemão que nada temos, que tudo um dia deixamos por cá e sem nenhuma contestação. Não sei como poderemos continuar neste pensamento tão mesquinho, e tenho dificuldades em admitir a mudança nas nossas mentalidades, se persistirmos na Educação para a “ideia de uma sociedade competitiva” e também não formos capazes de resistir às tentações, às fantasias do ter, sem com isso deixar de prevalecer primeiro o nosso ser e, sobretudo, sem deixar de procurar em toda a parte e enquanto vivermos a luz que nos ilumine e nos guie, para o Caminho, a Verdade e a Vida.

 

     Foi numa criança, que o poeta que se segue, encontrou a paz e a tranquilidade que procurava em todos os “negócios”. Negócios, que a maior parte de nós, também irá fazendo ao longo da sua existência, ainda que muitas vezes, pense e diga que não!

 

     Proponho um desejo, mas também um convite, para meditarmos e pensarmos melhor no modo da nossa existência, para que em cada dia que formos vivendo, possamos ter a sorte também de um dia termos alguém que nos queira comprar, “somente com nada!”

 

     “Desde que fiz este negócio a brincar, sou livre.”

 

O ÚLTIMO NEGÓCIO

 

Certa manhã

ia eu pelo caminho pedregoso,

quando, de espada desembainhada,

chegou o Rei no seu carro.

 

Gritei:

— Vendo-me!

O Rei tomou-me pela mão e disse:

— Sou poderoso, posso comprar-te.

Mas de nada lhe serviu o seu poder

e voltou sem mim no seu carro.

 

As casas estavam fechadas

ao sol do meio-dia,

e eu vagueava pelo beco tortuoso

quando um velho

com um saco de oiro às costas

me saiu ao encontro.

Hesitou um momento, e disse:

— Posso comprar-te.

 

Uma a uma contou as suas moedas.

Mas eu voltei-lhe as costas

e fui-me embora.

 

Anoitecia e a sebe do jardim

estava toda florida.

Uma gentil rapariga

apareceu diante de mim, e disse:

— Compro-te com o meu sorriso.

 

Mas o sorriso empalideceu,

apagou-se nas suas lágrimas.

E regressou outra vez à sombra,

sozinha.

 

O sol faiscava na areia

e as ondas do mar

quebravam-se caprichosamente.

 

Um menino estava sentado na praia

brincando com as conchas.

Levantou a cabeça

e, como se me conhecesse, disse:

— Posso comprar-te com nada.

 

Desde que fiz este negócio a brincar,

sou livre.

 

RABINDRANATH TAGORE, “O Coração da Primavera”, Editorial A. O. – Braga, 2.ª edição, 1981, pp. 11, 12.

 

Uma mãe, do estranho à contemplação!

10.05.2021

     Sentimo-nos às vezes estranhos, às vezes até tristes e muitas vezes fascinados com uma ou outra mulher, mulher jovem, mulher adulta ou mulher mais velha.

     E é verdade, pois penso que não é só por ser o nosso género diferente, muitas vezes difícil de compreender, ou por ter um corpo que exala beleza e nos compromete por encanto a contemplá-la, como se por instantes nos esquecêssemos de que é um ser igual e a quiséssemos adorar.

     Não sei se neste momento seria capaz de falar só da mulher em geral, falar daquela que um dia nos fascinou e nos acompanha pela vida fora, nos atrai no olhar e nos deixa por instantes perdidos no sonho intemporal, ou falar da irmã que amamos incondicionalmente através da sua alma, ou falar simplesmente da mãe que nos dá colo e aconchego eternamente; pois sei que medito num ser que é das mais belas criaturas do Mundo que Deus criou.

     Às vezes, fico a meditar no tempo que tenho vivido, com a alma em que medito nos meus sonhos impossíveis, a alma que me aconchega na semelhança da mãe que me deu à luz, quem sabe se através de reflexos daquela Mãe que se transforma e ganha imensos rostos, tão proporcionais à nossa inteligência quanto ao nosso sentimento humano?! 

     Reconheço que, em cada homem, há uma constelação de surpresas e de forças, umas boas e outras más; reconhecendo por isso que homem e mulher justificam em parte a Paixão com que Deus Se multiplicou na Essência e continua a jogar os dados para manter a multiplicação e nos surpreender entre a nossa Caminhada.

     Mas hoje queria ser moderado a dissertar sobre o estranho, não queria colocar palavras onde ainda gravitam algumas lágrimas. Queria, por isso, falar-vos de uma mãe que vi de modo ocasional há uns tempos e que não pude deixar de a olhar durante muito tempo, tempo em que cheguei a contemplá-la até ela desaparecer no horizonte, levando consigo aquele menino, que eu tive ao colo, embrulhado num xale e bem preso, para não cair pelos movimentos bruscos que ainda fazia naquela ocasião, os nossos caminhos desde a altura em que chegámos à última estação, andaram noutro sentido!

     Sentada numa daquelas carruagens antigas, bancos mais duros e espaços apeados de gente, num daqueles comboios vindos do Alto Alentejo e que demoravam mais de seis horas a chegar à estação do Entroncamento, vinha sentada uma mulher que segurava ao colo um menino ainda bebé, lindo, aliás, como são todas as crianças, mas a gritar em altos sons e a rejeitar o biberão de leite que aquela mãe insistia em dar-lhe a beber desesperadamente.

     Sem saber como, supliquei-lhe para que me deixasse pôr um pouco de água a correr sobre o recipiente, parecera-me que este estaria quente e daí os seus gritos de dor, julgara eu!

     Olhou-me de modo aflitivo, mas, sem mostrar nenhuma dúvida, consentiu que eu fosse a correr pelo corredor até à fonte do comboio, para ali abrir a torneira da água até refrescar um pouco o biberão, refrescar o suficiente para não ficar frio.

     Voltei rápido, dei-lho para a mão, e ela borrifou algumas gotas sobre o rosto da mão procurando-lhe com grande certeza a boquinha da criança e continuar a dar-lhe o alimento.

     Não resultou, o meu pequeno gesto de ajuda não resultou melhor: o menino permanecia em altos gritos, apressei-me a pensar que certamente seriam de alguma dor momentânea, e a mãe, já com algumas lágrimas nos olhos e o rubor das faces muito alteradas, ia olhando em agradecimento, reforçando lá nos seus botões a confirmar em silêncio que ela não falhara, não era a temperatura do leite que estaria em questão.

     De repente, fiquei imensamente nervoso e, num gesto de pai, supliquei-lhe que me deixasse pegar naquele anjinho, sem lhe dar tempo, e quase roubando-lho dos braços, peguei nele ao colo e, de pé, com firmeza, comecei a embalá-lo num gesto de afeto para o tentar distrair enquanto em simultâneo empurrava para a sua boquita o bico do beberão, mas com um pouco de mais energia, para ele sentir no paladar o seu precioso alimento e começar a beber.

     Mas nada, nada o fizera calar e não fora capaz de beber uma gota. Fiquei triste, frustrado, mas bastante meditativo.    

      Não demorara muito mais tempo a chegarmos à última estação da linha; entretanto, reparei que ela continuava a insistir sem resultado.

     Depois, ainda mais chocado, reparei que, quando nos apeámos na estação e eu me dirigi para a estação do Entroncamento, para poder regressar ao Porto, aquela mãe arrastava-se lá mais longe com a criança ao colo e, ainda entre gemidos, suportava entre aquele tormento o peso de um saco ao ombro e puxando colado a si ainda um outro que rolava a esmo.

     Tudo isto me ficou gravado na memória, mas muito mais ainda é que, entre aquele sofrimento, ela continuava a olhar na minha direção; eu jamais esquecerei aquele olhar, de tal forma que ainda hoje me subiu aos pensamentos a minha fé, pois acredito que o menino, entre aquele soro de desespero e os aconchegos de ternura, acabou certamente por adormecer e até ser capaz de beber o leite, que entre os nossos sonhos e pesadelos, ficara à espera que ele se decidisse.

     Não sei o que aquela mulher viu em mim, mas na viagem para casa interroguei-me bastante, interroguei-me como fora possível ela subir tanto até à Mãe, não ter tido medo que fizesse mal ao seu menino, que confiasse em mim, como se eu fosse o seu próprio marido, que acredito com confiança que será abençoado por ter aquela mulher, como esposa, mãe!... Sabe-se lá, qual seria a diferença entre aquela mãe e a Nossa Senhora da Paz, que em todos os momentos nos socorre, principalmente quando estamos perante as maiores aflições?!.

Macedo Teixeira (António)

 

A Sabedoria vai melhorando com a idade!

23.04.2021

 

     É como adultos, e mais responsáveis, que começamos a compreender que as sucessões dos planos naturais e sociais se tornam numa manifestação natural de revelações que nos parecem sempre semelhantes, mas que devemos assimilar nas nossas ações quotidianas por linguagens e gestos de total cumplicidade.

 

     Sinto que estas relações naturais vão ganhando uma aceitação e entrega à medida que vamos envelhecendo, à medida que vamos sentindo que afinal somos elementos do Universo e que conforme melhor com ele nos vamos combinando vamos sendo mais felizes e brilhando muito mais.

 

     Creio que é da nossa natureza esta atitude e acredito que está na nossa substância estas qualidades de sermos integrados no universo dos vários elementos pela extensão das nossas capacidades. De sermos integrados noutras formas e noutros planos, mas com a ação das nossas resistências e mudanças.

 

     À medida que nos vamos ligando mais ao mundo e às suas partes, vamos contrariando a nossa estabilidade emocional e desejando mais a nossa emocionalidade. Será,

certamente, por esta razão que começamos muito cedo a rejeitar o mundo e a sua ordem, não fomos nós que a fizemos e pensamos que os que nos antecederam não tiveram a inteligência e o juízo suficientes para fazer um mundo melhor.

 

     Nesta atitude, limitamo-nos a um idealismo emocional, despertando muitas vezes para exaltações e acontecimentos que nos parecem únicos e que nos parecem encaminhar para a realização plena e nos dar tudo o que precisamos.

 

     Os jovens adolescentes são a expressão temporal humana que melhor traduz esta forma de comportamento, esta forma de resistência que levanta maiores complicações nos domínios da ordem humana-social.

 

     É da nossa natureza o sentimento e a emoção, são elementos básicos do nosso humanismo e os elementos principais para a iniciação do nosso romantismo corporal.

     Resistimos, de um modo geral, durante a nossa vida a tudo o que é dureza e convicção forçada, mas na adolescência esta resistência por vontade de criar e mudar tem uma especificidade mais determinada. Pois se o princípio do prazer está agora mais nítido e traz-nos alguma vergonha quando praticado fora dos seus limites, o princípio da responsabilidade não é ainda integrado sem uma resistência, por vezes radical, e o modo que encontramos para a exercer manifesta-se pela prática do prazer e do gozo que a aventura e a rejeição causam no seu exagero.

 

      A adolescência traz consigo a emoção do tempo de viver e pensar no que mais agrada e do que é mais útil para nós e nos faz participar por envolvimento. Normalmente, procuram-se os acontecimentos que nos dão mais partilha de prazer do que de responsabilidade, acontecimentos que nos fazem esquecer do horário e da distância, esquecer com quem se está e onde, com quem se vai e com quem se vive. O mais importante para nós somos nós próprios — os outros têm que nos compreender e nos aceitar como somos e com a liberdade que queremos.

 

    Nesta altura não sentimos necessidade de mudança nos ajustamentos e adaptações e fazemo-lo, com alguma contrariedade, se não for para o que nos diz estritamente respeito. O mundo tem de ajustar-se a nós e não o contrário; não temos de ser elementos de planos de projetos passados e se os mais velhos não concordam é porque não evoluíram o suficiente e são demasiado exigentes.

 

    Tenho consciência que estou a ser um pouco radical na análise observada, mas os pormenores é que podem variar um pouco, o resto tem uma forma temporalmente definida que se repete em todas as gerações.

 

    É bom recordar (e é com esta preocupação que escrevo estes pensamentos) que aprendi pelas experiências diversas que a expressão da vida não tem uma forma definida e acabada em cada uma das nossas épocas ou fases, esta desenvolve e rege-se por princípios e leis que são constantes e permanentes e, por isso, são naturais.

 

    Estes princípios e leis são as bases reguladoras necessárias e convenientes à vida de todas as gerações, e eu só vejo uma maneira simples de deles falarmos para que todos mais ou menos percebam a sua importância, e essa maneira é recordá-los pelos sentimentos vividos e expandi-los às emoções de cada um. É mais fácil perpetuar estes pensamentos pela comunhão geral de vivências e plantá-los nas emoções mais jovens, para que as formas das expressões da sua vida venham a ter conteúdos diferentes, como será lógico e natural, mas não sentidos nem como ordens nem como dimensões diferentes dos desígnios que a vida humana sempre deverá ter em todas as gerações

.

    Tenho ainda muito vincadas as preocupações dos que me ensinaram a descobrir o caminho da vida autêntica, foram breves sentenças morais que se tornaram à medida que ia crescendo em sinais de aviso de que nada aconteceria sem que a nossa sensibilidade fosse subtilmente perturbada.

 

    Esses sinais foram as fontes de expectativas e os pensamentos reveladores de uma ordem que era preciso descobrir nem que fosse à custa de aventuras que deixassem algum desespero na alma e remoques de desânimo no malsucedido. Ninguém me pôde avisar dos meus sonhos nem me dizer como caminhar para os encontrar, mas todos me falaram de algo que era a sua própria razão e se tornava na sua própria força. Todos me contaram as suas maiores realizações e me falaram em forma de exemplo elevado; acontecimentos da sua vida e sentenças moralmente profundas, formas de um bom encontro para sempre.

 

Macedo Teixeira (António)

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 Texto 6 (Conclusão do tema)

12.04.2021
Macedo Teixeira
 

      “O aleatório e o “faz de conta” ganharão expressão e atividade em qualquer das realidades sociais e, por extensão também nas realidades naturais; estes factores tornar-se-ão numa força negativa e contrária, que tenderá a arrastar o homem para o desinteresse e desencanto sobre o Bem da Sociedade e da felicidade de cada um dos seus semelhantes.

     “Acabando por pensar, que dado “o estado de caos” em que se vai começando a viver, poderá começar a acreditar no “salve-se quem puder” e que perante “o faz de conta” de quem governa, dirige e é responsável, será melhor refugiar-se num individualismo social e atrair a si, tudo quanto puder de bens e valores materiais sem pensar no outro e na pobreza que lhe irá causar forçosamente no futuro e a partir já do presente, fazendo-o crer de que o melhor para viver sem ser incomodado é aceitar a situação em que se encontra, pois nesta fingida concordância, "doerá menos” e assim irá aceitando em participar a contra gosto neste tipo de ordem social negativa, pois passará a reconhecer como excessiva a sua impotência em relação às possibilidades que o limitam e o condicionam.(Citação do texto anterior)

 

      Outra das ideias que me parece ser responsável por esta ordem de graves problemas já no hoje e no futuro, é o modo como se experimenta a Ideia de ideologia política; ou seja, a ideia que fundamenta qualquer sistema, ainda que seja uma forma particular do pensamento político.

      Quem reflete nas conceções atuais dos modelos ideológicos de pensamento, verifica que cada um deles está justaposto sobre todos os outros; ou seja, cada um deles, quando é chamado a apresentar em programa as suas intenções e propostas, como intérprete de uma certa força e ordem social, não consegue fazê-lo de forma incondicional e descomprometida, porque já traz atrás de si, não a sua ordem natural ideológica e concreta, mas a ordem social, que lhe foi sucedendo, por força da sua colocação na sociedade ter sido ao longo do tempo, condicionada na posição para a qual a ideologia social abstrata a foi remetendo e o seu modelo foi perdendo força e como tal, foi perdendo a sua identidade.

      Nesta ordem de justaposição dos modelos ou paradigmas, que estruturam o todo do pensamento político que deverá ser universal e transversal, as ideias tornaram-se em valores de posse no Poder, pois não seguem a universalidade como necessidade, antes tendem a seguir no caminho da vontade e do interesse particular dos elementos do grupo político, e não terão como necessidade serem uma síntese para garantirem os sonhos da ideologia natural do Homem, com vista a pensarmos e trabalharmos para o Bem Comum, que não reside nesta ou naquela vontade, mas no todo de todas as vontades.

Todos nós sabemos, de que não se iluminará um estádio só com um projetor, e sabemos também, que no conjunto dos projetores há um que é determinante na ordem de força e de chamada, aquele que é comum a todos os outros e que todos são comuns a este, que no caso será o projetor da DEMOCRACIA.

      Logo, formam um sistema que não será abandonado em si mesmo e que permitirá a rotatividade, pois terá aberturas para todos. Sozinho não resolve o problema, mas no conjunto dará significado a todos os outros, ganhando com efeito por força da Ordem e pelo poder do seu Estatuto social, a localização do sinal universal pelo qual todos os grupos deverão proceder em consonância e sem deixar de ter em conta a distinção na responsabilidade das suas funções para o Bem da Comunidade.                                                                                                                                     

     Uma terceira ideia, de certo modo transversal e a convergir na desvalorização do assunto em tema, tornando-se numa força também responsável pela crise em que vivemos sobre o “abandono” do valor da Cultura do Sonho na mente humana, refiro-me à ideia sobre as características que deverá ter aquele, que vier a ser escolhido e a ser chamado pela sociedade, para dirigir, organizar e executar com isenção os desígnios que lhe forem conferidos pelos poderes da Lei.

      Já é um facto, por demais evidente, que num regime social livre e universal, o poder de participar cívica e politicamente é geral e torna-se num Dever a que todos deverão anui, sendo que a capacidade de escolha e de ser escolhido pressuporá esta mesma ordem.                 

Assim também, será com todos que se governará e será através de todos que se será governado. Sendo que para o exercício de funções diretivas no poder social executivo ou legislativo, escolher-se-ão entre todos, os que por vontade, por capacidades e aprovação vierem a ser reconhecidos com mérito para o exercício da função.

        Nesta ordem de pensamento inclusivo, perceberemos melhor o porquê de num regime social universal, quando baseado na Democracia, todos poderão ser chamados às responsabilidades da governação e todos poderão ser potencialmente “escolhíveis”.

Nos nossos dias, a totalidade de cada grupo caiu também no aleatório das escolhas e, como sendo um sistema interpares, começou a negar o universalismo dos seus elementos e a força global da sua ordem na escolha para os cargos e respetivas funções, começou a situar-se no imprevisto, no oportuno e no acaso.

      Logo, são chamados à governação e organização social, não alguns para todos, mas alguns, apenas para alguns! O todo social político passou a ser aleatório na sua forma, porque os conteúdos de pensamento são de alguém, mas só para alguns!

      Em conclusão, diz a Lei da Ordem Natural, de que o que não tiver que ser naturalmente adquirido pelo aleatório resultante das transformações naturais, quando imposto à vontade social há de resultar em consequências negativas e de perigo para a vida do homem e da sociedade.

     Por isso, será bom que se inverta o sentido da situação atual, sobretudo na Organização dos sistemas, que como se vai constatando, o seu valor está a perder-se na mente humana, dada a profunda rejeição pela cultura universalista, que assenta em especial, no valor das Humanidades.

Sendo que nesta nuvem de ignorância, não se sabendo ao certo, se terá na sua manifestação algo de intencional, o que é certo é que uma grande parte dos seres humanos, está a caminhar às escuras sobre a desconfiança em quem tem, de facto, o necessário mérito social e pretende trabalhar sem interesse egoísta e individual na força para a unidade e coesão de todos, sobretudo para a felicidade do Homem e o Bem da Humanidade.

    Voltemos de novo, ao nosso sentimento de meninos:

     _Quando brincávamos uns com os outros, no encontro com todos nascia uma força que nos fazia lembrar uns dos outros. Fôssemos de um grupo ou fôssemos de outro, no jogo de cada um nascia a vontade de se ser melhor e se ser mais tarde reconhecido pela sua educação e pelo seu mérito. E, tanto valia ser pobre como ser rico, no jogo seria melhor, quem jogasse mais, tivesse mais vontade e fosse mais eficaz. E na amizade era comum o sentimento de convívio e, só a algazarra da vitória poderia ser diferente enquanto a ordem não mudasse de alternativa.

      De qualquer forma, o que ficava quando chegava a hora de regressarmos a casa e de nos separarmos até ao dia seguinte, era sempre um sonho envolvido em alegria e a satisfação, ou ficava um certo desencanto que redundava em expectativa para a vontade de mudar e ganhar para alterar do que foi negativo em certo momento para um sentimento positivo e de alegria num momento seguinte.

      Em todos ficava sempre o desejo puro de se ser melhor no outro dia, de se ser apto para ser escolhido, desejar ser o ganhador, mas não como na atualidade com o que vai acontecendo a todos nós, conscientes ou inconscientes disso.

     Em que o Teatro está a ficar vazio de público, os atores já estão previamente escolhidos e as peças a representar não têm origem, são feitas para a ocasião e para desejo não de todos, mas apenas de alguns, que são como os outros, mas não são como todos os outros daqueles que são apenas alguns, mas querem ter o poder do “mando, posso e quero!”.

     Quando eu era pequenino, ouvia os meus pais dizer: “Cresce e aprende, meu filho, para que sejas um homem de amanhã”, para que sejas alguém que a história fale de ti, com alguma surpresa, mas sem vergonha. Para que sejas como nós, e, se fores mais rico, te lembres de todos e, em especial, “daqueles” que foram o exemplo para enriqueceres honrado, como Deus quer de todos nós.

     Quando eu era pequenino, eu sonhei, como todos vós, com um mundo mais perfeito e onde pudesse continuar a sonhar com um mundo que fosse melhor que o dos meus pais, porque a cultura do sonho nascia por dentro de nós, nascia na nossa vontade que, ainda que constrangida pelos interesses sociais, ela era plantada em todos, pelo mesmo Semeador e com a mesma Semente da Verdade Pura.

     Não quero dizer, com este meu desânimo, que não se passe o mesmo agora, mas estamos divididos entre a tirania e a afetividade, impedindo com esta divisão que os resultados de raiz sejam os mesmos, como eram na origem para pudermos sentir vontade de continuar a lutar por uma vida melhor e com mais sentido.

     Mal sabíamos o que era a liberdade e, do lado em que viéssemos a ficar, a força de sonhar era mais forte que o sonho, porque nascia por dentro de nós, tinha uma raiz comum, era uma força que se espalhava e era combativa e contrária, mas não caía em qualquer terreno, nem caía em corações tão empedernidos como muitos no nosso mundo contemporâneo, tornavam-se impolutos no combate que levasse à descrença no gosto de viver e de crescer, para se sonhar e se ser sonho.

    Lembro-me ainda, como se fosse hoje, de me dizerem quando eu era pequenino, se estudares, se aprenderes, se trabalhares, tu irás longe, tu serás alguém na vida…meu rapaz, olha que sem trabalho e sonho nada conseguiremos!...

    Hoje, sinto-me um garimpeiro, mas também um poeta fraternal, que à luz da filosofia e da vida, do pensamento e do amor a todos vós, vos propõe que mudemos algumas regras, para que haja sempre razões plurais e destinos para a luz de todos os nossos sonhos.

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 (Texto 5)

05.04.2021
 
  Macedo Teixeira
 

     “Porém, quando constatamos, que cada vez mais nos estamos a fechar em pensamentos que não têm prioritariamente origem na essência humana, que é a característica singular e a única característica comum e evidente da nossa origem.

     “Quando constatamos, de que uma parte dos nossos pensamentos, estão a perder a forma lógica-conceptual e a sua origem lógico-formal e espiritual, perdendo também em simultâneo a sua identidade que é naturalmente humana, uma perda em detrimento da inteligência natural na elevação e destaque da inteligência artificial, mecânica, robótica e sem sentimentos.

     “Somos forçados a concluir por aproximação de que estaremos a cair em sentimentos de aflição e de perda do nosso centro de gravidade (em que no pensamento, a palavra é a rainha!), e a nossa garantia tende a revelar-se num qualquer totalitarismo de grupo, ficamos imensamente preocupados, quanto à perda progressiva no nosso mundo contemporâneo, do necessário gosto pelo cultivo da educação que deverá continuar a ser muito relevante, quanto a “CULTURA DO SONHO” com vista à felicidade do Homem!

     “E este grave acontecimento, não seria tão perigoso se ele fosse mais visível, porque a força humana facilmente o diluiria e o afastaria do centro da sua força.

“O problema está a tornar-se aflitivo e, exige que pensemos nele, com vista à Educação ser fundada na Ética e na Moral, “ pois nem todos os fins justificam os meios” quer na Ciência, quer na Tecnologia e até mesmo nas Humanidades, porque estamos, quase sem darmos conta, a cair numa força social fechada em sentimentos que são expressão de um inconsciente irracional, ditado pelas forças sociais que não comandamos na indeterminação da sua origem e nem a natureza pode facilmente orientar e regular por ação das leis sociais.” (Citação do texto anterior)

     O inconsciente social é baseado na comunidade, que é a sua raiz e os seus valores a sua regulação!

     O Homem imita o natural e regula a sua ordem por meio da sua vontade e da sua razão. Quando necessita de evoluir, acontece por força da ordem natural e ganha forma por força do pensamento humano. Se há excessos, há ruturas ou arranjos, mas o progresso não se centra no aleatório. Do que se verifica atualmente, é que o progresso acontece por força dos ditames de uma qualquer circunstância e, se surgir uma deformação, releva-se e torna-se válida para manter aquela que é a necessidade, que na forma aleatória acabou por surgir.

     Todos sabemos, muito embora seja uma consideração entre as provas da ciência Física, que qualquer sistema abandonado em si mesmo, isto é, dinamizado pela sua própria força, perde a sua identidade e tende para a desordem.

     O sistema social não poderá escapar à regra natural, que consiste em manter na identidade os seus elementos e vitalizar as suas forças, para o natural encontro numa Ordem ainda mais complexa, que cresce e se autorregula com na base da integração de todos os elementos que a compõem, nomeadamente os elementos necessários para a sistematização e organização da vida em sociedade.

     Se um qualquer sistema social, começar a gravitar no aleatório e algumas das vezes a começar a resvalar até “ao faz de conta”, cairemos inevitavelmente na indiferença, porque vivemos num regime social que é baseado na Democracia e no sistema democrático.

     E, se um regime democrático, não for dinamizado pelo gosto em se ser ativo, e em se pretender a regulação e o acompanhamento permanente das instituições, desde logo, através de uma avaliação/ fiscalização rigorosa, eficiente e incondicional.

     Passaremos a viver em Democracia, mas numa democracia real que não poderá ser considerada verdadeira, pois ao consentir-se por indiferença no regular-se a vida da comunidade social, mais pelo que “interessa que seja” e não pelo Dever de necessariamente ter de ser em conformidade com a Norma, isto é, ter em conta a Ética e a Moral como fins e fazer prevalecer acima de tudo a Lei como critério, (enquanto não existir outra que venha a ser mais perfeita) com vista a obediência nos Direitos e nos Deveres, para deste modo se evitar, a aparência e o “desenrasca”, permitindo a alguns, que na confusão do significado e fundamento das leis sociais, passem a fazer prevalecer o sentimento de que “os meios não têm que justificar, fundamentalmente os fins da equidade”, sobretudo, quando se trata de alcançarmos os nossos objetivos individuais

      Deixando de pensar que, com esta atitude do “vale tudo” poderemos estar a prejudicar a vida do nosso semelhante, nem pensar que, apesar de a nossa vida ser efémera, será o único dom, pelo qual valerá a pena sofrer tendo em conta a nossa honra e o valor do nosso carácter, como exemplo enquanto existirmos, e, “De que serve ao homem conquistar o mundo inteiro se perder a alma? Jesus Cristo Bíblia, Marcos 8:36.

     Sendo que será nesta dimensão da Verdade, que se poderá prosseguir sem desconfiança e com a certeza numa boa orientação, que terá em conta os valores da igualdade, equidade e da justiça para todos.

     Se o valor da Democracia, não se mantiver como um modelo inspirador da ordem ética, moral e social da Sociedade, contrariando deste modo toda a tendência para o “faz de conta”, e para a crença, por desleixo e por incúria, que se venha a acreditar de que a realidade social, se ocupará de si própria num movimento aleatório, em que alguns vão intercedendo com” propósitos ocultos” e perseverantes na falsa verdade de fazer crer de que será na oportunidade do “faz de conta”, que haverá maior possibilidade para a fuga aos compromissos com o Estado, com as instituições sociais e com os seus servidores, aproveitando a confusão para aumentarem a ganância e serem adeptos de uma cultura anestesiante e baseada na fantasia e no malabarismo dos encantos do belo efémero; levando parte da sociedade a cair no engodo, de que o que conta é convencer as pessoas a acreditar, não se preocupando com as consequências negativas para a harmonia social com aquilo que se diz e faz, se o real é ou não verdadeiro, isso pouco importará, o que importará, é que se consiga convencer quem nos ouve, de que o que se diz é verdadeiro e deverá seguir-se!”

     Por outro lado, qualquer ordem social que não seja constitutiva e potencialmente de acentuação para o universalismo, não poderá regular e dirigir seja o que for. Logo, um sistema social, quando nestas condições, distenderá as suas partes para a busca do sentido regular, mas como não tem nem encontra a que se “agarrar”, deixa romper-se por dentro e por fora nos valores da ordem e da estabilidade da vida social em Comunidade, tornando-se dominante a vulgaridade cultural, com vista a aumentar a ignorância e o desapego pelo conhecimento baseado na sensibilidade da imaginação, aumentar em especial, o gosto pela aquisição do valor da Cultura do Sonho e do desenvolvimento da mente humana, para o crescimento e a realização da felicidade do homem e para o reconhecimento da certeza de que; “O Sonho é uma constante da vida…”António Gedeão, Pedra Filosofal.

     O aleatório e o “faz de conta” ganharão expressão e atividade em qualquer das realidades sociais e, por extensão também nas realidades naturais; estes factores tornar-se-ão numa força negativa e contrária, que tenderá a arrastar o homem para o desinteresse e desencanto sobre o Bem da Sociedade e da felicidade de cada um dos seus semelhantes.

     Acabando por pensar, que dado “o estado de caos” em que se vai começando a viver, poderá começar a acreditar no “salve-se quem puder” e que perante “o faz de conta” de quem governa, dirige e é responsável, será melhor refugiar-se num individualismo social e atrair a si, tudo quanto puder de bens e valores materiais sem pensar no outro e na pobreza que lhe irá causar forçosamente no futuro e a partir já do presente, fazendo-o crer de que o melhor para viver sem ser incomodado é aceitar a situação em que se encontra, pois nesta fingida concordância, "doerá menos” e assim irá aceitando em participar a contra gosto neste tipo de ordem social negativa, pois passará a reconhecer como excessiva a sua impotência em relação às possibilidades que o limitam e o condicionam.

 

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 (Texto 4 )

27.03.2021
  Macedo Teixeira

        Esta ideia, um pouco redutora, de “quem não é por nós é contra nós”, também poderá terá uma intenção afirmativa, no sentido da ordem e do movimento, já que a atitude humana baseada na indiferença, será uma atitude muito mais inútil e muito mais prejudicial, do que esta atitude que é baseada no preconceito.

        Pois, na indiferença ninguém destas pessoas “governa nem se deixa governar” e, normalmente, passado o momento das decisões serão estas pessoas, na atitude do “faz de conta”, que depois perante o que vai sendo organizado, nunca estarão de acordo com nada, mas também não indicam nenhuma solução para resolver os problemas, “perante os quais fizeram de conta”!

         Por isso, em todo o caso, no lado menor de negativo desta ideia, quando ocorre neste pensamento binário e fechado, baseado na generalização, “dos que não são por nós, são contra nós!”, mesmo assim, não deixará de ter a sua importância, pois também será preciso contrariar as intenções de quem pretenda ser um agente de destruição social e com isso venham a provocar o total esmorecimento da vontade e do gosto daqueles que se interessam pelo bem da comunidade e “da nossa casa comum!”

        Não será completamente errado, considerar a sua importância neste sentido, mas tendo sempre em conta, de que acima de tudo, deverá prevalecer a crença de que o caminho que percorrermos deverá ser sempre no sentido incondicional e no dever de tender para a verdade, que se deverá tornar universal e igual para todos.

         Um caminho que se estruture na identidade da raiz do pensamento, para a realização existencial de cada um, e que seja um caminho baseado sempre no valor da liberdade, sobretudo na liberdade inerente à pessoa humana.

        E, como tal, não se deve continuar a aceitar este estigma, como um dado adquirido, não se deve de continuar a aceitar, de que um tal pensamento fechado, continue a permanecer num modo polar radical: “no nós, ou no, contra nós!”, mas também, não se deverá contribuir com a nossa indiferença, que este venha a ser completamente desvirtuado e achincalhado, ao ponto de contribuirmos para a sua destruição e total esmorecimento.

       Pois, às vezes sem nos apercebermos, num modo subtil e nesta disfuncionalidade de contrários, vimos a consentir, ainda que de modo inconsciente, par o ressurgimento do absurdo, pela intenção manhosa e sorrateira, da ação de quem quer dominar pela força da ignorância cultural nos momentos de confusão social, através do poder de certos grupos e sistemas, criando uma comunicação de fantasia e de adormecimento, levando, a maior parte das vezes ao desinteresse cultural de uma grande parte do povo e do poder de quem o governa.

       Sendo que com este propósito lá vão conseguindo desinteressá-lo pelo necessário desenvolvimento ético, estético(artístico) e cultural e, até em certos casos, lá vão conseguindo afastá-lo  mesmo daquele sentimento de raiz em que este fora educado, ainda que o seu crescimento tenha sido menos desenvolvido no grau científico, mas lá o vão conseguindo iludir e afastar daquilo em que nunca se deixara arredar do sentido de raiz moral em que fora educado, nem nunca se deixara arrastar, sobretudo para a perversão e para a luxúria, alguns dos principais fatores que têm contribuído para o apagamento da riqueza da sua memória cultural  e consequentemente, na atualidade, mais têm contribuído, para o “apagamento do Sonho, na mente humana!”

       Em jeito de reflexão, poderemos afirmar de que jamais a importância da Cultura no seu desenvolvimento, poderá ser desenvolvida num sentido redutor ou num sentido particular, deveremos antes afirmar de que o desenvolvimento desta, deverá apontar sempre para o todo Universal.

      Qualquer que seja, o pensamento em questão, mesmo aquele, que mais tem sido cultivado na atualidade, “pela crença num individualismo social, muito marcado pela posição de que, “quem não é por nós é contra nós”, mesmo esta questão ou forma de pensamento, poderá ser corrigida e melhorada dentro do possível!

      Desde logo, pela convergência de sentimentos:” pois o facto de julgarmos, de que “quem não é por nós, será contra nós!”, não poderá significar a impossibilidade, de que mediante tal juízo não se deva procurar a convergência humana através do sentido da interação política, social e cultural, para que, pelo menos, possamos vir a conseguir em que  o nosso semelhante, deixe de ser guiado pelo estigma, “do nós ou do contra nós” e, passe a ser guiado antes, pela interação do “em nós e vice-versa”, por exemplo: Nas Repúblicas Democráticas, as ideologias são diferentes, mas o ser da Democracia terá que ser comum a todas elas!”.

      Nós nascemos sob a égide do amor, nós vimos ao mundo para vivermos como uma grande família, com respeito pelas características e ideais que marcam as nossas diferenças, na singularidade de cada ser humano, que em conjunto constituem a unidade comum que revela o Homem, quando na caminhada do seu tempo e na diversidade da sua revelação.

      Porém, quando constatamos, que cada vez mais nos estamos a fechar em pensamentos que não têm prioritariamente origem na essência humana, que é a característica singular e a única característica comum e evidente da nossa origem.

     Quando constatamos, de que uma parte dos nossos pensamentos, estão a perder a forma lógica-conceptual e a sua origem lógico-formal e espiritual, perdendo também em simultâneo a sua identidade que é naturalmente humana, uma perda em detrimento da inteligência natural na elevação e destaque da inteligência artificial, mecânica, robótica e sem sentimentos.

      Somos forçados a concluir por aproximação de que estaremos a cair em sentimentos de aflição e de perda do nosso centro de gravidade (em que no pensamento, a palavra é a rainha!), e a nossa garantia tende a revelar-se num qualquer totalitarismo de grupo, ficamos imensamente preocupados, quanto à perda progressiva no nosso mundo contemporâneo, do necessário gosto pelo cultivo da educação que deverá continuar a ser muito relevante, quanto a “CULTURA DO SONHO” com vista à felicidade do Homem!

    E este grave acontecimento, não seria tão perigoso se ele fosse mais visível, porque a força humana facilmente o diluiria e o afastaria do centro da sua força.

    O problema está a tornar-se aflitivo e, exige que pensemos nele, com vista à Educação ser fundada na Ética e na Moral, “ pois nem todos os fins justificam os meios” quer na Ciência, quer na Tecnologia e até mesmo nas Humanidades, porque estamos, quase sem darmos conta, a cair numa força social fechada em sentimentos que são expressão de um inconsciente irracional, ditado pelas forças sociais que não comandamos na indeterminação da sua origem e nem a natureza pode facilmente orientar e regular por ação das leis sociais.

                                                                                                               

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 (Texto 3 )

22.03.2021

Macedo Teixeira

     Volto a lembrar o nosso tempo de meninos: na idade das perguntas não nos cansamos de perguntar por tudo o que nos fascina. – O que é o Mundo? – É uma bola enorme – responderão os nossos pais. Ficamos a falar sozinhos… “a minha bola tem a forma do mundo”. Gostava de ver o tamanho do Mundo, interrogamo-nos afirmativamente.

     Se nos apercebermos bem deste diálogo, constatamos que o nosso pensamento vai acrescentando algo de muito maravilhoso aos fatores que entram em jogo nos nossos pensamentos. Se não, vejamos: – O que é o Mundo? – uma pergunta metafísica por um ilimitado real. É uma bola enorme, uma resposta física de volume ilimitado. A minha bola tem a forma do Mundo, uma afirmação de semelhança que me leva a gostar mais da minha bola porque tem semelhança, e eu posso brincar com ambos. Gostava de ver o tamanho do mundo, uma afirmação da vontade por via da força que começa a nascer em nós, um pensamento para sonharmos com o Mundo.

     Servi-me desta abordagem lógica para mostrar a todos vós que o nosso crescimento e desenvolvimento têm seguido uma ordem natural e que a nossa educação tende a acompanhar essa ordem. Não estão em causa, na minha análise, os fatores sociais mais preponderantes em cada época ou os objetivos políticos dos poderes reinantes. Não vêm a propósito para o que pretendo descobrir com todos vós. É uma questão de raiz e que tem a ver com o ser e com a razão que aqui me traz. A ordem natural que seguimos é evolutiva e crescente, cheia de novidades e alterações. É formada por sistemas dinâmicos não redutores e regenerativos quanto baste. Atua na temporalidade, modifica-se na forma, cresce nos elementos; responde com base nas leis e por força da correspondência das mesmas. Pode dizer-se que a Ordem Natural cultiva o que necessita, transforma para o que quer e muda conforme o tempo, engendrando nestes movimentos a vontade natural e animação dessa vontade.

     A Educação do Homem e o seu desenvolvimento têm seguido esta ordem, mas na atualidade estão a enfraquecer-se e a estabilizar-se numa grande insensibilidade e perda de força de vontade.

     Uma das ideias ou razões que me parecem ser responsáveis tem sido cultivada pela crença num individualismo social muito marcado pela posição de que quem não é por nós é contra nós. É um pensamento binário que traz consequências muito preocupantes, pois não basta desejar que sejam por nós, é necessário querer e fazer por isso, isto é, ser em nós com todos os outros

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 (Texto 2)

  Macedo Teixeira
 

     Na educação realizam-se várias tarefas com vista à formação e desenvolvimento do homem e, especialmente, com vista à sua instrução para sobreviver com segurança. O gosto como sentimento não é muito fácil advir com a instrução programada, mas a formação tem que ter uma qualquer ordem e isso pressupõe educação. Educar é, então, dar uma certa ordem à forma que, neste caso, é a forma humana. Não há, como se vê, outro modo de nos prepararmos para a vida e também de a vivermos. Porém, ao examinarmos a situação atual da sociedade contemporânea, constatamos que a instrução atual é muito desenvolvida nas áreas de conhecimento; os saberes são muito diversificados e o homem do futuro será tecnicamente muito evoluído e cientificamente muito culto. Porém, há algo de raiz que nos deve preocupar e que pouco a pouco se está a perder. Trata-se dos sentimentos do gosto e da vontade com que vamos fortalecendo a vida.

   Sei que hoje as nossas consciências estão muito esclarecidas sobre o sentido que desejamos percorrer para encontrarmos as nossas potencialidades e vivermos as mais complexas situações, quando queremos ser capazes. No entanto, convido-vos a pensar no seguinte: Dotado de vontade, o Homem será capaz de descobrir os limites da sua liberdade. É uma afirmação que pode ser minha, mas que podemos entender como ideia universal. No entanto, até onde irá a sua força de vontade se os acontecimentos sociais tenderem para a valorização negativa da vida? Se a nossa consciência cada vez mais nos informar de que o que está adiante já está determinado por um esquema social de conhecimento que não valoriza a cultura do sonho. Se a nossa consciência for determinada por um esquema que tenda para sistemas de pensamento binário (0-1), (V-F), como é que será possível o homem descobrir os limites da sua liberdade?

      Em qualquer manual de Filosofia, pode constatar-se que foi com o aparecimento das lógicas polivalentes que foi possível responder a certas exigências das ciências modernas. Com Aristóteles iniciamos a lógica conceptual, que tem como objeto as coisas, as substâncias ou os seres, algo do qual dizemos que tem estes ou aqueles caracteres: “o homem é mamífero” ou “o homem é um ser vivo”. Com os estoicos surgiu uma lógica das proposições, “se o Sol brilha, é dia”, “se há trovão, há relâmpago”. Depois veio a lógica matemática simbólica, que permitiu a substituição da forma gramatical pela forma lógica. A substituição das línguas naturais por símbolos lógicos que representam conceitos linguísticos simplificados em proposições matemáticas. Atualmente a logística pôde elevar-se a um grau superior de abstração porque se apoia em múltiplos valores respondendo, deste modo, à matemática intuicionista de Brower, que distingue o verdadeiro, o absurdo e o falso, ou de Heyting, que distingue o falso, o verdadeiro e o indeciso.

     A Lógica tornou-se numa ciência útil no campo das probabilidades, como diz Robert Blanché.

    A Lógica não se dedicou só ao estudo das operações e às leis do raciocínio, como tornou possível ao Homem pensar e comunicar de um modo idealizado e calculado. Razão e Sonho passaram a fazer parte desta síntese infinita. Citando René Descartes, “a intuição é um ato puro do espírito e a evidência é o que é certo e indiscutível”. Estas ideias têm estado nas leis do conhecimento e da conduta e, conjuntamente com outras, despertam quem as cultiva para a convicção de que podem ser contadas estas histórias e explicados estes conhecimentos e que os mais novos sentirão a mesma emoção e ganharão força para as conhecer e descobrir outras.

     Numa lógica com um sentido natural e humano seria assim que aconteceria, não seria uma repetição, mas seria uma caminhada normal pela juventude dos elementos e pela maturidade da civilização do conhecimento. O problema é que em sistemas de pensamento binário não haverá lugar para o sonho, para os limites da liberdade pura.

 

A Cultura do Sonho, está a apagar-se na mente humana!

 (Texto 1)

 

     Sinto-me, hoje, como se fosse um garimpeiro que sai pela manhã, com o sonho de encontrar algumas pedras preciosas e a vontade de as ver brilhar com toda a força da luz. Ainda mal iniciei a caminhada e já o suor me escorre pelo espírito e a ânsia de encontrar algo precioso me varre as ideias e me agita o coração. Sou diferente dele só nos motivos da caminhada: o garimpeiro, que habita os meus sonhos, procura a riqueza para a sua vida, eu procuro a riqueza para a minha alma. Ambos somos peregrinos nesta ansiedade louca de percorrermos caminhos com objetivos diferentes, mas alegrias tão semelhantes! – Que a realidade faça o destino de ambos: um para a vontade de sonhar, outro para a vontade de ser sonho.

 

     Sinto-me um garimpeiro porque sei que o que procuro não é muito fácil de se ver nem de se encontrar. Transpiro de emoção porque sei quanta necessidade há no que procuro e que agora ao anunciar-me, com a vossa permissão, também vos peço para caminharmos juntos. Ao que venho e ao que me refiro cabem na mesma preocupação, venho por uma razão e refiro-me a um ser.

 

     Simbolicamente posso ser um representante, já que, como diz Emmanuel Kant, tudo na natureza age segundo leis e só o homem age segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade.

 

      É nessa qualidade que vos convido a refletirem comigo acerca da razão que evoco e do ser de que somos representantes.

 

     Quando somos pequeninos vivemos a nossa vida guiada por ordens de várias naturezas e com objetivos culturais distintos. É a unidade do ser humano que está em questão e a sociedade preocupa-se com a sua coesão e com os elementos que a tornam coesa. Nós pouco sabemos disso, para nós, o que é interessante, é o que sentimos no tempero dessas experiências.

 

    Ganha-se em cada dia uma certa vontade para voltarmos a experimentar as atividades do jogo ou das brincadeiras que vamos fazendo. Vão progressivamente aumentando os conteúdos das experiências que desejamos e o gosto de as repetir de novo.

 

Isto leva­‑me a pensar que, sendo o homem um ser de vontade, não nasce com essa força formada de modo inato e até pode perdê-la durante o tempo em que vive. Ao experimentarmos uma certa lucidez da vida, damos conta de que com facilidade nos desmobilizamos das convicções que são a força impulsionadora para a realização dos atos humanos mais simples ou mais complexos.

 

    Poder-se-á dizer que não são suficientemente fortes nem apelativas que baste, pois se o forem o Homem não esmorece nem se desencanta com os acontecimentos que as abalam.

 

    Mas, não é bem assim, não há convicção que seja suficientemente forte para arrastar o homem para fora do sentido negativo da vida, se a sociedade não mobilizar as consciências e as vontades, para o seu sentido positivo!

         

                                                                                                                        Macedo Teixeira

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XVI Capítulo  25..02.2021 (FIM DA OBRA)
 

     “Certo dia, no final de uma manhã de domingo, quando descia serenamente o passeio que ladeava o muro de proteção de alguns dos jardins públicos, e um pouco depois da porta de entrada para a quinta da vigia, já num ponto descendente e intermédio da rua que lhe é paralela e próximo de um lago deslumbrante que ainda embelezava mais aquele local, erguera subitamente os olhos em direção ao interior do mesmo lado, reparando que, num dos muros que limitavam os espaços ajardinados, estava deitada uma criança que dormia a sono profundo e que só por um cuidado divino os raios solares que lhe tocavam não aumentaram a sua dor com uma impiedosa insolação. É verdade que o sol irrompia por entre as árvores e nem sempre batendo direto e com a força dos seus raios no corpo daquela criança, mas àquela hora, mesmo que fossem suavizados pela oscilação pendular das árvores, quando tal não acontecia e estes atingiam diretamente o solo, só por milagre é que ao cabo de um certo tempo não haveriam de queimar até aos ossos o corpo daquele menino que já de si era tão mirrado e tão leve que mais parecia uma folha caída naquele muro e a esperar pelo seu fim.

      “Entretanto, perante aquela imagem, que num tempo lhe parecera querer indicar sossego e num outro querer inquietá-lo à revolta, sentira-se por instantes petrificado e no seu olhar ficara anestesiado, indolente e quase a adormecer, pelo menos durante o tempo em que a sua memória não fora capaz de o acordar para a aflição daquilo que estaria a ver. Num instante recordara-se do que aprendera nos livros e se calhar, já arrebatado pela força da revolta e do choque emocional que recebera, fora naquele momento propositadamente amansando com a indolência, para que num lapso posterior pudesse voltar por metamorfose ao tempo e à sua vida de menino. Lembrara­‑se numa evocação de sonho que, quando era criança, não dormia de dia, a não ser quando era obrigado, mas quase sempre acompanhado com a proteção maternal, porém nunca dormira num muro de jardim e muito menos sozinho debaixo do sol escaldante; aquela criança só poderia ter adormecido naquele muro nas condições de abandono, fraqueza ou estado de doença súbita.

      “Mantivera desde muito cedo uma relação afável com as crianças, gostava de brincar com elas e de continuar a sentir em cada uma a alegria da recordação do seu estado de menino, do tempo em que tivera muitos pares para poder brincar e crescer de forma saudável, brincando com eles ao pião, jogando à bola e muitas vezes durante o verão nadando nos rios e nos tanques, que serviam de piscinas naturais e onde jorrava um ondular de felicidade.

    “Sem perder mais tempo, encaminhara-se na direção daquele catraio, tocara-lhe com mansidão para que, ao acordá-lo bruscamente, não tivesse medo, mas no mesmo instante em que lhe tocara vira abrirem-se uns olhitos muito mortiços e macerados de solidão. Pegara nele para o levar para um ponto mais protegido do calor e, segurando-o nos braços, sentira-lhe os ossos já a romper na magreza do seu corpo. Entretanto, verificara que, no lugar onde encontrara a criança, estava também uma caixa de cartão branco que, na altura em que a descobrira, concluíra que esta se assemelhava a uma jarra, pois na ranhura que a criança fizera na tampa tinha sido colocada uma flor. Pegara na caixa e, com delicadeza, sentira-a como se ela fosse o seu mealheiro, depois colocara-a junto dele e retirara por instantes a flor que estava segura na ranhura para colocar as moedas que possuía no momento. De repente sentira-se eletrizado e com remorsos e ainda no lugar turvara-se de amargura e não parara mais de chorar.

      “Enquanto se debatia entre a dor deste quadro de miséria e a contenção da força das lágrimas que, em alvoroço, irromperam do mar da sua alma, parecera juntar-se-lhe uma multidão que mais parecia ter surgido num estranho relâmpago de luz para lhe tocar e perguntarem: “Que aconteceu, senhor? Porque está a chorar?”

      “Com aquela invasão instantânea e solidária, ficara ainda mais comovido e, de tanto soluçar, não fora capaz de responder de imediato, mas quando recobrara a lucidez, levantara o rosto e inclinara-se na direção da criança para ao menos poder indicar por gestos a razão da sua dor, mas já a não conseguira ver, o lugar estava vazio, já não estava lá ninguém, aquela criança surgira do nada, quem sabe se não fora um reflexo inconsciente ou uma visão instantânea, pois até a multidão, que julgara ouvir e sentir tocar-lhe nos ombros, na realidade não chegara a ver com distinção, só se recordava do som das vozes que ouvira vindas de todos os lados naqueles instantes de aflição.

     “Durante algum tempo, fazendo um grande esforço para se controlar, chorava em todas as aulas sempre que contava aos alunos o fenómeno que lhe acontecera; lamentava com tristeza e desesperava-se consigo próprio por não ter feito mais por aquela alma, dar-lhe mais dinheiro, levá-lo consigo e alimentá-lo, procurar outras soluções, enfim, lutar por todos os meios para minorar aquela miséria humana.

     “Impotente e sem remédio, ainda continuara a “voar” para longe, mas a partir desta altura, mais como se fosse um pássaro ferido que, meio cambaleante, voava ao encontro da cura, na calada do remorso que o atormentava por não ter feito àquela criança tudo o que lhe parecia estar ao seu alcance. A partir daquele momento começara a reconhecer que lhe fora cravado um espinho pela sua teimosia em praguejar na fé e na esperança da visibilidade Daquele que tudo pode e que tudo sofre em silêncio pelo Amor com que nos entrega o Mundo por berço, quem sabe se o primeiro, e até o mais simples de todos?

     “Desde então, deixara de ter certezas, deixara de saber quem era para além da convicção de não ser nada. Aquela criança cravara-lhe na alma o sinete da discórdia; o mundo não seria mais igual para si próprio, deixara de ser possível não duvidar de que, em qualquer lugar da Terra que pudesse conhecer, não deixariam de ser evidentes os sinais da miséria em que tinha caído a natureza humana. Não seria mais necessário caminhar à procura do que parecia estar longe e fora de si. E se procurara um sinal concreto da razão da sua dor, ele vira-o naquela criança despedaçada nos sonhos que trazemos quando descemos do Criador para realizar no Mundo o que nos propõe entre as maravilhas do dom da vida.

     “Aquele acontecimento fora real, não deixara nenhuma dúvida sobre o que realmente acontecera e, se persistiram ainda algumas dificuldades na sua clarividência, elas discorreram-se na interpretação do fenómeno na sua natureza real, porventura transcendente, mas o elemento, ainda que etéreo, manifestava-se num corpo esquelético, tão leve como uma pena, que jamais se alteraria mesmo no sentir da delicadeza de alguém por qualquer receio em o acordar; ele era a transcendência do sofrimento concretizado sobre aquela pedra, que à semelhança de uma cruz assinalara por momentos a estação em que Jesus Cristo, prostrado sobre o chão, já sem forças, entre o inaudível clamara por Simão de Cirene, que na ordem que lhe dera o soldado romano o pudera socorrer pegando-lhe na Cruz e ajudando-O a erguer-Se e a seguir até ao calvário final.

     “Desde então, já não havia mais nada a perguntar. Deus fizera-lhe a vontade, ainda que as suas lágrimas durante muito tempo ensopassem todos os lenços que trazia consigo. E quisera também que, na sua desolação, recebesse o socorro divino nos instantes em que o seu juízo vacilara perante o desassossego da memória no cansaço que rompera todas as defesas cerebrais durante as sucessivas noites de insónia, em que apenas tivera por amigos o silêncio e os trabalhadores da limpeza do lixo da cidade.

     — O senhor professor não vai dormir? — perguntavam com preocupação.

     — Não, eu não consigo dormir, há várias noites que não sei o que isso é — exclamava com um sorriso triste.

    “Entretanto, aproveitava a companhia destes trabalhadores da noite e lá ia rompendo com a solidão, pelo menos durante o tempo que tinha com quem conversar, durante o tempo em que os podia ver a trabalhar e eles permaneciam por ali. Encontraram-se várias noites nestas circunstâncias, quase sempre mais ou menos no mesmo ponto; entre as pontes que separavam as margens das ribeiras e onde se sentia entretido na distração de ver a água que vinha das levadas a engrossar imenso e a correr com força na direção do mar.

   “Havia neste encontro uma presença humana forte e carinhosa que libertava todos os estigmas; nenhum daqueles trabalhadores alguma vez esboçara qualquer sinal que não fosse de respeito e de pena por vê-lo sofrer daquela maneira.”

 
Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XVI Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.161 a 165
 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XV Capítulo  13..02.2021
 

     “Poderá dizer-se que, no seu caminhar e no seu pensamento, havia desde há muito uma realidade implícita, mas como não lhe conhecia o limite nem a forma como esta poderia surgir, acreditara que seria deste modo que caminharia ao seu encontro e que, caminhando neste sentido, também provavelmente caminharia ao encontro de Deus. Acreditava e tinha fé nessa possibilidade, pois nunca lhe saíra da memória que fora verdadeiro o que sentira na alma quando aqueles salpicos de água viva o afagaram divinamente no rosto retirando-o da agonia em que mergulhara naquela noite de verão, e que também fora real o que ouvira entretanto naquela voz misteriosa, quando a emergir do regato o interpelara entre um abraço invisível e num apelo de quietude a ecoar no espaço enquanto se distendia cada vez mais para longe. Falar-lhes, ensinar­‑lhes e mostrar-lhes as suas experiências, agora como docente começava a dar alguns frutos, embora estes não bastassem para o total conforto e sossego da alma.

     “Quando viera a casa para gozar com a família os quinze dias de interrupção de aulas do primeiro período, estávamos na quadra do Natal, e os alunos aproveitaram para lhe oferecerem algumas lembranças simbólicas da beleza da ilha da Madeira. De todas, a que mais o comovera e despertara maior fascínio nas pessoas que reparavam, fora um ramo de flores expressivo de uma das maiores belezas da pérola do Atlântico.

     “Era um ramo volumoso, mas a sua compostura com orquídeas, sapatinhos e estrelícias, tornavam-no tão dimensional e tão excessivamente belo que depressa despertara na elegância feminina o gosto de lhe pegar. Aliás, logo que se iniciara o embarque dos passageiros para o avião com destino ao Porto, destacara-se mais ou menos a meio da fila com um gesto de solidariedade e de ajuda uma senhora de meia-idade que lhe fizera sinal nesse sentido. Fora certamente despertada pela beleza daquelas flores, mas também por senti-lo com dificuldade em mover-se no caminho para a entrada no autocarro que os levaria para o avião, uma vez que segurava numa mão a pasta e na outra o ramo. Sentira-o em consciência na sua grande preocupação pelo receio de o danificar a tal ponto que o chegara a aconchegar tanto ao rosto que acabara por ficar limitado na sua visão. Assim, retendo de propósito o passo, e quando já estava mais próxima dele, a senhora lançara-lhe um sorriso atraente e repleto de sensibilidade, fizera-o certamente mais pela atração da beleza que irradiavam aquelas flores do que pela aflição que entretanto lhe sentira na dificuldade em o transportar. Assim, arranjando uma maneira de o convidar, acenara­‑lhe com insistência através de gestos para que se juntassem na fila sendo que, ao mesmo tempo, aumentara o atraso enquanto amavelmente se ia prestando no encontro para segurar-lhe no ramo, sobretudo até à entrada no avião.

     — Oh, que ramo de flores tão lindo… Em que mercado o comprou? – perguntara a gentil senhora a referir-se certamente ao mercado dos Lavradores.

     “Ao ouvir a pergunta, comovera-se ainda antes de responder:

     — É lindo de verdade, senhora, mas eu não o comprei em lado nenhum, foram os meus alunos que mo deram — respondera já com os olhos marejados de lágrimas.

     — Deixe que eu seguro-lho até entrarmos no avião — dissera com confiança.

     “Entretanto, quando tocara com as mãos naquelas flores, mergulhara numa contemplação tão intensa e tão profunda que mostrara na expressão ficar com tanta admiração e tanto fascínio, que parecera de imediato querer ver naquela beleza uma luz que ainda não tinha para a sua felicidade e que neste indizível encontro se tornara mais sublime na recordação da vida.

     — Obrigado, minha senhora — agradecera com cordialidade sem fazer questão de lhe pegar outra vez.

     “Já dentro do avião sentaram-se em lugares próximos e foram trocando palavras de cortesia enquanto o comandante efetuava manobras para levantar voo.  Porém, ainda antes de o avião levantar, já esta amável senhora se encontrava envolvida a acariciar aquele ramo de flores, e por isso certamente não se apercebera do seu levantamento, e sabe-se lá se não quisera mesmo ficar assim extasiada a tal ponto de poder desejar envolver-se numa intimidade secreta em que o seu coração jamais pudesse sondar qualquer outra preocupação, como normalmente será natural no momento do levantamento e da aterragem de qualquer avião. Ao contrário, quisesse com esta atitude de intimidade positiva passar a sentir um bálsamo de recordação divina que fizesse luzir no seu rosto um encanto discreto e elegante em que a sua viuvez só por instantes pudesse reaparecer no lado mais negativo.

     “Estes e outros acontecimentos tornaram-se expressões de um complexo porvir. Um porvir que ia sendo traduzido muitas vezes por ondas de um oceano tenebroso e medonho, mais pela força brutal do seu pensamento do que pela força dos atos em que o seu corpo se agigantava para abrir caminho à lei, sobretudo quando esta era intencionalmente fechada nos diques e nas comportas sociais. E especialmente quando tendiam à força para estruturar a sua mente e em consequência retorcê-la com os lapsos sociais e políticos através das sombras do poder económico que não lhe deixavam nenhum limite na liberdade para poder desabafar e criticar naturalmente. Para criticar sem cair no descontrolo nervoso que quase sempre o levava a gritar por ordem e por justiça, desforrando-se muitas vezes em bater e profanar a natureza pela total insatisfação da consciência, indo até ao ponto de cair de cansaço encharcado e dolorido na alma com as lágrimas que chorava e as dores com que ficava.

     “Para se sentir mais próximo das pessoas e dissipar algumas das suas tensões que constantemente o invadiam, procurava algumas vezes os espaços naturais da cidade e os jardins mais aconchegados de gente, deleitava-se entre os lagos e as fontes donde borbulhava a água que ora servia para refrescar o ambiente, ora servia para matar a sede das crianças e dos adultos que algumas vezes, num jogo frenético, iam sendo atraídos para a partilha da alegria no mesmo ritmo da inocência da vida.

     “Convivia desta forma entre o encanto aparente de não estar só e a divagação do porquê de caminhar para longe na procura de qualquer situação que lhe parecesse mais transcendente do que a anterior e que lhe garantisse que não sonhava como quando acontecera ficar entre a certeza e a dúvida do que parecera ouvir naquela noite de verão e naquela voz misteriosa que, a interpelá-lo, sussurrara com insistência: “Vai prepará-los, mostra-lhes as tuas experiências, fala­‑lhes do caminho.”

     “Procurava algo que estivesse para além da sua fé e que fosse tão real e tão verdadeiro de que não pudesse duvidar que era real e que pela sua transcendência pudesse também almejar estar no encontro com Aquele que lhe poderia mostrar em concreto a razão de tanta dor e lhe mostrar que, apesar de ser Infinito, quando na tirania do ser, também seria tão afetado como qualquer uma das Suas criaturas.”

 

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XV Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia , Dezembro de 2016, pgs.157 a 160

 

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XIV Capítulo  29..01.2021
 

     Logo que pegara na mala, dirigira-se para a porta de saída para tomar um táxi com destino à cidade do Funchal, onde teria de procurar àquela hora uma residencial para poder pernoitar algumas horas ainda antes de saber onde ficaria a escola para onde iria trabalhar.

   Apesar de no desembarque ter ganho mais alento com a possibilidade de em breve voltar a ver o amigo para poderem conversar e conviver, e também com as palavras que ouvira de boas­‑vindas e a envolvência humana em geral, quando entrara no táxi limitara-se apenas a dar as boas­‑noites ao taxista e a solicitar-lhe que o transportasse até à cidade do Funchal.

   Entretanto é de crer que, durante o tempo que o taxista levou para colocar a bagagem na mala, tivesse reparado que o semblante do seu utente revelava desespero e alguma incerteza certamente sobre o que o esperava, daí que, numa linguagem simples e num sotaque madeirense bastante puro, não perdera tempo a interpelar:

   — Com que então o companheiro quer ir para o Funchal?

   — Sim, para o Funchal, se faz favor — respondera seco e num tom mordaz.

   — O avião chegou muito atrasado! — exclamara o taxista, não desistindo de abrir conversa.

   — É verdade, o avião chegou mesmo muito atrasado — respondera já com alguma suavidade, explicando entretanto:

  — Já vínhamos a caminho do Funchal quando, por razões inesperadas, tivemos de regressar a Lisboa, entretanto tivemos de ficar numa sala do aeroporto de Lisboa durante mais de cerca de hora e meia. Ficamos lá à espera até que houvesse melhoria das condições atmosféricas na Madeira e, quando estas se verificaram, voltamos a embarcar de novo, embora pelo caminho tivessem surgido algumas reservas ao comandante quanto ao aeroporto de aterragem, uma vez que não se mantinha a certeza de que não se repetisse a impossibilidade que se verificara umas horas antes. Ao que parece, durante este período, as condições atmosféricas no aeroporto do Funchal seriam muito más, tão más que não davam garantias de pelo menos haver alguma visibilidade para se poder arriscar com segurança a aterragem.

     Esta explicação bastante sincera sacudira os pensamentos daquele madeirense, que tinha na sua alma a experiência de muitos anos de trabalho. Como taxista, teriam sido várias as situações vividas com diversas pessoas e de culturas diferentes. Talvez por isso, no seu dia-a-dia e durante o tempo de vida social e de trabalho, fizesse sempre questão de cumprir a “promessa” de que tudo haveria de fazer em defesa do valor humano, principalmente na sua classe, manifestando esse sentimento em todas as situações e, de um modo especial, quando perante certas situações de tristeza dos passageiros que transportasse, fosse capaz de conseguir mesmo assim pôr as pessoas a sorrirem.

    Porém, como não encontrara entretanto naquele viajante nenhuma empatia na questão observada, pois não lhe vira nenhum sorriso e sentira que a sua explicação do atraso do avião fora muito precisa e sem espaço para devaneios, decidira não voltar a insistir no mesmo tom, fazendo com isso questão de não ir além de cumprir com rigor a sua função no transporte e segurança daquele utente.

   Contudo, enquanto calmamente ia decorrendo a viagem, o taxista deverá ter olhado várias vezes pelo espelho retrovisor na direção da pessoa que transportava. E olhara com certeza também com a preocupação que já lhe era natural, mas fizera-o naquela ocasião de tal forma e com tanta atenção que acabara por percecionar no rosto daquele estranho um sentimento de grande tristeza. Pois verificara que ele, durante este tempo de viagem, mantivera um ar tão estranho que nem sequer lhe parecera que o mesmo estivesse propenso a apreciar o início duma grande aventura em qualquer parte do Arquipélago, que se diz com bastante frequência poder vir a rivalizar com a beleza de qualquer um dos sonhos naturais que alguém traga consigo, uma vez que aqui se poderão desvendar outros ainda mais belos na contemplação estética de qualquer um dos lugares destas terras do Atlântico, sobretudo nas terras da ilha que o taxista tanto amava e que aos poucos lhe ia tomando a vida entre o cansaço e a alegria de transportar toda a gente.

    Num golpe de sorte e em jeito de comediante, o taxista ensaiara num instante uma alteração brusca no movimento do carro, fizera-o solavancar na ignição várias vezes, com a intermitência do motor, que ao sacudir-se soltava raters, enquanto este, parecendo estar preocupado, preparava em compasso a oportunidade de poder também entrar em cena:

    — Olhem para este burro! Mas não é que agora lhe deu para não trabalhar! Querem ver que esta alimária está com preguiça ou será que lhe cheirou a palha?! Vê lá é se te mexes e anda depressinha, que o cliente está muito cansado e a noite é pequena para dormir!

    O taxista, enquanto teatralizava a situação com subtileza, sentira que neste movimento de para­‑arranca o passageiro não mostrara nenhuma desconfiança sobre o sucedido, e até dera um ar da sua graça pela habilidade manifestada no manuseamento das palavras, quer dizer, fizera acontecer com esta mudança de humor a possibilidade de este alegre taxista poder voltar ao seu lado mais puro, consertando a situação rematando com um dito de espírito ao pronunciar o que recebera no tempo da sua juventude:

   — Bem me dizia o meu pai que carros velhos e mulheres novas dão cabo de nós!

     Mas o certo é que com esta espontaneidade nas palavras que entretanto foram vertidas naquele ambiente pesado, não passaram muitos segundos até que o carro estabilizasse no movimento do motor, a risada fosse geral e o ambiente se tornasse mais agradável.

     Já em franco convívio e a conversarem sobre alguns aspetos, surgira ao taxista a necessidade de saber em pormenor para que parte da cidade teria de dirigir o seu cliente, já que em breve começariam a descer a montanha que se ergue lá do fundo do mar, parecendo querer elevar-se na força até encher-se de luz que, iluminando as casas, forma um esplendor semelhante ao das cascatas de São João.

     — Para onde quer que o leve? — perguntara o chofer com delicadeza.

    Neste fascínio crescera-lhe o sentido dos mistérios da noite, envolvera-se por magia num desejo secreto de perscrutar os silêncios que se adivinhavam numa mistura de paixão e saudade.

   — Nem sei para onde ir! — exclamara com tristeza.

      Entretanto, muito a custo, lá fora acrescentando:

      — O senhor conhece alguma residencial que seja boa e económica?

     — Sim conheço uma, mas não sei se a esta hora ainda terá quarto para alugar, mas esteja descansado que nós já lá iremos saber! — rematara o taxista com entusiasmo natural.

     — Obrigado! — agradecera com a voz  um pouco embargada.

     O taxista, tentando fugir à emoção, focara os olhos como faróis a apontar nos máximos para todos os pontos da rua e a olhar atentamente para os edifícios que já conhecia, aproximara-se o quanto pudera da pensão e indicara-a com alegria:

     — Vê aquela ali, aquela pensão que está juntinha ao mercado? Vá lá ver se têm quarto, que eu ficarei aqui à sua espera!

    O viajante dirigira-se para à pensão indicada e demorara pouco tempo a voltar com a resposta, permitindo antecipar o resultado esperado pelo sorriso que trazia num certo contentamento:

    — Ainda têm um lugar, e o preço do quarto com pequeno-almoço é bastante razoável. Estou­‑lhe muito grato pela ajuda que me deu, já não preciso de procurar noutro lado, vou ficar por aqui esta noite e amanhã verei o que fazer.

   — Boa sorte, companheiro, e seja bem-vindo à Madeira! — exclamara o taxista com grande ternura, despedindo-se dele com um aceno de gratidão.

     A pensão fora agradável quanto ao ambiente e ao silêncio que se fizera sentir durante toda a noite, permitira com isso que pudesse descansar tranquilamente pelo menos até às dez horas da manhã, até à hora-limite para tomar o pequeno-almoço. No entanto, sendo a noite já muito pequena, acabara ainda por dormir muito pouco e desassossegado, pois foram muito mais fortes o descontrolo e a ansiedade em relação ao seu futuro na nova função, que iria começar com a apresentação na escola onde tinha sido colocado para lecionar nas primeiras horas da tarde daquele dia em que chegara à Madeira.

     A sua apresentação e o preenchimento dos documentos para constituir o processo profissional decorreram num ambiente normal de circunstância na recepção protocolar. Entretanto, perante o ambiente comum que era de grande tranquilidade, depressa se passara à informalidade e ao humanismo, que entretanto crescera em todos os aspetos, sentindo-se isso por maioria de razões no atendimento pelos funcionários da secretaria e no aconchego e inserção na escola pelos membros do conselho diretivo e do conselho docente.

    A Escola Secundária Jaime Moniz era uma escola com uma grande área, uma enorme quantidade de alunos e uma grande quantidade de professores, sendo que esta acessão contemplará apenas da sua total dimensão a parte maior da unidade escolar, pois havia outro edifício que era quase contíguo e estava localizado num espaço exterior ao edifício-mãe, que continha várias salas e um ou mais pisos. A escola, para além dos serviços gerais de secretaria, tinha também diversos serviços de apoio educativo e social com bastante pessoal para os executar em conformidade com as suas funções.

    Para além do bom momento que passara na escola durante o tempo em que lá estivera, recorda com emoção um sentimento tão grande de humanidade que o ajudara tanto que jamais o poderá esquecer.

   Durante as manhãs, do mesmo modo como enquanto estivera ao serviço da escola, continuara a movimentar-se pelos corredores até à sala do corpo docente um dos seus antigos reitores, certamente aquele que fora na escola o último a desempenhar esta função, já que as disposições orgânicas quanto à organização administrativa das escolas tinham mudado nessa altura. Ao que soubera, pelo que apreendera na breve relação que ainda mantiveram e pelo que dele abertamente se dizia em todas as conversas, este reitor desempenhara a sua função com tanto denodo e tanto amor que a ação desenvolvida ao longo do tempo, quer na escola, quer no meio social, fora em si tão nobre e os seus exemplos tão ilustres que, sempre que ele passava entre a multidão social e a escolar, ainda que já vergado no seu corpo pelo cansaço, continuara a manter uma serenidade tão espontânea e um espírito tão lúcido e humano que, na reciprocidade da saudação, os alunos, os professores e todo o restante pessoal não hesitavam em fazer-lhe uma vénia, que fora sempre tão sincera e tão exalada de gratidão, que estes gestos, de tão puros e tão verdadeiros, lhe ficaram para sempre gravados na sua memória. Aliás, recorda sempre com profundo sentimento as palavras que ainda lhe ouvira durante o pouco tempo em que conviveram, pois ao cruzar-se com este homem na saudação de bons-dias, sentia exaltar-se na consciência um tão bem-estar e uma tal motivação que logo que, aconchegados no coração entre uma mistura de sorrisos, irrompiam de tal forma na sua alma que despertavam no seu ser um latejar de gracejos e sentimentos de ternura.

     Entre este e outros sentimentos vividos na escola e a espontaneidade do seu dia-a-dia vivida em casa no convívio e no descanso semanal, continuara a gravitar na sua alma a vontade de caminhar, a vontade de procurar conhecer e descobrir nos mistérios da Natureza e da Vida a prova real do que há muito sentira e que ansiosamente procurava. Daí que, sempre que tinha tempo e podia, subia até ao monte mais alto do lugar, percorria os lados mais opostos, matando entretanto a sede com a água das fontes, até que, já muito cansando e com os pés cheios de bolhas, sem poder caminhar com as dores, ficava durante algum tempo a curar as feridas dormindo sob a frescura das oliveiras, a respirar o ar puro e talvez a respirar também o oxigénio dos Evangelhos, enquanto a aflição não voltasse a tomar conta da sua vonta

 

Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XIV Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.149 a 155

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XIII Capítulo  19..01.2021
 

     Com tudo isto chegara o fim do mês de setembro e com ele chegara também o dia marcado para embarcar no Aeroporto de Pedras Rubras com destino de início a Lisboa e depois à ilha da Madeira. Chegado o momento esperado, pedira à mulher que o conduzisse ao aeroporto e que as crianças fossem com eles também; no entanto, fizera entretanto um grande esforço para esconder o que lhe ia por dentro, pois desejava que, quando o avião fizesse manobras para poder levantar voo rumo a Lisboa, fosse capaz de não olhar na direção do gradeamento de arame que limitava à distância o espaço de visão por onde normalmente as famílias e os amigos dos passageiros que embarcavam se colocavam para acenarem para o avião, quando este passasse em frente e enquanto em andamento, até chegar à pista onde levantaria voo.

     Porém, o seu sentimento de amor fora muito mais forte do que a sua vontade e, quando o avião efetuava manobras de passagem em direção à pista para poder levantar voo, ele não fora capaz de manter os olhos fixos na visão do seu interior, pois parecera que de repente uma espécie de mão invisível lhe voltara o rosto na direção da tal rede que limitava o espaço de visão e que antes de embarcar desejara não conseguir ver. Num súbito, ainda que a mulher se destacasse no meio dos filhos, ante o sorriso dos seus pequeninos ficara totalmente esquecido do que antes desejara como estratégia para amenizar a dor. Assim, sem conseguir manter mais o desejo em que pensara antes como estratégia para não chorar, inclinara de repente o seu olhar na direção dos pequeninos, que conseguia enxergar bem no meio das outras pessoas a partir da mãe, que os segurava já certamente com as lágrimas que ele quisera não ver e que entretanto naquela comunhão de grande tristeza ficara de tal modo que as suas lágrimas, ao alagar-se nos seus olhos, quebraram-lhe o alcance da visão até o avião se elevar completamente nos ares. No meio deste transe e desta amargura, começara a falar e a sentenciar baixinho: o amor é sempre mais forte; mesmo que queiramos às vezes o contrário, não somos capazes de vencer o poder do coração.

     Um pouco mais recomposto e já próximo da noite, tomara outro avião em Lisboa com destino ao Funchal. Quando se sentara no lugar, reparara que ao seu lado viajava um jovem militar madeirense, que depois viera a saber que estava colocado em Mafra e que na altura era cadete instruendo com vista a alcançar no fim da recruta o posto de aspirante miliciano. Descobrira este facto porque, ao cabo de cerca de vinte minutos de viagem, o comandante do avião, depois de saudar os passageiros, informara que por razões atmosféricas teria de inverter a viagem, pois não poderíamos por esta razão aterrar no aeroporto do Funchal e que as ordens recebidas seriam no sentido de voltarmos a Lisboa ao aeroporto da Portela e de lá permanecermos até termos melhores condições na Madeira.

     É evidente que esta alteração imprevisível provocara em todos os passageiros alguma instabilidade, mesmo até naqueles que eram madeirenses e que regressavam nesta altura a suas casas. No seu caso, esta situação provocara certamente em si mais alvoroço pelo facto de ter receio de andar de avião e esta perturbação vir de certa maneira ao encontro dos maus pensamentos que lhe ocorreram ainda antes de embarcar. O avião nunca fora o meio de transporte de que mais gostara, um sentimento que lhe nascera quando tivera de experimentar pela primeira vez este meio de transporte viajando durante muitas horas para chegar a África no tempo da Guerra Colonial; assim, apesar ter tido conhecimento de que o aeroporto do Funchal teria sido ligeiramente aumentado e ter conhecimento também de que o limite da pista ainda não seria muito extenso, o que obrigaria qualquer comandante, mesmo com muita experiência, a ter de efetuar manobras muito rigorosas de abordagem à pista do aeroporto para poder efetuar uma boa aterragem.

      Mercê deste sobressalto inesperado, ocorreram-lhe no pensamento imagens geradoras de ansiedade e de medo. Contudo, em silêncio, procurara superar esta situação instável, contrariara a sua imaginação de pânico, olhara para o jovem que seguia ao seu lado e, em súplica discreta, interpelara-o:

     — Haverá qualquer coisa de mais grave ou isto já é normal acontecer?

     O jovem voltara-se na sua direção e respondera:

     — Não, não creio que haja um problema mais grave, deverão ser apenas as más condições para aterrar que nos impedirão de poder prosseguir para o aeroporto do Funchal, pois estas situações atmosféricas difíceis poderão ocorrer de vez em quando. — Entretanto, percebendo haver também na pergunta uma certa aflição, o jovem apressara-se a mediar a tensão com uma explicação mais detalhada:

     — De facto, já não é a primeira vez que os aviões voltam para trás, ou por já estarem muito próximos do aeroporto do Funchal, acabam por ter de ir aterrar nas ilhas Canárias, e quando as condições melhoram, voltam para aterrar na Madeira.

    — Se é assim como diz, fico mais tranquilo. É que eu, por mim, já não tenho muito gosto em viajar de avião, depois este percalço agora nesta viagem trouxe-me num instante à memória a tragédia que ocorrera há uns tempos no aeroporto do Funchal e que julgo que ela ocorrera por um erro de cálculo nas manobras de aterragem, mas se calhar também fora pelas fracas condições atmosféricas.

    — É verdade! — respondera.

     Mas, entretanto, para o tranquilizar um pouco mais, o jovem acrescentara:

    — Nós não devemos pensar nisso, o passado é passado e nós deveremos ter grande confiança nos pilotos que voam para a Madeira, eles são muito competentes e, além disso, o aeroporto do Funchal tem agora melhores condições de aterragem, a pista é maior, tem meios tecnológicos melhores e usam maior rigor na exigência das condições.

    — Oxalá seja assim, meu caro jovem, pois já me basta de tristeza aquela que levo comigo.

     O jovem ouvira-o e fizera silêncio, enquanto ele aproveitara o momento para continuar a conversar até chegarem a Lisboa. Ficara interessado em conhecê-lo, já que era madeirense, e na sua simpatia poderia descobrir onde se alojar e comer durante os primeiros tempos; não levava consigo muito dinheiro e, como escolhera por sua única vontade este novo caminho, não poderia queixar-se para casa de quaisquer dificuldades que estivesse a passar, pelo menos no início.

     Este período de tempo, no regresso inesperado ao aeroporto de Lisboa, apesar de pequeno, ainda dera para um conhecimento mútuo dos aspetos mais gerais de cada um, de que terras seriam, em que se ocupavam no momento, o porquê da viagem, etc.

Talvez por ser mais velho e por estar mais à vontade nestas questões, resolvera interpelar o jovem com alguma discrição:

     — Já constatei que o amigo é madeirense e que também me parece estar na flor da idade; no entanto, apesar de ser professor e ter alguma formação em Psicologia, não fui capaz de descobrir em que se ocupa.

   — Sou militar, sou cadete instruendo e estou a fazer a recruta em Mafra — respondera o jovem, que na ocasião trajava à civil. — E o senhor, é do continente e vai em visita à Madeira? — perguntara delicadamente.

   — Sim, eu vou conhecer a Madeira, bem… conhecer é como quem diz: eu vou é para lá trabalhar! — exclamara manifestando um pouco de angústia. Entretanto, procurando justificar a sua razão, acrescentara:

   — Concorri há pouco para ensinar na ilha da Madeira, e os serviços regionais de educação propuseram-me um horário para durante todo o ano a lecionar no Funchal e na Escola Secundária Jaime Moniz, com possibilidade de alojamento. E eu até já mandei um telegrama para a escola a aceitar o lugar, mas como ainda não tenho residência, quando lá chegarmos terei de procurar uma residencial para ficar a pernoitar até ter uma solução que me agrade e seja mais económica.

   — Ah! agora percebe-se melhor porque dissera há pouco que já lhe bastaria a tristeza que levava consigo, a tristeza que sentia!

   — É verdade, não foi fácil decidirmos sobre a mudança de emprego da Caixa Geral de Depósitos para os serviços de Educação, e ainda por cima para a ilha da Madeira, que, como sabe, fica longe da minha terra. Tive de deixar a mulher e os filhos, que são ainda pequenos, e vir para tão longe para realizar o meu sonho.

     De repente tiveram de interromper o diálogo com a voz de uma hospedeira a anunciar que em breve aterrariam no aeroporto de Lisboa, solicitando que apertassem os cintos, endireitassem as cadeiras e se mantivessem no lugar, mesmo depois de o avião aterrar e durante as manobras até à paragem de destino.

    Com esta informação repentina foram totalmente caldeadas as emoções de ambos; contudo, entre a azáfama da aproximação ao aeroporto e a preocupação da segurança para a aterragem, o jovem madeirense, que conhecia melhor a distância que os separava, ainda fizera questão de exclamar:

  — Só não percebi com muita clareza o que quis dizer com a expressão “ter de vir para tão longe para realizar um sonho”.

  — Sim, é verdade, há muito que sinto e recordo ainda como se de uma imagem se tratasse o desejo de realizar o que me fora proposto numa espécie de interpelação divina. É como se eu ainda continuasse a ouvir aquela voz invisível que me falara naquela noite de grande sofrimento: “Vai prepará-los, ensina-lhes o que aprendeste, mostra-lhes o caminho…”.

      E como este desejo nunca fora possível realizar no Continente, conforme eu queria, pois os lugares para o ensino da Filosofia escasseiam cada vez mais e têm vantagem os que já têm algum tempo de serviço, meditei nas condições vantajosas que ofereciam os Governos Regionais dos Açores e da Madeira e concorri a um lugar para ensinar esta disciplina num deles. Tive conhecimento de que a Madeira era bastante apetecível para os cooperantes, tive também conhecimento de que as ilhas madeirenses eram muito lindas e que, apesar da distância que nos separaria e de alguma solidão em que teria de ficar, se poderia lá viver bem porque as pessoas eram boas e não faltava nada do essencial. Por isso, com o acordo da minha mulher em ficar só com os nossos filhos, decidi concorrer para a Madeira para ir trabalhar para lá arcando com todos os sacrifícios possíveis que vier a ter de passar durante a ausência, para deste modo poder vir a realizar o meu sonho.

     O jovem estava deslumbrado com as palavras que ouvia, porém não se propusera continuar, pois o receio na aproximação ao aeroporto e a tensão emocional daí decorrente tornaram-se na força principal do silêncio que se faz nestas ocasiões.

     Logo que o avião aportou ao ponto de estacionamento, levantaram-se dos seus lugares e os dois saíram em silêncio na direção do autocarro que os levaria até à sala de espera, onde teriam de permanecer até saberem as ordens do novo embarque para o Funchal.

    Preocupado com a incerteza do novo horário da partida para a ilha da Madeira, sentara-se próximo do jovem procurando manter um ar natural enquanto perscrutava no silêncio algo de bastante agradável pela sua companhia, mas também pela maior expectativa de segurança que este lhe criara em relação ao problema do regresso inesperado a Lisboa, que o levara a acreditar que, de facto, a dificuldade que existia para a aterragem no aeroporto do Funchal era apenas pelas razões atmosféricas que foram invocadas pelo comandante do avião, acreditando também que, algum tempo depois de terem regressado a Lisboa, estas certamente haveriam de permitir que voltassem a embarcar de novo para lá.

    Porém, apesar da expectativa positiva que agora mantinha em relação à aterragem posterior, também não quisera deixar fugir a oportunidade de continuar a manter conversa com o jovem madeirense. Sentara-se junto dele e fora criando ambiente ao mesmo tempo que ia olhando para o placard do movimento dos aviões, para verificar a indicação do novo horário de partida para o Funchal.

    Não demorara muito tempo nesta envolvência social, pois o jovem movera o seu rosto e exclamara:

    — Nós deveremos embarcar daqui a pouco, pois se assim não fosse, a TAP já nos teria informado.

    Ao ouvir estas palavras, exclamara:

    — Também penso que é como diz, mas esta situação continua para mim a ser uma enorme surpresa.

    Perante a dúvida partilhada, o jovem fizera questão de acrescentar:

— Bem, eu acredito no que estou a prever, pois a experiência e o conhecimento que tenho de situações semelhantes dizem-me que os responsáveis pela segurança irão certificar-se da evolução das condições atmosféricas na Madeira, e se entretanto estas estiverem a melhorar, certamente que ainda partiremos esta noite para o Funchal.

    Naquele instante, o eco das suas palavras fora abafado pela comunicação sonora que se fizera ouvir em toda a sala: “Senhores passageiros do voo com destino ao Funchal, é favor dirigirem-se para a porta de embarque.”

    Com esta comunicação, poderia adivinhar-se nos rostos dos passageiros que a ânsia sobre a nova partida tinha sido completamente amenizada. E, no seu caso, não só sentira o mesmo, como além disso sentira também a satisfação que lhe viera do contacto que iniciara com o jovem no inesperado regresso a Lisboa, pois este permitira-lhe que tivesse perdido um pouco do receio da viagem para o Funchal e permitira-lhe que ao mesmo tempo que também tivesse soltado da sua consciência alguma da tristeza que levava consigo por ter deixado para trás a sua mulher e os seus filhos.

    Assim, reerguera-se com mais otimismo, afoitara a sua angústia e proferira numa voz mais forte:

    — Afinal sempre vamos, meu caro jovem! Sempre aconteceu como previra, já não ficaremos esta noite a dormir em Lisboa.

    Com esta mudança de algum otimismo, o madeirense sorrira e acenara a cabeça num gesto de solidariedade e de humanismo, apercebera-se de que não havia naquelas palavras um sentimento assim tão alegre e tão concordante com a viagem, porém sem quebrar a impressão que tivera da aparência, sentara-se junto de si no autocarro que entretanto os levaria até ao avião para ambos entrarem e se acomodarem nos seus lugares.

    Enquanto decorriam os preparativos na acomodação dos passageiros, das bagagens de mão, nas instruções de segurança e nas manobras do piloto com a condução do avião até à pista donde levantariam voo, mantiveram-se ambos em silêncio, mesmo durante o tempo em que o avião já ia rasgando as nuvens para subir completamente nos ares e poder estabilizar-se para começar a deslizar continuamente pelo espaço.

   Viajar de avião não era o que ele mais gostava, mas nesta ocasião, talvez por um estado de graça para contrariar a grande tensão em que se encontrava, vieram-lhe à memória as longas viagens que fizera para África durante um período na Guerra do Ultramar e na colónia de Moçambique, onde prestara serviço militar. Ocorreram-lhe recordações fascinantes e de rara beleza, sobretudo aquelas que lhe recordaram as viagens que fizera para vir à Metrópole quando quisera casar e levar consigo a mulher dos seus sonhos.

    Pode dizer-se que a envolvência da sua memória na beleza e fascínio da recordação destas imagens acabara em grande parte por rebater no fundo da sua alma as aflições geradas com a separação da família e com o passar do tempo num monte de incertezas e receio da aterragem no aeroporto do Funchal, sobretudo quando se recordara da tragédia que lá acontecera antes. Aliás, fora esta mistura de sentimentos de grande beleza que fizera de novo luzir em si uma imagem mais feliz e cativante, uma imagem que entretanto manifestara no rosto quando olhara o jovem que seguia ao seu lado, levando-o pela expressão a partilhar da alegria que sentira pelo efeito da catarse provocada nas palavras de cordialidade que entretanto anteriormente lhe ouvira quando se dirigiram ao avião para embarcarem de novo.

     Mesmo assim, quando o avião atingiu a estabilização necessária para se poder reclinar a cadeira e desapertar o cinto, quando se atingiram as condições propícias para o diálogo, mantiveram-se ainda durante algum tempo sem dizerem palavra, embora o jovem sentisse que o professor necessitava de continuar a esconjurar todos os medos.

     Porém, este silêncio de discreto equilíbrio não permanecera por muito mais tempo, já que a alocução de boas-vindas do comandante fizera surgir de novo alguma inquietação. Nas suas palavras percebia-se que as condições atmosféricas não davam ainda garantia para uma boa aterragem no aeroporto do Funchal. Supõe-se que, pelas informações recolhidas a bordo, levaram o comandante a concluir com reserva que ainda não seria certo que pudéssemos aterrar com segurança no Funchal, e nesse caso poderíamos até ter de seguir para as ilhas Canárias para aterrarmos em situação extraordinária.

    Contudo, quando seria suposto que se fizesse algum silêncio na expectativa, a maior parte dos passageiros fizeram algazarra como a confirmar que estas situações seriam normais, embora para ele a surpresa ganhasse agora outra dimensão. Juntaram-se às preocupações pelo desconhecido os pensamentos que geravam já uma grande desconfiança na aventura que iniciara.

   Neste remoque interior, soltara-se-lhe a vontade de dialogar com o jovem militar, sentia que era preciso levantar o ânimo e elevar o sentimento até à grandeza da sua alma. Dar parte de fraco fora a atitude que desde cedo se habituara a rejeitar; tomara como lema para viver “que o homem não chora e que é preciso resistir até ao limite”.

   — Posso saber o seu nome? — perguntara com um ligeiro sorriso.

  — Sim, o meu nome é Jorge, Jorge Conde — respondera o jovem com uma certa pompa. — E o senhor professor, como se chama? — perguntara com mais entusiasmo ainda.

   — Eu chamo-me Batista, Batista Amaral — respondera com simplicidade e alegria.

      Entretanto, enquanto aguçava o sentido e franzia os sobrolhos, rasgava-se-lhe nos lábios um premeditado elogio:

  — Oh, eu não tenho no meu nome um “título monárquico”, mas ao que parece tenho nele gravada uma missão especial.

  — Que me quer dizer com a palavra “missão”? — interrogara o jovem num tom intelectual.

    De repente, no timbre sonoro destas palavras, misturara-se uma grande confusão pelas vozes vindas de outros passageiros, que tagarelavam bastante alto e numa linguagem com sotaque madeirense um pouco emocional:

   — Bebam, companheiros, bebam cerveja, que é preciso esquecer os tormentos e as aflições. Pois já não nos bastavam as grandes chatices que temos no dia-a-dia que nos vão tirando a alegria, quanto mais agora termos de estar todos nesta grande confusão e dúvida por não sabermos ainda aonde iremos aterrar.

     Com um gesto meio cruzado, o professor voltara-se entretanto na direção dos companheiros do seu lado oposto, mas estes, sem lhe darem tempo de expressar qualquer sentimento, proporcionaram-lhe num gesto de cordialidade uma interpelação muito direta e franca:

   — Beba, companheiro, beba que faz muito bem. Um homem precisa de esquecer os problemas, e para isso não há nada de melhor do que bebermos uma boa cerveja.

   — Obrigado, meus bons amigos, mas eu não bebo bebidas alcoólicas fora das refeições e, ressalvando as exceções, prefiro beber vinho — respondera-lhes com um sentimento de grande compaixão.

    Mesmo assim, eles continuaram a insistir sem parar; a maior parte dos passageiros era madeirense de gema, eram pessoas simples e muito dadas à cortesia sempre numa educação de raiz. Julga-se que a insularidade traz consigo a solidão, mas diz-se também que esta traz um silêncio próprio que se quebra de vez em quando no mar da revolta com o alvoroçar das águas.

     Nesta meditação algo esforçada abrira-se-lhe entretanto a possibilidade de colocar de novo o diálogo na descoberta do conhecimento da ilha da Madeira.   Se possível na descoberta de alguns pormenores da ética do povo madeirense e também de alguns dos seus usos e costumes. Ele tinha ouvido dizer coisas maravilhosas aos amigos que tinham visitado o arquipélago, uns em missão de trabalho e comércio, outros em turismo e ainda outros em férias, aspetos que muito influenciaram a sua escolha para início da carreira docente.

    — O Jorge vive no Funchal? — perguntara com curiosidade e interesse.

   — Não, embora eu seja natural, estou a viver com os meus pais na ilha de Porto Santo.

    Entretanto, acrescentara um pouco mais:

   — Hoje tive de embarcar com destino ao Funchal para visitar uns familiares, depois apanharei o ferry-boat para passar com os meus pais o resto dos dias de licença que me deram, e aí ficarei também a aguardar até ser colocado numa nova unidade militar, que desde já gostaria que fosse na região da Madeira e, se possível, numa das unidades mais próximas de minha casa.

   — Oxalá se realize o seu desejo, caro jovem! E, já agora, gostaria de dizer-lhe que também fui militar, estive durante quinze meses no Continente e embarquei depois para a Guerra Colonial, onde estive em Moçambique durante mais dois anos; poderemos dizer em abono da verdade que estes foram tempos de má memória, embora eu tivesse alguma sorte, e por isso não tivesse tido problemas de maior.

    Dizem que a ilha da Madeira é a pérola do Atlântico, que é a ilha mais bonita do Arquipélago. Será isso verdade? — interrogara num tom moderado e complacente.

   — Sim, é verdade – respondera, afinando o pensamento para a narração:

   — O senhor professor vai ficar encantado com a beleza da Madeira e vai gostar muito dos alunos; os madeirenses são carinhosos para todas as pessoas, e de um modo especial para os cooperantes. Acredito que não tardará muito que o senhor professor venha a apaixonar-se pela nossa terra e pelas pessoas da Madeira; a solidão natural no início vai ser rapidamente compensada pela diversidade regional, cultural e local; aliás, estão colocados no Funchal e noutros locais vários técnicos superiores que vieram sós como o senhor professor e que, com o tempo, não quiseram outra coisa; alguns sendo solteiros, vieram a enamorar-se e a casar com madeirenses, tiveram filhos e ficaram cá a viver.

    Depois do que ouvira naquelas palavras que lhe irradiaram imensa alegria, ficara um pouco emocionado, mas antes que desse algum sinal de fraqueza emocional, envolvera-se numa maior intimidade, ficando em recolhimento a deliciar-se com as imagens que o jovem recriara na sua imaginação. Também naquele instante o avião começara a descer, e a ordem nos sinais sonoros era para apertarem os cintos, reclinarem as cadeiras e manterem-se na sua posição até o avião aterrar e estar completamente estabilizado no local de paragem.

    Com a mudança para um ambiente menos tranquilo, fizera-se sentir no interior do avião um silêncio profundo de dúvida, de repente o seu coração começara a galopar com força para poder levar o sangue com mais rapidez a todas as partes do corpo e para o ajudar a manter a mente ainda com alguma lucidez no discernimento. Entretanto completamente desnorteado na consciência pelo medo que abruptamente fora crescendo em si, agarrara-se violentamente aos braços do seu assento, disfarçando de vez em quando este sentimento de aflição com um olhar simultâneo e nebuloso na direção das luzinhas brilhantes que se viam ao longe na cidade do Funchal.

    O comandante do avião começara alguns minutos depois desta primeira aflição a fazer a aproximação à pista do aeroporto, efetuando no trajeto algumas mudanças de direcção, creio que curvando da direita para a esquerda e baixando rente ao mar até à altura necessária para pousar no início da pista, uma vez que o aeroporto tinha apenas as condições suficientes.

    Nestas manobras, o avião inclinara-se com alguma oscilação, via-se a asa do lado direito no sentido ascendente, e o mar, para quem não conhecia o local, parecia estar demasiado próximo. Nesta altura o seu coração agitara-se um pouco mais, perante este cenário firmara-se na cadeira com mais força e confiança, ainda que só sabendo nesta ocasião que era mesmo no aeroporto do Funchal que iam aterrar. Porém, no turbilhão das palavras que alguns madeirenses soltavam a esmo e em catadupa, aumentara-se-lhe imenso o ritmo cardíaco, deixara de ver com nitidez, e o ambiente tornara-se-lhe impiedoso:

   — O avião está a mexer-se todo — diziam alguns madeirenses ainda toldados pelos últimos tragos de cerveja.

   — O malandro vai-nos deitar ao mar! — retorquiam vários em coro.

   — Eu bem dizia que este cubano nos deitava ao Machico! — exclamava alguém mais aflito.

     A confusão e o pânico instalaram-se no avião; só o silêncio de alguns passageiros e a serenidade das hospedeiras transmitiam forças para poder resistir ao desespero. Pode dizer-se que se verificara neste lapso de tempo a experiência da relatividade, pois foram os minutos mais longos que vivera, mas também fora o contraste mais libertador que tivera, sobretudo quando os travões, ainda a dominar nervosos a velocidade do avião, que rolava na pista, foram abafados por um troar de palmas dos passageiros num agradecimento à tripulação pela paz e segurança da aterragem.

     Depois de o avião estabilizar e ser colocada a escada nas portas para a saída dos passageiros, levantara-se sem pressa para retirar a sua bagagem de mão e, com um sorriso ainda a respirar fundo, procurara na aproximação da saída dissipar toda a tensão que vivera para acender a satisfação que sentira na companhia daquele jovem em todos os momentos daquela viagem tão atribulada.

    Quando ambos desceram do avião para tomarem o autocarro com destino à sala de desembarque, a noite tinha já entrado na madrugada. Porém, enquanto esperavam para levantarem as malas, foram trocando algumas palavras, desejando voltarem a ver-se num encontro de convívio, marcando entretanto como locais possíveis a porta do cinema e um café com esplanada que ficava próximo da igreja da Sé.

Esta vontade comum iria depender mais das possibilidades do jovem do que de si próprio, já que o mesmo residia na ilha de Porto Santo e não sabia se ficaria colocado na região militar da Madeira. Mesmo assim, felicitaram-se com a esperança de que em breve se encontrariam

 

Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XIII Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.133 a 147

 

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XII Capítulo  12..01.2021
 

     Teria sido, afinal, uma razão muito mais poderosa do que a falta de alguma compatibilidade, teria sido certamente uma razão ditada na sua consciência e na sua memória pela emergência permanente da imagem de amor que então recebera e que diariamente continuara a apelar-lhe para a sua constante recordação. Aliás, nunca lhe saíra da ideia que esta imagem sempre mantivera nele a mesma força com que a sentira naquela altura distante, vinda da voz que ouvira no crepitar daquelas águas, que, ao moverem-se naquele pequeno regato, plasmavam em cada instante uma visão ainda mais triste que emergia a cada instante dolorosamente na sua alma com as lágrimas que ali chorava.

     Com tudo isto poderá dizer-se que haverá às vezes uma certa trama no despertar da nossa vida, pois sendo ela um todo singular, único e indivisível, que vamos constituindo nos quadros sociais e temporais sucessivos da nossa existência, ela nos interpela em todas as ocasiões e sempre muito mais quando se sente inquieta, embora sempre em todas as situações também nos condicione à certeza de que nunca lhe poderemos traçar o caminho com o que queremos nos nossos desejos nem com o queremos nos seus limites.

     No entanto, neste preâmbulo de incerteza, ocorre-nos a ideia do livre­­‑arbítrio, que subtilmente nos vai alegrando e despertando para a emergência da autonomia da nossa vontade e para a conformidade justa com os atos da nossa missão. Pois é nessa agitação serena de liberdade que nos vamos impelindo para a frente como se fôssemos molas que se distendem em cada instante no limite da sua amplitude, para que em cada um destes avanços possam ganhar coesão e consistência as formas do livro da nossa vida.

     Assim, com ação nos diversos conteúdos registados na nossa memória e ao mesmo tempo por força da sua razão na nossa existência, na vivência da nossa vida vamo-nos apeando também geneticamente nas diferentes formas naturais do Livro da Natureza, que começáramos de pequeninos a ler e mais tarde quiçá a reescrever em nós alegremente, quando de forma voluntária e consciente, ou com tristeza, quando de forma involuntária e reprimida, pois ainda são muitos aqueles que começam logo ao nascer da aurora a ler e a reescrever do Livro da Vida o livro da sua vida, podendo contudo nestas circunstâncias alguns lerem e reescreverem nas condições possíveis e em liberdade, enquanto outros só o poderão fazer nas condições possíveis do verdugo e nos caminhos da servidão.

     Ocorre-nos ainda certamente entre os caminhos da imaginação que a dimensão da vida genética, no plano da existência e da mudança, será uma parte de um registo de humanidade que, independentemente das condições, todos trarão consigo esse registo, uma vez que a nossa vida participará certamente de uma edição sucessiva e infinita que estará para além do nosso tempo e para além dos nossos limites.

     Porém, deverá dizer-se que nesta folga de liberdade entre o natural e o social ganhamos uma enorme força no sentimento que adquirimos de que este livro nos pertence, porque é o nosso e porque se refere à nossa vida, sendo que as suas folhas, apesar de as não podermos separar da ordem, poderemos em liberdade, se quisermos escolher, como dispor uma parte dos conteúdos em cada uma delas. Aliás, como exemplo, basta pensar-se à semelhança de que poderemos sempre escolher entre comer um bolo ou comer um chocolate, pois em cada instante de apetite e de prazer poderemos optar por aquilo que mais queremos.

     Contudo, perante a diversidade de opções, será bom considerar-se que, se esta folga de liberdade nos permite a escolha, esta poderá ser tanto mais autónoma e livre quando na opção o critério de necessidade for mais determinante que o critério de prazer, pois enquanto o primeiro será de caráter endógeno e necessário, o segundo será predominantemente de caráter exógeno e supletivo, quer dizer, terá sempre muito mais a ver com o que agrada aos nossos sentidos e, por consequência, será porventura muito mais alternativo e muito mais volátil.

     Por fim, ocorre-nos numa feliz conclusão que as nossas ações estão no nosso poder e justificam com razão que as pratiquemos sempre com uma ligeira amplitude de liberdade, pois elas são estimuladas por elementos que ampliam a alegria no nosso sentimento e ampliam o nosso poder de escolher aquilo que queremos em cada instante na diversidade biológica, social e cultural. Assim também parece ser o nosso modo de viver a vida e de lutar contra a servidão humana, o modo de escolhermos o que queremos na alegria para a nossa felicidade.

     Será contudo neste corolário, e sem sabermos o porquê do que há de mais profundo na roda da vida em que giramos, que vão acontecendo tensões mais profundas na nossa motivação, tensões que despertam na nossa vontade o desejo de seguirmos certos sinais registados na memória no passado ou na ocasião da realidade que, por nos inquietarem muitíssimo na consciência, nos motivam permanentemente no desejo de saber e na procura duma solução para os compreender. É verdade que estamos inseridos na ordem do que nos vai acontecendo na existência, mas a forma como se desenvolvem as suas partes da nossa trama existencial remete, em alguns casos, para um certo mistério que, pela sua transcendência, nos surpreende e nos faz pensar no seu fascínio.

     Perante esta inquietude e neste soar vital deverão ser muitas as vezes em que nos interrogamos sobre as passadas que estaremos a dar para vivermos a nossa vida com sentido e plenitude. Com certeza que o faremos muitas vezes, pois com isto também vamos divagando a observar o mundo para pensarmos melhor como encontrar as soluções para o que mais nos inquieta, ainda que às vezes também depressa nos recolhamos com apoio no princípio da ideia de que a nossa vida deverá sempre ter sentido e fazer sentido. Mas dado que o referente em que nos apoiamos também é dinâmico e mutável, deveremos estar sempre atentos aos sinais que vamos vendo, pois muitas vezes o que na ocasião nos parece ser o melhor para a sua interpretação nos poderá levar a ter de vir a reconhecer que a solução encontrada será ainda frágil e suscetível de incompletude para a compreensão da realidade.

     Mesmo assim, e sem nunca sabermos muito bem o como e o porquê de alguns embaraços, move-nos em cada ímpeto da nossa vida uma força natural que nos vai empurrando sempre para mais adiante; às vezes dando-nos a impressão de que estaremos até obrigados a ela, pois em qualquer coisa que façamos de extraordinário parece que acabamos sempre por ir ao encontro de algo em que antes não pensáramos ser possível e até julgáramos provavelmente nunca estarmos à altura por estarmos algo receosos e muito pouco disponíveis. Para uns, isso será como que se estivéssemos manietados por um destino do qual não poderemos nunca nos arredar por nós próprios e, para outros, isso terá de ser assim porque já nasceremos marcados com aquilo que haveremos de ser na nossa vida, quer o queiramos quer não. Perante tudo isto, será de crer que seja bom que todos meditemos nestas hipotéticas ordens, mas é de crer de que já não será bom certamente se aceitarmos categoricamente que estes juízos tenham fundamento determinado a priori, pois se assim fosse não nos poderíamos nunca conceber livres nem teríamos em nenhuma situação qualquer folga de liberdade em cada instante vivido da nossa vida.

     Ao que parece, em relação a este assunto em parte culturalmente determinado, também ele meditara nestes juízos, acabando sempre por se inclinar mais para aquilo que lhe inspirava algo que não seria capaz de confundir nem associar a qualquer um destes limites. Pois, mesmo que não fosse capaz de conseguir descrever a origem mais profunda do ímpeto que sentira desde a mais tenra idade, sobejou sempre no entender do seu estado de alma que em todos os seus momentos de crise fora impelido por um sentimento expresso numa imagem de aconchego e de amor que, para além de o fazer percecionar continuamente, também sempre o fizera sentir com ardor no coração. Um aconchego depositado e servido numa espécie de regaço que o serenava em todas as crises e o fazia levantar novamente mesmo que tivesse caído no abismo e tivesse ficado sem forças para acreditar que valeria a pena começar de novo.

     Com este sentimento superior e algo transcendente, que entretanto era revigorado entre a quietude de consciência e a vontade de continuar a seguir em frente, superava a fraqueza da sua motivação e erguia-se com maior determinação voltando a colocar-se de novo na procura da descoberta e do entendimento de outros sinais porventura diferentes daqueles que vira antes, mas que afinal em todos os momentos da sua caminhada, fossem quais fossem os sinais, acabaria sempre por reconhecer que estes configuravam na consciência a mesma imagem daquilo que constituía com grande evidência a substância de um sentimento de aconchego e de amor, quiçá aquele sentimento que experimentara estranhamente naquela noite de verão, quando chorara de desespero junto daquele regato e que parecera imediatamente fortalecê-lo interpelando-o quiçá para uma certa missão que lhe parecia ser tão especial que, em cada circunstância vivida, lhe começara também a parecer cada vez mais que Deus lha propusera com o nascimento do seu ser inscrevendo-a na sua matriz e limitando-Se nesta ocasião de sofrimento através de vários sinais somente a aconchegá-lo entre estes piores momentos, interpelando-o com o Seu amor para o que lhe havia entretanto proposto no ser que lhe dera no seu nascimento e para que esta missão, perante todas as circunstâncias que no caminho o mundo humano lhe traçasse, fosse a sua parte principal em toda a realização da sua vida. Formava-se ao que parece em cada momento da sua existência entre a queda da sua motivação e o levantamento desta força a certeza deste sentimento algo diferente na sua consciência, pois em cada ocasião vivida na sua caminhada, este jamais aparecera desligado do que era muito mais profundo na sua vontade: caminhar ao encontro da realização de todos sinais que encontrava, pois cada uma das suas partes lhe ia dando em cada momento uma forma cada vez mais percetível do entendimento quase perfeito do sonho que brotava de dentro de si de encontrar Deus e que nestas alturas surgia com maior evidência para o seu caminhar com vontade da realização desse desígnio e caminhando também ao encontro da missão que lhe fora divinamente proclamada.

     Assim, talvez possamos dizer em jeito de conjetura que, a partir da análise teórica destas vivências, poderemos compreender melhor o porquê de não devermos aceitar categoricamente que o nosso destino esteja determinado como um fado ou como um castigo do qual nunca poderemos fugir independentemente do que façamos, pois, se fosse assim, nós nunca poderíamos interagir com a realidade como o fazemos sempre que necessário, nem teríamos em nenhuma ocasião qualquer folga temporal de liberdade.

     É de crer por isso que o que deveremos pensar é que, quando nascemos, todos trazemos connosco três realidades divinas que se poderão assemelhar a um “passaporte”, uma “bolsa com uns dinheiritos” e uma “carta com um pedido”. O passaporte simbolizará a nossa alma, que deverá, enquanto existência, passar pelos limites de bondade, caridade e amor, para que estes possam ser registados na nossa memória e no nosso coração, para que esta se possa manter sempre limpa e apta para podermos continuar a viver e a sonhar com o infinito na sua transcendência. Os dinheiritos simbolizarão os dons que recebemos para os pormos ao serviço da realização da missão que trazemos connosco quando vimos a este mundo. A carta simbolizará a proclamação da vida humana, constituindo o Homem como um valor de Deus e lembrando-o de que esta seja recebida no mundo com amor, seja aceite e reconhecida como um dom na dignidade do amor comum do qual jamais se separarão o Criador e a criatura, mesmo que tenham de viver na carestia, pois serão eternamente preservados na essência para a resolução da cada vida, que deverá ser em cada um livre e abundante em todo o tempo com a sua existência. Pois, quando acontece o contrário, viver-se-á sempre em grande sofrimento, quando a criatura vem ao mundo e não é recebida voluntariamente no amor comum, preservada e ajudada na resolução livre da sua vida, mesmo que em certas circunstâncias tenha que ir à caridade para poder sobreviver, terá sempre grandes dificuldades em acatar voluntariamente a reciprocidade desse amor e de optar por fazer livremente o seu percurso para a realização da missão que lhe é divinamente confiada e proposta na sua liberdade como um fim do seu valor.

     Este estado de consciência inquieta percorrera-o nas diversas experiências diárias, mas entre a queda e o levantamento jamais deixara de surgir na sua consciência este sentido mais profundo que abria interpelando interiormente a vontade para a descoberta dos sinais que lhe iam indicando o caminho para a salvação e a descoberta de um novo dia.

     — Olá! - exclamara um dos amigos que conhecera na faculdade.

     — Olá, por aqui?! — respondera sem pestanejar. — O que te traz por cá? — perguntara com alguma  formalidade.

     — Passei e decidi procurar-te! — exclamara com um sorriso.

     Entretanto, num instante mudara de tom e acrescentara:

     — Queria falar-te da hipótese de lecionarmos nas ilhas dos Açores ou da Madeira.

     — Sim?!… Mas como?… Não estou a perceber! – respondera com um sorriso intrigado.

     Contudo, começara a sentir-se um pouco tocado naquele inesperado momento, pois recordara-se entretanto de que o seu amigo era negociante de carnes e de que lhe tinha dito em algumas ocasiões que gostaria de mudar de profissão.

     — É verdade, acredita no que te estou a dizer! – insistira com delicadeza.

     A meditar nestas palavras, ficaram por momentos a congeminar em silêncio como revelar o sentimento que lhes parecia ser comum. Entretanto, perante um desejo que parecera ser simultaneamente comum, o amigo acrescentara:

     — Acabei há pouco de saber que as Direções Regionais dos Açores e da Madeira estão a pagar as viagens de avião e a arranjarem alojamento para quem quiser concorrer a um dos lugares vagos no ensino e for lá colocado. Eles necessitam de cooperantes e, ao que sei, se não fora a distância e a solidão insular, já lá não faltariam professores do Continente. Que achas da ideia? E se nós também concorrêssemos a um dos lugares? — interrogara com alegria e expectativa.

     É evidente que ficara bastante contente com a pergunta do amigo e com a possibilidade de poder ir lecionar para as ilhas da Madeira ou dos Açores; no entanto, não respondera logo nem que sim nem que não, pois durante o seu momento de encontro com o amigo juntaram-se algumas pessoas no balcão que entretanto iam esperando e mostrando alguma impaciência para serem atendidas, já que a Agência fechava às quinze horas o atendimento ao público. Assim, perante o ambiente que surgira de alguma tensão e alvoroço, procurara uma resposta simultânea com o atendimento e sem perturbar o serviço:

     — Muito bem, trata de saber como poderemos concorrer para lá e depois passa por cá ou telefona para marcarmos encontro e para podermos falar melhor do assunto.

     Alguns dias depois, o amigo voltara à Agência, subira as escadas até ao primeiro andar e, ainda antes de se aproximar do balcão e poder dizer algo, ele sentira-o a aproximar-se e cruzara-o com o seu olhar exclamando com um sorriso:

     — Então, soubeste alguma coisa? – interrogara-o com alguma ansiedade.

     — Sim!... Soube! – respondera o amigo a recompor-se entretanto da subida.

     Depois abrira uma pasta de cartolina e retirara de dentro uns papéis colocando-os sobre o balcão:

     — Aqui estão os impressos-modelo para o concurso que terás de preencher e enviar para a direção que está aí indicada.

     — E os teus documentos? – perguntara com alguma solidariedade.

     — O meu impresso para concurso já foi pelo correio, estou entretanto a aguardar a resposta de uma das ilhas ou de ambas para depois poder decidir para qual delas irei, embora nesta altura eu tenha maior preferência pela ilha da Madeira!

     Entretanto, quando mais calmos e conscientes do que estavam a fazer, o amigo resolvera reforçar o seu sentimento de solidariedade e acrescentara ainda antes de se despedir:

     — Terás de te apressar a enviar os impressos, porque o concurso já abriu e penso que até já estará numa fase adiantada da recepção das candidaturas.

     Com algum desembaraço e num gesto de reverência recolhera os impressos, cumprimentara o amigo com um sorriso que também misturara no calor humano de ambos, ao mesmo tempo que se propusera perante ele a concorrer muito rapidamente.

     E a resposta ao concurso efetuado não demorara muito, talvez tenha sido dez ou quinze dias o tempo suficiente para receberem das ilhas dos Açores e da Madeira uma proposta com um horário para todo o ano, sendo que um era para lecionar em Angra do Heroísmo e o outro para lecionar no Funchal.

     Qualquer uma das propostas era bastante apelativa, pois consignavam um lugar para todo o ano letivo com o respetivo pagamento da viagem de avião e a possibilidade de alojamento, embora este só no segundo ano é que lhe viesse a ser concedido e estivesse sujeito ao pagamento de uma pequena mensalidade, conforme viera a confirmar-se quando decidira levar consigo para a ilha da Madeira a família e ir para a Calheta no segundo ano, após ter estado no primeiro ano a trabalhar e a viver sozinho e às suas custas na cidade do Funchal.

     Tinha ouvido falar a pessoas amigas das ilhas da Madeira e Porto Santo, que as visitaram em turismo ou em negócios e o fascinaram com a lembrança da beleza das suas terras, da educação das suas gentes e da riqueza das suas culturas: diziam que a Ilha da Madeira era conhecida no mundo como a “Pérola do Atlântico”. Já quanto aos Açores, não seria tão agradável ir para lá, pois ouvira dizer a um amigo que lá tinha estado que as ilhas eram muito lindas, mas mais propensas à irradiação dos fenómenos da insularidade, maior solidão, clima mais instável e problemático, maior dispersão nas culturas e maiores dificuldades na adaptação dos cooperantes.

     Perante estes fatores, que lhe pareceram muito mais difíceis no contexto, já que em nada ajudariam a superar a distância, nem a vencer a tendência natural para um maior desequilíbrio emocional, e certamente para uma maior solidão, decidira optar por ir para a ilha da Madeira para lecionar no Funchal e na Escola Secundária Jaime Moniz.

     A partir da decisão, tomada em silêncio, e já com pouco tempo para aceitar o lugar, tendo ainda de preparar-se junto da família para poder embarcar e se apresentar na escola para tomar posse, telefonara ao amigo a contar-lhe dos convites que havia recebido para lecionar em ambas as ilhas dos Açores e da Madeira, tendo o amigo certificado o mesmo e de seguida, numa alegria comum, concordado em irem ambos lecionar para a ilha da Madeira, fazendo questão de corroborar na obrigação de porem as esposas imediatamente ao corrente do que se estava a passar e assim sondarem as suas vontades ainda antes de comprarem o bilhete de embarque de avião.

     Entretanto, durante este telefonema e no acordo, só ficara bem definida a opção escolhida, já que o amigo mais do que uma vez fizera questão de vincar que concordava com ele e de que seria a opção da ilha da Madeira. Contudo, a confirmação da data da partida de ambos para o Funchal não ficara suficientemente determinada, pois no grande entusiasmo da conversa lá foram, entretanto, surgindo “uns ses”: dizendo, como se estivesse a explicar-se, que enquanto esperava pela resposta das direções regionais da Educação, acabara por tomar conta de uns talhos, tendo investido bastante dinheiro e que naquele momento não sabia como iria tão de repente resolver o problema para abandonar o negócio. E se é verdade que não deixara transparecer na conversa que iria dar o dito por não dito, acabara por deixar algumas dúvidas sobre a sua decisão final, embora salientasse bastante que tentaria cumprir a promessa, pois em breve lhe telefonaria ou iria ter com ele para confirmar a sua vontade, que procurava manter, e que seria de ser mais professor do que ser talhante, ainda que tivesse passado a partir desta altura a ser um médio empresário de talhos e venda de carnes.

     Depois de terminar este telefonema, ficara a pensar no que lhe dissera o amigo e na falta que este lhe faria se viesse a dar o dito por não dito, pois uma coisa era irem juntos e ajudarem-se mutuamente, outra coisa era ter de ir sozinho e ter de ficar muito mais exposto e fragilizado perante as adversidades. Mas se entretanto, por alguns instantes, a tristeza o invadira, logo também lhe aumentara a convicção de que o seu amigo, apesar de tudo fora, um mensageiro que o agitara para o caminho que teria de continuar inevitavelmente a percorrer para cumprir o que sentira nos últimos tempos quando fora interpelado para a missão que sentira e que seria para começar por ali ou começar por outro lado, indo para mais longe ou para mais perto e fazendo-o com alguém ou sozinho.

     A sua motivação para descobrir o caminho que procurava nunca lhe parecera apontar a direção a seguir, mas no entanto sentira essa energia quase sempre a incliná-lo para a busca do sentido do caminho a percorrer fundamentalmente através do valor de educar pela sabedoria e pela experiência, começando por partir dos seus modos de ser e da grande capacidade de extrapolar com base nos exemplos descobertos, pois tudo indicava que estes o haveriam de levar até à certeza daquele real sonoro que percecionara entre uma certa voz que emergira naquela noite de verão nas águas daquele ribeiro cuja imagem sonora registara na memória depois de alguns salpicos lhe aspergirem o rosto, enquanto aquela voz o interpelava até se distender ao longe a ecoar nos mistérios da transcendência.

     Por isso, seguindo o combinado que estabelecera com o amigo no telefonema que lhe fizera, quando chegara a casa no fim da tarde desse dia não perdera mais tempo a esconder e falara com a mulher sobre o assunto, aliás tornava-se necessário que assim o fizesse porque começara a sentir-se emocionado com a situação da partida, que se estava aproximar do dia marcado no bilhete para embarcar, perdendo com isto a graça com que habitualmente no jeito de “aproximação conjugal” utilizava palavras mais rudes para diariamente se queixar de algumas impertinências que iam acontecendo na ação do seu trabalho.

     Desta vez, logo que entrara em casa, beijara a mulher e, sem dar-lhe tempo para se acomodar, exclamara:

     — Preciso de falar-te.

     — O quê, queres falar-me sobre a questão de seres professor? — perguntara como se previamente já tivesse intuído a questão.

     — Sim, é sobre isso mesmo que te quero falar – respondera de um modo mais afirmativo.

     Entretanto, mudando o tom, acrescentara:

     — E olha que desta vez pode tornar-se real, assim tu estejas de acordo e eu tenha a certeza sobre o que dizem na carta que recebi dos serviços da educação do Governo Regional da Madeira. Propõem-me um horário completo e para todo o ano letivo, diz-se que normalmente costumam pagar a viagem e que também poderão arranjar alojamento; se assim for, estou na disposição de ir em breve para lá trabalhar.

     Bem, mas antes de prosseguir, peço-te que me ouças com atenção e que mantenhas a coragem com que tanto me tens inspirado ao longo deste tempo de espera. — Entretanto, percebendo que ela começara a ficar um pouco distante, numa tentativa de equilíbrio procurara aconselhar-se, acrescentando:

— Embora tenha sentido nestes últimos tempos que poderia decidir sobre a minha vontade de ingressar no ensino sem qualquer embaraço ao constrangimento da tua parte, mesmo assim não tive até hoje coragem de contar-te que este mês eu concorrera para lecionar na Madeira ou nos Açores. É verdade que não tinha a certeza absoluta de que seria bem-sucedido no concurso, pois ainda tenho presentes as dificuldades por que passei nas várias tentativas que fiz para arranjar um lugar, e mesmo assim nunca consegui arranjar cá nenhum. Por isso, no princípio deste mês, tendo tido conhecimento por um amigo de que tinha sido aberto concurso e de que havia falta de professores nas ilhas dos Açores e da Madeira, embora tenha reconhecido que, em caso de vir a ter um horário para ensinar num destes arquipélagos, que estes seriam bastante longe de casa e que, por isso, teria de ficar por algum tempo ausente. Mesmo assim, resolvi concorrer para os dois Governos Regionais, ficando na expectativa de que, em caso de vir a conseguir um lugar, ganharia coragem para te contar depois, já que também admitira que nos Açores ou na Madeira poderia conseguir finalmente realizar o meu maior sonho.

     Após ouvir em silêncio aquela explicação do marido, a mulher baixara a cabeça e ficara mergulhada entre o apelo à coragem e a contenção que lhe fora possível na superação da ansiedade do grande sofrimento que sentira naquela ocasião. Neste envolvimento procurara dissimular a tristeza que sentira projetando-se em partilha numa imagem irreal de paz pela realização do sonho imaginário do marido e lutando deste modo contra todo o desespero que sentia e que lhe ia aos poucos retirando as forças, enquanto tentava segurar as lágrimas, que começaram a soltar-se e a cair-lhe do rosto.

     Ao vê-la naquele estado de angústia, o marido volteou o pensamento e exclamou:

     — Ora, ora! Eu já deveria ter calculado que o nosso acordo não era real, mas no momento em que falámos não compreendi que as tuas palavras eram apenas um desabafo para me consolar na aparência. Eu bem sabia que esta situação não seria fácil de resolver, mas quando me disseste que não me preocupasse, que até ficarias só com as crianças se eu tivesse de ir para longe. Cheguei a convencer-me de que jamais vacilarias na concordância e que a tua coragem estaria completamente do meu lado.

     Após escutar estas palavras de confiança sobre o valor da esperança que recebera, a mulher ficara a remoer o efeito da sua concordância anterior e que nesta altura fora fragilizada com a sua atitude de constrangimento manifestada pela tristeza angustiada nas lágrimas que não conseguira conter.

     Porém, com estas palavras de lamento saudável, talvez ele lhe tivesse dado mais algum ânimo para ela poder conseguir encarar com alguma expectativa aquele momento de contradição. Talvez por isso ou pela dedução inquestionável da realidade que surgira com a expectativa criada, esta atitude de rejeição não demorara muito tempo a alterar-se, ela levantara a cabeça, limpara as lágrimas e deixara soltar-se um sorriso e exclamara:

     — Devo confessar que nunca pensei que irias para tão longe lecionar, pois se, de facto, sempre acreditei que pudesses ir para o ensino, nunca pensei que tivéssemos de ficar tão distantes e por tanto tempo sem nos vermos. É verdade que eu concordei em mudares de carreira, mas também é verdade que sempre pensei que, se isso acontecesse, ficasses a ensinar por aqui e não tivesses de ir para tão longe para realizar o teu sonho. É que, se fores para longe, como acabaste de dizer, então só nos fins dos períodos letivos, na interrupção de aulas, é que terás um curto período de licença, logo, também só nessas alturas e mais tarde no período de férias é que poderás vir a casa. Fora isso, até lá teremos de sofrer a tua ausência pela grande distância a que ficarás colocado. No entanto, quero dizer-te que isso agora já não importa, pois o longe também se fará perto e, se é isso que realmente queres, então vai e não te preocupes, que eu cá me arranjarei com as crianças; um período passa depressa, e as férias darão para compensar.

     No reflexo destas palavras de alguma conformação, irrompera entre eles um momento de grande ternura. Comovidos, envolveram-se por algum tempo num abraço que despertara a vontade de permanecerem assim enquanto o desejo de olharem pela vidraça também se mantivesse para poderem contemplar as crianças, que brincavam no terreiro e faziam um grande alvoroço.

     Entretanto, já mais conscientes e com maior serenidade, começaram a apreender a surpresa da aventura, falando ambos das necessidades que ele teria, para que nada lhe faltasse quando daí a poucos dias embarcasse para a ilha da Madeira:

     — Trata de resolver o mais depressa possível, manda um telegrama para a escola a aceitar o lugar, compra a passagem de avião, compra também uma pasta para a tua nova função e os materiais escolares necessários, e não te esqueças de comprar também uma mala para eu te poder colocar as roupas e os utensílios que precisas levar. Depois não te preocupes, segue o teu caminho pedindo ao Senhor que nos proteja e te ajude a encontrar a felicidade que procuras.

     Enquanto ele andava preocupado com estes afazeres, o tempo ia passando rápido mas o amigo não lhe telefonara nem o visitara mais; o dia da partida para a ilha da Madeira aproximava­‑se, e nesta ansiedade de não saber o que se passava, imaginava na alternativa a longa distância que o ia separar da família e dos amigos.

     Em casa preparavam-se as coisas que mais tarde ele haveria de levar consigo, e nos diálogos ambos iam procurando convergir nas forças para a emergência da organização futura da casa e também do que ele esperava encontrar no Funchal, quer na recepção da escola e dos alunos, quer no arranjo da habitação definitiva concedida pelo Governo Regional ou pelo arrendamento de um alojamento temporário.

     Entretanto, numa manhã e quando estava já muito próximo do dia do embarque, depois de já ter falado também com o gerente sobre o propósito da sua saída da instituição para poder ingressar na docência, o amigo viera procurá-lo à Agência mostrando desde logo, por meio de gestos visuais, estar um pouco desnorteado. Por isso, logo que se cumprimentaram, não precisara de muitos rodeios para perceber nas suas palavras iniciais que o amigo iria dar o dito por não dito; no entanto, mesmo assim escutara as suas palavras com atenção e paciência:

     — E eu que tanto gostava de lecionar, que tanto gostava de ir contigo e poder também mudar de vida, pois tenho a certeza de que eu nunca desejei ser talhante, pelo menos tenho a certeza de que não foi isso que eu desejei quando entrei para a universidade. Mas que hei de fazer? Eu agora responsabilizei-me por vários talhos, que têm empregados e que não poderei abandonar de qualquer maneira. É verdade que eu já tentei dá-los à exploração ou vendê-los por baixo preço, mas mesmo assim ninguém os quer. Perante isto, o que me apetece dizer nesta altura é que num curto espaço de tempo criei tantas dificuldades na minha vida que não consigo resolver, e tudo isto porque, apesar de ter sabido primeiro que tu das possibilidades que teria de lecionar nas ilhas da Madeira ou dos Açores, mesmo assim não confiei que arranjaria lá um lugar, e neste intervalo de dúvida acabei por me meter em tantas dificuldades, que agora me estão a amarrar e a impedir de prosseguir com o que mais desejei.

     Depois desta explicação em que evidenciara uma grande tristeza pela falta de confiança, não lhe chegara a dar tempo para ouvir qualquer expressão de tolerância ou de alguma crítica de acusação, levantara um pouco mais os olhos e perguntara-lhe com nervosismo:

     — E tu vais para lá? Vais para tão longe sozinho?

     Enquanto ouvia as perguntas e meditava no que o amigo dissera, imaginara por instantes como seria diferente se pudessem ir os dois, como poderiam ajudar-se e proteger-se um ao outro; contudo, mesmo neste estado de grande desilusão, erguera-se rapidamente no lugar e de pé respondera sem deixar qualquer dúvida:

     — Paciência, eu irei lecionar para a ilha da Madeira, ainda que tenha de ir sozinho. Aliás, até já contactei a escola para dizer que aceitava o lugar, já comprei o bilhete e partirei muito em breve, pois, como até ao momento não me foi facultado qualquer alojamento pela Direção Regional dos Serviços de Educação, por isso terei de ir mais cedo para entretanto procurar onde comer e dormir.

     A partir desta altura o ambiente ficara pesado e não permitira que o diálogo se alongasse por mais tempo. Despediram-se com um abraço na certeza de que a amizade não terminaria ali.

    Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XII Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.115 a 131

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

XI Capítulo  05.01.2021
 

     Tivera de permanecer durante esse tempo de maior gravidade sem poder sair de casa, a não ser para ir ao médico e sempre caminhando apoiado na esposa, metendo-lhe o braço e seguindo-a para onde ela o levava. Valera-lhes a confiança no médico, que postulara somente um período curto de grande crise na visão, e assim acontecera, pois em pouco tempo voltara à normalidade, começando a reconhecer os elementos e a deixar de ver sombras e manchas enevoadas, muito embora ficasse com um ferimento ocular que ainda hoje se encontra sinalizado.

     — Então é isso que queres?! Queres sair da Caixa e ir para o ensino, não é? - perguntara-lhe a esposa com uma voz límpida e sem qualquer azedume.

     — Sim, era isso que eu gostaria de fazer — respondera-lhe em voz baixa e com um ar bastante triste.

     Entretanto, acrescentara com carinho:

     — Tu sabes, há já algum tempo, que este meu desejo está carregado de sonhos. Que vejo nele a minha maior realização, porém nunca quis que decidisses só pela minha vontade, pois para ficares sozinha com os filhos durante o tempo em que eu estiver fora, terá de ser uma decisão comum, por isso ela só poderá ser com a tua concordância e não o contrário.

     No intervalo desta reflexão fizera-se algum silêncio entre ambos, que, entretanto, fora subitamente interrompido:

     — O que tens, homem?!... Que se passa contigo? — perguntara-lhe a esposa quando ele baixara o rosto e as lágrimas começaram a salpicar o chão.

    — Não sei ao certo, mas com a asneira que fiz parece que dei cabo da minha vista. Tudo o que vejo neste momento se assemelha a sombras, já não consigo ver nada e se continuar assim a adoecer acho que vais ter de ter no futuro um homem a andar de cadeira de rodas.

     — Credo! Que dizes tu, afinal?! Que sombras te carregam, homem?! Vamos é já ao médico para ver o que se passa!

     Entretanto, enquanto se arranjava aflita, pronunciara em socorro falando-lhe com compreensão, mas de forma resoluta:

     — Pois se é isso que queres e se o que queres é ser professor, então eu não te impedirei mais. Trata da tua vida, que eu ficarei com os filhos, eu cá me hei de arranjar com eles.

     Porém, ao verificar que o marido começara a dar sinais de perda da visão, insistira com ele para procurarem rapidamente ajuda médica, tendo este, após a consulta clínica, ficado de atestado médico com baixa e só podendo sair de casa para ir às consultas e tratamentos, enquanto de convalescença, em casa, era acompanhado com a tomada em simultâneo de alguns medicamentos para o tratamento também do sistema nervoso.

     Terminada a baixa médica e já bastante melhor do sistema nervoso e da visão, regressara à Caixa Geral de Depósitos para retomar o trabalho, passando a estar menos envolvido de stress, mas não completamente liberto da paixão pelo ensino e ainda mais suscitável para a mudança de ocupação.

     Nesta altura, como passara a ter o caminho completamente aberto para poder decidir, pois a esposa assumira a responsabilidade e voluntariara-se para ficar sozinha com os três filhos no caso de ter de ir lecionar para longe de casa, com a experiência negativa que adquirira com a depressão psicológica que vivera anteriormente, começara a perder cada vez mais a motivação para continuar por mais tempo a trabalhar como operador de crédito.

     Na instituição também começava nesta altura a reinar algum desconforto no pessoal pela falta de chefia efetiva, dado que ainda não tinha sido preenchida a vaga de gerente, ainda que, no entanto, pelas informações que circulavam, seria suposto que esta vaga viesse a ser preenchida no futuro pelo subgerente em exercício, que também era um funcionário muito competente e muito estimado por todos os colegas. Contudo, apesar de o subgerente possuir estes pergaminhos no desempenho da sua função, começara também a constar-se entre os funcionários que a Agência iria ser gerida por outra pessoa, mantendo-se o subgerente no mesmo lugar, apesar de há bastante tempo já estar a geri-la interinamente.

     Porém, se a realidade do ensino despertava nos seus sonhos a vontade de realizar-se mais em conformidade com a sua formação académica, quando concluída a licenciatura não deixara de constatar que, neste trabalho de operador de crédito, as relações de estima e de amizade se estenderam para além dos colegas, chegando até ao carinho e à distinção dos depositantes que iam com assiduidade à Caixa. E não iam lá somente porque tinham de falar com ele nos serviços de crédito, pois na maior parte das vezes iam à Caixa para tratarem de outros assuntos, porém faziam sempre questão de o procurarem para lhe transmitir o seu apreço e carinho. É verdade que não era a primeira vez que o serviço noutros sectores era demasiado, e o subgerente nessa altura solicitava a sua colaboração no atendimento geral, na ajuda ao balcão das operações de depósitos e levantamentos, pelo que isso o tornava mais popular e mais conhecido nos seus gestos de carinho para todos; em especial, quando num gesto discreto ajudava aqueles que não sabiam assinar e tinham de marcar o dedo como impressão digital.

     Da amizade e estima dos depositantes, faz questão de recordar, quando a propósito, alguns casos que mereceram relevância, sobretudo pela comparação com o que sempre pensara e reconhecera em relação à instituição e ao prestígio que lhe era reconhecido pública e internacionalmente.

     A instituição Caixa Geral de Depósitos estava classificada na altura como sendo a instituição financeira principal de Portugal e sendo reconhecida em todo o Mundo como uma instituição financeira poderosa, já que ocupava, salvo o erro, o oitavo lugar no ranking mundial. Os fundamentos para explicar esta primazia assentavam nas razões da credibilidade, da solidez e da segurança, que eram destacadas como estando entre as melhores do Mundo, quer no plano financeiro, quer no plano social e institucional.

     Não obstante o valor desta grandeza, dava consigo muitas vezes a conjeturar que quem olhasse apenas através do grande valor anual das suas cifras e não olhasse para o restante ficaria com a impressão de que, na sua evidência e preocupação, estariam apenas os bons resultados nas finanças, pois as pessoas, e nomeadamente os colaboradores e os seus problemas, de pouco importariam. E vista a realidade somente assim, vista apenas pelos valores das suas cifras, vista apenas desta maneira irracional, cometer-se-ia o grande erro de lhe retirarmos uma das melhores partes da sua preocupação, que estaria na decorrência normal da sua função sócio financeira sempre demonstrada com a sua notável ação em defesa do aspeto social e humano das pessoas, especialmente dos seus funcionários e suas famílias, pois em seu entender estes valores sociais eram na sua evidência beneficiados por todos, e em especial beneficiados pelos que a serviam, pois estes valores eram, entre outros, reconhecidos como os mais importantes para a dignidade e a solidariedade da instituição, que na essência deveria ser prioritariamente financeira.

     Fora com este sentimento de honra que partilhara a dignidade da instituição e que sempre a servira com grande satisfação, mas também era muito notório o reconhecimento e apreço dos inúmeros depositantes, que seriam mais do que suficientes para a sua defesa e preservação e para não sentirmos qualquer propósito de ter de a defender contra qualquer conjetura maioritariamente negativa, aliás o valor aforrado e a importância da mesma para a comunidade falariam por si mesmos, e não seriam necessários mais intermediários, muito menos os seus fiéis servidores teriam necessidade de badalar esta realidade, já que toda a gente via que gozavam de muita estima, muito respeito e tinham também diversas regalias sociais.

     No entanto, mesmo assim faz questão de recordar com singeleza alguns dos casos mais singulares que vivera enquanto lá trabalhara e que podem atestar em concreto o que se diz sobre a dimensão social e humana que notara ser bastante relevante, embora tenha verificado nas diversas análises de resultados que a mesma, na descrição dos mesmos, não parecia recorrer suficientemente aos pormenores e se apoiava muito mais no sentido global.

     Das situações singulares vividas, que, entretanto, gravara na sua memória enquanto exercera funções na Caixa Geral de Depósitos, há uma experiência com um depositante, que pela sensibilidade e afeto com que ainda a preserva na memória, sempre que seja oportuno não resiste em recordá-la. Trata-se de um pedido de crédito feito por um emigrante que vivia em Paris e que tinha iniciado uma construção com vários andares numa das freguesias do concelho.

     O processo fora instruído de todos os requisitos necessários, relevado com pormenor e de seguida enviado pelo gerente para a Direção de Crédito do Norte para aprovação superior do crédito solicitado.

     A grande afluência de pedidos de crédito por via dos emigrantes sempre constituíra um bom sinal económico, e na Agência onde trabalhava, o rol destes pedidos era bastante considerável no número e nos valores financeiros.

     No caso em análise, merecem destaque vários aspetos:

    — O emigrante em causa mantinha uma contínua ligação à terra donde partira para França na busca de melhor sorte e onde aprendera também o conhecimento patronal sobre o acompanhamento e a realização do trabalho em grandes obras, nomeadamente em diversas obras francesas.

     — Numa das várias vezes que viera a Portugal, viera com a intenção e desejo de começar a construir um edifício com vários pisos, daí que, com uma parte do dinheiro que possuía em depósitos na instituição, investira uma soma na compra do terreno, preparação e início da construção.

     — No entanto, quando começara a construção do imóvel, não fizera qualquer pedido de crédito e não sabemos ao certo se procedera assim por pensar que poderia contar em simultâneo com a obtenção de meios financeiros diretos pela venda de alguns andares só com base no projeto inicial como era corrente na altura. Não se sabe se fora pela falta de venda prévia de andares, se fora por não-recebimento de verbas ou se fora por outra razão qualquer, o que se sabe é que, a certa altura da construção do imóvel, acabara por recorrer à Caixa Geral de Depósitos para fazer um pedido de elevado valor com vista a desenvolver e poder concluir a construção prevista e já em fase de andamento.

     Entretanto, para o efeito sensível e profissional da explicação, deverá dizer-se que fora com muito agrado que o operador de crédito atendera o investidor, pois este manifestara uma grande delicadeza e uma grande confiança na instituição para o ajudar no sucesso da construção da obra e também a manter a forma otimista com que se dispusera a correr riscos, mas não a ponto de começar e ter de vir a parar a construção pela falta de meios financeiros, pois o seu pedido de crédito, ainda que devidamente justificado pela sua necessidade, mesmo assim deveria ter sido feito logo no início das fundações ou até mesmo antes de começar, para poder ser capaz de esperar calmamente pelo crédito que lhe fosse concedido e, em caso de ter de esperar mais algum tempo do que o normal, poder estudar todas as alternativas sem ter necessidade de começar por ter de passar pela aflição decorrente do reconhecimento da sua incapacidade financeira para poder continuar a obra e ter de ficar mergulhado na intranquilidade temporária sobre a certeza de vir a ser ou a não ser favorável a decisão da Caixa Geral de Depósitos.

     E mesmo no caso de a decisão poder vir a ser favorável, como se esperaria que fosse, a libertação e o depósito na sua conta de algum capital do empréstimo concedido ainda demoraria algum tempo, pois o empréstimo teria de estar pendente da realização da escritura de hipoteca, o que implicaria sempre uma certa burocracia e alguma perda de tempo, pois a mesma teria de ser feita no Porto e demoraria o tempo necessário até ao dia da sua marcação, embora estas situações de crédito surgissem sempre como privilegiadas e fossem tratadas pelos serviços com toda a ligeireza, sobretudo quando as mesmas se referiam a emigrantes.

     Porém, depois de terem sido bastante destacadas todas as dificuldades para a obtenção de crédito nas explicações que lhe foram dadas pelo funcionário, mesmo assim o emigrante resolvera correr todos os riscos por sua conta começando por avançar com a construção da obra sabendo que tinha apenas naquela ocasião como capital-base o dinheiro de que dispunha em depósitos na instituição, que ao longo do tempo constituíra como o seu aforro em Portugal e na terra das suas origens. É evidente que mantivera certamente esta decisão de avançar sem outros fundos, porque só muito remotamente é que não acreditaria na expectativa de que o intervalo de tempo de espera pela aprovação e concessão do crédito não viria a tempo de impedir que tivesse de exceder as suas capacidades financeiras até ao limite, porque correr à toa o risco de ter de parar com a construção significaria uma enorme perda financeira e o risco ainda maior de não poder continuar a pagar os débitos aos fornecedores dos materiais investidos e que seria muito perigoso para poder continuar a manter o seu bom nome.

     Deverá dizer-se a propósito desta atitude um pouco liberal que, quando o emigrante contatara os serviços da Caixa Geral de Depósitos, levara consigo a acompanhá-lo na visita à instituição um tio que conhecia bastante bem o gerente, que era repleto de boas maneiras e que espelhava ainda melhor e com maior satisfação a simplicidade daquele sobrinho que naquela altura também o incumbira de acompanhar a obra na sua ausência. Aliás, sempre que podia interferir na conversa de ambos, era para fazer com que acreditassem no melhor de tudo o que haveria de surgir na evolução e desenvolvimento dos trabalhos, sendo que com essa disposição motivara-o tanto que o tornara ainda mais paciente e mais empolgante na crença do grande sucesso naquele investimento. Depois manifestara com tanta facilidade um certo orgulho naquele sobrinho, que na conversa surgida em comum destacara revelando com certa delicadeza que ele tinha sido bastante pobre, mas que no entanto fora sempre educado e muito trabalhador; aliás, destacara com grande propósito que sabia que ele passara muitas dificuldades na sua aventura por terras de França, pois apesar de ser verdade que agora tivesse uma boa posição económica e de ser verdade que agora vivesse bem e tivesse uma família feliz, que jamais se pensasse que esta prosperidade tivesse sido obtida apenas pelo fator sorte, pois ela só fora conseguida em abundância pelo facto de ele ter sempre trabalhado muito e, acima de tudo, por ter sido muito responsável e também muito poupado, vindo por consequência também rapidamente a conquistar o dinheiro e a simpatia dos franceses com esta atitude de grande amor ao trabalho e pela grande responsabilidade que assumia com a perfeição das obras de construção civil que fizera e que nesta altura tinha também a seu cargo em Paris.

     Após todas as considerações de contexto já referidas como relevantes e da análise dos requisitos necessários para completar o processo de crédito, fora o mesmo informado pelo gerente de que, depois de aduzidas no pedido as melhores referências do investidor e depositante, o processo iria ser enviado à Direção dos Serviços de Crédito do Norte com a maior brevidade possível.

     Sem mais delongas despediram-se do gerente e do operador de crédito com um cumprimento bastante afetivo, mas apesar do otimismo revelado durante a exposição acabaram por sair, entretanto, da Agência um pouco apreensivos. É que o tio do emigrante conhecia muito bem o gerente e a instituição, sabia que podiam contar com o melhor dos esforços no sucesso da operação financeira, mas na expectativa das dificuldades demonstradas, sobretudo as dificuldades temporárias, acabara por denotar ao sobrinho alguma preocupação em relação ao futuro do empréstimo, fazendo votos para que tudo corresse pelo melhor, pois ele sabia já de antemão que o crédito teria de ser obtido na instituição o mais depressa possível, para que não tivessem de parar a obra por falta de verba para pagar aos fornecedores. Aliás, é de crer que esta preocupação também tenha subido no pensamento do sobrinho, pois este emigrante acabara por deixar subtrair-lhe da memória, e já sem qualquer intenção de segredo, alguns comentários acerca da sua vida privada. Inesperadamente, durante a conversa sobre o pedido de crédito, contara que na ocasião estava a viver com a família em Paris e que tinha lá grandes responsabilidades na construção, as quais não poderia abandonar de qualquer maneira. No entanto, apesar disso, que iria acompanhar à distância a construção da sua obra em Portugal, sendo que a mesma seria também diariamente seguida pelo seu próprio tio, a pessoa em quem depositava total confiança para o representar. A propósito do tio, lá fora acrescentando que o mesmo já estava no conhecimento de toda a situação e que depois pelo telefone o poria diariamente ao corrente de tudo, sendo que em caso de haver qualquer necessidade de urgência na sua visita ele viria imediatamente a Portugal. Entretanto, apressara-se a fazer votos para que tudo corresse com normalidade, pois reconhecia que as despesas da deslocação em qualquer situação seriam sempre muito elevadas e sabia também que, se as viagens imprevistas excedessem a regularidade das vindas normais que tinha considerado em plano para o acompanhamento e para as decisões mais complicadas, a obra ficaria muito mais cara do que o previsto, nomeadamente pelo conjunto das perdas entre o fator tempo e das despesas resultantes pelos problemas que surgissem na sua obra de construção em Portugal, mas também nas obras de construção em que estava envolvido em Paris.

     Entretanto, seguiram-se depois na Agência os trabalhos preliminares e, logo que ficara devidamente completo o processo fora enviado para a Direção de Crédito, seguindo os seus trâmites normais, podendo até dizer-se que o pedido de crédito fora aprovado com bastante celeridade, contudo o mesmo já não se poderá dizer em relação à concessão da primeira tranche de crédito, uma vez que esta demorou muito para além do tempo normal a ser posta na conta-depósitos à ordem do emigrante.

     É de crer que tenham sido várias as razões de ordem burocrática que tenham impedido que a verba pudesse ter sido colocada à sua ordem num tempo considerado razoável, o tempo que normalmente demorariam os processos semelhantes a este. Porém, no caso em questão, não acontecera aquilo que seria normal, porque passadas várias semanas depois do período de tempo que se previa para a obtenção do depósito da primeira tranche do crédito, o tio do construtor aparecera muito transtornado à hora da abertura do balcão para indicar que o sobrinho tinha-lhe telefonado várias vezes da França para o informar de que a Caixa Geral de Depósitos ainda não tinha depositado à sua ordem qualquer importância do crédito aprovado, contrariando deste modo todas as expectativas criadas, uma vez que tivera conhecimento de que o seu pedido de crédito fora aprovado pouco tempo depois da entrada do processo nos Serviços de Crédito e sem quaisquer reservas.

     Neste sentido, continuara a referir com grande emoção que o seu sobrinho lhe pedira que viesse à Agência para a informar da perigosa situação financeira em que estava já a ficar naquela altura, sobretudo em relação à falta de dinheiro para continuar a financiar a construção que iniciara em Portugal. E como o gerente era uma pessoa em quem depositava confiança para também poder desabafar, acabara por dizer-lhe um pouco mais exaltado que o seu sobrinho tinha terminado pouco tempo antes uma conversa telefónica dizendo-lhe que se ia meter num avião para vir a Portugal à Caixa Geral de Depósitos para saber o que se passava como razão de tanto atraso na obtenção das verbas pedidas para poder continuar sem parar a sustentar o andamento da obra até à sua conclusão total.

     De facto, perante esta imprevisibilidade, em resultado da longa espera, ficara-se com a certeza de que nesta altura a aflição já seria muito grande, o dinheiro das reservas em depósito nesta altura já estaria certamente no fim, o emigrante muito em breve começaria a ter de ficar numa situação de incumprimento para com os credores, o que só por confiança e boa vontade dos mesmos é que a construção em causa poderia continuar, mesmo que este emigrante à cautela estivesse já a prosseguir a construção num ritmo mais lento para não vir a ter de parar em definitivo.

     De imediato, por ordem do gerente, o operador de crédito telefonara para os Serviços expondo a situação atual daquele construtor, sendo que o seu telefonema de surpresa gerara um empenho determinado e bastante solidário, de tal modo que, ainda com o tio do emigrante em presença física na Agência, o operador de crédito fora informado de que seria depositada muito em breve à ordem do emigrante uma tranche de parte do valor do crédito concedido.   Deverá dizer-se que, perante aquela resposta positiva, ficámos todos um pouco mais aliviados, sobretudo por também sabermos naquela altura que fora aprovada a concessão do crédito pedido e ainda mais pela promessa dada da resolução para breve do problema gerado pela falta atempada do depósito da primeira tranche financeira na conta do emigrante, tão necessária para o prosseguimento da obra.

     Depois desta informação, o tio do emigrante seguira para casa para poder continuar a acompanhar de perto a obra de construção do sobrinho, levando consigo uma grande esperança de que a construção não iria parar por falta de verba financeira. Certamente que também telefonara logo ao sobrinho para lhe dar esta boa notícia e para o tranquilizar sobre a situação no futuro, evitando deste modo que o mesmo tivesse de vir de urgência de Paris.

     Contudo, sem se saber o porquê, a situação não decorrera deste modo agradável e desconhecem-se exatamente quais os problemas que após a boa notícia anterior terão surgido, entretanto, nos Serviços de Crédito. Pelo menos o operador de crédito nunca soubera o que se terá passado de tão grave na evolução normal do processo de crédito que tivesse feito com que o emigrante e o tio se apresentassem na Agência duas semanas depois da aflição anterior, em resultado da longa espera e da continuada incerteza quanto à decisão da libertação de parte das somas do crédito concedido. Nesta inesperada visita à Agência, o construtor informara o gerente de que, em virtude de não poder continuar a esperar mais tempo em Paris pelo depósito do dinheiro prometido, resolvera vir de urgência a Portugal e ir diretamente aos Serviços para poder descobrir o que se estaria a passar que pudesse ser a razão de tanto atraso na libertação do crédito há bastante tempo concedido, o qual acrescentara que, com um pedido de desculpas, fora informado com detalhe dos problemas que entretanto tinham surgido no seu processo, mas que agora, com a sua presença e com a resolução de todas as faltas burocráticas ocorridas, que todos ficassem descansados, pois a obra não haveria de parar por razões de ordem financeira, já que nos próximos dois ou três dias o crédito da primeira tranche seria lançado na sua conta.

     Depois desta controversa explicação e após algumas palavras de cortesia, o emigrante despedira-se amistosamente do gerente, manifestando alguma cerimónia no cumprimento e, com alguns sorrisos à mistura, não deixara de dizer, ainda que com benevolência, que desta vez sempre estaria convencido de que o problema seria resolvido e que voltaria em breve a Portugal, mas que desta vez não seria numa visita de emergência como estranhamente o tivera de fazer nesta razão.

     No entanto, ao que parece, o emigrante continuaria a estar profundamente enganado sobre a questão prometida, pois a situação de impasse na libertação da tranche mantivera-se, e um dia de manhã, logo ao abrir, entrara de rompante na Agência com as lágrimas a correr-lhe pela face, exclamando com as mãos erguidas que estava perdido, que estava a sentir-se a caminho da ruína, que o dinheiro prometido não chegara às suas mãos, que a obra de cá já tinha parado e em Paris a sua vida profissional e familiar tinham sido muito afetadas por todas as razões, em especial pela razão financeira e pela situação emocional em que se encontrava.

     De imediato, e seguindo as instruções do gerente, o operador de crédito pegara no telefone e ligara aos Serviços, contando sensibilizado que o emigrante cujo nome, entretanto, nominara como o detentor do processo de crédito, que o colega já conhecia, estava na Agência muito emocionado e a chorar com desespero pela falta que tinha de dinheiro para poder continuar sem parar a construção da obra referida no processo. Aproveitara, ainda que delicadamente, para lembrar o colega de que ele já conhecia a situação e que nos vários telefonemas trocados entre ambos tudo parecia estar conforme os requisitos necessários para ser concedida a libertação da verba prometida, pelo que nada faria prever que iriam chegar a uma situação incompreensível e tão dramática.

     Após uma breve pausa no diálogo, o colega certamente interpelara superiormente alguém dos Serviços, falara-lhe com preocupação do caso e da situação da visita de emergência, obtendo, entretanto, dados que não revelara ao operador, mas que foram muito decisivos, já que pudera responder que o operador informasse o construtor que se dirigisse de imediato aos Serviços e que, quando lá chegasse, procurasse um funcionário cujo nome indicara a fim de o problema ser imediatamente resolvido.

     Finalizada esta conversa com algum sucesso e alegria, o operador de crédito desligara-se do colega com um agradecimento da Agência reforçando o estimulo de confiança nos serviços e apresentando um novo pedido de desculpas ao emigrante informando-o do modo como com urgência deveria proceder perante os serviços ao indicar-lhe o nome da pessoa a quem se deveria dirigir para tratar do assunto, despedindo-se entretanto de ambos, tio e sobrinho, com um cumprimento de amizade, ficando na esperança de que agora o problema seria efetivamente resolvido.

     E assim sucedera, já que nas primeiras horas da manhã do outro dia o emigrante apresentara­‑se sozinho no balcão, chamara-o para o cumprimentar manifestando-o de um modo muito efusivo ao mesmo tempo que lhe mostrava um bilhete de avião de regresso a casa e lhe dava um abraço bem forte exclamando que, se um dia fosse a Paris, o visitasse, pois teria uma casa às suas ordens e seria com grande gosto que lhe mostraria a si e à sua família aquela linda cidade de França.

     Porém, nem este nem todos os acontecimentos de bem-estar na instituição foram em si suficientes para lhe manterem o pensamento e a vontade de continuar na Caixa Geral de Depósitos. Pois ao sentir-se cada vez mais inspirado com a motivação e ajuda da esposa, que se mostrava definitivamente preparada para o ajudar a seguir o seu destino, e ao sentir-se também cada vez mais marcado pelo insistente sentimento de incompatibilidade entre a sua formação académica em Humanidades, que continuava a intuir como não se ajustando tão bem à instituição como uma formação em Economia ou Finanças, quer para a progressão na carreira, quer para poder melhorar os conhecimentos nas funções que desempenhava, começara por estas razões a sentir-se muito mais incentivado para realizar o desejo de deixar a instituição e de ingressar definitivamente no ensino e na Educação.

     Às vezes, numa certa extrapolação metafísica, tendia a associar esta vontade de mudança de carreira a algo muito mais forte do que o sentimento que tinha sobre qualquer incompatibilidade na formação académica, aliás, nunca chegara a sentir esta incompatibilidade em nenhum comentário informal nem sentira no momento oportuno que isso poderia vir a ser um obstáculo na progressão e valorização do seu estatuto, bem pelo contrário, o gerente que viera a tomar conta da Agência poucos dias após a sua apresentação, quando soubera que ele se ia embora, convidara-o de imediato para irem tomar um café e, durante um de diálogo de cerca de uma hora, assegurara-lhe de que fora com tristeza que recebera a notícia da sua vontade de deixar em breve a Agência, pois trazia instruções superiores sobre o seu bom comportamento e a sua grande dedicação no trabalho. Reforçara também o bom sentimento profissional que trazia consigo de todos os funcionários da Agência, que há pouco começara a dirigir, dizendo que os aspetos relevantes do caráter e dedicação de cada um seriam fatores que iria ter em conta logo na primeira informação que desse para os Serviços de Pessoal com vista à afirmação de todos, nomeadamente na melhoria da sua posição na carreira. Depois, para concluir, referira a propósito as grandes possibilidades que este teria no futuro na Caixa Geral de Depósitos, pois era com total segurança e autoridade que lhe poderia referir que tinha recebido sobre ele as melhores informações dos Serviços de Pessoal, e por isso não seria difícil que, com a informação mais detalhada que iria enviar em breve com vista à sua possível promoção, pudesse ser aceite com naturalidade e com total merecimento.

     Por outro lado, ao reconhecer que à instituição não lhe faltava pessoal, pois já tinha na altura cerca de dez mil funcionários, e ao reconhecer também que o novo gerente excedera toda a delicadeza que seria possível, pois estivera tanto tempo a tentar convencê-lo a não mudar de carreira e a continuar na instituição, confessando-lhe de um modo afetivo que este seria um funcionário com quem viria a contar no futuro, não só para o ajudar na sua função de novo gerente daquele balcão da Caixa Geral de Depósitos, mas também pela necessidade que teria de corresponder às responsabilidades que trazia da Administração e que seriam no futuro alargadas a outras instituições, já que trazia indicação de que iria participar com a sua experiência e trabalho na abertura de outros balcões no concelho.

     Por tudo isto, é de crer na ideia em que encontra mais força para extrapolar e justificar que teria sido algo mais profundo e arrebatador que teria marcado o compasso para a mudança da sua carreira bancária para a sua carreira docente. Pois acredita que fora também por esta razão que ao mesmo tempo aceitara sair da Caixa Geral de Depósitos e ir para tão longe sozinho para começar uma nova vida profissional com a função de professor. Aliás, a sua extrapolação metafísica ainda poderá ganhar maior fundamento quando pensa que também teria sido despertado no inconsciente pela recordação da sua memória, porventura através de outros sinais, mas que quereriam, com certeza, dizer o mesmo, que quereriam recordar-lhe aquela voz que ouvira no passado naquela misteriosa noite quando aquelas gotas de água viva entrecortaram o silêncio e a dor para ao mesmo tempo lhe aspergir divinamente o rosto sibilando entre o som das palavras que iam em surdina ecoando lentamente no espaço: “Vai prepará-los, fala-lhes das tuas experiências, mostra-lhes o caminho…”

 

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, XI Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.99 a 114

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

X Capítulo  29.12.2020
 

     Forçado por esta permanente indecisão, a tristeza invadira-o, e o amor pela carreira administrativa começara a decrescer cada vez mais. De tal forma que um dia, logo ao romper da manhã, sentira faltarem-lhe as forças e a vontade para ir para o trabalho; a depressão física e psicológica começara a turvar-lhe o juízo com forte evidência na perda do sentido pela vida. Logo que se levantara, saíra bruscamente de casa, mantivera o pijama vestido, não cortara a barba como era seu hábito e caminhara meio descompassado por um carreiro estreito de terra batida que servia de passagem transitória para as pessoas que o desejavam e que ao mesmo tempo dividia os pinhais que ficavam a jusante das traseiras da sua casa, permitindo desse modo que as pessoas que o conheciam circulassem mais rapidamente em direção à estrada principal.

     As pessoas que moravam por ali perto achavam-no muito estranho nesse dia, não era normal o doutor andar àquela hora da manhã pelo carreiro e a bater no que atraía naturalmente para o seu interior, que era a vegetação dos pinhais que dividiam o caminho e que sempre causava algum incómodo, principalmente pelas silvas, que picavam as pernas e os braços aos mais distraídos. Depois, a maior parte das pessoas que por lá passavam conheciam bem o doutor e a sua família, sabiam que naquela altura ele não poderia estar de férias e, mesmo quando nessa situação, nunca se apresentava naqueles trajes. Sossegara-as, porventura, a proximidade da sua mulher que a uma pequena distância o acompanhava com receio e desejosa de o fazer regressar a casa, pois, sem que ele soubesse, já tinha pedido ajuda aos familiares para em conjunto decidirem levá-lo a um médico.

     Enquanto deambulava pelo caminho, o senhor doutor, termo carinhoso com que a maioria das pessoas o tratava, ia batendo no silvado e arrancando aqui e acolá umas ervas daninhas que o incomodavam na lenta caminhada de ida e volta no percurso do carreiro, entretanto retirara do bolso do casaco do pijama uma caixa de fósforos e, sem dar tempo à mulher para o impedir no ato, incendiara o mato envolvente mantendo-se dentro de um círculo de fogo que entretanto escolhera para se fixar e olhar dali o horizonte como se procurasse no espaço algo que o sossegasse naquele tormento em que já ia indiciando alguns laivos de loucura.

     — Anda para casa! — pedira-lhe a mulher com carinho e a uma curta distância para não perturbar e o levar a enfurecer. — Prometo-te que, quando chegarmos a casa, falaremos sobre a tua ideia de quereres ser professor — acrescentava falando com ternura e de um modo sereno para o sossegar. — Prometo que desta vez não me exaltarei e, se for essa a tua vontade, então seguirás o teu destino, e eu cá ficarei com os meninos.

     Anda para casa para conversarmos melhor sobre o assunto, eu cá me hei de arranjar com eles, e depois não será por muito tempo que estaremos separados, depressa chegará o período do Natal e depois virá a Páscoa, e por fim virão as férias, não te preocupes que haveremos de arranjar solução para os problemas.

     Com estas palavras que ele escutara em silêncio, a mulher tivera a impressão de que o fizera sentir-se mais feliz, pensara que com este sentimento afável o faria regressar a casa, evitando com isto a vergonha que sentia naquele momento; as pessoas que passavam não especulavam nem se riam à sua frente, mas uns passos adiante podiam ouvir-se os comentários acerca daquela cena disparatada e sem qualquer justificação.

     Entretanto, mesmo assim, ele não lhe fizera a vontade de regressar a casa e sem qualquer explicação movera-se em sentido contrário, para que ninguém se apercebesse, pegando de novo na caixa de fósforos para retirar mais um e riscar na lixa com grande raiva ateando mais o fogo e desta vez a toda à área que naquele instante o envolvia e que ia muito para além do círculo onde desde o início da manhã se fixara para contemplar algo que só ele parecia conseguir vislumbrar.

     O que se passara depois disto fora completamente surpreendente, o fogo ardia muito rasteiro, tão rasteiro que parecia estar a obedecer à sua vontade, queimando lentamente e sem alvoroço todas as ervas e pequenos arbustos que existiam em seu redor, e só por breves momentos se vislumbrava aqui e além uma pequena mancha de fumo que tão depressa subia nos ares como o Sol a dissipava através dos seus raios ainda madrugadores, um pouco encobertos pelo nevoeiro que descia a jusante do monte  e se ia tornando, sabe-se lá porquê, também aquela manhã mais cinzenta do que o que era o costume aquando daquelas alterações do clima.

      Se naquela ocasião ouvira a voz da mulher, que o chamava aflita, não dera disso qualquer sinal, ficara de pé no círculo que, entretanto, se fora fazendo mais perfeito aquando do seu gesto de pirómano inconsciente, ficara de pé voltado para o Sol, olhando-o como se pudesse entrar para dentro e, entretanto, caminhar ao encontro do segredo que há tanto buscava e excedia a sua mente.

     Apesar de permanecer contido todo o espalhafato de quem observava aquela cena triste e incompreensível, fizera-se, porém, alguma estupefação nas pessoas que passavam, e uma ou outra lá acabara por fazer a sua passagem pelo carreiro a praguejar e um pouco mais apressada do que o normal, pois os rastos do rescaldo do fogo, apesar de inofensivos, ainda permaneciam acesos nos espaços de ambas as margens dos pinhais que ladeavam naturalmente o carreiro. Esta contenção por respeito só fora compreensível nos maiores reparos da loucura em evidência, porque, ao passar, as pessoas davam de caras com a esposa, e ao verem que esta o observava aflita, mas não manifestava qualquer expressão que mostrasse estar perdida no controle do marido, nem evidenciasse que porventura quisesse pelo menos aparentemente conter os seus gestos disparatados e meio contemplativos, acabando por levar na evidência da contemplação de tudo isto apenas a uma imagem de tristeza e de dúvida para todos os que olhavam para aquele que surgia naquele momento inesperadamente tão estranho, mas que nem por isso e ainda com base na complacência da esposa não deixara de continuar a ser, certamente, aquele senhor doutor que sempre reconheceram pela sua inteligência e tanto o estimavam pela sua dedicação e bondade.

     Entretanto, como se mantivera na ação ora vertical e estático, ora mais curvado e em movimento entre o círculo que se fizera com a primeira queimada de mato, este acabara por ir ficando mais próximo da esposa, que o continuava a vigiar atentamente, mas procurando manter­‑se sempre um pouco mais distante do alcance da visão duma parte das pessoas que entretanto não sabiam ao certo o que se estava a passar, por não assistirem como as outras nas primeiras horas da manhã àquele drama inexplicável e triste. Depois, como também olhavam entre a cortina de fumo e o manto de nevoeiro que descera do monte, não distinguiam com clareza que este ainda estava com o pijama vestido nem distinguiam a barba crescida e a falta de asseio, e por certo que até ajuizaram enquanto não souberam toda a verdade de que este estaria porventura à procura de alguma coisa que tivesse perdido ou estaria a aproveitar a ocasião para recolher alguns paus para levar para casa e para acender o fogareiro.

     Passara-se algum tempo entre esta batalha contra o nada e o reconhecimento social de que estaria a acontecer algo de bastante grave naquela ocasião, porém, mesmo que a mensagem estivesse a chegar às pessoas um pouco distorcida nos sentimentos, não demoraria muito para que o caso se tornasse mais conhecido e passasse a ser especulado como sendo um ato emocional já a roçar a loucura.

     Então, como se apercebesse da situação caricata em que se encontrava e da imagem negativa que com o passar do tempo se estenderia a toda a localidade, evidenciara com leveza uns laivos de lucidez e, antes que as pessoas estranhassem aquela cena e começassem a comentar com espalhafato, movera-se na direção da esposa e simulara na marcha o desejo de voltar para casa; parecia que com este sinal já teria visto tudo o que queria enquanto olhara fixamente para o círculo vítreo do Sol, que o nevoeiro escondia sorrateiro e tornava aquela manhã ainda mais cinzenta e triste.

     Porém, este aparente gesto de culpa perdera o sentido de aparente arrependimento e transformara-se num remoque de raiva, um remoque com uma expressão tão grave e tão carrancuda que o seu rosto personificara uma imagem medonha e destemida. Os seus cabelos estavam bastante ensopados e pastosos pela mistura do suor e da humidade do nevoeiro, porém, mesmo assim, eriçaram-se tanto que faziam medo a quem os via naquele instante, os seus olhos ficaram arregalados e pareciam vingativos a afundar-se na saliência dos sobrolhos, a palidez das maçãs do rosto tornaram a barba mortiça e velha, ficara a tal ponto transformado que, em seguida, possuído por um feixe de nervos selvagens, conseguira sacudir a fraqueza do seu corpo na direção do insólito e num ápice levantara um esteio enorme que estava caído na berma do carreiro, e com um grito de aflição lançara-o por raiva e vingança para longe do alcance da vista.

     Esta situação produzira um tal efeito que se dissera ainda durante algum tempo nas conversas entre amigos que, entretanto, foram tendo conhecimento do caso, que seriam precisos mais do que um homem só para pegar naquele esteio, quanto mais para o arremessar tão depressa e para tão longe. Também se acrescentava para apaziguar a incompreensão, de que “nestas alturas” os homens estão possuídos de forças que não controlam, por isso, ao que parece, entre a sanidade e a loucura existem forças intermédias que excedem a capacidade física normal.

     Aliás, os vizinhos que moravam próximos daquela cerca aperceberam-se da situação e acharam-na muito estranha, acharam-na um tanto ou quanto desgarrada na ação, mas mantiveram sempre a discrição sobre o assunto e só se soubera a razão deste sentimento algo perturbador quando, depois de passado um certo tempo, verificaram algumas das consequências que afetaram o casal, sobretudo quando se aperceberam da doença que o marido arranjara na vista com este ato tresloucado, no entanto continuaram a manifestar um gesto de solidariedade sem reservas revelando grande tolerância nas conversas sobre o que haviam sentido de estranho e incompreensível naquela altura.

     Assim, sem nenhuma vontade de reviverem o tempo passado e ainda com alguma emoção, acrescentavam que naquela ocasião bem se aperceberam de que não seria bom o que se estaria a passar naquele local e com o casal amigo, pois nunca tinham visto o senhor doutor na rua sem ser vestido de fato e gravata, barbeado e sempre penteado a rigor. Daí que, ao verem-no àquela hora da manhã ainda com o pijama vestido, um pouco desleixado e meio perdido entre o pinhal e o horizonte que fixara no olhar, concluíram que algo de muito grave se estaria a passar.

     Apesar disso, mantiveram discrição sobre o assunto porque, ao verem a esposa a caminhar próxima dele, e ao lembrarem-se de que nada constava de facto nas boas relações de vizinhança, quer na saúde de ambos, quer nas suas relações conjugais, ficaram entre a dúvida nebulosa sobre a possibilidade de haver qualquer pequena zanga entre eles, mas pela amizade de vizinhança entenderam que seria melhor procederem conforme proclama o ditado popular: “Entre marido e mulher, ninguém meta a colher.”

     Estas são daquelas questões que a psiquiatria, a psicologia e outras ciências procuram explicar na sua razão objetiva e que ainda hoje continuam a ser entendidas como excedendo os limites da compreensão científica para a interpretação total destes fenómenos psicóticos. Haverá porventura uns casos mais especiais do que outros e certamente este será um deles, pois para além da manifestação desta ira forte e insana e da incompreensão daquele gesto de uma força com sinal de leve demência, as consequências negativas daquele ato despropositado acabaram por trazer-lhe, entretanto, alguma paz para a alma e uma grande vontade de regressar a casa, de regressar já não distante como no começo da manhã, mas de braço dado com a esposa e aparentemente mais apoiado, embora na caminhada desse sinal de tristeza e de medo.

     Já próximos de casa agarrara a mão da mulher e não a largara mais, os seus passos começaram a ser desconexos e cambaleantes, pois durante o tempo que olhara com a vista desarmada na direção daquele sol vítreo e prateado fizera um laser muito profundo numa das vistas, daí que durante o tempo seguinte e por um período de alguns dias perdera completamente a visão; tudo o que via não passava de uma mancha nebulosa branca, não distinguindo as pessoas, o espaço e os objetos.

 

Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, X Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.91 a 97.

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

IX Capítulo  22.12.2020

     Deverá dizer-se que este diálogo fora emocionante, mas o despertar desta alegria não duraria muito, pois apesar de a nova experiência estar a correr muito bem nos negócios, uma vez que rapidamente a instituição começara a ser mais apreciada, não só pelos investidores que a procuravam, mas também por todos aqueles que eram visitados pela primeira vez e a quem lhes eram abertas as portas para um relacionamento financeiro de proximidade mais humano e menos burocrático, a doença que haveria de incapacitar o gerente já vinha também a caminho e viera com tamanha gravidade que cerca de dois meses depois desta nova aventura financeira o gerente caíra na cama de um hospital e não mais pudera vir trabalhar, nem pudera mais acompanhar o trabalho na Agência, nem acompanhar o operador de crédito que, perante o maior crescimento das atividades de crédito, também iam crescendo as maiores dificuldades.

      Este homem deixara em todos uma grande mágoa e uma grande tristeza, aliás diz-se com frequência que as pessoas boas e corretas deixam sempre um grande vazio nos locais e nas relações de trabalho, também penso que será assim como dizem, porém acredito que esse vazio será aparente, pois ficarão para sempre os seus exemplos como recordação e como caminho.

     Em face da situação e enquanto não fora aberto concurso para a entrada de um novo gerente, ficara como gerente interino o subgerente, que era também uma pessoa de fino trato, muito educado e amigo de todos.

     Porém, nesta mudança completamente imprevista, começara a pensar-se em adaptar-se no andar superior um novo espaço com balcão e gabinete, para que aí pudessem ser instalados estes serviços uma vez que tinham crescido muito nos valores e na diversidade de investidores, implicando algumas vezes na recepção a necessidade de manter maior sigilo, sobretudo para quem nos visitava e pedia informações cuja explicação oral não poderia perder o segredo.

Neste intervalo, crescera em si vinda da alma uma atitude tenebrosa e gerada pelos opostos da consciência entre o sim e o não, isto é, entre o continuar a suportar o peso da contrariedade em permanecer na instituição ou decidir sair dela para poder realizar o que a certa altura lhe parecera ser a sua maior vocação.

      Perante este sentimento, num aparente golpe de sorte, reparara que vinha num jornal diário anunciado para concurso à Escola Secundária Camilo Castelo Branco (antigo Liceu de Vila Real) um horário completo para ensinar Filosofia. Refletindo na situação para o futuro, e após ter telefonado para a Escola com vista a confirmar a situação anunciada, solicitara autorização para faltar a uma parte do dia, a fim de se dirigir à secretaria daquela escola para aí tomar conhecimento da vaga existente e saber qual o prazo de que dispunha para concorrer e que documentos teria de apresentar no ato do concurso.

     Deverá dizer-se que, no meio da sua alegria pela possibilidade de dar aulas, quando chegara à escola fora atendido na secretaria com solicitude e incentivo no esclarecimento do processo documental e na confirmação objetiva do horário a lecionar, que era completo e para todo o ano letivo, uma vez que ainda estávamos no começo das aulas.

     Com esta informação e com a indicação de que mais ninguém tinha mostrado vontade em concorrer ao lugar, regressara a casa bastante satisfeito e convencido de que tinha sido aberta a janela para o sonho que agora mais o inquietava. Preparara toda a documentação necessária para poder concorrer, conversara com o gerente interino da agência para o pôr ao corrente da situação e formulara o pedido de exoneração dos serviços para poder proceder corretamente.

     O gerente ficara algum tempo em silêncio sem dizer palavra até que, bastante sensibilizado, acrescentara que todos iriam sentir a sua falta no trabalho e no companheirismo, porém felicitara­‑o pela nova carreira que iria iniciar muito em breve, já que seria o único concorrente ao lugar vago. Sem poder conter a tristeza que sentia por deixar de contar com ele, desejara-lhe a melhor sorte do mundo autorizando-o a faltar o tempo necessário para ir a Vila Real e poder proceder dentro do prazo ao concurso para preenchimento da vaga no ensino na Escola Secundária Camilo Castelo Branco, que ficava à distância aproximada de uma centena de quilómetros.

     Quando efetuara o concurso na secretaria da escola, confirmara outra vez a sua posição de candidato, vindo a constatar definitivamente que seria o único concorrente ao lugar a preencher, daí que, antes que fosse colocado e tivesse de começar a trabalhar na Educação, apressara-se a solicitar perante o gerente as diligências necessárias para que fosse aceite e o mais depressa possível a sua exoneração da Caixa Geral de Depósitos.

     Entretanto, durante este curto período de ausência ao trabalho do operador de crédito, o gerente passara a resolver diretamente todas as questões do crédito. Nesta altura tivera necessidade de passar a acompanhar mais de perto estes serviços em toda a sua intensidade e com isso neste intervalo de tempo pudera aperceber-se melhor de que para além do bom sentimento que tinha sobre o carácter e dedicação revelados pelo funcionário no caso especial como operador de crédito, com a sua possível saída para a Educação, e enquanto este não fosse substituído, verificar-se-ia no trabalho no futuro maiores dificuldades e transtornos, pois este faria muita falta e não seria fácil poder manter-se com regularidade a execução dos serviços de crédito. Talvez por isso ou talvez ainda com maior probabilidade porque o estimava muito e não sentira forças para que naquele momento pudesse enviar o seu pedido de exoneração para o departamento de recursos humanos, o que é certo é que acabara por manter o documento na sua posse e com isto certamente esquecera-se de jamais o enviar sendo que com esta atitude o impedira de sair da instituição pelo menos por mais um ano. Porém, qualquer que tenha sido a razão que o levara a proceder deste modo, não deixara de notar-se com o passar do tempo através dum sentimento próprio e num ou noutro lamento do coração, mesmo que aliado à confusão da situação gerada, um sentimento mais forte que parecia querer quebrar a força da sua consciência positiva e dar lugar à dúvida sobre o que estaria mais certo, se omitir a verdade ao funcionário ou revelá-la com um pedido de desculpas. Porém, deverá dizer-se neste caso que há males que vêm por bem, pois este lapso provocado ou ocasional (dado que nunca se esclarecera o seu porquê) acabara por ter sido favorável ao operador de crédito, dada a necessidade que tivera em ter de continuar a manter-se na instituição por não ter podido entrar para ensino como previra naquela ocasião.

      Certamente que o gerente nunca enviara o pedido de exoneração apresentado, embora durante o tempo em que ambos permaneceram na instituição e quando questionado sobre o assunto respondesse com a interjeição de que “também estranhava o facto de nunca ter chegado a concessão da exoneração pedida”, e entre a certeza e a incerteza fora fazendo-se um certo tempo de espera que acabara por ser favorável a ambas as partes e mais favorável ao funcionário, pois quando se julgava que tudo estava preparado para poder em breve ir a Vila Real para tomar posse do lugar e começar a lecionar na Escola Camilo Castelo Branco, este recebera um telefonema para se apresentar imediatamente naquela escola, na qual o funcionário da secretaria, revelando sobre a realidade alguma estranheza, o informara com mil desculpas de que já não seria possível atribuir-lhe o lugar no grupo de Filosofia, pois sem saberem o porquê de não terem dado conta de que havia mais candidatos, surgira dentro do prazo do concurso uma candidata que concorrera também ao horário vago e que esta estaria mais bem posicionada para vir a ocupar a vaga.

     É verdade que a escola assumira o lapso cometido e tudo fizera para solucionar o problema havido, decidindo para o efeito propor-lhe outro horário completo para todo o ano letivo para ensinar Português a alunos dos oitavos e nonos anos, nomeadamente entre as várias matérias ter de ensinar obrigatoriamente Os Lusíadas.

     É evidente que, pelo facto de ser muito grande a sua vontade de ensinar, ficara contente com esta nova proposta de recurso e também com a prova de confiança depositada pela escola na sua competência. Com este gesto conseguiram acalmá-lo no sentimento de revolta, e com esta atitude de reconhecimento do erro pelo chefe de serviços da secretaria, acabara por passar a sentir-se novamente empolgado para prosseguir.

      No entanto, ensinar Português, que não era a sua especialidade com base em alguma vocação e na tolerância da escola para que este aceitasse o lugar, mesmo assim não deixara de pensar seriamente na questão, optando por recusar o lugar proposto, porventura mais por receio de não estar à altura para o ensino disciplina de Português e muito especialmente para o ensino d’Os Lusíadas do que pela falta de incentivo e de todo o acompanhamento que lhe seria proporcionado ao longo do ano letivo.

     Regressara a casa com tristeza pelo sucedido, embora fosse procurando encontrar outra solução no ensino, tranquilizava-o porém e apesar de tudo a possibilidade de se manter na situação de espera pela sua exoneração de funções que, afinal de contas, nunca haveria de chegar sem que para o efeito de poder lecionar noutra escola este tivesse de fazer mais tarde um novo pedido, já que ainda hoje acredita que o mesmo fora retido e nunca fora enviado aos serviços pelo gerente interino, dado o grande sentimento de estima que tinha por ele e também pelo reconhecimento da grande falta que faria na Agência com a sua saída.

     Porém, entre esta tensão e a tranquilidade de poder continuar a trabalhar e a ter emprego estável, sentia nascer-lhe por dentro um quadro de razões negativas que, com o passar do tempo, iam ganhando cada vez mais sentido; o peso da responsabilidade que lhe cabia perante a família na educação dos filhos, que eram pequenos, e a pressão da esposa, que, ao contrário do marido, via muita incerteza na sua mudança de carreira, pois sentia que seria abalada a força conjugal tão necessária para a educação e harmonia da casa. Que ao pensar nesta mudança se imaginava no imperativo de ter de ficar só na responsabilidade direta da educação das crianças, uma vez que tudo indicava que seria muito difícil o marido arranjar um lugar numa escola perto de casa, como era no caso da instituição financeira onde trabalhava, que ficava a cerca de três quilómetros da sua residência.

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, IX Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.85 a 90.

 

Desejo a todos os amigos e amigas um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

I wish to all my friends a Merry Christmas and a Happy New Year!

Je souhaite à toutes mes amies un Joyeux Noël et une Bonne Année!

أتمنى لجميع الأصدقاء عيد ميلاد سعيد وسنة جديدة سعيدة!

Saya berharap semua teman Selamat Natal dan Selamat Tahun Baru!

祝所有朋友圣诞快乐,新年快乐!

 

Zhù suǒyǒu péngyǒu shèngdàn kuàilè, xīnnián kuàilè!

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

VIII Capítulo  15.12.2020
 

      Às vezes, e sempre que fica mais meditativo, deixa-se envolver na recordação de alguns momentos especiais do trabalho na Caixa Geral de Depósitos. Momentos que, no seu conjunto, foram tão deslumbrantes e atemporais que a força da memória os faz transcorrerem da história do passado para os evocar do inconsciente num instante com o mais fino propósito. Aliás, será com esse desígnio de intimidade que recordará com satisfação um ou outro facto que marcaram pela positiva uma grande parte do tempo em que lá trabalhara.

      Do que se lembra e gosta de distinguir na evocação, teria prevalecido durante o período por certo da primavera, já que às vezes na contemplação desta imagem vê nisso alguma semelhança, quer por esta dominar nestes instantes o seu pensamento, quer por fazê-lo recordar na similitude o sorriso mais rasgado e mais complacente do gerente, que com grande satisfação o acarinhava diariamente e o incentivava a motivar-se cada vez mais pelo trabalho e pela instituição.

     — Boa tarde, doutor! – cumprimentara-o o gerente, daquela vez num modo ainda mais prolongado. Depois, inclinando-se ligeiramente, permanecera por ali a observar o trabalho em geral, até que com uma certa cortesia dirigira o seu olhar na sua direção e acrescentara:

    — Hoje é sexta-feira e já estamos quase a entrar no fim de semana. Daqui a pouco iremos todos para casa para descansarmos um pouco mais e retemperarmos as forças para a próxima semana, que se adivinha que seja tão trabalhosa como aquela que agora está a findar.

      Entre o comentário agradável e um desejo que a todos parecera estar implícito, o gerente não se fizera esperar pela retribuição do cumprimento nem de qualquer palavra de partilha, imediatamente interpelara-o no seu movimento de trabalho e com um gesto discreto fizera-lhe sinal para que se dirigisse com ele ao seu gabinete concretizando a sua ordem com o seguinte pedido:

     — Senhor doutor, ainda antes de encerrar os seus trabalhos por hoje, peço-lhe que venha ao meu gabinete, preciso de lhe falar ainda antes de sair.

     — Sim!... Sim!... – respondera o jovem estancando sobre os processos o seu olhar e preparando-se com rapidez para o poder acompanhar.

      Quando ambos entraram no gabinete, o gerente mandara-o sentar-se numa poltrona e pedira-lhe que esperasse um pouco até poder falar-lhe sobre a razão daquela chamada com tanta urgência e de ter escolhido aquela forma para ficarem um pouco mais a sós. Percebendo a delicadeza da situação enquanto esperava, mantivera-se num conforto discreto e bastante contido a observar a ligeireza com que o gerente se apressava a despachar mais alguns dos documentos que entretanto lhe tinham sido colocados na sua secretária e de seguida os entregar ao subgerente, para que este, conforme as orientações indicadas, os pudesse distribuir pelos responsáveis de cada sector.

      Apesar de ter sido apenas durante alguns minutos que estivera naquele silêncio, e ainda que estivesse meio absorvido pela rapidez das decisões tomadas com as orientações a seguir nos despachos efetuados, mesmo assim ficara um pouco transtornado pela ansiedade e deixara-se tomar por uma ligeira perturbação da memória. Confessa abertamente e sem qualquer embaraço que nestas situações formais sempre sentira um certo nervosismo por algum embaraço que sentia sempre numa relação mais emocional, sobretudo quando tinha de contactar com os seus superiores, quer para expor as suas ideias para ajudar a melhorar o funcionamento dos serviços, quer quando tivesse de justificar qualquer razão em que tivesse sido chamado à atenção por qualquer incumprimento ou alguma lacuna existente nos processos.

      Habituara-se a pensar desde cedo que nas questões de trabalho que envolvessem maior pressão psicológica pela escuta inesperada de qualquer crítica ou de qualquer correção, seria melhor ser prudente e acatar os reparos em silêncio do que responder precipitadamente por qualquer impulso da razão, pois desta forma poderia continuar a manter o equilíbrio emocional e em simultâneo manter a reciprocidade do seu reconhecimento pacífico e continuar a desfrutar da grande admiração e do grande apreço e respeito de todos.

      Reconhecia e acreditava que esta atitude de humildade era a atitude mais consentânea com o seu ser, e por isso esforçava-se por contrariar toda a manifestação comportamental para a atitude de não ser humilde nem de ser capaz de evitar os comportamentos agressivos, pois sentia que, a verificarem-se em qualquer situação, estes comportamentos provocariam sentimentos contrários à sua sensibilidade e só trariam a posteriori desvantagens no sentimento do valor da sua consciência e nas suas relações sociais e profissionais. Aliás, sempre acreditara em consciência que, se no ato de tensão emocional fosse capaz de manter a cordialidade e a humildade na sua conduta, e se soubesse e fosse capaz de também esperar pela melhor ocasião para poder responder criticamente à questão que antes tivesse gerado alguma discórdia ou insatisfação, que com esta atitude mais ponderada seria sempre mais escutado e respeitado como profissional e como pessoa, podendo ainda com este gesto inteligente envolver melhor a atenção dos outros na sua defesa e crítica e certamente com isto vir a ser no futuro reconhecido com mais tolerância e a ser justificado melhor no seu valor e na sua competência.

      — Esteja à vontade, doutor! – prosseguira o gerente ao pressentir que entre aquele silêncio contido existia de permeio algum nervosismo e inquietação.    Depois, para equilibrar melhor o ambiente, procedera como se desejasse fazer uma pausa, elevara a cabeça, parara um pouco e acrescentara com solenidade:

      — Não se preocupe, esteja tranquilo que agora está por nossa conta, e enquanto estiver aqui, também estará liberto da pressão dos serviços, e principalmente dos cheques da compensação, que nos afogam com trabalho todos os dias.

      De seguida voltara a fazer-se silêncio, o gerente recostara-se um pouco mais na cadeira e, numa posição quase vertical, apoiara-se com os cotovelos na secretária, elevara os braços e unira as mãos em forma de prece para apoiar e descansar a cabeça ao mesmo tempo que, observando ao redor, ia olhando fixamente para os objetos arrumados do lado direito da sua secretária. Entretanto, num modo repentino, despertara no movimento do corpo e num lance certeiro estendera a mão até ao limite do lado direito da mesa pegando em três livros volumosos que continham exemplos e notas explicativas, os quais, pela sua novidade nos serviços, certamente naquela ocasião só ele os conheceria.

      No conjunto, aqueles três livros continham várias orientações sobre as formas e procedimentos a adotar no tratamento dos serviços de crédito. Daí que ainda com um olhar expectante, e com os três livros suspensos nas suas mãos, voltara-se para o doutor e perguntara:

      — Não imagina do que tratam estes livros, pois não?!...

      — Assim de repente, não! Não faço ideia nenhuma do assunto – dissera o jovem franzindo o rosto!

      — Melhor assim, pois a surpresa será ainda mais completa - exclamara o gerente a sorrir e com grande satisfação no olhar.

      Entretanto, enquanto folheava ao acaso algumas páginas dos livros, ia murmurando algumas palavras sem preocupação de sentido, porém, com este balbuciar ainda que um tanto desconexo, talvez quisesse propor naquele verbo confuso a indução de algum queixume sobre aquele assunto ou então sobre outra realidade qualquer. Ou quem sabe se, com este gesto de oralidade algo confusa, pretendesse fazer adivinhar a quem o ouvia que teria ocorrido alguma incompreensão na percepção da importância quanto à oportunidade daquele novo serviço na Agência. Ou então, se a especulação não for demasiada, com este solilóquio ele fizesse questão de conter-se de qualquer comentário mais explícito, mas querer justificar naquele sentimento verbal desconexo a alegria do que sentira quando pensara no que significariam aqueles livros para o futuro da Agência com vista às novas competências conferidas à instituição e ao valor acrescentado a todos os seus funcionários, revelando indiretamente pelo pensamento sinais a propósito deste valor com a expressão do aforismo popular que diz que: “A ração não é para quem se talha, mas sim para quem na merece.”

      — Pois bem, meu caro doutor, passemos então à questão que nos trouxe hoje aqui — exclamara o gerente decidido. — Convidei-o para vir aqui com urgência porque queria que ainda hoje levasse consigo estes livros e lhes desse uma vista de olhos durante o fim de semana, para que assim pudéssemos na segunda-feira conversar um pouco sobre os mesmos e sobre o que estes lhe pareceram no seu conteúdo.

     — Pois bem, meu caro doutor, passemos então à questão que nos trouxe hoje aqui — exclamara o gerente decidido. — Convidei-o para vir aqui com urgência porque queria que ainda hoje levasse consigo estes livros e lhes desse uma vista de olhos durante o fim de semana, para que assim pudéssemos na segunda-feira conversar um pouco sobre os mesmos e sobre o que estes lhe pareceram no seu conteúdo.” (Citação do texto anterior)

      Entretanto, de enfiada e sem esperar pela resposta, muito embora esta lhe parecesse vir a ser positiva, dado que intuíra um bom sentimento na atenção do recetor, acrescentara o seguinte:

      — Queria também aproveitar esta ocasião para felicitá-lo pelo seu grande sucesso académico e dizer-lhe com toda a franqueza que o doutor é para a instituição e para todos nós um caso sinceramente louvável, um exemplo a seguir, pois conseguiu terminar com sucesso e no tempo normal a sua licenciatura em Filosofia e sabemos que, para o conseguir, tivera de estudar à noite com muito esforço por ter sido sempre em horário pós-laboral. Dizer-lhe também com grande alegria que, apesar de este acontecimento ser ainda um pouco recente, ele já é sentido por todos nós como um facto extraordinariamente notável e, por isso mesmo, também digno do maior destaque público e da maior admiração de todos.

      Perante este louvável acontecimento não poderíamos deixar passar este momento sem que na oportunidade eu também pudesse reconhecer tal proeza e pudesse felicitá-lo com grande apreço, aliás, dizer-lhe que com esta manifestação sentir-me-ei também a reforçar a ideia-base da nossa instituição em relação ao valor que deposita na formação dos seus funcionários, uma vez que, além das chamadas periódicas que nos faz para a frequência de alguns cursos de formação no nosso centro, ela também reconhece todos aqueles que por diferentes meios se esforçam por se elevarem no conhecimento profissional e por se elevarem em contínuo no conhecimento e na formação em geral. Por isso, reitero uma vez mais a nossa admiração pela sua notável proeza e aproveito esta ocasião de grande alegria para lhe propor o seguinte: 

     Sente-se como evidência que por todas as razões evocadas estará na altura de propor também ao jovem doutor alguns dos novos desafios que se colocam neste momento à nossa Agência, para que com isso possa também pôr à prova as suas capacidades na exigência de maiores competências e de maiores responsabilidades nas funções que vier a desempenhar com tarefas mais complexas e mais consentâneas com o seu estatuto académico.

      Neste sentido, e por nos merecer toda a consideração, resolvi propor-lhe neste momento a leitura destes três livros, a fim de podermos concluir quanto à possibilidade de a nossa Agência vir no futuro a assumir novas responsabilidades por via de novas competências na execução de tarefas mais complexas inerentes a novos serviços, nomeadamente nos serviços de crédito a todos os sectores da nossa economia.

      Entretanto, e ainda a digerir com dificuldades no pensamento e na consciência o que acabara de ouvir, misturado num sentimento de grande júbilo, o jovem doutor limitara-se a responder o seguinte:

      — Senhor gerente, sem conhecer o que está escrito nesses livros não poderei responder nem que sim nem que não em relação às minhas capacidades para poder vir a executar as tarefas mais complexas de que me está a desejar querer transmitir à minha consciência na responsabilidade para o futuro. No entanto, fico desde já imensamente feliz por me ter escolhido para esta nova missão, pois é com grande satisfação que levarei os livros para casa assegurando-lhe que, mesmo que eu os tenha que ler durante todo o dia de sábado ou até durante todo o dia de domingo, poderá ter a certeza de que na próxima segunda-feira lhe darei com todo o gosto a minha opinião sobre o assunto.

      Sem mais delongas, o gerente passara-lhe os três livros para as mãos e envolvera-o de afeto com uma suave palmada nas costas, de seguida felicitara-o pela sua decisão desejando-lhe o melhor para o seu futuro, ao mesmo tempo que lhe abria a porta do gabinete que os separava naturalmente, mas que aquele momento de tão agradável que fora os vincara ali para sempre, por tudo o que lhe fora dito e sobretudo pelas palavras de estímulo que o gerente ainda proferira antes de se separarem:

     — Eu tinha a certeza de que o jovem doutor aceitaria o meu desafio, por isso a partir de agora estou certo de que este problema ficará resolvido. Meu caro jovem, então agora vá para casa e siga em frente, dê também por encerradas as tarefas de hoje e tenha um bom fim de semana, que na segunda-feira voltaremos à estaca para falarmos de novo no assunto.

      O jovem despedira-se com um cumprimento vigoroso, pegara nos livros e pousara-os por instantes na sua secretária, arrumara os últimos documentos do dia, enviara outros para o arquivo e com um sorriso ainda mais franco acenara ao subgerente e colegas e saíra com passos mais apressados, enquanto com uma pose de estudante segurava os livros nas mãos e lhe ia crescendo uma enorme vontade de os começar já a ler e continuar ainda antes de jantar.

      E assim fizera, começara a ler antes de jantar e continuara depois até muito tarde. Contudo, pela extensão e volume dos conteúdos, deitara-se apenas com as primeiras impressões da leitura que fizera e sem ser ainda capaz de formar qualquer juízo. No sábado continuara a ler sem parar, com exceção dos momentos de almoço e de jantar, sendo que no final do dia já se sentia capaz de formar um juízo aproximado sobre as orientações e procedimentos que os livros continham sobre os processos de crédito à Construção, à Agricultura, à Indústria, às Pescas, aos Equipamentos, etc.

      No domingo, ainda folheara mais algumas páginas sobre mais alguns aspetos de enquadramento de algumas das especificidades do crédito e, quando chegara a noite, deitara-se e adormecera cansado, mas já com a ideia do que haveria de proferir ao gerente no dia seguinte.

      Um pouco mais agitado do que o costume, mal entrara na segunda-feira na agência, dirigira­‑se logo ao gerente, cumprimentara-o de um modo efusivo, apoiara os livros na secretária e com a mão sobre eles começara a expor-lhe o que tinha entendido na leitura daqueles textos de orientações e procedimentos normativos.

      — Senhor gerente, depois de ler com atenção estes livros é minha opinião que tratam de normas indicadoras dos modos e procedimentos a ter com a concessão de crédito nos vários sectores da economia, nas atividades da Pesca, Construção, Agricultura, que a nossa Agência venha a propor no futuro e que pela explicação introdutória se prevê que possa vir a ser num futuro muito breve.

      Dera de um fôlego esta explicação geral, mas ficara algum tempo em silêncio a olhar entretanto na expectativa da colocação de alguma dúvida ou pergunta enquanto se ia preparando mentalmente para continuar a explicar cada um dos assuntos específicos.

      Porém, preparado mentalmente, de novo continuara a explicação sem ter havido nenhuma observação ou pergunta conforme previamente previra. O que acontecera, fora muito mais rápido do que qualquer dúvida ou pergunta e muito mais certeiro nos pensamentos do superior:

      — Muito bem, parabéns por ter apreendido tão rapidamente a questão-base destes normativos, pois eu antes de o convidar fizera uma leitura simples dos livros e também acabei por induzir a mesma conclusão a que chegou. Por isso chega de mais explicações ou perguntas, o que é preciso por agora é que vá de imediato para a cidade do Porto para dirigir-se à Direção do Crédito do Norte, para onde vou já telefonar para os informar da nossa decisão sobre quem virá a ser o operador de crédito da Agência no nosso concelho, uma vez que iremos brevemente começar a propor a concessão de crédito aos vários sectores aí referidos. Vá já para lá, pois quando lá chegar também já lá estará alguém incumbido de lhe ensinar os primeiros conhecimentos práticos destes assuntos para ficar suficientemente preparado, para que em pouco tempo estejamos em condições de abrir pela primeira vez os serviços de crédito na nossa Agência.

      Com esta promissora decisão, o jovem doutor fora alegre para a cidade do Porto, mas ainda com alguma preocupação quanto à aprendizagem, embora depressa viesse a melhorar o seu sentimento de confiança nas suas capacidades para aprender os conhecimentos teóricos e práticos que lhe começassem a ser transmitidos.

      Andara por lá durante alguns dias, mas o funcionário que os serviços de crédito escolheram para o preparar era tão competente e de trato tão afável, que aprender algo tão complexo sobre normas, procedimentos e aspetos burocráticos do crédito quase resultara natural e com muito poucas “dores de cabeça”. Ele não só ensinava bem, como nas explicações que dava ia caldeando com outros aspetos da função e que até tinham a sua graça. De vez em quando, em jeito de intervalo, lá surgia com um dito a propósito de algumas pessoas em abstrato que poderiam no seu jogo de interesses quererem passar uma “rasteira” a quem fosse pouco experiente nos serviços.

      — Sabe — dizia ele, deixando escapar um sorriso matreiro —, isto do crédito também tem as suas coisas surpreendentes, diga-se a propósito, e ressalvando a verdade, entre maus e bons exemplos, que há pessoas que a instituição apoia nos pedidos de crédito porque têm perfil e competência, são sérios e merecem toda a confiança da Caixa Geral de Depósitos, mas há outras que vêm muito bem vestidas, falam com uma certa pompa dos investimentos já realizados, pedem apoio para outros que dizem ser novos e ainda maiores na sua dimensão e grandeza, algumas vezes para a construção de prédios para habitação, outras vezes para aquisição de equipamentos para agricultura ou pescas que, vangloriando-se, dizem muitas das vezes já estarem parcialmente realizados com custos financeiros próprios, mas quando depois na prática procedemos para a avaliação e possível concessão de crédito começando a verificar os balancetes nos seus resultados e indo ao local ver a realidade, chega-se algumas vezes à conclusão de que nem as contas são verdadeiras nem os investimentos existem e, quando existem, muitas vezes não vão além dos projetos e estão cheios de situações duvidosas.

      Depois há ainda outros que se fazem passar por agricultores, dizem querer aumentar o número de animais ou a produção de leite e o que se vem mais tarde a constatar é que se o crédito tivesse sido concedido, teria servido para tudo menos para a compra de animais ou para o aumento da produção de leite, pois eles não têm currais ou vacarias e a maior parte das vezes nem sequer têm qualquer terreno. O que vale é que a nossa instituição tem sido muito segura e rigorosa, e se algumas vezes os “habilidosos” lhe passam a perna, quando não lhe conseguem fugir também não terão muito tempo para gozar da sua habilidade, já que depressa sentarão o rabo no mocho.”

      Após estes dias de formação intensiva, regressara ao local de trabalho com a vontade de começar rapidamente a pôr em prática o que aprendera no Porto.

      — Então, como correu a formação? — perguntara o gerente  confiante e  inclusivo.

      — Correu bem! – exclamara. Entretanto, acrescentara: — Não poderia ter recebido melhores conhecimentos nem ter sido mais envolvido nas questões do crédito. O funcionário que me ensinou durante os dias em que lá estive era excelente a ensinar e era um conversador eloquente, um amigo de ensinar e um colega esforçado para eu compreender.

      Foi bom, porque também conheci outros colegas com quem troquei opiniões sobre o assunto e de âmbito mais geral; fiquei deste modo a conhecer melhor a instituição e a apreciar com outros factos o seu valor para o Estado, para as instituições, para as empresas e para a sociedade em geral.

      — E agora, o que pensa fazer? — perguntara o gerente com preocupação do serviço.

      Após a pergunta e perante a responsabilidade que implicaria a decisão, o jovem ficara em silêncio ao mesmo tempo que ia intuindo o sentido que ela teria, imaginando a priori que certamente estaria em questão a indicação prévia do gerente sobre o plano a seguir, mas sentisse ao mesmo tempo que haveria nele a vontade implícita para a pretensão de que fosse o operador de crédito a propor o modo e ação para o seu lançamento.

      Com o plano esboçado no pensamento, respondera com serenidade de modo explicativo:

      — Quando frequentava as ações no Porto e nos intervalos que tinha, fui pensando no que me disse antes de eu ir para a formação: “que acreditava que dentro em pouco estaríamos a abrir e a lançar os serviços de crédito no nosso balcão”.

      Daí que, ao pensar na emergência com que poderia surgir esta oportunidade, fui elaborando um mapa com o nome de algumas das melhores empresas do nosso concelho para propor que, no momento em que fizéssemos o lançamento do serviço de crédito, começássemos por visitar e dar a conhecer os novos serviços a cada uma destas empresas. E se também estivesse de acordo que o fizéssemos conforme as marcações que forem agendadas previamente, e tendo em conta o número de visitas diárias e as horas de marcação, para que o tempo de folga após as visitas permita que possamos manter também com regularidade o atendimento ao público que entretanto vier à nossa Agência, pois sendo este agora também no nosso balcão, um novo instrumento financeiro de aplicação e de desenvolvimento alargado deverá ser com certeza prioritariamente também um serviço interno.

      — Muito bem! — respondera o gerente com gestos de concordância e com um enorme sorriso. — Entretanto, num modo mais pousado, acrescentara:     

      — Quero dizer-lhe que estou imensamente satisfeito com o plano de ação que propõe para começarmos a desenvolver os nossos serviços de crédito, quero também felicitá-lo pela iniciativa de começarmos pela visita a algumas empresas do concelho e dizer-lhe já que dispõe para o efeito de “carta-branca” para poder prosseguir a partir de agora com o seu plano. Dizer-lhe também que tem uma verba para despesas de gasolina, se necessário também poderá ter automóvel para levar e por fim dizer-lhe que pode começar a partir das primeiras marcações que conseguir, pois não deverá perder mais tempo, já que é necessário começarmos o mais depressa possível e com toda a força.

      Sensibilizado com estas palavras de incentivo e de urgência, o jovem apressara-se imediatamente a responder:

     — Não sei para além de um obrigado que dizer de melhor sobre o que sinto, mas na verdade estou muito feliz por esta nova função que começarei a desempenhar e pela confiança que em mim deposita. Porém, gostaria de poder acrescentar que tudo isto será certamente possível com o meu total empenho, mas também com a colaboração que o gerente me irá dar com certeza. Aliás, seria impensável para mim avançar de um modo diferente e peço até que me desculpe pela minha franqueza, mas devo dizer-lhe já que não me sentiria bem se iniciasse sozinho a minha nova função nem me sentiria bem nas visitas que planearei efetuar, e muito menos me sentiria feliz se o gerente da nossa agência não fosse comigo ou pelo menos se não fosse comigo durante estes primeiros tempos para me dar força no uso da palavra no que iremos propor, que com a presença de ambos será mais credível e mais respeitável ainda, já que o nosso gerente poderá superiormente representar melhor a nossa instituição.

      Dizer-lhe que ficarei imensamente feliz que um dia se fale da nossa Agência como pioneira no serviço de crédito aos vários sectores e que o senhor como o timoneiro do projeto fora um amigo e um ótimo colaborador do primeiro operador de crédito da Caixa Geral de Depósitos no nosso concelho.

      Depois de ouvir em silêncio estas palavras, o gerente respondera com a voz embargada:

     — Se é essa a sua vontade, não irei contrariá-lo. Amanhã ou depois de amanhã cedinho sairemos pela primeira vez da nossa Agência para visitar as primeiras empresas do nosso concelho!”

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, VIII Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.71 a 83.

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

VII Capítulo  08.12.2020
 

     Passara-se bastante tempo entre este acontecimento singular e o alcance de maior equilíbrio na sua relação com a família. Contudo, o trabalho começara a ser mais inspirador e mais assertivo nas relações humanas; mudara de emprego e de estatuto, pois após ter sido aprovado nos exames em que prestaram prova mais de trinta e cinco mil candidatos para preencherem cerca de duas mil vagas, fora trabalhar numa instituição financeira onde ao cabo de certo tempo de aprendizagem começara a desempenhar as funções de operador de crédito financeiro.

     Trabalhara durante vários anos com grande satisfação neste novo emprego e aí mantivera a continuação da frequência dos estudos superiores em horário pós-laboral durante o período de cerca de dois anos, período em que concluíra o curso de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

     Os conhecimentos que alcançara com uma licenciatura na área das Letras permitiram-lhe confirmar algumas vantagens no domínio das Humanidades e nas relações humanas, porém ao terminar o seu curso confirmara melhor que, com o seguimento dos seus estudos nesta formação académica, acabara por desviá-lo da maior parte dos estudos obtidos através do caminho percorrido ao longo do tempo anterior à entrada para a Universidade. Os estudos anteriores incidiram na área da contabilidade, na qual trabalhara profissionalmente desde a adolescência até aos primeiros anos da maioridade.

     Com o terminar do curso e já com melhor conhecimento da instituição financeira em que na ocasião trabalhava, verificara definitivamente e com mais exatidão que os conhecimentos que tinha alcançado se ajustariam melhor ao ensino em geral, já que o diploma que obtivera não lhe parecia estar em sintonia com a carreira bancária que nesta altura percorria, ressalvando-se no entanto que, com este curso, a carreira poderia vir a ser melhorada no futuro, principalmente ao nível das competências profissionais e das relações humanas.

     Contudo, este diploma não lhe parecia ainda assim poder vir a ser no futuro muito compatível com a sua progressão na carreira que seguia, ainda que os superiores hierárquicos tivessem em elevada conta o valor das funções muito complexas que desempenhava na altura como operador de serviços de crédito. Aliás, por comparação com outra atividade, pudera confirmar com maior certeza a dúvida que entretanto pairava na sua consciência, uma que vez que pudera experimentar e comparar este seu desempenho com outro dos desempenhos possíveis, que afinal também este estaria nas suas preferências, ou seja, ao ter sido convidado para lecionar algumas aulas no ensino cooperativo em horário noturno pôde por este modo descobrir qual seria o valor geral das Humanidades, nas quais se poderia incluir o seu curso, sendo que com esta ação experimental de poder lecionar, ainda que só por algum tempo, pôde confirmar que afinal sempre estaria vocacionado para poder vir a exercitar o seu curso de preferência no ensino.

     Ou seja, a convite de uma escola do ensino cooperativo e durante um período temporário num horário noturno, perante uma experiência casual de ensino acabara por verificar nos vários ensaios educativos que os conhecimentos que possuía das Humanidades se ajustariam muito mais à educação e ao ensino do que ao trabalho que desempenhava como operador de crédito e com maior relevância naquele balcão nos sectores secundário e terciário. Contudo, apesar desta confirmação, mantivera-se ainda assim naquele emprego por mais alguns anos depois de se ter formado. E fizera-o porque tinha plena consciência do grande valor da instituição onde trabalhava, sabia que os seus conhecimentos superiores adquiridos teriam de imediato um grande apreço para a instituição na sua valorização profissional, e sabia também que estes viriam mais tarde também a ajudá-lo a ser reconhecido em maior compensação monetária, pois, quer queiramos, quer não, estes conhecimentos acabariam por ser no futuro valiosos para a sua melhoria na conduta profissional e para o ajudarem a manter uma relação mais competente com o público e até porventura um pouco mais culta e esclarecida com vista ao melhor desempenho das suas funções em geral.

     Porém, mesmo assim não deixara de reconhecer que estes conhecimentos não se ajustariam no exercício das suas funções de modo tão funcional como se no caso tivesse antes conhecimentos de economia ou outras ciências afins; é que em seu entender, no caso específico do crédito em geral, estes conhecimentos sempre deveriam ser mais apropriados para uma avaliação financeira de cada caso e, em consequência, para a compreensão mais rigorosa de outros instrumentos necessários para os objetivos do crédito, fosse à Construção, Indústria, Agricultura, Pesca, etc.

     Por isso, apesar de gostar bastante da instituição onde trabalhava, dado que este fora um dos seus grandes sonhos de carreira e de ter uma grande estima pelo seu emprego, pela razão aduzida na sua primeira experiência educativa com o despertar da razão vocacional para o ensino, concluíra em definitivo que a Educação em geral e o ensino em particular seriam mais consentâneos com a sua formação académica em Letras e também com os desejos de investigação que gostaria de realizar no futuro. Por isso colocara-se-lhe a questão sobre se deveria ou não continuar a permanecer nos serviços de crédito da Agência, ganhando com isso estabilidade e conforto no lugar, mas com isso contrariar a sua consciência e sofrer imenso toda a vida por pensar que poderia prestar uma grande ajuda à sociedade ensinando os jovens a descobrir o sentido da vida pela Filosofia, mas também através dos seus exemplos, saindo da instituição porventura a ganhar na Educação mais ou menos o mesmo que ganhava na Banca, mas saindo de comum acordo e deixando contido na sua saída o reconhecimento e a admiração da administração pelos bons serviços prestados, para poder seguir o novo caminho sem nenhum constrangimento e experimentar a vocação para a qual descobrira perante aquela breve experiência possuir os dons necessários.

     Deste modo e pela mesma ordem de razões, concluíra sem mágoa que os dons principais que superiormente possuía também não seriam muito consentâneos com os dons necessários dos serviços financeiros que desempenhava na instituição, logo, por consequência, estes também não seriam muito consequentes na ajuda para a sua progressão futura na carreira e para a ascensão mais complexa aos níveis superiores do seu estatuto profissional. Daí que, apesar de continuar a gostar muito do que fazia e também gostar muito da instituição a que fora muito difícil chegar, alguns anos depois de se licenciar acabara por concorrer a um lugar no ensino para ingressar nos serviços de educação e para poder optar por se tornar professor e começar uma nova carreira profissional, aquela em que se mantivera até ao dia da sua aposentação.

     Apesar de não ter resistido à vontade de mudar para a Educação e à consequente mudança de emprego, deverá dizer-se que a nova relação profissional que iniciara quando entrara cerca de cinco anos antes na Caixa Geral de Depósitos, permitira melhorar muito a sua instabilidade emocional, uma vez que a função que ali desempenhava permitia-lhe maior contacto com o público e, apesar de ter no seu dia-a-dia um trabalho muito cansativo, este tornava-se bastante mais saudável no equilíbrio das tensões interiores, pois, sempre que oportuno, poderia desabafar com diferentes pessoas e sentir que na sua atitude ética profissional poderia também estender um pouco mais de amor e de maior atenção a todos aqueles que nas maiores dificuldades mais precisassem.

     Subira rapidamente no valor da apreciação dos seus superiores hierárquicos, assimilara com grande vontade e dedicação o novo conceito de trabalho a desenvolver manifestando à instituição entre o conjunto dos pares o seu empenho com discrição ao mesmo tempo que, com esta atitude, ia dando provas de que servia desinteressadamente com afinco, denodo e grande sentido de virtude. E, no mesmo sentido, ainda que no desempenho de funções fosse um empregado subalterno, mesmo assim ao longo do tempo o reconhecimento público destacara-o pela sua grande dedicação no trabalho que executava e também pelo trato social que mantinha na relação com as pessoas, desde logo pela competência evidenciada, mas também pela completa disponibilidade em que se colocava à disposição, pois nos diferentes processos das várias operações de crédito que realizara, sempre tivera em conta em primeiro lugar a ordem da dimensão humana, depois a ordem da dimensão financeira e por fim a ordem da dimensão económica, razões que estas ações implicariam com vantagens para a instituição, mas também para a sociedade, e até mesmo para o Estado como sendo a entidade de valor principal.

     — Bom dia, doutor! — cumprimentavam-no com carinho não só os superiores hierárquicos, como todos os outros companheiros de trabalho.

     “Bom dia, senhor gerente”, “bom dia, João”, “bom dia, dona Carla”, respondia com um sorriso enquanto se dirigia até à secretária para sentar-se com firmeza e poder começar com disposição a trabalhar nos processos de crédito, para depois levá-los ao gerente, que os assinava e remetia para a Direção do Crédito do Norte, onde seriam posteriormente considerados em definitivo, com vista a serem ou não aprovados nos seus montantes e serem preparados para a realização das escrituras.

     Junto à sua mesa de trabalho, estava uma estante para colocar as pastas com as instruções e os documentos necessários para a efetivação de pedidos de crédito. Esta localização era das mais próximas do gabinete do gerente e a mais próxima do subgerente, pois a escolha daquele lugar fora pensada para que este pudesse ser um lugar estratégico pouco distante e possuindo uma visão ampla e direta do espaço de atendimento público, em especial de quem se aproximava na direção deste balcão, que estava sinalizado com a indicação destes serviços e que permitia, pela distância mais curta entre a secretária do operador e a aproximação do público, que o seu atendimento fosse feito com maior rapidez e favorecesse o envolvimento afetivo na recepção e no acolhimento entre ambas as partes.

     Era um dos mais pequenos balcões de atendimento da Agência, mas era o mais íntimo e o mais sossegado, já que servia para atender com mais discrição e maior autonomia o público que procurava saber como proceder para obter crédito e servia ao mesmo tempo quando, em caso de necessidade de uma solução mais rápida a que o subgerente pudesse responder, porventura com conhecimentos complementares na informação desejada ou quando no caso de um pedido ser mais complexo, e o próprio gerente estar por perto, pudesse assegurar com rapidez e exercer com a privacidade necessária a sua responsabilidade na indicação da solução possível.

     Esta situação não acontecera logo que entrara para a Caixa Geral de Depósitos, pois nessa altura fora colocado em Lamego e aí permanecera até ser transferido a seu pedido para o balcão da Agência do concelho da sua residência, onde viera de facto a desempenhar funções numa das maiores agências da Caixa Geral de Depósitos, e em que, pelas funções desempenhadas de operador de crédito nessa altura e pela sua continuada dedicação e competência, tornara-se num funcionário admirado socialmente e também amplamente reconhecido por todos os colegas de trabalho. Deverá dizer-se a este respeito que, para se ter conseguido alcançar o rápido sucesso na experiência encetada pela Agência, creio que pela primeira vez num balcão do distrito do Porto, e se calhar também pela primeira vez num balcão da zona norte, muito contribuíram para esse desiderato todos os colegas de trabalho, especialmente o gerente, que era uma pessoa de trato afável e muito humano. Aliás, basta a propósito do valor da sua humanidade lembrar o exemplo de que, quando qualquer membro do pessoal da Agência o tinha de solicitar para resolver qualquer problema em qualquer serviço, chamava-o muito mais vezes pelo seu nome de pessoa do que pelo seu posto de gerente. Era um chefe que tinha por hábito entrar no gabinete só depois de saudar todo o pessoal, no envolvimento geral soltava com tanta facilidade alguns sorrisos e palavras simples nos seus cumprimentos aos depositantes e a todo o pessoal da instituição, que com estes gestos sensíveis fazia renascer a autoestima em cada funcionário, que ganhava um certo alento para o começo dos trabalhos e que durante o dia haveriam de aumentar e exigirem esforço para os resolver com o maior rigor e maior eficácia.

     Fora neste ambiente de cordialidade e respeito mútuos que trabalhara durante cerca de cinco anos nesta instituição bancária. De tal forma que, de vez em quando, ainda lhe sobe à face o rubor da honra e da virtude que sentira, sobretudo quando recorda com emoção o sucesso da sua aprovação nos exames que fizera para lá entrar. Um sucesso em que não chegaram a participar muitos milhares de candidatos que entretanto foram excluídos nas provas de acesso, sendo que a sua aprovação positiva e com mérito lhe permitira a tão desejada admissão à instituição.

     Porém, e sempre por via das dúvidas que alguém pudesse ter, faz questão de vincar o assunto da admissão à instituição como tendo sido um triunfo que obtivera com grande evidência, pois há muito o procurava, pelo que com alguma emoção e sem nenhuma vaidade faz questão de destacar que tudo fora natural, que não fora por ação de qualquer “cunha” nem de qualquer “favor” que entrara na Caixa Geral de Depósitos, que entrara sim, mas fora por mérito próprio, já que tal se poderá certificar pelas provas que fizera de exame escrito e de exame oral, sendo que este último até fora de carácter obrigatório e independentemente da nota positiva da escrita. É evidente que deverá destacar-se que este mérito só foi possível pela aptidão dos seus conhecimentos, pela sua experiência anterior exercida em diversas atividades e pelo sentido prático que tinha das questões financeiras, comerciais, industriais e até mesmo de serviços, por tudo isto acrescenta com alguma naturalidade que foram estes valores que estiveram na principal causa deste sucesso, por serem os principais trunfos que utilizara para passar nos exames que fizera de avaliação prática e teórica.

     Aliás, deverá dizer-se que a satisfação pela passagem nos exames e consequente admissão à instituição virá a generalizar-se num sentimento de grande alegria pelo sucesso conseguido, de tal forma que este sentimento chegara a atingir nesta situação especial algum exagero e alguma euforia. Porém, também dever-se-á dizer sem nenhuma intenção de superioridade que este comportamento um tanto exagerado pelo êxito na proeza conseguida surgira em parte com esta carga emocional pelo facto de, por um lado, a quantidade de candidatos inscritos para a realização de provas ter sido de cerca de cinquenta mil e, por outro, na realização das provas o número efetivo de candidatos não ter sido inferior às três dezenas e meia de milhares; por fim, e com maior importância em tudo isto, deverá referir-se o facto de a totalidade de lugares a preencher ser apenas de cerca de um milhar e meio, sendo que um desses lugares fora preenchido por si e com pouco tempo de espera até à sua chamada para começar a trabalhar em Lamego.

     Quando entrara para a instituição e na Agência onde estivera colocado durante cerca de um ano, executara diversos serviços mais gerais e burocráticos, aí mantivera boas relações de amizade e de estima com os colegas e com a sociedade local, pois durante os dias úteis de trabalho residia, trabalhava e convivia na cidade, só vindo a casa ao fim de semana e algumas vezes de quinze em quinze dias.

     Após sete meses de trabalho neste balcão, fora por razão de proximidade transferido a seu pedido para o concelho onde residia e onde permanecera, sendo que após algum tempo da sua entrada neste novo balcão se tornara operador de crédito até ao dia em que ingressara no Ministério da Educação para vir a exercer por vontade própria a função de docente e até ao limite normal para a sua aposentação.

 

  Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, VII Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.61 a 69.

 


Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

VI Capítulo  04.12.2020
 
 
     — Senhor, que poderei eu fazer!? — perguntara, como se estivesse a falar com Deus. — Porque é que tenho de ficar sempre neste estado de revolta e de tristeza!? Senhor, Tu bem sabes, que não passo de uma simples criatura humana! Que poderei eu fazer para lutar contra tanto mal que alastra e galopa sobre o Mundo!?
 
     “Ainda a respigar estas perguntas no caminhar de volta a casa sobre o carreiro estreito e ao som timbrado das águas que passavam no regato, por instantes parecera-lhe ouvir uma voz que o interpelava sussurrando: “Vai prepará-los!” “Ensina-os a descobrir pelas experiências!” “Não desanimes!...”
 
     “Perplexo e ainda a tentar fixar a imagem do que lhe estava acontecer, sentira-se transtornado e ficara em silêncio entre o ciciar daquela voz e a dúvida de que não estaria a delirar. Expectante, movera-se entretanto como se tivesse sido atraído para inclinar um pouco mais o ouvido e tentar decifrar melhor o que lhe parecia ouvir naquela voz que se alongava lentamente numa espécie de eco e já em forma de despedida:
 
     — Vai prepará-los!… Ensina-lhes o que aprendeste!... Mostra-lhes o caminho!...
 
     “Deverá dizer-se a este propósito que só por um processo de conhecimento na intuição acústica desta sonoridade é que acreditara que só por semelhança conseguira decifrar corretamente as imagens e transformá-las em palavras afins. E dizer-se também que com isto concluíra que não estaria a sonhar nem a delirar, nem também estaria longe da realidade que lhe parecera ser ainda mais autêntica, pois este processo de intuição sonora provocara em si tanta curiosidade e um sentimento tão grande de afeto, que por força da sua interpelação o induzira imediatamente para a maior atenção na descoberta do que se estava a passar à sua volta, já que ao mesmo tempo, na proporção imediata do tempo entre o princípio e a partida, viera a formar-se subtilmente na memória a imagem que não era apenas de ordem acústica, mas também envolvente, sensível e fascinante.
 
     “Este movimento de sonoridade tangível e algo misterioso ainda persistira durante algum tempo em manter-se na sua proximidade, porventura pela razão de poder teimar com a insistência para garantir a possibilidade razoável da gravação na sua memória de um sinal a apreender e ao mesmo tempo permitir também que esta mensagem pudesse propagar-se com a sua intensidade na sua vida e em todo o seu pensamento.
 
     “Contudo, logo que fora alcançada entre si a simbiose com a similaridade possível, esta voz parecera começar a despedir-se ao mesmo tempo que se ia despedindo também daquele local e daquela fonte de água viva. Fizera-o através de um movimento que se distendia progressivamente para diante e fazia ecoar continuamente nos ares uma imagem sonora que, ao derramar uma certa essência, ascendia à semelhança de uma voz misteriosa e intrigante e que, enquanto também não se distendera o suficiente, fora deslocando-se num movimento ondulatório mais dissipado e menos concêntrico para, quiçá, um pouco mais longe poder subir através do espaço aéreo e ir ao encontro das estrelas que naquela noite cobriam a Terra com um manto de ternura e pareciam querer descer até mais próximo de si.
 
     — Quem é que eu devo preparar, ensinando? – interrogara-se, recordando o que ouvira naquela voz vinda sem saber de onde. — Como poderei ensinar alguém, se não estou a trabalhar na educação? — perguntava, procurando descobrir a resposta.
 
     Para tal ser possível, questionara-se concluindo:
 
     — Eu teria de ir para o ensino e tornar-me professor. Logo, teria de deixar a instituição onde trabalho e ir trabalhar para o ensino! — Porém, perante a dúvida, questionava-se mais intrigado: — Mas como será isso possível?! Onde vou eu arranjar uma escola para poder ensiná-los? — perguntava para si mesmo, meditando.
 
     “E, enquanto caminhava pelos lugares onde passara, ia meditando baixinho entre o silêncio da noite e as situações a ter em conta, ensaiando nas suas passadas o modo de procurar esquecer e desligar-se pacificamente daquelas interrogações, pois, sempre que na ocasião ficava mais consciente dos problemas, sentia que aquelas interrogações pareciam-lhe não ter qualquer fundamento nem fazer qualquer sentido.
 
     “Completamente absorvido na consciência pelos problemas e dificuldades encontradas, tentara resistir à lembrança daquelas questões, começando com grande esforço a procurar encontrar-se na sua centralidade e a situar-se melhor na consciência daquela voz misteriosa. Sentia ser muito necessário apoiar-se naquele refúgio, pois entre o tropel das sensações confusas sobre a possibilidade de a realidade ter ou não ter acontecido, começava a ansiedade a rumorejar o seu interior e a interpelá-lo na sua imaginação para a crença na verdade, ao mesmo tempo que o induzia a deslizar para um estado de inquietude e de grande desejo de dormir, pois o cansaço e a expectativa já eram tão dominantes e tão contraditórios que começavam cada vez mais a tomar conta da sua consciência e da alegria sentida naquela maravilhosa noite.
 
     “Quem, e como posso prepará-los? ”recordava voltando outra vez a esta interrogação. Aliás, o cansaço e o sono forçavam à intermitência das questões, e estas voltavam sempre a reacender-se na sua memória. Assim, a recordação do eco daquela voz continuara a parecer ouvir-se no desfiladeiro da sua consciência, fazendo em simultâneo com que este começasse a sentir-se capaz de jurar com todas as suas forças que aquela voz que ouvira era tão real que jamais a poderia esquecer ou sequer a poderia pôr em dúvida, mesmo que esta fosse só para a assumir temporariamente na condição de que esta não fora verdade e que tudo aquilo não teria passado de um sonho.”
 
     “Entretanto, já muito próximo do fim da madrugada, chegara completamente exausto às imediações da casa onde vivia. Nesta altura, havia um grande silêncio em todo aquele lugar, tudo dormia a sono profundo, mesmo até nas casas dos lavradores os animais permaneciam em completa quietude. É verdade que o calor da noite poderia acender nos corpos a chama do amor mais comovente, mas, pela visão do fio ténue da luz de cada casa, não se notava senão numa ou noutra janela, uma ligeira abertura das vidraças que, por entre as cortinas mais abertas, permitiriam com certeza a entrada de ar mais fresco, que em consequência refrescaria momentaneamente os quartos enquanto a brisa da madrugada não rompesse por entre os espaços e afagasse com a sua frescura os desejos humanos mais ardentes, que no limite das distâncias as almas dormiam entre os corpos num sono e cansaço profundos em que iam tomando conta das suas vidas.
 
     “Logo que entrara em casa, sentira-se mais sossegado e preocupara-se imediatamente em fazer silêncio. Os filhos eram crianças e ele mantinha a convicção de que, mesmo naquela inesperada ausência emocional, enquanto eles ficaram a jantar entre o convívio da mesa e as tarefas a realizar, a mãe preparara-os no coração para uma envolvência paterna de amor e de paz. Ele sabia que ela tinha sempre um grande cuidado com os filhos, pois em todas as situações familiares mais críticas, porventura até de maior tensão emocional, ela tudo fazia para evitar qualquer instabilidade psicológica das crianças, fosse pelo facto de o pai ficar desesperado e a dormitar às vezes sobre a mesa de jantar enquanto retemperava as forças, fosse por qualquer outra discussão por alguma falha nas regras de família ou por qualquer ausência inesperada. Ele sabia que ela tinha consciência de que era preciso continuar a manter, sem qualquer desconfiança, a habitual rotina dos hábitos de educação, sobretudo quando era chegada a noite e estavam mais sós. Aliás, era sempre mais ou menos pontual a hora de se prepararem para dormir, que raramente passaria das dez horas da noite, e a hora de se levantarem para se prepararem e irem para a escola, que também raramente passaria das sete e meia da manhã.
 
     “Perante este quadro de paz e de alguma tranquilidade, não quisera perturbar a sua mulher, uma vez que sentira que ela estaria apenas calada e a dar sinais de estar a dormitar. Mesmo assim, tivera plena consciência de que seria melhor não acordá-la, já que facilmente o poderia fazer se assim o entendesse ou se descuidasse, pois ela não estaria de modo nenhum nesta circunstância a dormir com sono profundo, nem estaria a dormir sossegada nem tão-pouco estaria a dormir tranquila; no entanto, respeitara-a no seu aconchego e decidira concordar em silêncio com o seu aparente dormitar, já que certamente o momento do seu regresso fora para ela muito mais agradável ao sentimento do coração do que qualquer beijo que lhe desse naquele instante de arrependimento.
 
     “Mesmo assim, não fora logo deitar-se nem procurara de imediato o descanso e o aconchego de ambos. Ficara por mais algum tempo sentado no sofá, ficara a meditar no que lhe acontecera e como haveria de contar aos seus as experiências de dor e de mistério que sentira durante o tempo que durara aquela saída de casa bastante intempestiva e emocional. Sobretudo, como haveria de dizer-lhes sobre o sentimento que tivera acerca para a mudança de atitude em relação à defesa dos mais fracos e indefesos e ao sentimento de outra resposta educativa à questão afável e misteriosa que lhe fora proposta, sabe-se lá por quem em alta voz e de modo invisível. E de também como contar-lhes do porquê de tal mudança ter acontecido no momento em que tudo parecia naquela noite estar orientado para a decisão radical de desistir de lutar por uma sociedade mais justa e melhor, evitando deste modo continuar a sofrer e a fazer sofrer os seus, por uma causa que há muito lhe parecia estar perdida.
 
     “Porém, entre a meditação e o cansaço de tanta dor e mistério, decidira finalmente deitar-se, ainda que o fizesse com alguma resistência em contrário. Mas, apesar deste sentimento instável, não deixara de ter um grande cuidado na sua ação, procurando entrar cautelosamente no quarto para não fazer barulho nem incomodar mais a mulher, pois neste intervalo apercebera-se de que o poder do sono era cada vez maior e também era maior a confusão das sensações que eram repetidamente sentidas e que lhe diminuíam drasticamente a capacidade de intuir com clareza mais alguns aspetos, para o modo de compreender e de explicar-lhes posteriormente o assunto.
 
     “No entanto, antes de adormecer, ficara com a firme convicção de que poderia excluir categoricamente a dúvida de que na verdade sempre teria ouvido naquela ocasião algo semelhante a uma voz e que a mesma lhe falara explicitamente, embora sentisse que lhe faltavam descobrir outros fundamentos para ter maior certeza sobre o que significaria aquele conteúdo que escutara antes numa espécie de voz e que se mantinha ainda bem viva na sua recordação a ecoar livremente pelo seu pensamento e nas palavras: “Vai prepará-los, fala-lhes das tuas experiências, mostra-lhes como chegaste até aqui!”...
 
  Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, VI Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.55 a 60.
 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

V Capítulo (2) 30.11.2020
 
 

     “De facto, ficara imensamente deslumbrado com o alívio que sentira naquele momento, de tal forma que, ao recordar-se de ter vociferado contra o Criador e de ter bradado tantas vezes contra os céus, lhe ocorrera uma grande vontade de ajoelhar-se, de rezar e de pedir perdão. Sentira-se tão emocionado de satisfação que, comovido pela graça recebida, arrependera-se imediatamente do que dissera antes. No entanto, sem saber muito bem o porquê de não fazer logo a vontade ao desejo que sentira de rezar e pedir perdão, permanecera continuamente de pé e, sem dizer palavra, parecendo que fora forçado a ficar assim num estado de tal modo extasiado e a divagar em silêncio como se estivesse ainda a perscrutar o murmúrio das águas ou a escutar na memória da recordação as palavras de alguém que conhecia bem e por quem há muito sentia um grande afeto e sempre uma enorme vontade de ouvir.

     “Contudo, já numa atitude de mudança, mas ainda sobre o efeito da ação daquela cura milagrosa, que entretanto lhe retirara do corpo toda a raiva que sentira e manifestara nas lágrimas que chorara, ficara ainda por mais algum tempo a contemplar em recordação aquele momento divino que vivera. Ficara durante o tempo em que começara a sentir em serenidade partirem para longe os efeitos do nervosismo com que momentos antes vociferara e bradara impetuosamente aos céus. Os efeitos resultantes das suas loucuras e desesperos pelos sofrimentos humanos que entretanto vira antes nos rostos do mundo. Ficara por ali mais alguns instantes a meditar no silêncio comovido que se fizera na sua consciência, ao mesmo tempo que a serenar escutava com grande sensibilidade o fio das águas que, de um modo contínuo, deixavam na passagem da corrente golfadas de água que, em silêncio, levemente se alteravam em sons timbrados quando subiam aos relevos frágeis do seu leito e se reuniam compassadas em uníssono.

      “Entretanto, numa observação mais atenta, ficara encantado com o movimento que era orientado naturalmente pelas águas, parecendo-lhe que no movimento da torrente do regato as golfadas maiores de água estabeleciam propositadamente o limite que deveria manter o caudal que passava entre os canteiros mais cheios e os canteiros mais vazios, parecendo quererem com esta orientação equilibrar as consequências das maiores secas em resultado do calor do verão e, em simultâneo, ajudar na continuidade necessária dos pequenos desvios das golfadas mais pequenas, para que os pequenos charcos de água localizados nas margens do ribeiro, ainda que estivessem mais vazios, pudessem manter-se sempre como reserva para servirem de fontes para os pássaros, para os insetos e para todos os pequenos seres vivos que andassem pelas redondezas.

     “Durante algum tempo, mantivera-se admirado com a perfeição do sentido do movimento das águas daquele regato, sentia que esta ordem natural embelezava ainda mais o quadro idílico do ambiente envolvente; no entanto, ainda que resistindo sensibilizado por esta perfeição e pelo suave murmúrio da corrente, soltara-se no sentido da atenção e despertara bruscamente com um sentimento determinado a erguer-se de modo firme e robusto para começar a limpar com carícias a humidade daquelas gotas de água viva que momentos antes lhe aspergiram o rosto e ainda lhe mantinham a pele com uma frescura divina.

     “Superado por instantes ante a imagem inesquecível do que ouvira na noite, iniciara a viagem de regresso com a beleza da recordação cheio de alegria e com um grande entusiasmo, sendo que, no percorrer do caminho de retorno, começara a sentir que o seu sentimento anterior começara a mudar e que o seu olhar começara a erguer-se de novo ao céu, apontando outra vez com grande admiração e confiança para a graça das estrelas e para beleza da Lua, e verificara também que, se as várias interrogações que desde há muito o perturbavam ainda se mantinham no seu pensamento, também estas lhe pareciam estar a mudar no seu sentimento e na sua consciência.

     “Por isso, ao contrário do que antes se passara no seu pensamento, estas interrogações pareciam nesta altura ter começado a ganhar uma força com sentido diferente, uma força capaz de o motivar na sua vontade e nas suas decisões. E com este novo sentido a dirigir-lhe a consciência, estas interrogações pareciam agora também querer dizer-lhe que não haveria mais tempo a perder nem mesmo para gozar a satisfação na arte da contemplação, pareciam querer lembrar-lhe com insistência de que era preciso que se pusesse de novo a caminho e ir rapidamente ao encontro da verdade que há muito procurava e que também nunca perdesse a fé, para que assim pudesse alcançar o entendimento necessário para poder perceber num sentido mais elevado que desígnios é que o trouxeram até àqueles campos agrícolas naquela noite de verão, e que sinais seriam aqueles que sentira no rosto e ouvira com encanto a sua voz, que com grande emoção ainda recordava a imagem do momento em que aquelas preciosas gotas de água viva lhe amaciaram o rosto e lhe serenaram a alma com afago e ternura.

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, V Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.52 a 54.

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

V Capítulo (1) 25.11.2020

 

     “Adormecia e sossegava sobre a mesa onde jantara antes, até que ao acordar um pouco mais calmo e lúcido, começava a reconhecer naquele silêncio de solidão que só um poder superior seria capaz de transformar o quadro de dramas e tragédias a que assistia diariamente, que só um poder muito superior ao dele poderia ajudar a melhorar a situação do homem e da humanidade, e nesta perda de expectativa em o conseguir realizar sozinho, começava a ganhar consciência da sua falta e a pensar que estaria sozinho a entrar numa sensibilidade desesperada.

     “A família sofria imenso com estes atos destemperados, chorava juntamente com ele de aflição e de pena por tudo o que acontecia; no entanto, pouco mais poderia fazer do que tentar acalmá-lo e esperar que a graça de Deus o protegesse, esperar que Deus lhe desse a luz que não tinha para poder começar a ver melhor as situações e as suas possibilidades para as combater, para poder afinal ver como poderia contribuir para a melhoria da vida da sociedade e do mundo, na proporção do que lhes era possível, mas sem tanta dor e tanto sofrimento.

     “Mas a resposta tardava em chegar e, numa noite de verão, esta situação complicara-se muito mais, pois durante uma discussão com grande “tempestade” emocional batera como as mãos na mesa várias vezes e com tanta força que, num movimento de revolta, jogara alguns pratos e copos para o chão, que ao partirem-se provocaram algum pânico e um pouco de mais de aflição na família.

     “Ao aperceber-se ainda com grande nervosismo do impacto gerado em seu redor e da dor causada aos seus familiares, não ficara sobre a mesa onde jantaram a sossegar e a dormitar como era seu costume nestas ocasiões complicadas, pois após mais algumas pancadas na mesa e mais alguns gritos de desespero, revoltara-se e começara a praguejar alto contra tudo e contra todos, depois saíra pela porta fora começando a caminhar apressado pela rua num movimento ao acaso até inclinar-se no sentido para poder refugiar-se nos campos agrícolas, ainda que no perímetro da sua localidade, mas já um pouco distantes da sua casa.

     “Estávamos no verão e as noites nesta estação do ano convidam as pessoas a fazerem caminhadas, a trocarem cumprimentos amistosos individualmente ou em grupo, a formularem com alegria desejos de boa noite e nos casos familiares ou de maior afetividade a formularem desejos de boa noite e de boa saúde também.

     “No ambiente próprio do verão, ao que parece todos os problemas serão em geral um pouco mais amenizados, mesmo que na intolerância de qualquer grandeza de mal, e para quem pensar que sofrerá sempre mais por estar mais atento a este erro de complacência, independentemente do tempo que fizer, sofrerá um pouco mais por todas as aflições do seu semelhante nesta altura de maior alegria e sentirá que sofrerá mais do que todos os outros com os efeitos dramáticos dos problemas sociais mais negativos, chegando a parecer-lhe no seu maior desânimo que em certas ocasiões do ano, como parece ser no caso do verão, todas as outras pessoas darão ainda menos importância a estes problemas sociais, daí que aos mais sensíveis não lhes pareça ser fácil arranjarem companhia para desabafar sobre estas questões problemáticas, e nestes casos mais por temperamento do que por juízo de acusação, optarão com mais facilidade pela reflexão individual do que pela reflexão coletiva.

     “Assim, com um sentimento exaltado de desespero e de revolta, tornara-se-lhe mais apropriado caminhar para um lugar convidativo à reflexão e à meditação. Neste sentido acabara por mover-se um pouco à toa para longe de casa e, caminhando vergado sob o luar dos começos da noite, inclinara-se pela caminhada em direção aos campos agrícolas mais próximos, até que, num instante, parecera ter sido sinalizado num abraço pelo brilho da Lua, que rompia no espaço coberto de estrelas, pois fixara-se entretanto num limite que conduzia a um carreiro onde, perpendicular ao muro mais alto que dividia os terrenos agrícolas corria um fio estreito de água. Tinha na sua base uma forma de meia cana por onde corria lento um caudal estreito de água, que no tempo de verão serviria, ainda que com menos volume de caudal, para regar os campos e ser ao mesmo tempo uma fonte para os animais beberem.

     “Sentara-se em cima de uma pedra ligeiramente pontiaguda que se erguia naquele carreiro por onde passavam também pessoas que se dirigiam para outros lugares, ainda que o fizessem para irem trabalhar com mais regularidade durante o dia. Este carreiro não só permitia a passagem da água para regar os campos e matar a sede dos animais, como ao mesmo tempo dividia algumas das propriedades agrícolas dos vários proprietários do lugar. No seu conjunto, os vários campos tornavam-se numa enorme extensão que ainda dava gosto ver nesta altura, pois mostravam a terra cavada e ainda mexida de fresco, já que certamente teriam sido há pouco apanhado o milho e arrancadas as batatas que aquele plantio dera de produção para colheita.

     “Este carreiro era protegido por um dos muros mais altos, que servia, como já se disse, de vedação a outras propriedades agrícolas, mas experimentalmente e a propósito também reforçava superiormente uma das paredes do regato, tornando-se possível que pudesse, por seu intermédio, correr tão alinhado e vindo de tão longe este fio de água de mina.

     “Depois de olhar fixamente o céu, meditar nas suas investidas desnorteadas e pensar na tristeza que o invadia aquando dos acontecimentos sociais trágicos e injustos que iam surgindo no mundo, pensara com amargura na culpa que não tinha nem sabia como combater, embora acusando os culpados, emocionado e completamente abatido chorara bastante pelo sentimento de injustiça e sobretudo pela intolerância em que ficara no momento em que saíra de casa. Chorara também pela tristeza em que continuava a deixar os corações da família, que em desespero o aguardavam no seu regresso e sempre com paciência e gestos de compreensão. Chorara por fim o tempo necessário para acalmar e ficar consciente sobre a decisão a tomar e como proceder no futuro em relação a estas situações de grande exaltação e desânimo.

     “Já consciente e sereno, enquanto a noite escurecia e caminhava ao encontro da madrugada, pensava no efeito destas tragédias, que, sendo de ordem mais humana do que natural, na sua ação assolariam a humanidade de fome, de injustiça e de indiferença. Logo, em consequência, concluía que, por exaustão das capacidades, os exemplos destas calamidades sociais iriam alterar de tal modo a ordem e o sentimento da humanidade, que o todo social inevitavelmente ficaria num crescendo tão desproporcional, que lhe parecia poder estar convicto de que esta tolerância excessiva e o acatar destas realidades, ainda que fossem miseráveis e indignas, iriam aumentar tanto a indiferença e tornar-se tão insensíveis à sociedade que, perante tal desgraça e a perda do sentido dos valores, até Deus lhe pareceria que, perante esta atitude humana, Se afastaria para bem longe do Homem e do Mundo.

     “Profundamente exausto e desanimado com estes flagelos sociais, vociferava insistentemente contra o Criador e, num sentimento quase de loucura, questionara-O naquela vez sobre o porquê de tanta miséria humana e o porquê da possibilidade de existir tanta indiferença social, não por não acreditar ou deixar de ter fé no Criador ou sequer de deixar de ter fé no Seu poder absoluto, mas por julgar que o Mundo estava a ficar tão decaído e tão perdido, que por desgosto até Ele também nos abandonaria.

     “Contudo, ainda que completamente abatido pela tristeza e pelo desânimo, acabara por ficar mais alguns instantes naquela grande inquietação. Oscilara entretanto entre a vontade de desistir e a vontade de porventura deixar-se dormir mesmo ao relento e em abandono completo, ou então em fazer subir o alento para a vontade de regressar a casa e dar por finda junto da família a possibilidade de continuar a lutar por um mundo mais justo, mais verdadeiro e melhor.

     “Porém, sem que naquele momento nada o fizesse prever, ouvira-se de repente num exalo de sons difusos um leve murmúrio na corrente, um murmúrio entre o qual se soltaram certos sons e alguns salpicos de água que, subindo na sua direção e num gotejar espontâneo, aspergiram o seu rosto de água viva e plasmaram suavemente a sua fronte. Como num reflexo singular a emergir bruscamente das águas, irrompera uma sonoridade tão cálida e melodiosa que, brotando dos mistérios inexplicáveis de um qualquer milagre, ganharam ação e movimento para o interpelarem e o ajudarem na serenidade dos seus sentimentos acerca da verdade e da justiça e, ao que parece, para o fazerem também jamais se esquecer do bem que sentira naquele instante divino, ou em verdade mais transcendente para o motivarem a recordar com fé que aquelas gotas de água viva só poderiam ter surgido no seu rosto por um propósito divino que fora tão similar na sua vontade como na confidência das suas amarguras.

     “Aquele momento fora tão sereno e tão íntimo que, entre o passar de cada instante, moldara­‑se-lhe no sentimento um tempo presente e constante, pois enquanto durara na recordação aquela imagem de transcendência, parecera continuar a ouvir ainda a emergir do leito daquele pequeno regato o tinir do instante em que aquelas gotas de água viva lhe tocaram de tal modo o seu rosto que o transformaram num estado de grande mansidão, deixando-o na alma com um sentimento de arrependimento.

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, V Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.47 a 52.

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

IV Capítulo (2) 20.11.2020

     “Sem deixar de ser cauteloso e tolerante, não deixava de criticar as situações erradas, na tolerância constatava que na televisão, na rádio e nos vários jornais, todas as notícias e imagens malignas tinham produzido um efeito de dor fortíssima nas sensibilidades humanas, ninguém poderia ficar insensível naqueles momentos em que as observava. Porém, talvez pela quantidade e continuidade permanentes em que estas iam ocorrendo, também iam permitindo certamente que se formasse em cada um a assunção de forças confusas para a provocação e o amortecimento das almas, levando a que uma parte das pessoas progressivamente deslizasse para a tolerância excessiva e quase inconsciente destes acontecimentos; aliás, na maior parte das vezes, verificara que as pessoas iam sendo arrastadas para o esquecimento de tudo isto e, em consequência, deixavam-se induzir para o pensamento daquilo que, mesmo que sendo catastrófico e intolerável, passasse a ser considerado como normalidade e rotina, e com esta visão a humanidade aos poucos caía na indiferença, tornando-se cada um cada vez mais insensível às dores, deixando de se incomodar com as tragédias e os dramas sociais que iam acontecendo criminosamente à sua volta.

      “Todos sabemos que o homem é um ser que se adapta e se ajusta às situações e, por isso, também sabemos que, mesmo nos casos que o perturbam muito no momento em que acontecem, quando a sua repetição é permanente, tornar-se-ão num déjà-vu e deixarão de o perturbar tanto como no princípio, começando cada um a aceitá-los como se fizessem naturalmente parte da rotina. E até pode acontecer que, em momentos de maior fragilidade nas convicções, quando destroçado e vencido pelas revoltas sucessivas, o homem poderá tender a voltar-se para o passado e a começar a contentar-se com um pensamento de resignação, aceitando que “as coisas foram sempre assim”, “de que não há nada a fazer” e que “seremos sempre impotentes para alterar os rumos da História”.

      “Na sua oposição crítica, não poderia estar de acordo com esta fraqueza humana, o homem deverá sempre em qualquer situação levantar-se contra os erros e as injustiças sociais. E se, de facto, nestes últimos tempos, quando se liga a televisão, se lêem os jornais ou se ouve a rádio, são poucos os motivos que encontramos na diversidade para nos alegrarmos e distrairmos buscando aí algum conforto para o corpo e para o espírito através da arte, da ciência e da técnica, e se, de facto, o ambiente que nos pode encorajar também é muito frágil para nos poder levar a acreditar num futuro melhor e a ganharmos novas forças para o trabalho do dia seguinte. Porém, é um dever de todos nós acompanhar e saber o que se vai passando no nosso país e nas outras partes do mundo, quer através dos diversos meios de comunicação social, nomeadamente os meios de comunicação escrita, oral e visual, quer através da investigação ou nas fontes da História e naquilo que seja de melhor para nós ou mesmo naquilo que seja de pior, pois nem só de coisas agradáveis e convenientes se faz a vida social e humana.

     “No entanto, quando nos dispomos a ver a televisão nos tempos livres para nos podermos recrear e educar um pouco mais, verificamos que será necessário mesmo assim termos em conta o que acontece no conjunto de todos os programas, valorizando com certeza as notícias sobre o que vai acontecendo no mundo em geral, mas também será um dever dos responsáveis pelos programas considerarem a necessidade de terem em conta toda a riqueza cultural para nos equilibrarem com o todo diverso da informação, comunicação e educação sem deixarem porventura de insistirem com a repetição das notícias que quase sempre têm na sua maior parte imagens arrepiantes, no entanto fazendo-o sem massacrarem excessivamente a pessoa pelo facto de não pararem de as focar a toda a hora e fundamentalmente de estarem a focar continuamente os peitos mirrados e secos das mães que morrem de fome e de sede nos campos de refugiados ou nos locais das guerras onde impera a fome e a miséria. É que, levando o ser humano a olhar até à exaustão para a miséria que não provocou nem tem nenhuma culpa da sua existência, induzem-no na verdade, mas só permanecerá na vontade de a defender até ao momento de lhe caírem as lágrimas para num choro de revolta acabar por desligar-se da dolorosa realidade. A partir desta altura passará provavelmente a sentir-se como se nada mais pudesse fazer do que ver aquelas imagens e assistir às últimas dores daquelas mães que ainda amamentam as crianças com os restos das peles do seu corpo e em que ossos já quase sem vida vão resistindo a segurarem os seios que, já sem forma e sem leite, vão subsistindo em súplica no sustento aparente das crianças que, a mirrar lentamente, desaparecem ante o olhar atónito do mundo que se vai esquecendo até ao momento final de muitas daquelas vidas.

      “De facto, ainda que não se deva ser assim, perante este quadro de acontecimentos tristes e trágicos, resultantes em parte da insensibilidade humana, sobretudo dos mais responsáveis pela partilha dos bens e pela organização da ordem do mundo, como poderá alguém continuar a manter o equilíbrio tão desejado para poder continuar a procurar sem desânimo os caminhos de Deus e apontar à sociedade a razão para tantas injustiças e tanto mal?

     “Pois se a toda a hora são mostradas as imagens de milhões de seres humanos, que morrem pelas consequências direta e indireta das guerras nos locais de conflito ou em consequência das fugas desses locais, ou ainda perante as guerra civis, os genocídios e as más condições de vida dos países mais pobres, ou então pela falta de condições de sobrevivência em qualquer campo de refugiados, ou mesmo nos lugares e nas terras onde acontecem às vezes certas catástrofes naturais e o socorro ao nosso semelhante tarda em chegar pela morosidade das respostas institucionais e solidárias dos Estados.

     “Pois quando verificamos que uma grande parte da miséria do mundo é resultante das loucuras dos homens, pela ganância do poder ou pela avareza na partilha dos bens da Terra com as guerras fratricidas, os genocídios e os atos terroristas que se vão cometendo contra as várias sociedades, ficamos revoltados e com tamanha ira, que em lugar de ficarmos na maior parte das vezes calados e num silêncio estarrecedor, certamente que também responderíamos a propósito e sem nenhum medo se os sistemas que preservam e defendem o mundo assim o entendessem. Pois bastará lembrar, para o efeito, os exemplos destes flagelos nos últimos tempos do século XX e princípios do século XXI, especialmente sobre o que se passou no Camboja, no Congo, no Kosovo, no Vietname, no Iraque, na Etiópia, na Somália e tantos outros casos com consequências mortíferas, de si tão evidentes, que pelos seus exemplos criminosos já deveriam ter sido mais do que suficientes para que as organizações com função no socorro e na organização do Planeta se revoltassem e se mobilizassem com todas as forças pela busca de paz e dignidade para todos os seres humanos do mundo.

     “Mas o que se verificava no que estaria acontecer é que os factos criminosos iam sendo abafados por outros mais criminosos ainda, como se de um filme se tratasse e neste malfadado tropel de misérias mundiais o homem mais sensível ia deixando de ter lágrimas para, frente ao ecrã da televisão, chorar de dor e de sofrimento, e as suas vistas também iam ficando tão cansadas de ler e de ver tanta miséria e barbárie, que a certa altura, totalmente destroçado nos sentimentos, quem sabe se também não começaria a pensar que este seria um propósito contra o qual nada mais se poderia fazer.

     “Esta tendência para a indiferença e para a apatia da humanidade perturbavam-no emocionalmente tanto que o tornavam cada vez mais tempestuoso. De tal forma que chegara ao ponto em que, não podendo no seu dia-a-dia estar sempre a bradar pela justiça e pela verdade contra as pequenas multidões que encontrava, que nas vezes em que se sentia acossado pelas situações mais desumanas bradava em casa contra a sua família e de modo tão destemperado e agressivo, que ao afligir-se tanto começava também emocionalmente a acusar em altos berros o Estado, as instituições e algumas das pessoas mais responsáveis, chegando às lágrimas e a um cansaço tão grande que adormecia por algum tempo com grande comoção a soluçar curvado sobre a mesa onde tinham jantado antes.”

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, IV Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.41 a 45.

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

IV Capítulo (1) 16.11.2020

     “Perante o entusiasmo do resultado da sua reflexão, passara a sentir-se bastante mais compensado e fortalecido por um sentimento mais apropriado para a contemplação divina. E fora tão grande esta mudança na força do sentimento do seu ser que passara a acreditar muitíssimo que, se tivesse fé que bastasse e procurasse Deus com toda a confiança, também ele poderia vir a ser capaz de chegar ao seu conhecimento como uma realidade em concreto.

     “Tinha confiança em que, apesar de Deus residir acima da realidade em que vivemos e ser Absoluto e misterioso, não Se esconderia de ninguém nem evitaria que descobríssemos por nós próprios o caminho dos Seus sinais e procurássemos também voluntariamente todos os meios absolutos para o caminho da redenção e para o estado puro e natural em que, com a Sua ajuda, nos poderia levar à salvação. Acreditava que esta seria uma possibilidade que estaria ao alcance de todos, desde que O procurassem com um coração puro e uma vontade santa, ainda que porventura carregassem na alma alguma marca ou alguma sombra de pecado.

     “Com esta vontade e este sentimento de confiança, apoiava-se cada vez melhor na sua crença, fortalecendo-a com uma adoração cada vez mais sentida e mais constante, que sempre que, acompanhadas de uma grande vontade mística, o induziam a caminhar pelos sentidos, mas a apoiar-se fundamentalmente na razão, para que de seguida ambos o motivassem a deixar-se guiar pelo coração através da oração e da fé, e deste modo continuasse a seguir o caminho em que solenemente acreditava e que este o levaria ao encontro dos sinais divinos como formas da possibilidade de uma relação visível e concreta de Deus.

     “Mas ainda que dentro desta vontade forte e muito pessoal, sentia de vez em quando algum desânimo em relação aos erros que via acontecer no mundo social e sobretudo em relação aos níveis de pobreza em que viviam uma grande parte dos povos e às injustiças e maldades do mundo.

     “Contudo, enquanto não descobria sinais mais poderosos e credíveis para poder atestar a sua fé nos caminhos que percorria e em que acreditava que o conduziriam à Verdade, a Deus e à Justiça, não só como expressões abstratas, mas também com expressões concretas, nesta expectativa, sempre que podia e tinha oportunidade, gostava de interpelar na vontade comum os que se interessavam pela possibilidade deste alcance seguindo pelos caminhos divinos, convidando-os para uma reflexão mais cuidada que seguiam a propósito começando no diálogo por terem em conta o que cada um pensava sobre o Sagrado e sobre o que este significaria para a sociedade nos dias de hoje.

     “Desejava saber se o Sagrado ainda teria o mesmo significado para a nossa vida e o que hoje pensariam as pessoas sobre aquilo que, independentemente das incompreensões religiosas, continuaria a ser puro e inviolável, continuaria a ser o fundamento da nossa transcendência e da razão pela qual o homem através dos tempos sempre sentira a sua necessidade e fizera questão de a evocar com vista a manter a harmonia com o Universo, mas também com vista à garantia da sacralidade e eternidade da sua vida.

     “Desejava também saber o que cada um dos seus interlocutores pensava sobre a enorme perda do Sagrado que já se ia sentindo nos dias de hoje, pois em lugar do bem que o homem deveria esperar dos grandes conhecimentos técnicos e científicos, acabara por receber o mal pela sua substituição através da redução da mais-valia humana e pelo caminhar progressivo para o fim de uma sociedade que almejava tornar-se mais rica e mais humana, e que ao contrário, em lugar de caminharmos para o bem-estar e para a felicidade, começávamos a constatar que no nosso viver estávamos a ficar cada vez mais arredados da evocação e experiência destes valores e também nos estávamos a afastar de outros valores de origem racionais e reguladores determinantes da nossa existência, bastando para o efeito meditar-se no que acontece diariamente na vida do homem:

     — Mata-se, rouba-se, comete-se perjúrio como se tudo isto fosse normal; adoram-se tão facilmente os ídolos de pés de barro; representa-se sem pudor (através de meios às vezes chamados de publicitários) a pureza com a mistura e a devassidão da carne humana.

     “De facto, com que tristeza poderá questionar-se como se tornaram as sociedades tão indiferentes na organização social aos valores da humanidade? No seu dia-a-dia (já não há tempo para brincar, já não há tempo para adorar e já não há tempo para sonhar), já quase não faz sentido o Dia do Senhor nem o Dia do Operário.

     “Com este sentimento a evoluir para o dramático, ia caindo pouco a pouco num estado de dor e de inquietação, num estado que o desnorteava imenso e o fazia aumentar o frenesi na concorrência pela busca de alguns sinais constantes, para que tivesse a certeza do caminho que estava a percorrer, do caminho que seria certamente muito longo até poder encontrar o que procurava, mas que enquanto aí não chegasse, o pudessem com alento ao menos aliviá-lo um pouco na dor e no sofrimento, que aumentavam cada mais na sua consciência pela visão directa ou indireta das imagens dos pobres e dos desgraçados, que o faziam chorar e lhe povoavam a memória com imagens de um apelo lancinante, que o atormentavam quando estava só e sobretudo cansado do trabalho, ou ainda quando estava mais atormentado pelas misérias que também rondavam nas ruas ao cair da noite.

     “Este estado de sofrimento tornava-o nestas alturas mais solitário e mais afastado das multidões, formava-se em simultâneo no seu pensamento um sentimento que lhe forçava a vontade, não para lhes fugir e os evitar, mas para ao menos poder obter um pouco de tranquilidade e poder começar a pensar e a olhar para mais longe na esperança de encontrar os sinais do caminho certo a seguir ou na sua falta, encontrar um pouco mais de alento para poder continuar a suportar os tormentos em que vivia algumas vezes no seu dia-a-dia.

     “As aulas que lecionava e o contacto directo com a juventude no envolvimento comum faziam com que alguns destes momentos amargos passassem param o lado do esquecimento momentâneo; o sorriso dos jovens, a sua forma espontânea e o modo como tentavam iludir as realidades tiravam-lhe por instantes algumas das suas dores repentinas e fortes, ao mesmo tempo que o aliviavam da tensão confusa e geradora de sentimentos que o esmoreciam na sua fé sobre um futuro melhor e muito mais promissor para a humanidade.

     “Contudo, continuava como se estivesse a concorrer com alguém que por maldade contrariava e destruía este seu equilíbrio frágil, sentia que aumentavam diariamente os factos sociais trágicos cada vez mais gritantes, factos que no seu conjunto sentia que há muito tinham deixado de ser nos meios de comunicação social as primeiras janelas de abertura dos noticiários. Que há muito sentia que tinham passado para as janelas de uma abertura casual e esporádica e que estes se iam começando a aceitar com alguma naturalidade, como se fosse algo inevitável, pois às vezes até os mais cépticos ou mais distraídos falavam deles como se tratasse de algo acidental, de algo que não se repetiria no tempo.

     “Sentia esta situação com nervosismo e grande desespero, já que com o aumentar deste fluxo de tragédias ninguém podia alhear-se nem simular qualquer distracção, contudo o que verificava é que, ao contrário do que deveria ser, a maior parte destes factos malignos tinham passado a ser noticiados quase como normais e as janelas da comunicação tinham passado a ter uma abertura geral e de repetição contínua, mas já sem darem grande relevo, ainda que continuassem a manter as portas escancaradas e totalmente estilhaçadas por onde se poderia ver ainda em cada instante, a escorrer pelos parapeitos das janelas o sangue dos corpos das vítimas das tragédias sociais, como se fosse apenas um filme que mostrava a todo o momento realidades comuns em qualquer parte do mundo.”

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, IV Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.37 a 41.

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

III Capítulo (3) 13.11.2020

     “A partir daquela altura, sentira uma forte convicção de que poderia começar agora a preencher os vazios do seu ser, que tanto sentira enquanto sozinho e com um grande sofrimento ia procurando os caminhos do Sagrado. Sentira com profundo alívio esta mudança, uma vez que também poderia começar a fortalecer agora as suas fragilidades nas relações que fora criando nos laços de convivência social e de um modo mais intolerante no seio de toda a família.”(Citação do texto anterior)

     “Era percetível nos seus silêncios e cogitações de que algo não iria bem nos seus diálogos sociais e também familiares, respondia quase sempre por evasivas com um sentido estranho e nervoso sobre o que os seus e os outros pensavam acerca do sentido das coisas; rivalizava sempre nas suas críticas com grande dureza em relação ao desinteresse que alguns lhe pareciam revelar no conhecimento sobre estas preocupações, em especial, sobre a preocupação do sentido concreto da existência e da transcendência de Deus.

     “É um facto que algumas vezes justificara esta conduta lembrando aos pares o que ouvira dizer com frequência dos teóricos, de que se devia ser sempre bastante ousado na procura do conhecimento destes caminhos complexos, porém, como não sentia essa vontade na maior parte daqueles com quem privava, o que seria desejável pelo menos nos que estavam mais perto de si, então como não queria magoar diretamente ninguém, efetuava uma mudança subtil na sua atitude complacente, acabando por revelar até ao final do diálogo uma crítica áspera e intolerante. E como nos diálogos também não incluía de permeio nenhuma paciência perante os juízos fáceis ou os pensamentos efémeros, nem tolerava a trivialidade fácil, em consequência até mesmo nos encontros mais amistosos, esta falta de paciência não o ajudaria a desculpar ninguém, ainda que em verdade não fosse esta a sua vontade mais radical; no entanto, com este procedimento, tornava cada vez mais problemática e com maior ausência de proximidade a vivência do seu dia-a-dia.

     “Afinal de contas, o que procurava em tudo isto era o Ser de tudo quanto lhe parecia estar para além das palavras e dos objetos, por isso é que não seria capaz de ficar em consciência só pela expressão ideal dos pensamentos, e muito menos pela trivialidade das discussões, desejava percecionar o sentido profundo dos seres e tocar no divino de modo mais concreto, ainda que para tal dialogasse e experimentasse diversas realidades, mas que estas lhe parecessem como razão para percorrer um ideal de proximidade que, na sua condição comum, o levasse até à forma de um sinal ou um elemento que fossem uma expressão da presença concreta de Deus.

     “Mesmo assim, continuava a aspirar a uma totalidade que não se pudesse restringir apenas às coisas que via, às coisas com que lidava no dia-a-dia, pois estas seriam apenas fenómenos das realidades que em seu entender não se poderiam esgotar completamente na visão elementar de qualquer ser ou na perceção de uma qualquer imagem.

     “É um facto que dava como provado de que há coisas, que há ser, que há existir e de que há o sentido de tudo isto. O sentido, como direção ou finalidade, o sentido como razão de ser. O sentido como significação contra o que nada vale. Mas era na busca do sentido de Deus e das coisas sagradas que continuavam a surgir as maiores interrogações:

     — “Quem Somos?” “Para que Nascemos?” “Donde Vimos?”.

     “Questões para as quais entendia em consciência de que a resposta só poderia surgir com clarividência numa ação divina em concreto, pois só esta poderia completar a compreensão do ser ideal dos valores humanos, pois sempre pensara que, se estes tivessem apenas um sentido ideal que estivesse isolado no homem e na sua existência e desligado do divino e da sua transcendência, se assim fosse, como seria possível o ser humano ser capaz de se propor conhecer e ousar falar com Deus?

     “Ao pensar deste modo, começava a inclinar-se cada vez mais para a necessidade de caminhar com pensamentos que lhe servissem mais na ação do que na teoria, talvez precisasse de refletir com um pensamento filosófico teórico, mas também com ações que lhe mostrassem um sentido prático da existência, para que no conjunto pudesse prosseguir o caminho de integração plena até a uma via elevada à categoria do pensamento teológico e da ação transcendental.

     “Com esta predisposição para uma atitude objetiva em relação ao sagrado, começara pelo estudo e aprofundamento da compreensão do sentido da palavra Religião, vindo a concluir que, sendo uma palavra que, ao derivar dos étimos latinos religare e relegere, os quais se poderão traduzir pelos termos “respeitar”, “ligar”, “unir”, “zelar”, “prestar culto”, propõe-se-nos que haja nesta singularidade a necessidade de entender a vida religiosa, como fazendo parte da dimensão mais profunda da vida humana, na dimensão da união mais elevada, infinita e pura, que implicará vivências com um sentido mais rigoroso e mais exigente, pois a sua apreensão e experiência foram sempre ao longo dos tempos reveladoras de uma grande preocupação com a evocação do sagrado no significado da sua transcendência.

     “Também deverá dizer-se que esta vocação para o sagrado, ainda que um pouco inconsciente na humanidade, fora fundada na crença da possibilidade do alcance da união do homem com a divindade, e que esta crença se manifestara na vivência da sua vida e no modo como fora mantendo a sua relação com o sagrado na evocação das suas diversas formas e modos.      

     “Aliás, perante o inexplicável dos fenómenos que não compreendia e perante a realidade que diariamente acontecia, o homem comportara-se desde muito cedo em estreita relação com o divino, fazia-o pela súplica da sua proteção, mas também imitando no melhor da vida para a obtenção de maior harmonia para a sua origem e sua existência. Uma relação que sempre fizera questão de lembrar por meio de símbolos e defender através de ações, já que desde os primórdios da Humanidade o ser humano sempre apelara para a sua harmonia e sempre respeitara e adorara a divindade, mas também sempre a temera na desarmonia quando constatava o seu poder e a sua força nos seus efeitos naturais mais negativos.

    “Este facto religioso tem-se revelado com evidência por uma grande vontade de o homem comunicar também com a divindade ao longo dos tempos, especialmente nos movimentos religiosos e sociais, através de diferentes modos práticos e teóricos, em especial de comunicar pela devoção através da oração e do recolhimento, mas comunicar também através do reconhecimento e momentos de adoração pelas graças divinas obtidas através da ação e do movimento por meio dos rituais e das oferendas.

     “Reforçado nesta análise, passara a concluir com maior nitidez que, para os seres humanos com fé, a religião tornara-se também numa filosofia de vida, pois o pensamento religioso voltara­‑se prioritariamente para Deus, tendo em conta o valor moral dos atos a praticar como princípio, mas também como razão para as bem-aventuranças.

     “Entretanto, também passara a compreender sem quaisquer reservas que foram o reconhecimento da finitude humana e a fé na transcendência divina que levaram o homem à procura de uma comunhão com o Universo em plenitude e que esta procura implicara uma mudança de atitude em ascender “do aqui” para “o além”, e ascender da existência para a transcendência. E que isto implicara em consequência ascender a partir do si, como ser humano e centro da sua vida para poder ser capaz de evoluir pela experiência religiosa até ao valor do homem na sua existência também como coisa sagrada e infinita. 

     “Poder-se-á dizer que, no aprofundamento do conhecimento do termo Religião, descobrira entre outros aspetos que fora a partir do sentimento de finitude humana e da impossibilidade de se ser absoluto que o Homem se voltara para o Sagrado e para aquilo que é puro e permanece, que procurara deste modo compreender essa necessidade e assim tornara-se possível garantir a harmonia e a elevação do valor da vida ao infinito. Aliás, fora em consequência desta mudança no comportamento que o homem viera a descobrir também que o sentido do infinito lhe poderia ser revelado nos seus atos através do que é Absolutamente Perfeito e do qual participaria apenas por semelhança, mas no qual a sua existência ganharia o sentido divino, tornando-se este numa realidade da sua vida pela qual poderia ascender ao que é eterno e infinito e poderia também, através da busca da sua essência, manter uma relação existencial com o próprio Absoluto.”

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, III Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.32 a 36.

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

III Capítulo (2) 09.11.2020

     “Por tudo isto, sentia uma grande ansiedade de poder justificar os seus pensamentos para além destes domínios sagrados; sentia uma enorme apetência pela certificação do Ser Absoluto em concreto e do Ser da Transcendência infinita. Depois, não estava disposto a continuar mais a fazer à noite cartas das estrelas, registar e contar durante o dia as ondas do mar, olhar para o céu e perceber como voavam os pássaros, como se com tudo isto pudesse mergulhar no conhecimento dos principais mistérios da natureza. Estes conhecimentos não o satisfaziam de todo, nem estas atividades reuniam as condições para lhe poderem quebrar a sua inquietude e lhe diminuírem o sentido pelo desejo do conhecimento místico de Deus.” (Citação do texto anterior)

     “Nesta inquietação deparava-se com a questão de os percursos realizados conterem não só o sagrado, mas involuntariamente conterem também algumas sombras, no entanto acreditava com convicção de que mesmo assim esta seria uma possibilidade que não só seria alcançável como sendo uma realidade teórica, mas que pela percepção contínua que ia tendo nas suas caminhadas da proximidade divina, também esta poderia ser alcançável por uma experiência direta e deste modo tornar-se possível conhecê-la como uma realidade concreta.

     “A crença nesta possibilidade tornara-se de tal modo determinada que acendera-lhe dentro da consciência a motivação para continuar a pensar que um tal desejo não poderia também estar apenas justificado nas condições necessárias ou absolutas em cada ser humano, não seria possível que tal realidade estivesse apenas justificada na emergência da vida com as coisas sagradas, já que nas suas caminhadas nessa direção fora compelido numa grande parte das vezes por realidades muito diferentes e mesmo assim lá fora encontrando nos seus percursos novas saídas, porventura mais custosas do que as anteriores, mas conseguindo sempre percorrer os seus caminhos até ao termo do limite de cada trajeto, sendo que na maior parte das vezes se apoiara em aspetos puros e sagrados mas também algumas vezes se apoiara em aspetos de natureza mais comum.

     “Poderá dizer-se que, apesar de estar a caminhar no meio de grande sofrimento, tornara-se possível começar a realizar este caminho na procura Daquele que É, tendo em conta certas condições sagradas, mas também tendo em conta algumas condições gerais e comuns, logo, aceitando sem resistir que não lhe seria possível realizar nenhum trajeto de similitude em que não estivessem também presentes realidades que não seriam sagradas, já que a sua caminhada era espontânea e sem nenhuma orientação para proceder com vista apenas às condições sagradas e puras. É verdade que deverá dizer-se a propósito que tal caminhada também só fora possível concretizar porque reunira também as condições mentais necessárias. E se é verdade que pudera tomar como base as condições possíveis ao seu alcance, poder-se-á também concluir que pela grande expectativa que sentira e evidenciara no desejo de conseguir algo de relação concreta com Deus, esta realidade se tornara imaginável no seu alcance porque nas experiências realizadas nos vários trajetos também lhe foram mostrados alguns sinais em si tão misteriosos que, ao proporcionarem certas mudanças em si próprio, se tornaram de tal forma surpreendentes que, quando procurada a sua explicação, lhe pareceram sempre transcender o real da sua existência, e por isso o levaram a concluir com alegria de que certamente já não estaria longe de um encontro e união com Deus, já que, sendo Este o Ser da origem do sagrado, também atuaria em toda a mudança no próprio ser humano.

     “Aliás, reforçando a ideia sobre o que sentira, lembrava-se a propósito de que uma vez e sem saberem porquê, depois de entrarem na residência e subirem, como era habitual, as escadas do interior que dava acesso ao primeiro andar e ultimamente mais enlevados num sentimento de compensação amoroso e de maior intimidade conjugal, pois há uns tempos que ele notava bem vincada no rosto da mulher a perturbação em que o sentia no seu estado mental e psicológico que ele tinha consciência de que seria bem diferente da maneira como ela o sentira quando se conheceram e casaram, e durante muitos anos antes daquele agitado período em que agora viviam.

     “Apesar disso, ela seguia-o na maior parte das vezes sem fazer quaisquer perguntas nem mostrar qualquer desânimo, aliás fazia questão de continuamente continuar a manter o que sempre fora normal naquelas ocasiões da subida, demonstrar tranquilidade junto dele e concorrer com a sua ternura para que, em cada lanço das escadas que iam subindo, pudessem experimentar no instante percorrido a beleza entre a harmonia de contemplar com serenidade os objetos de arte que se encontravam suspensos nas paredes do corredor, e a satisfação de chegarem ao cimo do último degrau das escadas, onde se abraçavam durante algum tempo antes de entrarem para a sala de estar.

     “Contudo, daquela vez não só manteve o ritual da subida como repentinamente, no cimo das escadas, ele a abraçara com muito mais força do que o habitual e num estremecer de graças soltara um forte murmúrio:

     — Ah, minha querida esposa, hoje sempre me encontrei como um todo! Senti agora mesmo que me encontrei como uma totalidade com todas as suas partes. Senti que dentro mim acontecera uma realidade um pouco estranha, mas ao mesmo tempo tão maravilhosa que fez aumentar imenso a minha vontade de te abraçar.

     “De seguida, com uma expressão mais cuidada, começara a tentar explicar o sucedido comparando-o a uma realidade que surgira num ímpeto para a união das suas partes, uma realidade que lhe parecera semelhante a um movimento reflexo, que no seu movimento libertara um estalido vindo do interior do seu corpo e que bruscamente ecoara numa espécie de som fugaz, mas que produzira em si algo tão conexo e deslumbrante que a partir daquele momento acreditara que se poderiam calar de vez as suas súplicas sobre o seu estado psicológico e sobre o sentimento confuso que ocorria, ao que parece devido à separação em que se encontravam as partes do seu ser e que, após tanto tempo de dispersão, as começara a sentir agora como uma totalidade completa e reunida. Uma totalidade com a qual poderia também agora aspirar melhor ao Sagrado em concreto e a Deus como a mais bela totalidade das essências.

     “De facto, dizia ele:

     — Eu bem tinha razão para me sentir enfraquecido e confuso nos sentimentos e na consciência. Eu sentia há muito tempo que havia uma dispersão qualquer nos planos da totalidade do meu ser; pois tive agora mesmo a prova de que as suas partes estavam realmente desconexas e tive também a certeza de que, só quando as várias dimensões do nosso ser se encontram unidas e interligadas com conexão no nosso desenvolvimento, é que cada um de nós se tornará numa unidade forte e coesa.

     “Entretanto, já um pouco mais sossegado com a excitação desta surpresa, compartilhara com a esposa alguns gestos de amor na exultação daquele momento inesquecível. Depois, num sentimento bastante comovido, erguera as mãos para o céu a tanger o corpo da sua mulher com a ternura de um beijo, ao mesmo tempo que exclamava com satisfação a exultar de alegria pela bênção recebida:

     — Ah, agora sim!... Agora sinto-me um homem! Sinto-me unido na essência, na existência e na transcendência; sinto-me completamente ligado nas dimensões que sempre acreditei independentemente de a cor, de o género e de a inteligência existirem e serem os principais planos que constituem a unidade dos seres humanos.

     “Num estado mais tranquilo, apesar do sofrimento e da ansiedade vividos, poder-se-á dizer que nascera a partir daquele momento com este reconhecimento e com esta certeza a prova fundamental da confiança que sempre depositara em si próprio em ser capaz de redescobrir-se como sendo uma unidade coesa e indivisível, mas que, tendo em conta a dispersão dos planos do seu ser, de vez em quando o fariam perder a força e a coragem para poder continuar com vigor a sua caminhada.

     “Fora este momento singular que, de dentro de si próprio, fizera brotar uma alegria tão contagiante e tão lúcida que esta poderia ser tolerável nos seus excessos com a razão de nunca ter deixado de acreditar ser possível que no futuro viesse a sentir-se como uma unidade coesa e forte, por nunca ter deixado de acreditar que, se assim continuasse, seria capaz de vir a encontrar-se como um todo com o qual não mais vacilaria perante as circunstâncias, porventura as mais difíceis, que sempre implicarão a busca do Ser de Deus e da Transcendência divina.

     “A partir daquela altura, sentira uma forte convicção de que poderia começar agora a preencher os vazios do seu ser, que tanto sentira enquanto sozinho e com um grande sofrimento ia procurando os caminhos do Sagrado. Sentira com profundo alívio esta mudança, uma vez que também poderia começar a fortalecer agora as suas fragilidades nas relações que fora criando nos laços de convivência social e de um modo mais intolerante no seio de toda a família.”

     Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, III Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.28 a 32.

 

UMA QUESTÃO DE CONSCIÊNCIA/A Question of Conscience

03.11.2020

Macedo Teixeira


   Ainda mal nos tínhamos acomodado na esplanada do café e já a sua amargura começara a revelar-se.

 

   – Sabe, estas ideias do Iluminismo, sempre mal entendidas nos seus limites, continuam hoje a espumar-se nas “modas” da ocasião.

 

   Subitamente, para poder apanhar o fio da meada, interroguei com cuidado: – Não estou a perceber!?...

 

   Sem me dar tempo para pensar, continuou:

 

   – Cada vez fico mais perplexo com a facilidade com que se apregoa a solidariedade. A palavra está a ficar tão gasta que mal se ouve em relação às coisas certas.

 

   – Coisas certas?! Que coisas certas? – perguntei mais tranquilo

.

   – Sim!... Sim!... Coisas certas! – ripostou de rajada. – Realidades, em que o ato seja certeiro e puro na ajuda ou no socorro.

 

   – Quer dar um exemplo?! – questionei-o, para saber melhor da sua amargura.

 

   – Sabe, eu vou dar-lhe um exemplo, mas com algum receio, parece que as pessoas hoje são breves nos lamentos, mas rapidamente se acomodam; julgo que prestam mais atenção à parte do que ao todo.

 

    Senão vejamos! Não é verdade que somos um povo solidário e estamos sempre prontos para a solidariedade?

 

   – É verdade! – respondi, sem hesitar.

 

   – Mas, não é verdade também que hoje a solidariedade é praticada com espalhafato e badalada de mais? – interrogou, explicando o que pensava.

 

   – No socorro, a solidariedade anda misturada com o “espetáculo”; na família, com os interesses; na competência profissional, com a posição de cada um; na ajuda e partilha de sentimentos, com os grupos e a influência da divisão que têm provocado.

 

   E ainda a agravar mais este drama, quando devia poder continuar a juntar-se o esforço que a sociedade estava a fazer pela solidariedade de todos na convergência do estreitar da separação entre ricos e pobres, até este sentido se tornou contraditório. Uns ganham, gastam e esbanjam como se não houvesse limite; o povo fica em silêncio, chegando a aceitar como tabu os capitalistas dos milhões. Outros quase não ganham para comer, os operários dos “tostões”; o povo lamenta, mas acomoda-se perante a existência de piores situações; os mendigos aos montões.

 

   Entretanto, já dilacerados com a explicação, ficamos em silêncio, não dissemos palavra, até poder desabafar, amenizando: – Tem toda a razão, meu amigo! Felicito-o por este diálogo fraterno; mas, apesar de tudo isto, a Solidariedade continuará a ser uma questão de consciência.

 

A Question of Conscience

03.11.2020

   We barely had made ourselves comfortable on the café esplanade, and his bitterness had already begun to reveal.

   – You know, these ideas of the Enlightenment, always wrongly understood in their limits, continue today to scum in “fashions” of the occasion.

   Suddenly, to be able to pick up the thread, I asked carefully: – I do not understand!?...

   Without giving me time to think, he continued:

   – I am more and more baffled by the ease with which solidarity is proclaimed. The word is getting so worn that it is barely heard regarding certain things.

   – Certain things?! What certain things? – I asked calmer.

   – Yes!... Yes!... Certain things! – he riposted. – Realities, in which the act is adequate and pure in help and aid.

   – Would you like to give an example?! – I questioned him, to know better of his bitterness.

   – You know, I will give you an example, but with some fear, it looks like people today are brief in laments, but they quickly conform themselves; I think they pay attention more to the part than to the whole.

   Otherwise, let’s see! Isn’t it true that we are a solidary people and are always ready to solidarity?

   – It is true! – I replied, without hesitating.

   – But, isn’t it also true that today solidarity is practiced with too much fuss and toll? – he questioned, explaining what he was thinking.

   – In relief, solidarity walks mixed with the “spectacle”; in family, with interests; in professional competence, with the position of each one; in help and in the share of feelings, with the groups and the influence of the division that they have provoked.

   And aggravating even more this drama, when one should be able to continue to join the effort that society was making for solidarity of all in convergence of the narrowing of separation between rich and poor, even this sense became contradictory. Some earn, spend and trifle away the money as if there was no limit; the people remain in silence, coming to accept as taboo the capitalists of the millions. Others hardly earn to eat, the workers of "pennies"; the people lament, but they conform themselves in the presence of the existence of worse situations; the beggars on heaps.

   Meanwhile, already torn apart with the explanation, we remained in silence, we said no word, until could unburden, softening: – You are absolutely right, my friend! I congratulate you for this fraternal dialogue; but, despite all this, Solidarity will continue to be a question of conscience.

Macedo Teixeira (António)

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

III Capítulo (1) 27.10.2020

   “Quando ia à igreja, nunca soubera rezar sem seguir o pequeno catecismo que o acompanhava e, na sua falta, quando estava a orar, enganava-se quase sempre, mesmo que fosse nas orações mais simples e se preocupasse em estar atento ao sacerdote ou a seguir os outros. Às vezes, sem que nada o fizesse prever, ficava ainda mais perdido quando no acompanhamento do Evangelho inesperadamente era interpelado pelas surpresas mais tristes em que os seus olhos o enredavam. Ficava distante de tudo e perdido entre a comunidade que orava à sua volta, até quebrar-se o silêncio da sua alma e começar a sentir nas pessoas que rezavam que estas não só expressavam no rosto a grande dor que carregavam, como também contemplavam na transcendência o sentido do amor e da misericórdia.

   “Não era uma dor só da pobreza, nem só da falta de pão e de trabalho, era mais uma dor de piedade e de profunda comiseração pela realidade abusiva em que vivem os poderosos, que, entre o propalar das imagens do seu falso poder, fazem da miséria humana um juízo de condenação, vendo-os como se estes fossem os outros ou como se estas realidades se tratassem na origem só de erros sociais, dos quais facilmente vão teimando em culpar os outros pela anormalidade destas situações e acabem com esta ladainha por se esquivarem na defesa pessoal de que não têm nenhuma culpa de haver tanta miséria e tanta pobreza no Mundo, chegando a parecer-lhes normal tanto a pobreza nos pobres como a riqueza nos ricos; justificando-se com a facilidade da opinião de um mal sentencioso de que por um castigo sempre haverá ricos e pobres.

   “Revoltara-se muitas vezes no seu juízo, chegando ao ponto de ficar enfurecido publicamente com os outros, mas também consigo próprio, por pensar que poderiam fazer mais para o bem de todos. Sentia que poderia fazer mais e melhor, e nessa grande incompletude sentia que lhe faltavam o conhecimento mais profundo e a aceitação social e religiosa para poder realizar melhor os seus desígnios nos caminhos de Deus.

   “Refletindo no colmatar dessa falha, deixara de dar tréguas à indiferença e começara a erguer­‑se de novo a procurar por ambas as partes, fazendo com estas novas forças renascer no seu interior uma grande coragem e motivação na defesa da ordem, da virtude e da verdade; gritando a partir dali sempre que necessário pela justiça e pela verdade, quer a falta ocorresse nos bancos, nos hospitais ou nas escolas, ou ainda em casos mais extremos, pedindo com exaltação aos presentes o seguimento e a ajuda para a necessidade de todos procederem na defesa do respeito pelos valores.

   “Neste sentimento exaltado pelo sentido justo e verdadeiro da vida, lá se ia motivando para o caminho e motivando os que o ouviam ao mesmo tempo que, de uma forma insuspeitável, lá ia começando a acreditar mais que com esta atitude haveria de conseguir aumentar o número de seguidores. De facto, lá iam surgindo apoios dos mais corajosos, mas apesar da grande insistência ao longo do tempo, foram sempre muito poucos e cada vez mais insuficientes na constância e permanência na defesa destes valores, daí que entre o crescer da fragilidade e do progressivo abandono de alguns, também o fogo da Verdade se fora apagando na torrente das lágrimas que lhe iam servindo para curarem as feridas da alma e aliviarem-lhe o sofrimento.

   “Em silêncio, perante o seu grande desânimo, cismava na maior parte das vezes que só quem estivesse na vida da santidade poderia conhecer e falar com Deus, acreditava que só neste estado de pureza O poderíamos sentir e falar-Lhe, não só pela oração e pela súplica, como aprendera em criança na doutrina, mas também por outras formas e modos diferentes. No entanto, recordava-se sobretudo durante os momentos de maior solidão o que em pequenino ouvira dizer sobre os grandes profetas que falaram com Deus, como Abraão, Jacob, Moisés e outros, e depois triste e com saudade vinha-lhe à mente o que ouvira dizer aos seus pais, quando ainda era criança: “Deus está em toda a parte”, ” Deus está no meio de nós”, “Deus é Infinito”

   “Com esta recordação a assaltar-lhe o pensamento, crescia-lhe na consciência uma força superior para aceitar a sua condição de pecador, ainda que estivesse a percorrer o caminho para um estado mais puro, mas assaltava-lhe também com insistência um sentimento tão robusto e com tanta consistência, que apesar do predomínio de alguma amargura e de alguma escassez de pureza da consciência pela desventura dos pecados cometidos, evocava com a força das profundezas da memória os desejos de conseguir sentir a realidade em concreto no que lhe haviam ensinado sobre Deus e durante o tempo em que andara na catequese: Deus está em toda a parte. Deus está no meio de nós. E rezar é falar com Ele!

   “Ao pensar com maior confiança na realidade em questão, começara a interrogar-se sobre a situação do estado de santidade e pureza em que se encontrariam os profetas e todos os homens bons que Deus escolhera e interpelara ao longo da História para O auxiliarem na vigilância da Criação da Obra, certamente que fora para os desígnios mais exigentes e difíceis, já que para os conseguirem realizar passaram por muitas dores e por muito sofrimento.

   “É evidente que Jesus Cristo será uma exceção nos mistérios de Deus, Ele é o Seu Filho Unigénito, enviado ao Mundo como O Verbo Encarnado; por isso, sempre que Ele orava ao Pai, o Pai ouvia-O e manifestava-Se no Filho.

   “Mas na nossa condição humana, na condição de filhos adotivos de Deus, em que situação de proximidade divina estariam os grandes profetas e todos os homens a quem fora proporcionado o poder e a capacidade de O ouvir e falar-Lhe?

   “Aliás, basta pensar, associando para o efeito como prova do pensamento, a verdade do que é narrado no Velho Testamento sobre o profeta Moisés, que pôde ouvi-Lo e falar-Lhe aquando da libertação do povo de Israel, que vivia na escravatura e na constante condenação pelo rei do Egito.

   “E se pelo descrito bíblico através desta grande glória humana poderia pensar-se na certeza de que Deus não seria somente um ser invisível, pois podia transformar-Se em algo visível ou mesmo manifestar-Se à pessoa humana, como no caso da sarça-ardente, quando falou pela primeira vez a Moisés, ou no caso de Abraão, quando pela Sua Voz o pôs à prova sobre a sua fidelidade para com Ele.

   “Com estas razões, adquiria pressupostos concretos de que podia empolgar-se imenso e pensar no alcance desta possibilidade, sobretudo quando perante uma maior convicção para esta certeza retirava dos Evangelhos e do que Jesus Cristo transmitira na expressão que dizia: “Não sou Eu que fala em Mim, mas é em Mim que fala Aquele que Me enviou a vós”.

   “Por tudo isto, começara a acreditar com fé de que esta poderia ser uma possibilidade para todos os homens de boa vontade, e nos quais desejava também incluir-se, ainda que um tal sinal ou expressão divinas pudessem surgir em concreto em algo exterior a si próprios. Acreditava nesta possibilidade independentemente da sua condição de pecador, acreditava que para tal ser possível não seria absolutamente necessário estarmos ou vivermos somente num estado puro e de santidade, embora fosse melhor que assim vivêssemos ou que para lá estivéssemos a caminhar. Acreditava nessa possibilidade com fé e com muita confiança, pelo menos enquanto não caía de novo em si e na descrença de tal ser possível, enquanto não voltava a cair na descrença de alcançar a realidade que tanto desejava ver, mas que por o seu sentimento esmorecer e pelo abrandamento da vontade o levavam de novo a julgar que tal possibilidade divina jamais lhe seria possível concretizar fora da pureza e da santidade.

   “E pensava que tal não lhe seria possível, certamente mais pelo facto de sentir-se num estado de inquietude e confusão da alma nos momentos em que se tornava mais forte o sentimento de pecado e de imperfeição, do que por estar num grande estado de desespero emocional a sentir-se como que interpelado pelas sombras em que as paixões sempre a foguear vão despertando a ilusão nos nossos sentidos, fazendo-nos entrar em delírio não pelo que é verdadeiro e puro, mas pelo que parece verdadeiro e que é apenas aparência.

   “Tornar-se mais perfeito e ser menos acossado pelo pecado seriam, de facto, dois dos maiores desejos contidos no seu sonho, mas a sua vontade não tinha ainda inclinação certa e no seu desacerto momentâneo deambulava na escuridão gritando por socorro para encontrar os sinais, o caminho e o poder que o levassem aonde pudesse sentir a força necessária para o caminho dessa possibilidade sagrada.

   “Apesar disso, havia desenhado dentro de si próprio um projeto de cumplicidade para com os mistérios mais puros e íntimos da transcendência, vivia em cada momento com uma força que se ia tornando cada vez maior e que o compelia num compromisso, que sempre que associado à robustez da consciência, o tornava mais determinado na sua vontade para seguir na procura dessa realidade nas coisas concretas, mas também nas coisas abstratas e ideais. Tinha conhecimentos sobre o valor e o significado da ontologia e da gnosiologia, mas isso não o satisfazia plenamente, pois continuava a ficar suspenso no juízo do valor do ser das ideias e da aplicação teórica dos conceitos. Em consequência, continuaria a sentir também que não seria suficiente para o seu sossego permanecer somente nas grandes limitações das capacidades prática e teórica de apenas poder manipular e relacionar as realidades concretas da existência.

   “Por tudo isto, sentia uma grande ansiedade de poder justificar os seus pensamentos para além destes domínios sagrados; sentia uma enorme apetência pela certificação do Ser Absoluto em concreto e do Ser da Transcendência infinita. Depois, não estava disposto a continuar mais a fazer à noite cartas das estrelas, registar e contar durante o dia as ondas do mar, olhar para o céu e perceber como voavam os pássaros, como se com tudo isto pudesse mergulhar no conhecimento dos principais mistérios da natureza. Estes conhecimentos não o satisfaziam de todo, nem estas atividades reuniam as condições para lhe poderem quebrar a sua inquietude e lhe diminuírem o sentido pelo desejo do conhecimento místico de Deus.”

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, III Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.23 a 28.

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

II Capítulo (Texto 2)

20.10.2020

   “Ficava tão envolvido quando meditava nestes aspetos, que os seus pensamentos o levavam com a mesma facilidade até ao cimo de um monte ou até às proximidades do mar. Até ao cimo do monte, onde com tranquilidade e atenção poderia ouvir a voz da natureza a sussurrar-lhe alguns segredos, sobretudo quando numa inclinação mais atenta e cuidada em que descia até ao fascínio profundo dos elementos naturais. Até às proximidades do mar, quando no caminho se dirigia até ao molhe despertado pelo encanto dos sons das ondas, que nas diferentes marés entoavam um suave murmúrio enchendo a sua alma de um sentimento tão belo e fascinante como o desejo pelo infinito.”(Citação do texto anterior)

   “Às vezes durante a noite deambulava por estes locais, parecia-lhe sondar melhor nos movimentos das águas ou nos lugares mais recônditos os mistérios mais profundos da transcendência. Ficava fascinado pelos segredos que a Natureza guardava, sempre na expectativa do propósito, que como homem preocupado se dispusesse a pensar na forma de os descobrir. Chegava a ficar completamente só, meditando entre a noite e o vazio quando esta avançava a galope e as pessoas tinham de regressar às suas casas para poderem descansar num sono reparador das forças que precisavam para poderem trabalhar no dia seguinte.

   “Eram pessoas com outros horários e rotinas, mas, mesmo assim, resistiam sempre com algum embaraço ao convite da noite para ficarem por ali mais algum tempo a contemplarem no espaço o céu coberto de estrelas. Chegava a ficar muito tempo junto ao mar, era capaz de meditar sem cessar pela madrugada adentro, sendo que na maior parte das vezes, de tão absorto, nem dava pelo tardar da hora; as pessoas chegavam e partiam, deixando-lhe somente nos intervalos do movimento a alegria e os silêncios dos gestos e das palavras de que não lhes fixava o sentido para poder continuar a olhar intensamente na direção do céu, até poder captar na Lua e nos astros os momentos em que a arte é mais sublime e nos transporta até ao mundo imaginário do Universo.

   “A curiosidade pelo conhecimento e pela descoberta dos fenómenos tornara-se pouco a pouco num sentimento quase doentio; tinha ultrapassado todos os limites da harmonia entre a saúde corporal e a saúde mental; não descansava o suficiente, trabalhava imenso e, nas poucas horas em que dormia, tornava-se num ser intermitente a rever uma ou outra nota dos registos que ia passando diariamente para o papel. E ainda que voltasse sempre para casa com ansiedade de dormir, deixava que na vertigem das descobertas surgissem em catadupa dos pensamentos uma série de interrogações:

   — Quantas serão as ondas do mar?!...

   — Quantas serão as estrelas?!..

   — Qual será a relação da vida com tudo isto?!...

   — Donde vimos?!..

   — Para onde vamos?!..

   — Que devemos fazer?!..

   — O que nos é permitido esperar?!..

   — Como poderemos conhecer e falar com Deus?!...

   “O seu pensamento tinha mergulhado numa ansiedade tenebrosa; tudo lhe parecia demasiado complexo, e a sua compreensão acabava por ficar sempre numa porta de saída que dava para um monte mais alto do que o anterior, para um monte repleto de problemas e numerosas questões que logo o convidavam a continuar a caminhar até uma nova saída, a caminhar para um outro monte ainda mais alto e com mais questões e mais problemas.

   “A inquietude da sua alma interpelava-o e não o deixava voltar de novo à morada do ser, cada vez mais irrequieto, sentia-se tão constrangido como aqueles que ansiavam por respostas concretas, sentia com ansiedade que era preciso continuar a procurar o desconhecido, era preciso encontrar mais provas concretas para sossegar a sua mente e a mente de todos, sobretudo a mente inquieta dos jovens que diariamente ensinava. Dizia com desembaraço que não bastava pensar na abstração da realidade, era preciso procurá-la nos seus limites e ser incansável na busca de todas as certezas possíveis.

    “Para isso, trabalhava incansavelmente para conjugar as hipóteses que a custo ia formulando, ainda que reconhecesse que as mesmas não passariam de um modo puro e ideal, contudo acreditava que com este esforço de procura constante de Deus lhe bastaria somente um pequeno sinal do Criador para poder fortalecer as suas meditações, transformá-las em hipóteses e assim também poder indicá-lo como fundamento-base das suas respostas aos problemas da questão, sobretudo àqueles problemas que maiores preocupações continuavam a suscitar em toda a Humanidade e de modo particular nos jovens que ensinava e que confiavam no seu saber e o seguiam com grande expectativa.

   — Como conhecer e falar com Deus!? — perguntava para consigo próprio, disposto a prosseguir.

   “Era preciso continuar a procurar os fundamentos para saber como fazer, mesmo que sentisse no seu pensamento que esta questão seria tão transcendente e tão imaterial que mal poderia ousar colocá-la como possível.

   “Ainda assim, continuara a manter a vontade de procurar o caminho para a obtenção de uma prova que, sendo tão desejada no seu íntimo, quiçá seria tão ou mais desejada na sua vontade de persistir para além do que sentia, quando seguia o seu caminho com base no conhecimento que temos sobre o limite teórico do conceito do Ser Deus, fosse com base na prova ideal e racional dos filósofos, fosse com base na vontade de manter a fé na prova da Revelação dos profetas. Desejava tanto persistir na procura de conhecer e falar com Deus, que às vezes por vontade própria ou a pedido de alguém, ficava horas a explicar o que diziam os filósofos sobre o assunto, sobretudo os de pensamento mais teológico e fundado na Fé, ou os de pensamento racional e fundados na Razão.

   “Porém, esta prerrogativa continuava a ser muito pouco para lhe poder sossegar a alma, ainda que quando apoiado lhe pudesse sossegar o espírito por poder recorrer à ajuda dos melhores argumentos ou manter a maior dedicação na crença do testemunho dos grandes profetas; mesmo assim, sentia que com isto não conseguiria ir para além da fé na crença da doutrina da Revelação ou na crença das explicações da teoria conceitual, sentia que por aqui jamais conseguiria sair daquilo que tinha aprendido na história da Filosofia, no pensamento dos grandes sábios da filosofia ou da teologia.

  “Talvez por isso, com o passar do tempo, a sua fragilidade e sentimento de impotência na caminhada para procurar Deus como algo em concreto começaram a aumentar cada vez mais, entretanto também ganhara consciência de que a sua formação na religião e no conhecimento do Criador enquanto criança e adolescente tinham sido muito efémeras, e os conhecimentos adquiridos até então não o ajudariam na explicitação destas verdades, a sua aprendizagem não tinha sido orientada como fora na maior parte dos jovens e adultos com quem frequentemente dialogara; descobrira que a força da sua crença o movia com grande fé e sentido na religião, mas era mais apoiada pela crença nos homens bons que fora conhecendo ao longo da sua caminhada do que pelos conhecimentos religiosos que até então adquirira.

   “Os exemplos dos homens bons que conhecera, as suas palavras e os seus gestos, davam-lhe imensa força quando no combate social lutava contra a pobreza e os erros das injustiças sociais, os seus fundamentos acusatórios eram quase sempre apoiados nos bons exemplos para perceber os quadros que via de miséria humana, mas também lhe davam força para que, num olhar clínico acusador, com que observava a repartição injusta da riqueza, também pudesse filtrar a administração do sagrado no tanger da honra da vida na verdade e na justiça.

   “Porém, o esforço para continuar a procurar a justiça e a verdade era tão desgastante e tão solitário que, assim que se ia movendo para diante, percorrendo nesse sentido dois passos, também ia esmorecendo percorrendo três em sentido contrário, e deste modo se esquivava à defesa dos pensamentos autênticos deixando que as injustiças fossem mais fortes e capazes de recuá-lo do que a sua força de vontade para continuar a avançar para diante, e com tal efeito sentira na sua vida este maligno que chegara a acreditar até ao arrependimento pelo perdão de que Deus, como “Aquele que É bom”, estaria sempre ausente e distante do Mundo, mesmo nas ocasiões de grande sofrimento da humanidade, e pela mesma razão seria estranho às angústias dos seres humanos.”

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, II Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.17 a 21.

 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

II Capítulo (Texto 1)

12.10.2020

   “A rua dos Ferreiros tinha os passeios largos, mas em certas horas do dia, havia por lá tanto movimento que só as pessoas menos apressadas ou mais pacientes, quando iam para lá ou passavam em direção a outros destinos, é que lá iam trocando olhares ou mesmo parando para uma saudação recíproca. Havia entretanto algumas pessoas que se deliciavam somente a observar as montras, outras observavam e chegavam a fixar-se nas vitrinas durante mais tempo e com um olhar mais comprometido lá entravam numa loja, porventura só para verem melhor as coisas ou então para verem e comprarem diversas roupas, adornos e outros objetos de que gostariam e lhes seriam necessários.

   “Este hábito de observação social também lhe era comum, mas a situação de solidão em que se encontrava levava-o a ter mais vontade de parar na portada dum cinema, onde poderia ver afixados na montra os cartazes dos filmes em exibição e escolher qual o que gostaria de ver no fim de semana, uma vez que seria o período em que estaria mais livre para poder distrair-se e, neste caso, distrair-se com a cultura e a arte cinematográfica que mais facilmente o atraíam.

   “Fora por razões de opção profissional que tivera de deslocar-se para muito longe da residência familiar. Sabia que em consequência da sua decisão estaria contido ter de começar a viver sem a família e mais isolado de tudo.

   “No entanto, ainda que tivesse assumido voluntariamente esta decisão e tivesse tido a concordância para poder deslocar-se para tão longe, não lhe era fácil manter-se nesta nova situação sem incorrer na abertura a momentos de desespero e de solidão.

   “Assumira desde muito novo o conceito de fidelidade e do respeito mútuos, e na honra e sentimento crescente destes pensamentos, a família estivera sempre em primeiro lugar e no centro do seu coração. Em certas ocasiões também parava numa rua qualquer para poder contemplar numa montra um estojo com uma boa caneta, um relógio bonito ou uma camisa moderna; sentia que com este envolvimento social, mesmo que um pouco aparente, não perderia o sentido do valor do novo e da aparência da beleza com a qual sempre se poderia manter jovem e atualizado.

   “A sua forma de andar e a posição firme das mãos com que segurava a pasta a evidenciar o excessivo volume fizeram durante algum tempo aos olhos de quem reparava neste quadro social que o achassem em comparação com outros professores, um pouco mais estranho e bastante bizarro.

“Porém, com a continuidade da visão desta imagem, que se ia tornando cada vez mais conhecida e admirada, o tempo encarregara-se de a tornar numa imagem de memória e de respeito, já que na rua dos Ferreiros viria a ser apreciada no conjunto.

   “Tornara-se tão popular e envolvente com estes modos de conduta, que entre os gestos de carinho e saudação das pessoas que por ele passavam, moviam-se também nos seus olhares a solidariedade e a admiração. Aliás, nos encontros que casualmente mantinha durante os percursos que fazia, verificava-se sempre a disponibilidade recíproca, sobretudo no conjunto das pessoas que melhor conhecia e encontrava, fossem elas alunos ou não; um jovem, uma jovem ou ambos, todos eles manifestavam uma enorme vontade de o saudarem e de o interpelarem amistosamente, sobretudo numa troca de palavras que poderiam ser de senso comum num assunto mais familiar ou então durante o instante em que durava o cumprimento poderiam surgir a propósito uma questão de ordem científica ou uma questão de ordem filosófica, que poderia ser sobre um tema contemporâneo ou sobre uma figura dos grandes vultos do pensamento de outras épocas que na ordem do conhecimento o tempo e a verdade valorizaram na História.

   “A contrastar com esta formalidade e sem perderem o sentido de elevação, durante os dias de aulas ou nos fins de semana, sobretudo nas tardes mais quentes de verão, certamente com o propósito de mostrar a exuberância na beleza da juventude, fazia-se notar algumas vezes em toda a expressão de alegria o sorriso lindo e maroto de uma jovem que, ao cruzar-se com as pessoas no caminho, despertava com simplicidade e complacência a pureza do corpo com que encantava os olhares na sua aproximação.

   “Contudo, mesmo que tendendo a evidenciar a singeleza na sua afetividade com o professor, qualquer jovem, ainda que por mais travessa que fosse, procedia sempre com discrição, fosse na revelação do sentimento de que era portadora, fosse na expressão revelada no sorriso envolvente da sua beleza. Porém, apesar de todo o respeito que lhe tinham, não deixariam de fazer escapar voluntariamente na sua ingenuidade a força do seu encanto, que, apesar de este estar ainda a florescer nos seus rostos, uma ou outra rapariga daria sempre a impressão, a quem olhasse mais atento, de que pela arte feminina ela faria questão de, além de destacar a formusura dos lábios, também fazer com que estes se movessem tão lenta e suavemente que pudessem de um modo sorrateiro mordiscar depois com cumplicidade um fresco e saboroso gelado.

   “De qualquer modo, se qualquer uma jovem possui já em si uma certa beleza natural, deste modo mais espontâneo, mesmo que mantivesse toda a discrição, tornava-se mais afetiva, mais próxima e mais cativante e, quando já perante o cumprimento social ao quase paternal do professor, fazendo-o com este modo de ternura e com a força da sua juventude, mesmo que num reconhecimento do respeito quase filial, despertaria sempre na sua comunicação alguns raios de beleza que, na atração natural, ao espalhar-se com ardor pelo rosto, formavam um ambiente de felicidade tão singular e único que naquele instante o faziam recordar algumas semelhanças nas recordações possíveis de um sentimento virginal.

   “Depois destes momentos de aproximação, que suscitariam sempre alguma ilusão momentânea, pelo menos até atingir-se na relação o estado consciente das posições estatutárias, entrava-se na tranquilidade da alma, até que num ambiente real e de afeto começaria a emergir em ambos e principalmente na jovem aluna a qualidade da palavra que o enchia de motivação e lhe aumentava o conforto:

   — Quer um bocadinho, professor, olhe que é muito bom?!... Vá lá, prove um bocadinho… só um bocadinho, que ainda me sobra muito! – insistia com delicadeza a adolescente.

   — Obrigado, não me apetece, minha jovem! – agradecia o professor a sorrir.

   “Depois para se justificar melhor, acrescentava palavras de conforto e elevação:

   — Bem, eu não gosto muito de gelado, mas ao vê-la a deliciar-se assim, confesso que me fez um certo encanto. O gelado é um doce que não aprecio, raramente como, mas ao vê-la a saborear assim com tanta satisfação até me fez crescer água na boca.

   “Era tão regular a passagem por este e outros caminhos que, no prolongar dos dias em que não marcasse estes lugares com a sua presença, alguém haveria de notar a sua falta e lembrar-se dele com afeto.

   “Acrescente-se a esta regularidade o seu gosto pelo valor da reflexão, pois sempre que fosse oportuno dialogar com alguém, o fazia com o mesmo afinco, quer fosse sobre as questões do conhecimento de cultura geral, quer fosse sobre as questões das teorias filosóficas e científicas.

   “Ficava tão envolvido quando meditava nestes aspetos, que os seus pensamentos o levavam com a mesma facilidade até ao cimo de um monte ou até às proximidades do mar. Até ao cimo do monte, onde com tranquilidade e atenção poderia ouvir a voz da natureza a sussurrar-lhe alguns segredos, sobretudo quando numa inclinação mais atenta e cuidada em que descia até ao fascínio profundo dos elementos naturais. Até às proximidades do mar, quando no caminho se dirigia até ao molhe despertado pelo encanto dos sons das ondas, que nas diferentes marés entoavam um suave murmúrio enchendo a sua alma de um sentimento tão belo e fascinante como o desejo pelo infinito.”

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, II Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.13 a 17.

 

Gotas de Água Viva

  Entre o horizonte e o limite

(I Capítulo-Texto 2)

12.10.2020

   “Entretanto, mais deslumbrado ainda assegurava que naqueles movimentos de partilha natural ressoava em todo o ambiente envolvente uma satisfação de real convergência na qual as árvores deixariam libertar em cada momento de encontro uma brisa refrescante e serena, uma espécie de exalo divino que se propunha ser a razão para imediatamente serenar e robustecer a vida.

   “Por fim, num sentimento quase de êxtase, parecia querer intuir que naquela tangência dos corpos, ainda que fossem de naturezas diferentes, surgiria sempre algo tão singular e único que no ciciar ao vento sopraria sobre nós o seu espírito e nos elevaria até à visão pura da imagem sagrada para depois a contemplarmos na acção do amor divino, que na transformação mística dos seres e na superação profunda, sempre nos elevará até à transcendência das palavras que dizem do evangelho: “Onde estiverem dois em Meu nome, Eu estarei no meio deles”.” (Citação do texto anterior)

   “Meditava de modo profundo nestes quadros de relação entre os seres e acreditava que haveria nesta realidade uma indefinível onda de mistério de tal forma maravilhosa que em momentos de maior fascínio pela relação eles nos interpelariam e nos fariam sossegar as almas aquando do seu rodopiar sagrado.

   “Porém, sempre que olhava para o horizonte, fazia-o com grande ansiedade e tristeza, sentia que já não era muito jovem e era doloroso estar longe da família e não poder regressar a casa todas as vezes que o desejasse. Tinha saudades dos filhos, da mulher e dos amigos. Dos filhos, por serem ainda pequenos e serem crianças bastante frágeis, pois embora soubesse que estavam a passar bem, os telefonemas que fazia com frequência para casa nunca o enchiam de tranquilidade plena; a distância que os separava era tão longa e tão isolada que em momentos de maior ansiedade nada mais poderia fazer do que imaginar no céu a presença virtual das suas imagens. Ficava algumas vezes como se pudesse medir a longa distância que os separava, às vezes perscrutando entre o espaço longínquo e todos os sinais visíveis no horizonte, tomava-os como realidades possíveis e capazes de preencherem o vazio que o desejo e as palavras seriam incapazes de revelar.

   “Apesar disso, consolava-se em cada passeio que fazia pela beira-mar, sobretudo durante o tempo em que parava no cais e apoiava os cotovelos no gradeamento que limitava o fim do paredão. Fixado entre o espaço e o gradeamento, punha-se a imaginar a distância que o separava, chegando até ao sentimento de angústia, enquanto não se evadia a contemplar a beleza que se estendia até à linha do horizonte. Depois, já um pouco mais tranquilo, erguia os braços com as mãos unidas em prece para as elevar até à base do queixo e aí segurar a cabeça até ficar completamente entretido na observação do mar e dos barcos que passavam diante de si, deliciava-se entre este encanto de ver e o contar de todas as ondas que iam rodopiando nos seus movimentos de ida e de vinda.

   “Entretanto, através da arte da Natureza, e com uma cumplicidade científica, assistia com fascínio ao quebrar-se da água nos seus movimentos ondulares de chegada e de partida. No seu conjunto as águas deslizavam sobre as pequenas pedrinhas deixando no rasto marcas de camarinhas que, parecendo querer desafiar a visão humana, faziam depreender que era num modo angustiante em que suplicavam mais tempo e mais força para se manterem continuamente à superfície.

   “Às vezes era tão intenso este estado de alma que só as gotas de água caídas do firmamento o faziam lembrar de que já estaria naquele local há demasiado tempo e que já não teria mais espaço para continuar a contemplar aquele quadro sumamente belo e de fascínio, mas que por ser já muito tarde teria de deixar a vontade para outra ocasião, pois teria quase sempre algo para fazer na cidade ainda antes de regressar a casa.

   “Desfrutada a oportunidade de sonhar por mais uma vez, voltava de novo ao caminho de regresso a casa, que era um pouco longo e que primeiro o levava até ao centro da cidade, e só depois até à casa onde morava ou até ao trabalho, quando no caso de estar no começo da manhã ou no caso de estar no fim da tarde ou ainda quando trabalhava durante as primeiras horas da noite.”

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, I Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.11 a 12

 
 

Gotas de Água Viva

Entre o horizonte e o limite

(I Capítulo-Texto1)

05.10.2020

 
   Parafraseando Camões, a maior parte da minha vida tem sido sempre, numa mão a pergunta, na outra a dúvida.
   Este livro é o resultado desta oscilação.                                                                Dezembro de 2016

   Prefácio

   Ao ler este livro do Dr. Macedo Teixeira, ecoou em mim o diálogo de S.ta Teresa de Calcutá a um jornalista:

 

   — “A Senhora com tudo o que faz não consegue mudar o mundo.

   — Eu não tenho a pretensão de mudar o mundo. Quero apenas ser uma gota de água viva na contribuição de um mundo melhor. Diga-me uma coisa: o Senhor tem esposa?

   — Sim.

   — Então eu, o Senhor e a esposa somos três gotas de água pura, que podem contribuir para melhorar o mundo. E você tem filhos?

   — Sim, tenho dois.

   — Então eu, o Senhor, a sua esposa e os seus filhos já somos cinco gotas de água pura para melhorar o mundo…”

 

   Este livro tem o título Gotas de Água Viva, que no fundo é o contributo do autor para melhorar o mundo. Cada um de nós é chamado a contribuir para que o mundo seja melhor.

   Ora neste livro pulsa a inquietação de um homem que quer dar o seu contributo e reflete sobre a vida, sobre a vocação, sobre os valores.

   Vivemos tempos de indiferença, de pressas, de desencanto.

   Não paramos. Não refletimos. Não contemplamos. O coração não para, as mãos não se comprometem e os olhos não choram.

   Ora Gotas de Água Viva é um convite à reflexão, à meditação.

   Reflexão sobre a vida: quem somos? Para onde vamos? E sobre a vida com horizontes com futuro. Como podemos conhecer e falar de Deus?

   Reflexão sobre os valores: justiça, verdade, liberdade.

   E reflexão sobre a vocação, sobre o caminho a seguir, sobre a realização de cada um.

  O autor debate-se sobre a sua carreira de bancário bem-sucedida e o seu apelo mais profundo a ser professor. “Vai prepará-los!  Ensinar-lhes o que aprendeste! Mostra-lhes o caminho…”

   Na vida temos de fazer escolhas e tomar decisões corajosas na busca do verdadeiro caminho e realização pessoal.

   Ora o autor deste livro, Dr. Macedo Teixeira, revela a sua tensão interior e preocupação por este mundo tolhido pelas injustiças sociais, pela fome, pela maldade, pela miséria e, em vez de cruzar os braços, lança-se na missão de ensinar.

   As gotas de água que lhe aspergiram o rosto, qual sinal divino, refrescaram e iluminaram a sua vida na missão do seu contributo para a construção de um mundo melhor.

   Agradeço ao Dr. Macedo Teixeira a possibilidade destas palavras. Agradeço a sua reflexão e o seu desafio. Desejo uma boa leitura. Que as “gotas de água  viva” possam refrescar e iluminar o leitor

      I Capítulo

   “Sempre que por ali passava, despertava uma atenção especial em todos os que já se tinham habituado à sua rotina de trazer nas mãos uma enorme pasta de couro sempre carregada de livros e de outros materiais escolares. No verão e nos dias de mais calor notava-se-lhe este esforço, já que ia ao ponto de o suor escorrer-lhe pelo rosto com tanta abundância que, indo alagar-se no peito, o encharcava até à roupa. E não era por acaso que se acomodava a este modo de sofrimento, pois afirmava com convicção a propósito de qualquer diálogo de que nas coisas do saber sempre seria melhor ter as fontes da ciência à mão de semear.”

   “Acreditava imenso nesta segurança, pois sentia que assim estaria mais prevenido para resolver qualquer dúvida na discussão de qualquer assunto em que a questão fosse trivial ou para poder melhorar a certeza sobre o que dizia no caso de a questão ser científica, já que poderia procurar uma solução com maior rapidez nos livros que trazia consigo.

   “Com este sentimento na possibilidade de se apoiar em diversos meios de conhecimento, sentia que com mais facilidade poderia discorrer sobre uma diversidade de assuntos, pois poderia ir para além do apoio no saber adquirido durante o tempo de escola e nos conhecimentos científicos obtidos na Universidade. Estava convencido de que com este modo de procedimento poderia competir melhor na elucidação dos assuntos, pois em certas ocasiões de reflexão em que precisara de ter maiores certezas, sentira que nas situações mais embaraçosas as dúvidas foram tantas e ganharam tanta força, que mais pareciam querer confundir-lhe a mente do que o ajudar a guiar-se para o que estaria certo e seria verdadeiro.

   “Caminhava ao longo das ruas tão direito e tão firme que mais parecia um esteio ou um tronco das velhas árvores que, gemendo pelo peso da idade, só a força dos tornados as fará arrancar das raízes. Agia assim, para poder continuar a afirmar o conhecimento da verdade com autoridade e robustez, já que entendia que seria também através deste modo de andar firme e vertical que se poderiam evitar os julgamentos que, na avaliação precipitada, concluem que é pela firmeza do corpo que se pode conhecer o seu estado de saúde e de velhice.

   “Neste sentimento um tanto superior, soprava-lhe com grande intensidade uma aparente alegria, uma alegria quase semelhante à das árvores que também parecem ficar felizes mesmo na idade avançada, quando sentem os seres humanos a procurá-las e a aninhar debaixo delas com uma certa gratidão para se protegerem do calor na sua sombra.       

   “Porém, apesar deste sentimento inventivo, tinha consciência de que elas não eram nem respondiam do mesmo modo que os seres humanos, sabia que não tinham a tendência para se afirmarem no poder de julgar, aliás, bem pelo contrário, numa observação mais atenta apercebera-se de que quando elas sentem alguém descansar no seu tronco ou no espaço das suas raízes, abanam com mais graça as suas folhinhas, e sem resistirem à caridade de socorrer os seres vivos, libertam o oxigénio que guardam consigo durante o tempo em que vão contemplando e protegendo a vida.

   “Entretanto, mais deslumbrado ainda assegurava que naqueles movimentos de partilha natural ressoava em todo o ambiente envolvente uma satisfação de real convergência na qual as árvores deixariam libertar em cada momento de encontro uma brisa refrescante e serena, uma espécie de exalo divino que se propunha ser a razão para imediatamente serenar e robustecer a vida.

   “Por fim, num sentimento quase de êxtase, parecia querer intuir que naquela tangência dos corpos, ainda que fossem de naturezas diferentes, surgiria sempre algo tão singular e único que no ciciar ao vento sopraria sobre nós o seu espírito e nos elevaria até à visão pura da imagem sagrada para depois a contemplarmos na acção do amor divino, que na transformação mística dos seres e na superação profunda, sempre nos elevará até à transcendência das palavras que dizem do evangelho: “Onde estiverem dois em Meu nome, Eu estarei no meio deles”.

   Macedo Teixeira. “Gotas de Água Viva”, I Capítulo — Editora Palavras & Rimas, Gaia, Dezembro de 2016, pgs.6 a 11.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 24)
08.10.2020 22:00
 

   Na tarde do dia seguinte, apresentaram-se a exame apenas dois alunos, os restantes faltaram (sabe-se lá porquê!). O professor mandou-os sentar e com alguma cortesia perguntou quem queria começar primeiro. Como no dia anterior o professor dissera que seria conveniente desenvolver alguns aspetos filosóficos que teriam faltado na exposição sobre a ideia e a existência de Deus, em conformidade às ideias claras e distintas, resolvera este já sofrido aluno propor-se como primeiro a falar, na tentativa de melhorar a resposta dada no dia anterior.

   – Sr. Professor, gostaria de começar a desenvolver um pouco mais a questão colocada na tarde de ontem sobre as ideias claras e distintas, julgo poder melhorar alguns aspetos que evoquei – dissera o aluno olhando-o com veemência e humildade.

   – Muito bem, estamos de acordo, pode começar a sua exposição! – exclamou o professor com a voz ainda mais doutoral.

   Sem mais demora, António começara, citando Descartes:

   – “É claro e distinto o que se impõe imediatamente e por si só ao espírito. E tendo notado que nada há no ‘eu penso, logo existo’ que garanta que digo a verdade, a não ser que vejo claramente que, para pensar, é preciso existir, julguei que podia admitir como regra geral que é verdadeiro tudo aquilo que concebemos muito claramente e muito distintamente.”

   Dito isto, olhou de forma expectante para o professor e sintetizou com o seguinte:

   – Refletindo nestas afirmações, poder-se-á dizer que a evidência cartesiana é puramente intelectual e o ato da razão ou do espírito que apreende diretamente a verdade será a intuição. Sendo assim, também se poderá concluir que Descartes chega às ideias claras e distintas através da Razão e pela via da Intuição.

   E depois, para reforçar, volta a citar Descartes:

   – “Chamo claro o conhecimento que está presente e manifesto a um espírito atento; distinto, o conhecimento que é de tal modo preciso e diferente de todos os outros, que só compreende em si o que aparece manifestamente àquele que o considera como se deve”; “tudo o que eu concebo claramente e distintamente sobre o que quer que seja é verdadeiro, e pode ser tido como tal”.

   Terminada esta observação, não lhe ocorrera mais nada sobre a questão, pelo que ficou em silêncio à espera do que diria o professor, julgando ter melhorado as respostas anteriores. E, embora não recebesse um não de modo direto, também não recebeu um sim sem reservas, pois, antes de passar para o aluno que faltava examinar, exaltara alguns aspetos positivos da exposição que ouvira, sem deixar de dizer que a mesma não tinha sido suficiente para a compreensão da questão.

   Entretanto, passara ao aluno seguinte, propondo-lhe que falasse da moral cartesiana, o qual começou de imediato a expor as quatro regras da moral provisória de Descartes:

   – Primeira (viii): “obedecer às leis e aos costumes do meu país, conservando firmemente a religião na qual Deus me deu a graça de ser instruído desde a infância e conduzindo-me em tudo o mais segundo as opiniões mais moderadas e mais afastadas do exagero que fossem geralmente aceites ou postas em prática pelos mais sensatos com quem teria de viver”;

   Segunda: “ser o mais firme e mais resoluto que pudesse nas minhas ações e, uma vez que me tivesse decidido, não seguir menos firmemente do que as seguiria, se fossem muito seguras, as opiniões mais duvidosas. Nisto estou a imitar os viajantes que, perdidos em alguma floresta, não devem errar andando de um lado para o outro e menos ainda parar, mas sim andar sempre o mais direito possível numa mesma direção, e não modificá-la, por frouxas razões, ainda que de princípio só o acaso tenha determinado a sua escolha: porque, dessa maneira, se não chegam exatamente aonde desejam, pelo menos chegarão finalmente a algum lado, onde verosimilmente estarão melhor que no meio da floresta”;

   Terceira: “procurar sempre antes vencer-me a mim próprio do que vencer a fortuna e modificar antes os meus desejos do que a ordem do mundo; e, geralmente, habituar-me a acreditar que, afora os nossos pensamentos, nada há que esteja inteiramente em nosso poder, de maneira que depois de ter procedido o melhor possível, em relação às coisas que nos são exteriores, tudo o que impede que sejamos bem-sucedidos é, em relação a nós, absolutamente impossível”;

   Quarta: “para conclusão dessa moral, resolvi passar em revista as diversas ocupações que os homens têm nesta vida, para procurar escolher a melhor; e, sem nada dizer das dos outros, pensei que o melhor que tinha a fazer era prosseguir naquela em que, de momento, me encontram, isto é, empregar toda a vida a cultivar a razão e a avançar, o mais que pudesse, no conhecimento da verdade, seguindo o método que me tinha imposto”.

   Analisadas estas máximas e a reflexão que desenvolvera o aluno, o professor limitara-se a dar por concluído o exame e a propor-lhe uma classificação positiva; no entanto, ao António voltara a repetir que seria necessário aprimorar a questão por ele desenvolvida, pelo que deveria continuar o exame na tarde seguinte.

   Ao ouvir estas palavras, António apressara-se a sair da faculdade, embora o passo marcasse um andar doentio e a vontade estivesse toldada de tristeza e alguma vergonha.

   Quando entrou em casa não dissera nada que lamentasse a situação, apenas que teria de continuar a estudar, pois não sabia o que faltava para o professor decidir. Pouco comera e pouco dormira para estudar outros conteúdos que melhorassem a sua exposição, já que precisava de passar sem repetição de exame, uma vez que trabalhava e estudava e o esforço necessário era imenso.

   No dia seguinte, com as forças muito diminuídas e num sentimento psicológico muito baixo, cumprimentara o professor, fizera uma breve exposição e, sem esperar que ele lhe voltasse a dizer para continuar, pediu desculpa e dissera-lhe que já não podia mais, preferia desistir e até reprovar, pois já não tinha forças para prosseguir. O Professor olhara-o com um sorriso de alegria, dizendo-lhe, comprometido:

    – Oh! homem, já podia ter dito, ficamos então por aqui! – exclamou o professor propondo-lhe uma classificação positiva e perguntando-lhe se estaria bem assim.

   Ficara atordoado com o que ouvira, ficara tão desnorteado com a alegria de ter passado que, emocionado e com lágrimas nos olhos, saíra do gabinete a correr e a gritar de satisfação:

   – Passei, passei! – exclamara vezes sem conta e sem sentir por quem passava, enquanto corria para fora da faculdade.

Contudo, sem guardar qualquer mágoa, nem saber o porquê desta longa prova, continua a lembrar que este caso foi determinante no fortalecimento psicológico para os obstáculos que se seguiram, mas que se arrependera bastante de não ter pedido uma classificação melhor.

   Depois de todos estes acontecimentos licenciara-se na universidade do Porto, tendo entrado para o serviço público no âmbito administrativo e mais tarde para a educação, onde continuara a realizar os seus sonhos e a receber mais força para poder continuar a servir e a amar.

   Proclama, com esplendor, ser um aprendiz do que for melhor no conhecimento para ser feliz e viver com os outros; aliás, esta viria a ser uma das máximas que aprendera ainda bastante jovem e que continuaria a seguir com todas as suas forças para poder vislumbrar melhor o caminho da perfeição possível e sempre mais semelhante com a Idealidade permanente.

   Com um olhar manso e livre, fizera algum silêncio; e como se adivinhasse que aquela aula chegava ao fim, e a campainha da escola tocasse num instante para saírem, para ele como um sinal amigo de quem se despediria também naquela hora com um “até sempre”. Para os alunos, para o retemperar de forças pelo convívio do recreio e, quem sabe, para mais alguma conversa sobre o caso, certamente com palavras de estima e admiração, que o espaço guardará para recolher na memória como recordação quando houver merecimento.


FIM DA OBRA


Bibliografia


i. Teixeira, Macedo (março 2002). “Crescendo Constroem-se os Sonhos”. Editorial Panorama, L.da, págs. 35 e 79.

ii. Museu Pessoa – Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira – Sou José Fernandes Marques Teixeira. Nasci no Muro dos Bacalhoeiros n.º111 a 22 de dezembro de 1946. Atualmente, moro na Rua da Fonte Taurina. Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira Entrevistado por Patrícia Sousa, Lígia Costa e Sónia Moreira. São Paulo, dezembro de 1999. “O maior desastre no rio Douro” Naufrágio

iii. Torrinha, Francisco. “Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Editorial Domingos Barreira.

iv. “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86.

v. Tocqueville, Alexis de. “Da Democracia na América”. Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit – desta edição de “Da Democracia na América”: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora, Lda – Livro I – 2008 – págs. 5 e 6.

vi. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. “Filosofia 12.º ano”. Porto Editora, p. 200 – Geneviève Rodis – Lewis, “Descartes e o Racionalismo”, Col. Substância Rés Editora, págs. 7 e 8.

vii. Lourenço, Luís e Lourenço, Manuel. “Filosofia 12.º ano”. Porto Editora, p. 201 – Descartes, Discurso do Método – as Paixões da Alma, Clássicos Sá da Costa, págs. 17 e 18.

viii. Descartes (2008). “Discurso do Método – Meditações Metafísicas”, Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. Madrid, Espanha, págs. 87 a 92.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 113 a 122.

 
Caminho de Luz e Sombra (Texto23)
08.10.2020 21:50
 

   Também surgiram outros acontecimentos dignos de ser contados, pelo menos por reconhecimento da força que lhe deram para continuar a resistir com menos queixume aos problemas da vida. E é por isso que, com alguma discrição, lá vai contando também as peripécias de um exame oral que durara três tardes seguidas.

   – Boa tarde, meus amigos! – exclamara o professor com um leve sorriso.

   – Boa tarde – responderam os examinandos propostos para aquela tarde.

   – Todos estão conscientes daquilo que fizeram na prova escrita de Filosofia Moderna? – interrogara o Professor com delicadeza. – Sabem que tiveram nota positiva, pois de contrário não seriam chamados a exame oral, não é verdade? – questionara com alguma satisfação. Depois, de modo mais assertivo e com maior autoridade, reforçara o seu raciocínio: – Mas também sabem que, em relação a esta cadeira, nenhum aluno será dispensado da prova oral, logo, deverão considerar que há uma razão filosófica que deverá ser alcançada para que a nota final corresponda à média ponderada das classificações.

   De seguida, convidara os alunos a sentarem-se em círculo, para que, em conjunto e respeitando a ordem a partir daquele que começaria em primeiro, produzissem um diálogo sobre o filósofo René Descartes e a sua obra “O Discurso do Método”.

   Acomodara-se na cadeira com as pernas estendidas e com as mãos atrás da nuca, olhara -os de relance e apontara para um aluno, dizendo:

   – Comece a falar sobre as Regras do Discurso do Método e o colega seguinte continuará com a sua exposição quando eu ordenar. Julgo que todos entenderam o modo de procedimento? – interrogara de modo objetivo e com a autoridade de cátedra. Entretanto, calara-se, fechara os olhos formando uma imagem de quem parecia estar mais a dormitar do que a avaliar o conhecimento de alguém.

   Com este gesto de serenidade fizera-se silêncio até começar a ouvir-se o primeiro examinando, que, com algum nervosismo, começara por dizer que (vi) o mérito da filosofia cartesiana foi o de se ter apresentado, pela primeira vez, como um esforço sistemático para clarificar as condições lógicas da função teórica ou cognitiva da razão e a sua consequente aplicação à investigação da verdade. Muito embora aceite inicialmente que “a razão é naturalmente igual em todos os homens”, essa capacidade de distinguir o verdadeiro do falso só ganha autonomia quando o seu trabalho crítico se apoiar em regras lógicas fundamentais, “porque não basta ter o espírito bom, é preciso aplicá-lo bem”. Daí a importância que o pensador atribui ao método na constituição do conhecimento e na fundamentação da sua unidade. Depois, para concluir, passou a enunciar as Regras do Discurso do Método, (vii) a começar pela Primeira Regra, a regra da Evidência Racional, que diz o seguinte: “nunca devemos aceitar como verdadeira qualquer coisa, sem a conhecer evidentemente como tal; isto é, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção; não incluir nos meus juízos nada que se não apresentasse tão clara e distintamente ao meu espírito que não tivesse nenhuma ocasião para o pôr em dúvida”. A Segunda Regra, a regra da Divisão, que consiste em “dividir cada uma das dificuldades que tivesse de abordar no maior número de parcelas que fossem necessárias para melhor as resolver”. A Terceira Regra, a regra da Combinação, que se baseia em “conduzir por ordem os meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, gradualmente, até ao conhecimento dos mais compostos, e admitindo mesmo certa ordem entre aqueles que não se prendem naturalmente uns com os outros”. E, por último, a Quarta Regra, a regra da Enumeração, que pressupunha “fazer sempre enumerações tão completas e revisões tão gerais que tivesse a certeza de nada omitir”

   Terminada esta exposição e quando o mesmo aluno se recompunha para responder a outra possível questão, o professor manteve-se na mesma posição mas ordenando que o aluno seguinte demonstrasse como foi que Descartes concluiu a Primeira Regra.

   Sobre esta demonstração, o aluno começara a sua exposição, dizendo o seguinte:

   – O modelo racionalista de Descartes começa por questionar e examinar a validade do conhecimento que temos do Mundo. Interroga-se acerca da sua origem ou fundamento. Tem a pretensão de encontrar conhecimento verdadeiro e não apenas provável, por isso, começa por duvidar que se conheça algo como verdadeiro até encontrar um tipo de conhecimento que seja válido para todos e para sempre, isto é, universalmente válido. Para percorrer o seu caminho de investigação formula argumentos semelhantes aos usados pelos céticos, que afirmam que “os nossos sentidos são, por vezes, enganadores”; “aquilo que chamamos conhecimento pode não passar de um sonho”; “mesmo que não estejamos a dormir, podemos estar alucinados”. Esta investigação é apoiada na dúvida que segue um caminho ou método, sendo por isso uma dúvida metódica e, em consequência, o seu ceticismo ser metódico e tornar-se numa estratégia inicial para pôr à prova a validade de todo o conhecimento, na tentativa de encontrar uma certeza. Ao colocar a questão se “existirá alguma coisa acerca da qual possamos ter a certeza”, chega ao fundamento da Regra da Evidência com a primeira certeza de que para pensar precisa de existir. “Se duvido, se sonho, se estou a ser enganado, devo existir para poder duvidar, sonhar e ser enganado – Cogito, ergo sum – penso, logo existo.”

   Depois das explicações dadas por estes examinandos, o professor moveu-se na cadeira, abriu os olhos e, com a mesma formalidade, procurou aliviar a tensão dos alunos, exclamando com alguma deferência:

   – Até agora, estão a portar-se bem, vamos lá ver como vão terminar! – E continuou, dizendo a propósito das exposições: – Já agora que foram capazes de demonstrar as regras do Discurso do Método e como Descartes chegou à existência do Eu pensante (res cogito), proponho-vos que me demonstrem como chegou às ideias claras e distintas, nomeadamente à ideia e existência de Deus, podendo para o efeito continuar o aluno seguinte.

   Depois, voltou a fechar os olhos e a manter-se na mesma atitude de silêncio e com a mesma posição na cadeira.

   De pouco servira o efeito do elogio anterior, já que chegara a vez de prestar provas aquele que iria começar naquele momento a prova mais longa e mais dolorosa de toda a sua formação como aluno. Durara cerca de sete horas e ocorrera em três tardes seguidas, com a sua desistência na terceira tarde, por exaustão e por não sentir capacidades físicas nem psíquicas para poder continuar, pois, ao que parece, se não fora este facto, o exame não teria terminado naquela tarde.

   Um pouco nervoso pela espera da sua vez, começara a exposição pela questão da ideia e existência de Deus, para passar depois à síntese sobre as ideias claras e distintas:

   – “Ao refletir sobre o Eu pensante, Descartes descobre, entre as ideias nele existentes, uma ideia clara e nítida de um ser perfeito, a ideia de Deus. Conclui que esta ideia só pode provir de um tal ser perfeito e que este ser não pode ser apenas uma ideia, mas tem também de existir como ser autónomo. “Aquilo que eu concebera muito clara e distintamente é verdadeiro.” “Trazendo isto no espírito e refletindo sobre o facto de que a dúvida me assalta, compreendo que a minha existência não é perfeita. Porque vejo claramente que é uma perfeição muito maior conhecer, do que duvidar. Mas de onde aprendi a pensar em alguma coisa mais perfeita que eu próprio? Obviamente de alguma natureza que tem, dentro de si, todas as perfeições de que eu possa fazer ideia – numa palavra, Deus. Somente aquilo que é perfeito pode ser atribuído a Deus. Não pode haver imperfeição nele. A dúvida, a inconstância, a tristeza, a cólera, o ódio, não são atributos de Deus, mas qualidades cuja ausência nos faria mais felizes. Isto é, são qualidades imperfeitas, a marca da humanidade e não da divindade. Deus é perfeito, quer dizer, infinito, eterno, imutável.”

   Ouvida esta explicação, o professor manifestou concordar, mas acrescentara que seria necessário desenvolver mais alguns aspetos filosóficos naquela questão, e uma vez já ser bastante tarde, continuariam, ele e os colegas ainda não examinados, na tarde seguinte e à mesma hora. Aos outros examinandos reforçou o elogio, propôs-lhes uma classificação positiva e deu por terminado o exame de cada um.

   No dia seguinte, continuava para este aluno a viver-se o tempo de maior tormento, pois julgara que a sua análise filosófica não fora suficientemente aceitável, quiçá pela incompletude, como dissera o professor, ou até por algo de errado que não descortinara durante a exposição. Voltara para casa, comera muito pouco, pegara nos livros e apontamentos e só parara de rever as matérias quando a mulher o chamara por já ser muito tarde para se deitar e o achar já muito exausto

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 108 a 113.

 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 22)
01.10.2020 22:50
 

   Depois de um dia de trabalho, não era fácil ter disposição para começar as aulas às seis horas da tarde e terminar próximo da meia-noite todos os dias. Misturava quase sempre o sacrifício do esforço com uma alimentação ligeira que levava consigo para comer no intervalo das quatro horas de aulas diárias. Às vezes o cansaço era tanto que lhe dava sono a tal ponto que era preciso segurar as pálpebras para não fechar os olhos e poder continuar a anotar o que os professores ensinavam. Anotava imenso, porque acreditava que os apontamentos eram o recurso principal, já que não teria muito tempo para procurar nas obras o fundamento dos professores.

   Mas, a contrastar com a enorme vontade de tirar o curso, surgiram logo nos primeiros meses de frequência os primeiros obstáculos a impedirem o curso normal das aulas. Desde logo, sobre a continuidade da lecionação de algumas cadeiras, que, por não terem sido homologados os contratos de alguns professores, estaria na iminência de ser suspensa a lecionação das mesmas. Aliás, só não fora suspensa, porque os professores manifestaram vontade em continuar naquela situação, isto é, lecionar sem saber se seriam ou não homologados os seus contratos e porque, entretanto, também desenvolvera uma ação de solidariedade, com a qual correra alguns perigos, por ter tido a coragem de ter sido a personagem principal no reforço do voluntarismo dos professores em dar aulas, pela oposição às vontades inerentes a alguns estudantes que não estavam de acordo com a predisposição dos mesmos em quererem continuar a lecionar sem vínculo contratual. Com esta ação, procurara contrariar o pensamento negativo dos opositores que ganhara imensa força com o aumento do número de aderentes. Já não era a primeira vez que se ouvia dizer que a experiência iniciada no pós-25 de Abril de 1974 da abertura da Faculdade de Letras à noite para a frequência de alguns cursos, nomeadamente História e Filosofia, não tinha colhido boa aceitação por parte do Ministério da Educação com o argumento da escassez do suporte financeiro e da falta de instalações mais adequadas.

   Ao que parece, tal como hoje, continuará a ser um grande problema reconhecer as situações favoráveis ao desenvolvimento, desde que impliquem mais gastos por parte do Estado, mesmo que não haja dúvidas que sejam boas, a não ser que se movimentem os interessados e estes tenham algum crédito político e económico. De qualquer modo, naquela altura, o que seria necessário era que houvesse alguma motivação social, pois fazia-se com veemência a apologia da liberdade e igualdade de oportunidades, o que em relação à motivação universitária poderia dizer-se que era de um nível muito elevado, dada a grande carência que havia de cursos superiores. Entre o conflito da agitação quase anárquica das manifestações académicas na rua e os plenários na Universidade, lá ia surgindo alguma luz sobre o modo de proceder para estudantes, que, como ele, tiveram de lutar mais por um curso como uma enxada para ganhar o pão do que para qualquer outro interesse que sempre soubera que lhe escaparia por ser um estudante noturno e não poder acompanhar a Universidade a tempo inteiro.

   Assim, ao refletir no empenho dos docentes, em lecionarem mesmo sem saberem o seu futuro profissional, resolvera, durante uma manhã numa reunião prévia da turma com os professores em questão, anunciar aos seus companheiros que na reunião geral de alunos, que entretanto fora marcada para a noite, iria propor por escrito que fosse aceite e reconhecida a disponibilidade dos professores em lecionarem, mesmo sem terem ainda o seu contrato homologado.

   Perante este facto, alguns estudantes insurgiram-se com alguma agressividade, insinuando em tom provocatório que este seria um ato irresponsável, pois ninguém deveria apoiar a vontade dos professores sem a consequente homologação do seu contrato, chegando mesmo a adverti-lo em voz alta, para as medidas de força que tomariam, caso este continuasse a insistir na sua proposta.

   Sem mostrar receio, nem responder às provocações, começara a escrever as ideias que se propusera apresentar na reunião geral de alunos, marcada para a noite. Entretanto, como não cedera à advertência do grupo de opositores, manifestando-o através do rascunho que começara a elaborar para discursar nos primeiros momentos da reunião, aproximaram-se dele dois ou três elementos que, exibindo alguma corpulência, começaram a invetivar com ditos e ameaças do género: “se logo lês algum texto, arrepender-te-ás para toda a vida! – Este assunto tem que ser tratado como nós queremos! – Se queres ‘guerra’, então terás a guerra e não sairás daqui direito!”

   Ao cabo de algum tempo de pressão constante, começara a sentir algum receio, pois esta não era uma guerra real como aquela que temera na Colónia de Moçambique, onde ocorreram vários acontecimentos trágicos com vítimas mortais de que fora tendo conhecimento ao longo do serviço militar nesta colónia. Esta era uma “guerra” sem quartel e aparentemente sem armas, mas por razões e pessoas às vezes muito obscuras e perigosas; os anos de 1975 e 1976 não foram bons no que respeita às confusões vindas de movimentos civis e militares que teriam em vista instituir um certo poder.

   Contudo, se o receio fez esmorecer um pouco, não fora suficiente para abalar a atitude na convicção de que estava certo, tornando-se ainda mais forte, depois de sentir que não estaria só naquela decisão. Por entre os opositores mais zangados, uma outra voz se fizera ouvir nas suas costas vinda de um outro grupo:

   – Olá, companheiro! Nós não sabemos ainda bem quem tu és, mas queremos que saibas que apoiamos o que propões. Temos a certeza de que a tua opinião será a mais correta e, se eles te quiserem bater, também terão de bater em nós. Vai em frente com o teu discurso e não tenhas medo de ninguém, que nós estaremos contigo!

   Depois destas palavras protetoras, ficara ainda algum tempo na sala de aula a refletir nas ideias que escrevia, até que resolvera concluir o discurso num lugar mais sossegado, enquanto aguardava pela noite e se inspirava no modo como dizer na assembleia aquilo que pensava.

   – Boa noite, colegas! – dissera, na continuação da Assembleia e na abertura da Ordem de Trabalhos, o estudante que aceitara a proposta para presidir à Mesa da Assembleia daquela reunião geral e dirigir os trabalhos com mais dois colegas, também propostos para a função de primeiro e segundo secretários, respetivamente. Depois, começara a esclarecer um pouco mais os presentes sobre as razões daquela reunião geral, sobretudo da necessidade de se resolver o problema da falta de homologação pelo Ministério da Educação dos contratos de trabalho de alguns docentes. Por fim, antes de dar a palavra, pedira a todos que houvesse o maior respeito pela universidade e pela Faculdade de Letras no tratamento daquela e de outras questões, pois apesar de eleitos ad hoc, uma vez aprovada a Mesa da Assembleia e a Ordem de Trabalhos proposta naquela reunião geral, passariam a estar investidos pela mesma Assembleia dos poderes necessários para dirigirem os Trabalhos e para comunicarem à Reitoria a posição dos estudantes dos cursos noturnos, mas também dos cursos diurnos pela força da solidariedade manifestada com a sua presença.

   Entretanto, aproveitando a oportunidade dada para o uso da palavra, começara a discursar o representante do grupo que se opunha à manutenção da lecionação das aulas.

   – Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é nossa intenção mostrar publicamente o nosso desagrado por não ter havido por parte do Ministério da Educação um tratamento igual em todos os cursos propostos para o iniciar do ensino noturno na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. É um dever do Estado garantir a igualdade de condições na mesma realidade. O ensino universitário noturno merece um tratamento tão digno como o ensino diurno, nós somos pessoas iguais, aliás, em certos casos, somos até capazes de aceitar com mais facilidade as dificuldades e o sofrimento das situações, mas sobre o caso que nos fez reunir hoje, não poderemos continuar a permitir que o Ministério da Educação se dê ao luxo de explorar a mão-de-obra docente permitindo o trabalho sem um horário definido e sem o correspondente salário. O Ministério já tivera tempo suficiente para homologar os contratos dos professores que têm lecionado sem receber ou até contratar outros se fosse caso disso e fosse essa a sua vontade. Não é admissível continuarmos por mais tempo neste vazio académico e nesta indefinição futura. Nós somos estudantes, precisamos de quem nos ensine, mas não queremos esmolas, nem o Ministério precisa disso!

   Senhor Presidente, senhores Secretários, digníssima Assembleia, é por esta razão e também em nome do direito à igualdade que vamos neste momento propor à Mesa um voto por escrito com vista a serem suspensas as aulas pelo tempo necessário até que seja resolvida a questão.

   Depois deste discurso, um tanto inflamado, mas com razões que eram óbvias, o orador da oposição arrancara um aplauso tão grande que o silêncio que se seguira parecera indicar que qualquer outra proposta seria imediatamente derrotada.

   Contudo, a interromper aquele silêncio, surgira um pequeno burburinho a fazer-se notar no meio da sala, enquanto entre a multidão começara a ouvir-se a voz de um estudante que mais parecia a de um estranho que aprendia à sua custa como andar entre os demais para obter sem desonra o curso que tanto ansiava.

   – Senhor Presidente, Senhores Secretários, digníssima Assembleia. O que acabámos de ouvir é a mais preciosa obra da palavra, a Verdade! No entanto, nem sempre a verdade terá retorno se não formos, em certas ocasiões, mais diplomatas que revolucionários. Pois, se é um facto que todos temos direito à igualdade de oportunidades em todas as situações, a força do que é novo na experiência da verdade será sempre mais frágil pela dúvida e descrença, do que aquilo que já é reconhecido na verdade pela tradição do que é tido como certo. Sabemos que a justiça é um valor da Humanidade e que o Homem é a sua mais bela expressão, logo, a justiça terá que ser humana e estar ao serviço de todos os homens. A justiça da humanidade e com lei será a razão mais forte da Liberdade, pois de que valerá ao homem poder contestar livremente, julgar a partir do raciocínio livre, mas não julgar com universalidade e desvirtuar a lei? De que servirá os homens dissertarem nas praças públicas, nos plenários ou nos fóruns se com isso apenas obtiverem o efeito aparente da palavra e não o bem da igualdade do homem na realidade? É por isso que, em certos casos, mesmo que a verdade seja peregrina e sofredora, deveremos entender um tal sacrifício em nome de um bem maior, o bem da igualdade de condições para todos (v). Aliás, será pela igualdade que deveremos lutar, será por ela que poderemos ser felizes, mesmo na mais pequena proporção que possamos ter. Mas, tal só será possível, se o conseguirmos sem perder o que mais queremos na afirmação da nossa honra e no sucesso da justiça.

 

   v. Tocqueville, Alexis de. “Da Democracia na América”. Coleção Os Grandes Filósofos – Prisa Innova S.L. – Prefácio de Roger – Pol Droit – desta edição de “Da Democracia na América”: Maria da Conceição Ferreira da Cunha e Rés-Editora, Lda – Livro I – 2008 – págs. 5 e 6.


   Senhor Presidente, senhores Secretários, excelentíssima Assembleia, todos temos consciência de que neste momento seria um ato de justiça que baixássemos os braços, rejeitássemos a ajuda voluntária e o sacrifício dos professores e proclamássemos a suspensão das aulas até que o problema fosse resolvido. Certamente, com esta atitude afirmaríamos o direito à indignação, o direito ao respeito pela semelhança, o direito ao reconhecimento natural da realização da vida de cada um. Mas, também todos sabem quais seriam as consequências deste ato na defesa da razão que nos assiste. Evocá-las, nesta ocasião, seria apenas para apelar a todos os presentes para um bem que julgo produzir melhor efeito do que aquele que alguns colegas e não poucos estarão a visionar agora.

   Todos sabemos que, logo que as aulas forem suspensas, os professores não voltarão a lecionar nem voltarão à Faculdade. Com isto, deixaremos de evoluir nos conhecimentos e nos conteúdos programáticos. Como consequência ficarão atrasados os programas de cada cadeira e ficaremos muito mais limitados nos conteúdos necessários para o exame que entretanto será marcado, independentemente da nossa frequência. Depois, perderemos o contacto uns com os outros e com este a possibilidade de alimentarmos com a nossa presença a vontade de garantir para todos nós e para os vindouros a continuidade dos cursos noturnos na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Todos sabemos que quem não aparece, esquece! E a nossa recusa em continuar as aulas só poderá nesta altura voltar-se contra nós.

   Por isso, estamos mais convictos da resolução do problema, se agirmos coletivamente com uma atitude mais solidária com as dificuldades inerentes à regularização do processo por parte dos responsáveis, se fizermos com que seja manifestado um conhecimento mais alargado à Academia e aos órgãos de comunicação pela divulgação deste problema por parte dos nossos representantes, nomeadamente pelos membros da Mesa da Assembleia que preside a esta reunião e, se conseguirmos que seja consequente e oficial o conhecimento manifestado junto da Reitoria da Universidade e do Ministério da Educação, acreditamos que esta atitude se tornará suficiente e eficaz, pois a proposta que iremos ler e entregar à Mesa para ser posta à votação, se for aprovada nos pontos que refere, há de permitir com sucesso obter os resultados que desejamos.

   Para isso queremos que conste da nossa proposta, o seguinte:

   – Que seja dado conhecimento por escrito ao Ministério da Educação da falta de homologação dos contratos dos docentes em causa;

   – Que seja dado o prazo máximo de vinte dias para a resolução do problema;

   – Que seja dado conhecimento à Reitoria e aos docentes em causa das decisões tomadas neste plenário.

   Quando este jovem terminara o seu discurso e no momento em que se encaminhava para entregar a proposta à Mesa da Assembleia, ouvira-se um troar de palmas tão forte e tão contagiante que levara o opositor a retirar a sua proposta, concordando com o exposto e proporcionando um ambiente para a sua aprovação por unanimidade, ao mesmo tempo que todos o saudavam pela inteligência e tato no tratamento desta questão.

   Fora uma noite de grande satisfação pela compreensão e reconhecimento de todos, mas também pelo resultado alcançado, já que, ainda antes do prazo dado para a resolução do problema, o Ministério da Educação homologara os contratos e as aulas puderam continuar permitindo-lhe concluir o primeiro ano com sucesso.

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 100 a 108.


 

Geometria Pendular / Pendular Geometry

29-09-2020 16:15

Geometria Pendular

 

É a hora de ir prà escola;

temos pressa pra chegar.

Toca lesta a campainha.

Trrim! Trrim! “Vamos entrar!”

 

Olha a fitar em silêncio

os gestos de cada um.

Bate com as mãos na carteira.

“Meninos, não falta nenhum!!!”

 

Ainda a girar com emoção,

vai até ao quadro a falar:

“Triângulo, retângulo, hipotenusa!

Aqui está o giz, vamos começar?!”

 

“João, vem depressa ao quadro!

Figura um triângulo equilátero,

depois um triângulo retângulo,

para chegarmos até ao quatro!”

 

“E você, menino, aí!...

Que espera pra começar?

Levante a cabeça prà frente;

Já são horas de acordar!”

 

Pedro, sem embaraço, vai subindo na eclusa;

sobe até ao mais alto do quadro,

pegando na régua e esquadro

para traçar uma hipotenusa.

 

“Que pena, menino João,

que nem isto saiba fazer!

O ano já está a findar,

e o menino sem aprender!...”

 

Entretanto em tarde confusa,

bate com força  o apagador;

espalha raios brancos de pó

e mancha de giz a blusa!...

 

Faz-se um grito e um silêncio

entre uma paz verdadeira.

Olha em súplica para os meninos,

pede perdão… Haja maneira!...

 

Macedo Teixeira, Setembro 2020.

Pendular Geometry

It’s time to go to school;

we’re in a hurry to arrive.

The bell rings swiftly.

Ring! Ring! “Let’s go in!”

 

He stares at in silence

the gestures of each one.

He knocks with the hands on the writing desk.

“Boys, no one is missing!!!”

 

Still spinning with emotion,

he goes to the blackboard speaking:

“Triangle, rectangle, hypotenuse!

Here’s the chalk, let’s begin?!”

 

“John, come quickly to the blackboard!

Figure an equilateral triangle,

then a rectangle triangle,

so that we reach to the four!”

 

“And you there, boy!...

What are you waiting for to begin?

Lift your head to the front;

It’s already time to wake up!”

 

Peter, without embarrassment, is going up in the lockage;

he goes up to the highest of the blackboard,

holding the ruler and the square

to draw a hypotenuse.

 

“What a shame, Johnny boy,

that not even this you know how to do!

The year is ending,

and you, boy, without learning!...”

 

Meanwhile in a confused afternoon,

he hits hardly the duster;

spreads white rays of dust

and stains the smock with chalk!...

 

A shout is made and a silence

among a true peace.

He looks in request to the children,

he apologizes… Behave yourselves!...

 

Macedo Teixeira, September 2020

 
 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 21)
24.09.2020 15:35
 

   Com o rosto carregado de um corado turvo e um rubor nas faces a entrar na palidez, a jovem professora dirigiu-se ao marido, com os braços abertos e a simular desejos de amor por uma carícia e um beijo, contando- -lhe, sem ninguém ouvir, o que lhe tinha acontecido:

 

   – Olha, perguntaram-me onde é que estás colocado e o que é que fazes. Que devo responder? – sussurrou com os lábios próximos do ouvido. O marido, agarrando- -a pela cintura, fora simulando com gestos de estar a falar-lhe sobre algo surpreendente e foi instruindo-a sobre o que deveria responder:

 

   – Aproxima-te delas com delicadeza e com ar de preocupada, agradeces contida a gentileza com que nos receberam. Depois acrescentas, mas sem esperar perguntas, que temos de sair por uma missão de serviço urgente. Faz isso com rapidez e como te disse, não temos tempo a perder! – exclamara o marido com ansiedade e grande nervosismo.

 

   Após o cumprimento desta formalidade, com gestos de cortesia e desejos de boa noite, despediram-se de todos dando a mão um ao outro e caminhando bastante apressados para justificarem a saída um tanto inesperada.

 

   Logo que puseram os pés na rua, começaram a pensar como vir para casa, uma vez que àquela hora já lá não havia táxis e seria preciso chamar por um. Mas como fazê-lo, sem voltar ao clube para telefonar?

 

   Quase a rebentarem de suores frios por estarem em lugar muito exposto ao perigo da descoberta da verdade, o jovem militar sentiu uma mão nas costas a interpelá-los com muita insistência.

 

   – Precisam de boleia, precisam que os leve a casa? Eu tenho ali o carro, venham comigo que eu levo-os! – exclamava em tom aflito um homem que surgira não se sabe de onde.

 

   Sem se fazerem rogados, entraram no carro que iniciara a marcha pela mesma orla marítima por que tinham vindo. Porém, o condutor tornou-se estranho, parecia estar transtornado, perdera de vez em quando a noção da estrada e, aos ziguezagues, lá ia curvando mais para a direita ou mais para a esquerda, mas sempre muito próximo da escarpa que mergulhava até ao fundo do mar. O perigo era tão iminente que a jovem esposa confessara que ficara tão tolhida de medo que lhe assaltara a ideia de que não chegariam sãos e salvos a casa. O marido também não ficara indiferente, percebera o perigo, mas como era preciso sair das imediações do Clube de Aeronáutica, meditara mais na proeza que tinham conseguido do que em qualquer situação negativa que pudesse acontecer. E, depois, ficara tão confuso com aquela inesperada ajuda e salvação, que, apesar de estranho e algo perigoso, o condutor não poderia constituir nenhum mal.

 

   De todas as emoções vividas no sonho alcançado ficara a certeza de que, tal como este nascera pela bondade de Deus para viverem aquela noite especial, assim terminara do mesmo modo, pela ajuda de todos, especialmente daquele homem, que ainda hoje não sabem de onde veio nem para onde seguira.

 

   Esta fora uma das situações aventureiras que gosta de recordar, pois o que fora triste, e quiçá até trágico, guarda na memória fingindo que fora de sorte a sua vida de militar na colónia de Moçambique.

 

   Depois de ter passado à disponibilidade, a vontade de estudar para adquirir conhecimentos e o sonho que sempre acalentara de tirar um curso superior fizeram mais força na ação de trabalhar e estudar, ser marido dedicado e um pai atento aos filhos que iam nascendo. O casal unira a vontade, dedicara-se mutuamente no esforço e as metas para os sonhos foram sendo alcançadas.

 

   É evidente que a vida em Portugal continental nos primeiros anos pós 25 de Abril de 1974 não foram fáceis, a sociedade ensaiava a vivência em Liberdade e as exigências dos rumos neste sentido eram mais fortes que as capacidades de resposta pelos poderes instituídos. Lutava-se pela igualdade no trabalho, na educação, na família, na saúde, no género, etc.

 

   Aliás, é com grande satisfação que ainda evoca o acontecimento da maior manifestação de estudantes dos cursos noturnos das escolas privadas e cooperativas do país, no Norte, com concentração na cidade do Porto de todos estudantes dos estabelecimentos de ensino privado e cooperativo desde Coimbra até ao Minho, e no Sul, com concentração na cidade de Lisboa de todos os estudantes também do ensino privado e cooperativo desde Leiria até ao Algarve. Coube-lhe a sorte de ter ficado no Norte com a responsabilidade de dirigir a manifestação e de tudo fazer para que esta fosse de forma ordeira e cívica, pois o seu objetivo era a obtenção de direitos iguais às escolas públicas em relação ao estudo e à avaliação científica, no caso dos estabelecimentos de ensino, como os colégios ou externatos, desde que tivessem as condições necessárias. A caminhada em manifestação tivera início na Câmara do Porto e dirigira-se até ao quartel-general na Praça da República. Sentira uma grande alegria e uma pontinha de orgulho por a manifestação ter corrido tão bem por parte do grupo que dirigira, pelo grande sentido de responsabilidade dos colegas que auxiliaram na coordenação da manifestação e por todos os que nela participaram tão entusiasticamente.

 

   Porém, é com alguma mágoa que recorda dois factos que nublaram esta manifestação que se propunha consistir numa reivindicação por direitos legítimos e possíveis, como se provou pela aprovação em decreto-lei desta norma educativa que autorizara a igualdade pedagógica e científica em todos os estabelecimentos de ensino privado que reunissem as condições necessárias. O primeiro facto, bastante lamentável, diz respeito à ação levada a cabo pelos estudantes em Lisboa que não correu bem e resultou, depois de alguns tumultos e sequestro de responsáveis do Ministério da Educação, na detenção de alguns estudantes; o segundo caso, também lamentável, diz respeito à manifestação no Porto e à entrega da missiva de que era portador, juntamente com dois colegas, ao comandante do quartel-general, que se não fora a sua habilidade, não saberemos se teria corrido tão bem. Tudo aconteceu quando a multidão se aproximou da Praça da República, depois de deixarem entrar a comissão de estudantes, que chefiava, fecharam imediatamente os portões do quartel. Esta ação parecera ser normal, pois o comando militar tinha sido avisado da grande multidão que se avizinhava. No entanto, quando os três representantes do grupo fizeram questão de falar com o comandante, se é um facto que foram autorizados a subir para o salão nobre com a força militar que os recebeu, quando se encontravam dentro do corredor e em direção a este salão, houve um procedimento de segurança que não parecera correto a quem (como ele) acabara de terminar o serviço militar com incidência na guerra colonial, tendo-lhe provocado algum receio por não lhe parecer estar a decorrer pelo melhor, enquanto esperavam no salão nobre para serem recebidos pelo comandante; por um lado, porque continuavam acompanhados de militares em forma de cerco; por outro lado, porque os mesmos militares tinham destravado as armas e metido bala na câmara como em situação de defesa muito extrema.

 

   O tempo de espera para serem recebidos, apesar de não ter sido demasiado, fizera aumentar o receio e a dúvida sobre as consequências do ato em questão. Perante o desespero da impaciência e medo, lembrara-se de inventar um compromisso que assumira antes, dizendo aos militares que prometera aos colegas que cá fora entoavam slogans e cânticos reivindicativos, que se ao fim de meia hora não saíssem do quartel ou não viesse alguém falar -lhes de dentro sobre o modo como estava a decorrer a receção, que estes deveriam pedir socorro e forçar a entrada até os libertar.

 

   Não se sabe se a invenção para esta advertência tivera algum efeito, o que é certo é que para além de terem permitido que este falasse da varanda à multidão, pouco tempo depois desta comunicação, o tenente-coronel Tomás Ferreira, em representação do brigadeiro Eurico de Deus Corvacho, recebera a missiva que continha os pontos reivindicativos e felicitara-os pela forma ordeira como se tinham comportado, dizendo com satisfação que o que pediam era um ato de justiça com o qual concordava, prometendo tudo fazer para serem bem-sucedidos, como de facto acontecera pela autorização ministerial concedida.

 

   Alguns meses depois, entrara na Universidade do Porto para frequentar à noite o curso de Filosofia, já que não era possível ser médico, pois teria de frequentar o curso durante o dia, e o facto de ter de trabalhar para ajudar no sustento da família não o permitiria. No entanto, não se cansa de dizer que mesmo que tivesse sido médico não hesitaria em cursar Filosofia, pois a reflexão estará sempre no princípio dos atos e será necessária em todos os saberes.

 

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 95 a 100.

 
 

Uma Boa Vontade / A Goodwill

21-09-2020 19:37

Uma Boa Vontade

Macedo Teixeira

    Kant, filósofo alemão (Königsberg, 1724-1804), deixou-nos do seu pensamento ético uma raiz científica que semeada em cada um, com prudência e lucidez, germinará elementos para a experiência da vida sem ser necessário perder a liberdade de presença ou embotar-se de comoção pela experiência da mesma. O que quero dizer, vou fazê-lo em modo breve e objetivo, estando consciente das inquietações que poderão surgir pela escassez de elementos ou outras interpretações mais desejáveis. Vejamos, então, ao que me refiro:

    – René Descartes (filósofo francês – séc. XVII), no plano do conhecimento, reclama a autonomia do sujeito de conhecimento e no plano moral revela-se estoicista, e a submissão ao mundo é para ele a última palavra sobre a moralidade. Cito, para o efeito, Manuel Lourenço, que diz de Descartes o seguinte: A sua moral provisória pressupõe a subordinação dos desejos do eu pensante à ordem das coisas.

    Emmanuel Kant inverte o ponto de vista de Descartes e introduz na própria moral o primado do sujeito. Aliás, a preocupação dominante do pensamento ético kantiano é, de facto, a do estabelecimento do princípio supremo de moralidade no sujeito autónomo que cada homem representa enquanto ser moral.

    – E como assegura Kant a autonomia do sujeito na ação moral?

    Se o esforço original do seu pensamento ético é mais de compreender e justificar os princípios que fundamentam a ação moral do que propor novos valores morais, a sua caracterização moral aponta para o sentido determinador das condições formais da moralidade, tal como na Crítica da Razão Pura tinha determinado as condições transcendentais do conhecimento.

    Assim sendo, dizia Kant que o fundamento dos valores morais não estava na sensibilidade nem em nenhum princípio transcendente, emanava da própria Razão Prática e Moral. Para o efeito, propôs-se na Fundamentação da Metafísica dos Costumes e na Crítica da Razão Prática desenvolver as teses fundamentais sobre o problema da moral.

    – Que sentido atribui, então, o pensador à ação moral?

    Trata-se, em seu entender, numa caracterização geral, duma zona privilegiada da conduta humana, onde o homem pode subtrair-se ao determinismo dos fenómenos naturais, assumir-se duma forma livre como pessoa e autodeterminar o seu próprio destino. É este o sentido do seu Primado da Razão Prática; só no plano moral o homem pode ter acesso aos ideais da razão, ultrapassando os limites cognitivos do entendimento.

    É esta a raiz científica, que semeada na razão de cada pessoa e plantada no coração de todos, permitirá, certamente, a resolução de muitas incompreensões humanas. É o próprio Kant que diz na Fundamentação da Metafísica dos Costumes: “Neste mundo, e até também fora dele, nada é possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma só coisa: uma boa vontade.”

    De facto, os talentos do espírito; a argúcia de espírito, de julgar, discernimento ou as qualidades do temperamento, como a coragem, decisão e constância de propósito são dons naturais que são bons e desejáveis; mas podem tornar-se extremamente maus se a vontade que haja fazer uso deles não for uma boa vontade. O mesmo acontece com os dons da fortuna – poder, riqueza, saúde e os dons da felicidade – bem-estar, contentamento e sorte. São qualidades que são favoráveis a esta boa vontade, mas não têm um valor íntimo absoluto; pelo contrário, pressupõem ainda e sempre uma boa vontade. Moderação, reflexão, autodomínio e calma; não podem declarar-se qualidades boas sem reservas; sem os princípios de uma boa vontade, podem tornar-se más.

    Só “a boa vontade parece constituir a condição indispensável do próprio facto de sermos dignos de felicidade”.

    Emmanuel Kant é incisivo a este propósito quando diz: “a boa vontade não é boa por aquilo que promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta, mas tão-somente pelo querer, isto é, em si mesma, e, considerada em si mesma, deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se quiser, a soma de todas as inclinações”.

    E termina esta sua primeira grande preocupação com o chamar de atenção para a faculdade prática que é a Razão e para o poder que esta deve exercer na influência sobre a vontade e o seu verdadeiro destino que deverá ser produzir uma vontade, não só boa, quiçá, como meio para outra intenção, mas uma vontade boa em si mesma… Esta vontade não será na verdade o único bem nem o bem total, mas terá de ser contudo o bem supremo e a condição de tudo o mais, mesmo de toda a aspiração de felicidade.

    A partir desta ideia de raiz, uma outra se expande e ganha movimento – é a ideia de Dever, que ganha dimensão conceitual na afirmação de ações conformes ou contrárias ao Dever, não se cansando o filósofo de fazer sentir o valor da diferença entre as ações que são conformes e as que são contrárias, quiçá, e na sua neutralidade filosófica não se cansando de demonstrar um carinho particular pelo conceito de Dever que deve estar na base do da boa vontade…

 

    Publicado na revista Caminho Novo de 2000.

A Goodwill

Macedo Teixeira

Kant, German philosopher (Königsberg, 1724-1804), left us of his ethical thought a scientific root that sown in each one, with prudence and lucidity, will germinate elements for the life experience with no need to lose the freedom of presence or to blunt of commotion by the experience of the same. What I want to say, I will do it briefly and objectively, being aware of the inquietudes that may arise by the scarcity of elements or other eligible interpretations. Let us see, then, what I refer to:

– René Descartes (French philosopher – XVII century), in the plane of knowledge, claims the autonomy of the subject of knowledge and in the moral plane reveals himself as a stoic, and the submission to the world is for him the last word about morality. I cite, for the effect, Manuel Lourenço, who says of Descartes the following: His provisional morals presuppose the subordination of the desires of the thinking self to the order of things.

Emmanuel Kant inverts Descartes’ point of view and introduces in morals itself the primacy of the subject. Besides, the dominant preoccupation of the Kantian ethical thought is, in fact, of the establishment of the supreme principle of morality in the autonomous subject that each man represents as a moral being.

– And how does Kant assure the autonomy of the subject in moral action?

If the original effort of his ethical thought is more to comprehend and to justify the principles that base the moral action than to propose new moral values, his moral characterization points to the determining sense of the formal conditions of morality, as in The Critique of Pure Reason had determined the transcendental conditions of knowledge.

Thus, said Kant that the basis of moral values was not in sensitivity or in any transcendent principle, it emanated of Practical and Moral Reason itself. For this purpose, he proposed himself in Fundamental Principles of the Metaphysic of Morals and in The Critique of Practical Reason to develop the fundamental theses about the problem of morals.

– What sense attributes, then, the thinker to moral action?

The question is, in his understanding, on a general characterization, of a privileged area of human behavior, where man can escape from the determinism of natural phenomena, assume himself in a free manner as a person and self-determine his own fate. It is this the sense of his Primacy of Practical Reason; only in the moral plane can man have access to the ideals of reason, surpassing the cognitive limits of understanding.

It is this scientific root that, sown in the reason of each person and planted in the heart of everyone, will allow, most probably, the resolution of many human incomprehensions. It is Kant himself that says in Fundamental Principles of the Metaphysic of Morals: “Nothing can possibly be conceived in the world, or even out of it, which can be called good, without qualification, except a goodwill.”

Actually, the talents of the spirit; the astuteness of spirit, of judging, discernment or the qualities of temperament, like courage, decision and constancy of purpose are natural gifts that are good and desirable; but they might become extremely bad if the will that is used to make use of them were not a goodwill. The same happens with the gifts of fortune – power, wealth, health and the gifts of happiness – well-being, contentment and luck. They are qualities favorable to this goodwill, but they do not have an intimate absolute value; on the contrary, they still presuppose and always a goodwill. Moderation, reflection, self-control and calm; they cannot be declared good qualities without reservations; without the principles of a goodwill, they may become bad.

Only “goodwill seems to constitute the indispensable condition of the very fact of we being worthy of happiness”.

Emmanuel Kant is incisive to this purpose when he says: “goodwill is not good by what it promotes or realizes, by the aptitude to achieve any proposed end, but merely by the wish, that is, in itself, and, considered in itself, should be evaluated in a much higher degree than all that by through it might be achieved in the benefit of any inclination, or even, if you want, the sum of all inclinations”.

And he finishes his great concern with the wake-up call to the practical faculty that is Reason and to the power that this should exert on the influence over the will, not only good, perhaps, as a means to other intention, but as a goodwill in itself… This will will not actually be the only good or the total good, but it will have to be, nevertheless, the supreme good and the condition of everything else, even of all aspiration to happiness.

From this root idea, another one expands itself and gains movement – it is the idea of Duty, which gains conceptual dimension in the affirmation of actions accordant or contrary to Duty, and the philosopher does not tire himself of making feel the value of the difference between the actions that are accordant and those that are contrary, perhaps, and in his philosophic neutrality he does not tire himself of showing a particular fondness for the concept of Duty that should be at the base of that of goodwill…

 

Published in magazine Caminho Novo of 2000.

 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 20)
14.09.2020 19:25
 

     Ainda antes que o táxi chegasse, começara a instruí-la sobre o modo como deveriam comportar-se dentro do salão e perante as personalidades presentes.

     – Quando chegarmos junto da porta de entrada, metes-me o braço e deixas-te conduzir com normalidade. Manténs-te serena e sem te preocupares com o que irei dizer ao responsável pela entrada. Quando entrarmos, iremos procurar uma mesa que não esteja completa; depois, se vier alguém levantamo-nos e misturamo-nos dançando, sempre mais do que o tempo que ficarmos nas vagas de qualquer mesa; não temos mesa marcada e isso pode chamar atenção. Se metermos conversa com alguém, procuremos falar de tudo menos da vida militar, e se alguém perguntar qual o posto que eu tenho, dizes que não sabes nada dos postos militares, que és professora, mas se insistirem sobre os galões, dizes que as divisas do teu marido são da cor vermelha. Porém, se isto acontecer, teremos de inventar uma desculpa e sair o mais depressa possível, pois não poderemos ficar lá por mais tempo.

 

     Ainda não tinham acertado estes pormenores e já o taxista buzinava para os chamar e levar para os lados da praia onde ficava o Clube de Aeronáutica. Tudo indicava que iriam viver uma noite de sonho, ainda que pudesse ser por pouco tempo, mas seria necessário que tudo corresse bem, para que em vez de nervosismo, sentissem fulgor, muito entusiasmo e uma grande paixão. Aliás, aquele momento enchera-se de uma tensão empolgante; ela estava deslumbrante e o seu rosto resplandecia uma luz de inocência debaixo da capelina branca que espalhava raios de uma beleza inebriante. Por instantes, valera-lhe a confiança do marido, que não se deslaçara do que era simples, pois fora assim que sentira sempre a beleza da sua mulher amada. No entanto, também ele projetava um figurino formado de uma compostura que se assemelhava a qualquer príncipe, o fato que vestira pela segunda vez era de cor antracite, a camisa de popelina branca, a gravata, as luvas e os sapatos eram a condizer e continuavam a fazer dele a personagem ideal para um romance a descobrir.

 

     – Vamos! – ordenara ele sem mais desculpas. – O táxi está à nossa espera e é necessário chegar no princípio do baile!

 

     – Vamos! – concordara ela, agora mais recomposta e a dar sentido à beleza que irradiava.

 

     Desceram as escadas do apartamento dando a mão um ao outro, ao mesmo tempo que ficavam mais firmes no caminhar até à porta de saída para entrarem no táxi que os esperava já há algum tempo. Logo que puseram os pés na rua, o taxista cumprimentou-os com deferência, abriu-lhes gentilmente a porta e ajudou-os a acomodar- -se. a viagem pela orla marítima duraria cerca de vinte minutos; apesar de ser noite e começar o seu mistério, a distância não superaria o fascínio da visão do mar e do ondular da maré que riscava a areia da praia para os olhos não a perderem de vista.

 

     – Ali está o Clube! – dissera o taxista apontando para lá.

 

     – Sim, chegámos! – responderam com grande satisfação.

 

     – Aqui tem o dinheiro que me disse! – retorquira o marido.

 

     – Obrigado – agradecera o taxista com votos de feliz Ano Novo. Depois ainda acrescentara: – O Clube de Aeronáutica tem fama de proporcionar festas muito animadas.

 

     – Oxalá seja como diz! – responderam os noviços já a andar para a receção.

 

     Entretanto, à medida que se encaminhavam, ela metera-lhe o braço para melhorar o andar, fazendo tudo para assemelhar-se ao momento em que saíram da igreja no dia do casamento. Esta comunhão de pensamentos enternecera-os o suficiente para baixarem a tensão que o encontro com o rececionista inevitavelmente criaria.

 

     – Boa noite! – saudara-os com uma continência o homem da segurança da entrada.

 

     – Boa noite! – responderam inclinando-se com deferência.

 

     – Têm os vossos convites? – perguntara o segurança com cortesia.

 

    – Ora, bem! O senhor sabe quem somos, não sabe?! – exclamara o marido com cuidado, ao mesmo tempo que lhe apertava a mão soltando-lhe algum dinheiro.

 

   – Sim, Sim! Ora, Ora! Conheço muito bem VV. Ex.as! – exclamara o segurança com autoridade e sem hesitação. – Façam o favor de entrar – manifestando a propósito mais uma continência enquanto lhes abria a porta e indicava a entrada.

 

     Sem perder tempo e com um andar discreto, deram as mãos e entraram com elegância no luxuoso salão. Naquele instante da entrada, o fascínio dos candelabros que enchiam o tecto abrira-lhes a mente para a arte do que é soberbo. Ficaram algum tempo a contemplar o espaço onde a luz se expandia em reflexos no rosto das pessoas ao balancearem os corpos com os compassos da dança. Depois, olharam um para o outro, fazendo alguma cerimónia, enquanto esperavam que a orquestra terminasse e pudessem ver onde haveria alguma mesa para se sentarem por algum tempo.

 

     Entretanto, por entre o arquear das danças e o som apaixonante da música, viram alguns passos à frente uma mão que lhes acenava. Aproximaram-se sorrindo com alguma timidez, pois não tinham a certeza de estar perante o convite para uma mesa que tão ansiosamente desejavam.

 

     – Olá, muito boa noite! – exclamara uma senhora que os conhecera. – Sejam bem -vindos ao nosso Clube. É a primeira vez que vêm cá, não é? – perguntara com delicadeza.

 

     – Muito obrigado – agradeceram sem tibiezas. – De facto, é a primeira vez que vimos ao Clube, desta vez não poderíamos faltar a esta grande festa – responderam como se não fossem estranhos.

 

    – Têm mesa marcada? – perguntara a senhora com afectividade. E, num súbito, prevendo talvez a resposta negativa, consertara a situação. – isso não importa para o caso. Se estiverem de acordo, ficam aqui na nossa mesa, não é verdade?! – exclamara ao mesmo tempo que olhava para os restantes membros da mesa.

 

     – Sim, sim, ficam na nossa mesa! – responderam todos. Depois acrescentaram: – Têm muito que comer e será com o maior prazer que conviveremos juntos nesta noite tão especial. Aliás, está na hora de começarmos a aquecer o ambiente; por agora basta de marisco, e a hora das doze passas está a chegar. Nessa altura festejaremos todos com grande alegria e muito champanhe. Fiquem, sem cerimónia, enquanto vamos começando a alegrar o ambiente.

 

     Na mesa estariam dez pessoas, mas o marisco e outras iguarias dariam para outras tantas; estava tudo uma delícia, e, enquanto os pares mais velhos abaulavam com as valsas vienenses, os jovens nubentes comiam e gulosavam entre o tempo em que duraria aquele sonho. Consolados com o manjar e os sumos saborosos, encetaram o naipe de dançarinos estreantes, deslocando- -se com mestria nos espaços do salão que iam sobrando nos intervalos dos compassos da dança.

 

     Esta intimidade não durara muito, a algazarra e os festejos começaram a aumentar à medida que a meia-noite chegava e, com ela, os doze desejos, que cada um escolheria na ânsia de ser feliz e poder realizá-los.

 

    Todos juntos e a dançar aos encontrões, cantavam cada vez mais alto ao som da orquestra, que se perdia na confusão da algazarra, dando lugar ao contar dos segundos para chegar ao Ano Novo com a abertura do champanhe e todas as felicitações: dez, nove, oito, sete, seis, cinco, quatro, três, dois, um, e as rolhas das garrafas soltavam- -se em todas as direcções para se encherem os copos e afogar as doze passas enquanto ainda duravam os segundos.

 

     – Felicidades, felicidades! – gritavam todos a tanger os copos num instante tilintar e a beber o néctar das sagradas paixões.

 

   – Feliz ano novo e que venha repleto dos desejos de todos nós – repetia da banda o intérprete das músicas que enchiam as almas de alegria e os corpos de êxtase.

 

     Ainda durara algum tempo aquela alegria indescritível, embora aos jovens lhes parecesse sempre que este sonho seria fugaz. Quando houve uma pequena pausa na orquestra para organizarem as músicas e felicitarem ainda mais os presentes, as mulheres juntaram- -se em pequenos grupos, ficando os homens um pouco mais dispersos e entretidos com os copos de champanhe que transbordavam discretamente e com abundância.

 

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 90 a 95.

 
 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 19)
04.09.2020 17:35
 

      Durante algum tempo a voz da jovem noiva emudecera, olhara pela janela o jardim que ladeava a residencial onde viviam, ao mesmo tempo que ia pensando na resposta que deveria dar e que não deveria quebrar o encanto daquele momento singular. Voltara-se em sua direção e com um gesto quase teatral contemplara-o de um modo longo e profundo, respondendo em tom envergonhado:

      – Oh, homem, tu bem sabes que eu não tenho jeito para essas coisas. Mas, como ainda falta muito tempo para o fim do ano, pode ser que até lá surjam outras sugestões ou que eu ganhe coragem para realizarmos a tua vontade.

      Porém, ainda não tinham terminado o instante das palavras, quando ouviram alguém bater à porta.

    – Sou eu, senhora professora! – exclamara baixinho a Dona Irene para não perturbar o silêncio de ambos. – Eu queria muito falar com a menina! – sussurrara ainda mais baixinho.

     Era assim que esta delicada senhora tratava a jovem professora. Chamava-a de vez em quando para lhe falar de algo que teria acontecido ou para segredar-lhe recordações da sua vida tantas vezes vivida em solidão e com alguma nostalgia à mistura.

     A professora, ainda com um ligeiro rubor do momento de afeto, abrira a porta e indagara: – O que há, Dona irene, o que é que se passa? A senhora está bem? – interrogara com carinho.

      – Está tudo bem, não há qualquer problema, mas não consegui conter-me com o que observei há pouco – concluíra, esboçando gestos com alguma estupefação. – É que há bocadinho fui dar com o empregado da pensão a falar sozinho, como se as pedras o escutassem! Estava voltado para o terraço e murmurava algo que não consegui entender, mas não me pareceu boa coisa – acrescentara, cerrando os lábios em gesto de desconfiança.

      – É verdade, Dona irene, a senhora tem muita razão! – exclamara a professora. – Eu própria já me assustei um pouco com esses sinais, mas acabei por acreditar que se calhar é a forma que ele encontra para desabafar dos ralhos que o patrão lhe dá. Além disso, ele já não é criança e já está há muito tempo com eles, por isso, como não pode fazê-lo de outro modo, responde-lhe indiretamente!

      – Oxalá seja assim como diz a menina! – concordara com alguma tolerância e já mais tranquila. E, quando se aproximava para despedir-se com um beijo, a jovem professora exclamara repentinamente:

     – Ó Dona irene, o meu marido está cá com umas ideias, que eu nem sei o que dizer-lhe sobre o que ele me pediu. Não é que anda todo eufórico com o desejo de irmos passar o Ano Novo ao Clube de Aeronáutica! Diz que o meu vestido de noiva, porventura cortando-o nas mangas e subindo-o um pouco, faria um sucesso e seria uma surpresa naquela noite de gala! Olhe para o que lhe havia de dar! – exclamara com disfarçada satisfação.

     – E porque não lhe faz a vontade? – questionara a gentil senhora com delicadeza. – A menina tem o brilho das noivas e vestida com semelhança não ficará muito diferente de uma modelo parisiense. Digo-lhe que seria com muita alegria que lhe arranjaria o vestido, creio que o seu arranjo seria simples e não perderia a beleza que tem. – Depois acrescentara jubilosamente: – A menina vai sentir-se como nos contos de fadas, em que a beleza do rosto também ressurge num lindo vestido branco que desvenda as imagens do Céu.

       Com estas palavras, a jovem professora ficara emocionada e sem condições para não fazer a vontade ao marido.

      Quando voltara para dentro trazia um sorriso rasgado pela alegria com que fora contagiada, mas ao mesmo tempo procurava conter-se, pois tinha consciência de que seria um passo que deveria dar com alguma prudência.

     – Que tens? – perguntara o marido. – Estiveste a falar tanto tempo com a Dona Irene; há algum problema? – interrogara com cuidado.

     – Não, não há nenhum problema! – observara tranquila. – O que se passa é que ela diz que parece haver qualquer coisa de estranho com o empregado, pois julga que ele não andará com bons pensamentos. – Depois acrescentara: – Eu tranquilizei-a: disse-lhe que ele já tinha uma certa idade, e pelo facto de ser o empregado mais antigo, provavelmente diria alguns disparates quando está só e, se calhar, quando está mais irritado, pelos ralhos que o patrão lhe vai dando constantemente.

      E, para não preocupar mais o marido, aproveitara para lhe contar o que a Dona Irene lhe dissera sobre a possibilidade de festejarem a noite de Ano Novo no Clube de Aeronáutica. Com esta surpreendente mudança de atitude, ainda antes de ela concluir a explicação, já o marido dava pulos de contente, ao mesmo tempo que a segurava, para ensaiarem os passos de dança que o futuro projetava nos cinco sentidos e os corações começavam a abrir ao sonho.

     Com o quartel, a pensão, a escola e os alunos, lá iam derramando a vida com o romantismo próprio de quem ainda está em lua de mel. Às vezes, eram tão improvisados e espontâneos que se envolviam em afetos na escola onde ela lecionava, como se estivessem fora do sistema, ele que a ia visitar montado numa bicicleta do tempo da Segunda Guerra Mundial, e ela que o esperava como a um anjo protetor que lhe daria forças para continuar a ensinar os seus negrinhos. Era assim que os sentia e foi assim que o marido os sentira também, pois não pudera impedir de deixar cair-lhe uma lágrima quando se despedira dela no aeroporto de Porto Amélia e ouvira inesperadamente uma mãe a apontar insistentemente para o céu e a dizer com emoção: – Olha o avião, meu filho, ali vai a tua professora!

     Entretanto, chegara o final de dezembro a proporcionar um certo nervosismo pela ansiedade da aventura que tinham prometido realizar para passarem a Noite de Fim de Ano num modo mais ousado, na procura de um momento de felicidade única. Tinha mostrado ao marido o vestido com as alterações que a bondosa senhora lhe realizara, os sapatos, a capelina e as luvas, mas fizera questão de se preparar apenas à noite e pouco antes de saírem para a festa. Ao almoço ficara calada durante todo o tempo, pouco comera e de vez em quando suspirava, parecendo denotar alteração na saúde e quebra de disposição para a alegria. Esta mudança de humor não causara grande estranheza, pois estavam casados há três meses e o facto de ela ter ido com o marido para África tinha provocado nestes primeiros tempos estados de grande nostalgia. Por outro lado, embora continuassem a comer na pensão, tinham alugado uma casa que lhes permitia mais intimidade e aconchego, embora os levasse a reconhecer que pouco mais tinham do que a cama para dormirem, o que, sendo desagradável para ambos, a mulher sentiria um pouco mais de insatisfação e desânimo.

     Ao cair da tarde, o marido chegara do quartel, dirigira-se ao pátio da pensão onde normalmente ela se sentava a conversar e o esperava para jantarem. Dera-lhe um beijo mais acalorado, ao mesmo tempo que saudara os presentes, incluindo a Dona Irene, que sempre admiraram como uma senhora muito respeitável.

     Comeram, fazendo questão de não quebrarem o ambiente para a Noite de Fim de Ano; para isso, pedira ao empregado que lhe trouxesse um café e um whisky que fora bebendo com desembaraço, pedindo à mulher que bebesse também um pouco, pois sabia que seria necessário a partir daquela hora que todas as energias fossem orientadas para o momento da aventura que se aproximava rapidamente.

     – Como é que vamos para o Clube de Aeronáutica? – interrogara ela com curiosidade.

     – Vamos de táxi, mulher! – respondera o marido sem hesitar.

     – A que horas vamos sair de casa? – perguntara sem convicção.

     O marido, percebendo que o sentimento dela não tinha evoluído para a euforia que desejava, recolheu-se por algum tempo num silêncio conjugal, para que a comunicação fosse um sentimento de alma e a vontade palpitasse pelo desejo da liberdade. Escudado na intimidade, procedeu como se não tivesse notado nada, interpelando-a carinhosamente:

    – Estava a pensar se não seria melhor irmos para casa e começarmos calmamente a preparar-nos. Não sei se falta alguma coisa, mas pelo menos será preciso falar com um taxista, para que lá por volta das 10h00 nos vá buscar a casa. Será necessário eu ir à praça para fazer a marcação, e isso também demorará algum tempo – justificando deste modo a pressa com que insistira para regressarem a casa.

     De mãos dadas, desceram em silêncio a rua até onde moravam e junto da porta de entrada separaram-se até que ele marcasse a hora com o taxista que os levaria ao clube à hora marcada e quando estivessem prontos.

     Quando o jovem esposo entrou em casa, vindo da praça de táxis, dirigiu-se para o quarto e procurou no roupeiro o fato que vestira no dia do casamento.

    De repente ficara toldado de paixão amorosa e começara a imaginar que a cor escura de antracite sobressairia ainda mais naquela noite africana. A camisa de cor branca daria a aparência da pureza própria da juventude. E os sapatos de verniz, as luvas e a gravata exaltariam a coragem e a beleza que o toque da estética releva em certas noites de esplendor.

     Mergulhado naquele delírio de inocência, sentira que a mão da esposa lhe tocara nas costas para o fazer voltar e surpreender no instante da aparição, para a realidade que parecia voltar a ser sonho. Até ela, antes de mostrar-se, tivera a impressão de reviver o momento em que desfilara no adro da igreja até se inclinar no altar.

     – Olha para mim! – sussurrara com carinho. – Estou bem, estou bonita? – interrogara curiosa. – Era assim que querias? – indagara com alguma sedução. E como ele não respondera, nem parecera estar a ouvir o que ela dizia, resolvera provocar-lhe a consciência: – Vá lá, diz lá alguma coisa, diz que isto foi um erro, que o vestido não ficou bem, mas por favor fala, antes que eu comece a chorar e perca a vontade de ir.

     Entretanto, já com as lágrimas a correr-lhe pela face, começara a ouvi-lo pronunciar as primeiras palavras ao mesmo tempo que a agarrava e beijava sem saber muito bem o que fazia.

     – Desculpa, não consegui entender o que senti no momento em que olhei para ti, pareceu-me teres surgido de um sonho, senti algo tão sereno e cálido que não fui capaz de responder, aliás, tudo o que eu dissesse não corresponderia ao sentimento que ainda rejubila na minha alma. Agora tenho a certeza de que o que pensei é real, que ambos iremos causar admiração no baile e que a primeira dança será de gratidão pelo amor que celebraremos nesta noite.

 

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 85 a 90.

 

 

“De graça recebestes” / “Freely you have received”

29.08.2020 18:30

“De graça recebestes, de graça dai.”

 

    Desde há muito tempo que mantenho a convicção de que um dia poderei vir a adquirir a capacidade espiritual necessária para a compreensão do que vou desejando de mais importante para a minha vida, isto é, vir um dia a conseguir obter o saber sobre a verdadeira essência daquilo que realmente é (daquilo que é sem qualquer dúvida), para então, também poder ser capaz de interpretar com mais nitidez o que vou sentindo no meu interior, sobretudo sobre certos aspectos da misteriosa transcendência da minha vida.

    E este desejo tem crescido continuamente por ainda acreditar ser capaz de poder deixar de sentir a minha existência sempre com tantas dúvidas, dúvidas como todas aquelas que ainda sinto, mesmo já nesta fase da minha vida! Sobretudo sentindo a ordem do Mundo Social quase sempre de um modo tão intermitente e quase sempre tão fugaz e efémero e não tão constante e permanente como gostaria de o sentir.

    Permanente, pelo menos quanto bastasse e fugaz no mínimo quanto possível, para a partir daí sermos capazes de poder sentir com firmeza todos os seus elementos na conjugação diária com os nossos semelhantes e sempre com a devida constância e suficiente clareza para os podermos avaliar com perfeição na justa medida dos nossos actos.

    A propósito e como prova para o efeito da reflexão por mim desejada em sentido comum, começa logo, por ressaltar em mim, uma de entre as várias das minhas grandes preocupações, uma das tais que há muito me interpelam, e que consiste em poder conhecer e sentir verdadeiramente qual o valor espiritual que terá a expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    É natural que em absurdo me possa penitenciar nesta limitação, contudo, não deixarei de dizer com humildade e certa confiança que ao longo da minha vida sempre tenho procurado ser mais do que aquele aluno que se limita a ficar pela normalidade e não luta para ir mais além na procura do mais puro, na preocupação de escutar e no esforço da compreensão de tal mensagem. Pois com a consciência inquieta e numa vontade permanente, tento sempre libertar-me de mim mesmo, esforço-me por fugir da assunção de culpa, por abstinência ou renúncia na procura de vir a ser melhor. Todos os dias vou aspirando com grande fé que me torne em todas as ocasiões, por mais simples que elas sejam, que me torne absolutamente no “Eu sou” e no “eu pareço”, e não no seu contrário: “Eu pareço, mas eu não sou!”

    Nesta expectativa, continuo com grande insistência a evocar a sabedoria e a trabalhar pensando e escrevendo com afinco e total desprendimento de mim mesmo, para poder vir a melhorar em tudo quanto seja possível sobre uma tal dependência existencial, ou seja, continuando a fazer um grande esforço para compreender esta inquietação e a aplicar com a consciência plena de estar a fazer tudo para ir ao encontro da expressão: “De graça recebestes, de graça dai.” (Mateus 10:8.)

    Porém, apesar de estar no centro de todas estas minhas preocupações complexas, decidi hoje compartilhar também convosco uma das minhas ansiedades (que sendo maioritariamente pessoal, julgo que se esta não vier a encontrar comunhão social comum, de pouco me valerá desabafar tal ansiedade e muito pouco também poderá ajudar a melhorar a compreensão do nosso semelhante) sobretudo, nesta ocasião e neste período social, que ao que me parece se vai tornando cada vez mais caótico e desleixado: “está sempre tudo bem, não existe culpa e todos são inocentes”, vivemos num mundo cada vez mais insano, injusto e inacreditável.

    Até parece que estamos a viver, julgo que inconscientemente, no reinado (da mentira, da burla, da injustiça, da falsidade, da infidelidade, da descrença, da maldade, etc.), sendo que com esta triste vantagem que têm ganho estes valores tão negativos vai começando também a florescer a crença num pensamento social, de que já serão muito poucos aqueles que ainda vão merecendo a nossa confiança e o nosso respeito no sentido Universal, já não valerá a pena “gritar aos quatro ventos”!

    Vai-se perdendo o respeito, sempre tão sublime e tão necessário, para a Humanidade e para a Vida do Universo, para poderem manter-se fortes, coesas e decididas pela progressão do Bem e da Harmonia, dois pilares básicos do nosso lindo e magnífico planeta Terra, apesar de este ser um pequeno grão a pulsar no fascínio do Universo.

    Ainda assim, proponho ainda antes de terminar este “desabafo” e na oportunidade de agradecer a todos vós do fundo do meu coração, pois são já tantos aqueles e aquelas a quem devo um agradecimento de elevado reconhecimento, pela dedicação com que vão lendo o que vou escrevendo e ouvindo o que vou dizendo, fazendo-o sempre com a serenidade e a paciência necessárias, sinal que em silêncio me faz meditar e agradecer, tornando-me, como qualquer homem, frágil em certas ocasiões, pois sou humano e isso, por muito que me esforce, sempre me comoverá, mas também me compensará e me ajudará a continuar a caminhar por aí!...

    Peço desculpa por tender a manter-me num certo anonimato e não responder de modo particular à amizade que me dedicam; contudo, ainda que ficando em silêncio, desejo que vejam neste meu gesto um sentimento universal de gratidão, pois sempre que posso, não me esqueço de ver nenhum pormenor ou comentário que façam, e acreditem que fico às vezes a desejar ser menos impessoal, daí que apelo para que me torne capaz de fazer com que todos sintam da mesma maneira, tudo o que eu sinto de satisfação e contentamento e também medito no modo de que eu seja capaz de dizer em espírito tudo o que de bom me vai na alma, e oxalá que me fosse permitido que o pudesse fazer simplesmente numa folha de papel em branco, uma folha onde pudessem ler e sentir em cada palavra, de modo total e absolutamente puro, o tal sentimento “De graça recebestes, de graça dai”.

Macedo Teixeira

“Freely you have received, freely give.”

 

Since long ago I maintain the conviction that one day I might come to get the spiritual capacity needed for the comprehension of what I am wishing of most important to my life, that is, to come one day to be able to get the knowledge about the true essence of what really is (of what is without any doubt), so that then also be able to interpret with more neatness what I am feeling inside of me, mainly about certain aspects of the mysterious transcendence of my life.

And this wish has continuously grown because I still believe I am capable of stopping to feel my existence always with so many doubts, doubts like all those that I still feel, even now in this phase of my life! Especially feeling the order of the Social World almost always in such an intermittent and almost always so fugacious and ephemeral way, but not so constant and permanent like I would like to feel.

Permanent, at least just the right amount and the least fugacious possible, so that from there we are able to feel with firmness all its elements within the daily conjunction with our fellow-creatures and always with the due constancy and enough clarity so that we may evaluate them with perfection in the just measure of our acts.

Apropos and as a proof for the effect of the reflection wished by me in a common sense, it starts immediately to stand out in me one from the several of my great concerns, one of which interpellates me since long ago, and which consists in being able to truly know and feel what is the spiritual value that has the expression: “Freely you have received, freely give.” (Mateus 10:8.)

It is natural that in absurd I may be penitent within this limitation; however, I will not stop saying with humbleness and with a certain confidence that throughout my life I have always sought to be more than that pupil who does no more than stay by normality and does not struggle to go further in the search for the purer, in the preoccupation of listening and in the effort of the comprehension of such message. Since with a restless conscience and in a permanent will, I always try to free me from myself, I struggle to escape the assumption of guilt, by abstinence or renounce in the search to become better. Every day I aspire with great faith that I become on all occasions, no matter how simple they are, that I become absolutely the “I am” and the “I look like”, but not its contrary: “I look like, but I am not!”

Within this expectation, I continue with great insistency to evoke the wisdom and to work by thinking and writing doggedly and with total detachment from myself, so that I may improve in all that is possible over such an existential dependence, that is, by continuing to make a great effort to understand this concern and to apply with the full conscience of doing everything to go in search of the expression: “Freely you have received, freely give.” (Matthew 10:8.)

However, despite being at the center of all these complex concerns of mine, I decided today to share also with you one of my anxieties (which, being predominantly personal, I think that if it will not meet common social communion, it will worth little to pour such anxiety out and very little it might help to improve the comprehension of our fellow-creature), especially on this occasion and in this social period, which it seems to me it will become even more chaotic and careless: “everything is always fine, there is no guilt and everyone is innocent”, we live in a world even more insane, unfair and unbelievable.

It even seems that we are living, I think that unconsciously, in the predominance (of lie, of swindle, of injustice, of falsehood, of infidelity, of disbelief, of wickedness, etc.), and with this sad advantage that these so negative values have won, it also begins to flourish the belief in a social thought, that it will already be very few those who are still deserving our trust and our respect in the Universal sense, it will no longer be worthwhile to “scream to the four winds”!

We are losing respect, always so sublime and so necessary for Mankind and for the Life of the Universe, so that they may be strong, cohesive and settled for the progression of Good and Harmony, two basic pillars of our beautiful and magnificent planet Earth, in spite of it being a small grain pulsing in the fascination of the Universe.

Nevertheless, I propose still before finishing this confidence and in the opportunity of thanking you all from the bottom of my heart, since are already so many those to whom I owe a gratitude of elevated acknowledgement, for the dedication with which you are reading what I am writing and listening to what I am saying, always doing it with the needed serenity and patience, a sign that, in silence, makes me meditate and thank, becoming myself, like any man, fragile on certain occasions, since I am human and that, no matter how hard I try, will always touch me, but it will also compensate me and will help me to walk thereabouts!...

I apologize for me tending to keep myself within a certain anonymity and for not responding in a particular way to the friendship you dedicate me; however, even remaining in silence, I wish that you see in this gesture of mine a universal feeling of gratitude, since whenever I can, I do not forget to see any detail nor comment you make, and believe me that sometimes I keep on wishing to be less impersonal; hence I appeal to myself so that I become capable of making everyone to feel in the same way everything I feel of satisfaction and contentment, and I also meditate on the manner in which I am able to say in spirit everything good that goes in my soul, and God grant that I was allowed to do it in a simple blank sheet, a sheet where you could read and feel in each word, in a total and absolutely pure way, such feeling “Freely you have received, freely give”.

Macedo Teixeira

Caminho de Luz e Sombra (Texto 18)
20.08.2020 16:35
 

     O voo até à cidade da Beira em Moçambique demorara catorze horas, com escala em Luanda de cerca de uma hora. Para a primeira experiência em viagens de avião, se não fora o facto de ir para a guerra teria tido um certo deslumbramento e algum fascínio. Mesmo assim, entre o ressonar de alguns e o burburinho de outros, lá surgia de vez em quando uma alegria contida, para chamar o pessoal de bordo e confraternizar o momento com uma cerveja que bebia com elevada satisfação. Depois ficara deslumbrado pela surpresa do avião e fora registando no bloco de notas, para memória futura, algumas das indicações dadas pela tripulação e outras realidades descobertas por si mesmo. Escrever fora sempre um dos melhores passatempos que tivera naquela longa viagem. Depois, o fim do ano também já estava próximo fazendo nascer a ilusão de que a festa pelo novo ano seria uma oportunidade para uma grande noite de farra. Por isso, se houvera algum momento ansioso também houvera alguma ilusão, a recordação da mulher amada, a visão do espaço nas alturas e alguns movimentos mais bruscos produziram um sentimento que era preciso superar com alguma fantasia, brincar com alguém, contar uma história e anotar acontecimentos ajudariam sempre a passar melhor o tempo e a sentir menos a viagem.

     Por volta das seis horas da manhã, foram informados pela tripulação de que dentro de pouco tempo aterrariam no aeroporto de Luanda para embarcarem uma hora depois no avião que os levaria até Moçambique, onde aterrariam na cidade da Beira. Entretanto, olhara pela janela e num súbito fora tocado por um desejo de rapidamente sentir pousar no chão as rodas do avião. Mesmo assim, não pudera deixar de sentir as ondas do calor que viera do chão, já que o avião parecia ir ao encontro do Sol, que nascia como uma bola de fogo alimentada pelas casas de colmo que serenamente se lhe entregavam. Uma hora depois, e já bem acordados, levantaram voo do aeroporto de Luanda com destino a Moçambique e à cidade da Beira. Ao cabo de catorze horas chegaram ao Aeroporto da Beira para seguirem depois noutro avião para Nampula. A viagem da Beira para Nampula decorrera num ambiente menos militar, o pessoal de serviço era feminino, a comunicação era mais sedutora e viajar de dia será sempre mais agradável.

     Passara a noite de fim de ano em Nampula, o local era agradável e a banda esforçava-se por animar os civis mas também os militares que nesta ocasião se juntaram para saudarem o novo ano.

     Conta, quando a propósito, que não esquecerá facilmente a última noite de 1972, uma vez que fora marcada pela diferença de horário entre a África e a Metrópole e por isso só festejara a entrada do ano novo uma hora depois. E se este facto mostrava que havia alguma diferença no conceito de tempo entre a tradição colonial e a tradição da metrópole, a forma de celebração da noite de Ano Novo entre os colonos e os militares acentuou ainda mais esta diferença, pois a riqueza e a alegria dos primeiros contrastou com o champanhe a jorrar ao som das valsas de Johann Strauss e as carícias entre os pares, enquanto as tristezas dos segundos se misturavam na Coca-Cola e nas rejeições das donzelas que não pareciam gostar de conviver com os militares.

     Depois desta noite bem amarga recebera instruções sobre o modo como iriam em coluna militar e a forma de ação a desenvolverem como meio de proteção e defesa. Vestira a farda de combate, verificara a espingarda e o carregador com as munições e seguira numa viatura militar com os outros para o distrito de Cabo Delgado e Porto Amélia durante seis horas à chuva e ao sol, onde haveria de permanecer durante mais dois anos no cumprimento da totalidade do tempo de serviço, que fora de três anos e três meses.

    Não foram os perigos da guerra que o perturbaram, pois tivera a sorte de ficar num comando de setor e num aquartelamento que tratava do apoio no arranjo das viaturas e da responsabilidade por um paiol para a recolha e distribuição de munições. Além disso, entre outras ocupações que tinha no quartel, a ocupação de auxiliar de enfermeiro conferia-lhe a responsabilidade por todo o pelotão e todo o pessoal civil que lá prestava serviço. De tal modo que, associada ao seu empenho, estava a responsabilidade de ser o primeiro a decidir e a tratar na situação de doença dos utentes, uma vez que só na ausência de meios ou de conhecimentos é que deveria acompanhar os doentes até à enfermaria do setor onde seriam observados por um médico, que, achando necessário, os medicaria e internaria ou mandaria regressar de novo ao quartel para ficarem com baixa à guarda do auxiliar de enfermeiro até se restabelecerem completamente. Mas, três anos e três meses de tropa foram muito tempo, e se no conjunto houve algumas alegrias também houve muitas tristezas, sobretudo por aqueles que tombaram em defesa da Pátria.

     Valera-lhe a aventura de ter casado quando ainda não tinha um ano de serviço na colónia africana. Prometera à sua amada, quando partira, que casaria logo que regressasse, mas a confiança que tivera que, como professora, a sua esposa seria bem recebida em Moçambique e também que possivelmente não seria transferido para locais onde se travava a guerra, levara-o a vir casar à metrópole e a levá-la consigo para aquela terra africana. Não fora fácil esta decisão, pois estaria em causa o começo da vida conjugal, longe da família, numa idade bastante jovem e com a possibilidade, ainda que muito remota, de poder ser deslocado para a frente de batalha. Felizmente que tudo decorrera pelo melhor e o serviço militar acabara por ser enfadonho, não pelos problemas que tivera na guerra, mas pelo tempo de serviço que fora muito mais longo que o normal. Aliás, ainda lá conseguira fazer alguns exames, chegando quase a completar o segundo ciclo dos liceus, faltando-lhe apenas a disciplina de Física, que concluíra como aluno externo no Liceu de Gaia no ano de 1975. Recorda estes factos como algo que muito contribuíra para a história do que tem sido o melhor da sua vida e, com um raciocínio tolerante, lá vai omitindo algumas aflições e relevando algumas alegrias, na justificação do que fora necessário para viver e manter o equilíbrio entre o social e o militar.

     Não fora fácil conviver com as altas personalidades políticas, militares e de segurança da Região e Comando onde fora colocado; a sua graduação militar era do nível das praças e o seu estatuto era muito humilde. A mulher, por inerência do cargo de professora e do seu estatuto, era convidada com frequência pelas esposas destas personalidades para festas e cerimónias. A maior parte das vezes não correspondera ao convite pelos problemas que isso poderia causar ao comandante do marido, que era um excelente militar e uma boa pessoa, contornando sempre as disposições militares e permitindo que este andasse vestido à civil fora do quartel e, quando conveniente à função familiar, estivesse com a esposa a participar na receção, fosse a um ministro ou a outra entidade superior.

     A propósito desta dificuldade, revela com alegria uma peripécia com contornos de alguma gravidade, destacando neste cenário a ajuda de uma personagem enigmática, que não conheciam nem nunca chegaram a saber quem seria aquela pessoa bondosa que lhes permitira, mesmo perante a aflição, conseguir que aquele momento não deixasse de ser feliz.

     – Não sei porque é que tem que ser assim, porque é que terei de andar meio escondido – dissera isto, numa tarde, quando chegara a casa do quartel e viera mais arreliado pelas humilhações sofridas. Afinal, um cabo, um soldado ou um capitão, não serão todos militares? – Porque é que todos aqueles com um posto inferior a sargento, para trajar à civil têm de ser autorizados, com exceção no período do gozo de férias, e os outros, sempre que queiram, podem fazê-lo, condicionados apenas pelas horas de serviço e pelo local onde o exercem? É algo que não faz sentido, já basta ganharem mais e terem mais honrarias, quanto mais ainda nos sujeitarem a esta discriminação! – exclamara, vociferando, o jovem militar.

     – Oh, homem, não sei porque estás a lamentar-te! De facto, todos os dias vens fardado, mas não virias à civil se quisesses? – interrogara-o a esposa, ao mesmo tempo que lhe fazia uma pequena carícia.

    – Lá nisso tens razão! – respondera com gentileza. – No entanto, para ter essa liberdade, vale-me o meu comandante, que com esse gesto permite que eu possa identificar-me com a sociedade civil! Se não fosse ele, teria de andar sempre escondido e separado algumas vezes de ti nos atos de maior solenidade! – acrescentara nestes modos para defender e exaltar a atitude do seu tenente.

   – Sendo assim, porque é que estás sempre a lembrar-te desta questão se ela não te afeta?! – observara ela, ao mesmo tempo que procurava desvalorizar as diferenças que os separavam no estatuto.

   – Não é bem assim! – voltara de novo à carga. – Repara na diferença que existe sobre o acesso aos lugares onde se divertem os oficiais e esposas, não é verdade que tu poderias frequentá-los e eu não? – interrogara-a um pouco furioso. E continuara: – Não somos feitos da mesma massa, não contribuímos ambos para a socialização e defesa dos valores que eles apregoam defender? Então, porque é que como casal temos de viver com tantas preocupações acerca dos lugares e acontecimentos que são comuns? Já não falo das festas, que é uma questão mais particular de cada grupo, mas receber um ministro ou um alto dignitário do governo, não achas que poderíamos estar juntos sem termos de pedir para isso? Ou se eu ficar atrás de ti, junto da multidão, por incompatibilidade de estatutos e tu em frente na tribuna, será que isso dará mais solenidade ao ato, e estaremos nós socialmente mais motivados? – observara com tristeza e perplexidade.

     Repentinamente e sem que a mulher estivesse a contar, propôs-lhe uma aventura que, embora ousada, parecera-lhe que viria a propósito para contrariar esta questão.

  – Sabes onde fica o Clube de aeronáutica? – perguntara com alguma delicadeza.

 – Sei, é aquele edifício que tem desenhado na fachada uma imagem de aviões, não é?! – respondera um pouco intrigada.

  – Sim, é esse mesmo – confirmara com entusiasmo.

     E, continuando, lá fora acrescentando com algum rodeio: – Estamos a chegar à noite de fim de ano, vai fazer-se lá uma grande festa, a festa da passagem para o ano Novo que tem fama de ser uma festa excelente.

Depois, como se já tivesse passado todo o azedume das frustrações referidas, fora mais direto ao assunto:

 – Tens o teu vestido de noiva, os sapatos e a capelina; que dizes se fôssemos lá passar a noite de Ano Novo? Penso que bastaria um pequeno arranjo no vestido, cortando as mangas à medida de sobressair nos teus braços o moreno da tua pele e as luvas na beleza das tuas mãos. Nessa noite, gostaria que fôssemos conviver e dançar até nos envolvermos tanto que voltássemos a reviver o sonho de quando nos olhámos pela primeira vez. Que dizes?! – insistira com um olhar cativo.

 
Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 79 a 85.
 
 
 

Estrela do Mar / Star of the Sea

17.08.2020 17:50

Estrela do Mar

 

Quando eu era pequenino,

ouvia sem perceber

súplicas elevadas aos Céus,

mulheres falando a correr

 

Lavavam em água corrente,

batiam na pedra agitadas,

destorciam a roupa enroscada,

com fé a agradecer

 

Nossa Senhora Bendita

nos acuda nos trabalhos,

que até a ganharmos o pão

podemos cair em atalhos

 

“Que mal pode vir, mulher?”,

perguntava a Rosa do lado.

Em coro gritavam as outras:

“Sempre existe o mau-olhado!”

 

Voltava a Maria Amélia:

“Mas é preciso ter fé!...”

Respondendo de rajada:

“Quem mataram em Nazaré?

 

“Não foi um Homem Bendito?

Fez bem e recebeu o mal!...

Por isso, nossa amiga Rosa,

em nós pode ser igual”

 

“Vocês têm muita razão”,

lamentava a São em desdita,

“Por não prestar atenção,

anda a minha alma aflita

 

“Meu filho vai para a Guerra,

meu homem está muito doente,

antes eu gritava aos quatro ventos:

‘Sou forte, e não sou crente!...’

 

“Agora de alma perdida,

choro os dias na escuridão.

Nossa Senhora Bendita

me socorra, me dê a mão!...”

 

“Em tua alma arrependida,

a Bendita te dará o perdão,

e não demorará muito tempo

a sentires no coração

 

“Teu esposo ficará bom,

teu filho virá a são e salvo.

Com Fé, Luz e Coragem,

jamais perderás o teu pão!...”

 

Nossa Senhora Bendita

nos acuda nos trabalhos,

que até a ganharmos o pão

podemos cair em atalhos

 

Sei que já lá vamos no fim,

entre a última carruagem.

Não deixes andar o comboio;

faz connosco a viagem

 

Alguns já mal Te escutam,

estão perdidos na ilusão.

Senhora, faz com que vejam

a tatear na escuridão

 

Nossa Senhora Bendita

nos acuda nos trabalhos,

que até a ganharmos o pão

podemos cair em atalhos.

Macedo Teixeira,Agosto de 2020

 

Star of the Sea

 

When I was a little boy,

I listened without understanding

to pleas elevated to the Heavens,

women speaking in a hurry

 

They washed in running water,

they stroke on stone agitated,

they straightened the twisted clothes,

with faith thanking

 

Our Blessed Lady

come to rescue in the works,

because even when we earn our bread

we may fall into obstacles

 

“What evil may come, woman?”,

asked Rose on the side.

In chorus shouted the others:

“There is always evil eye!”

 

It turned Maria Amélia:

“But it’s necessary to have faith!...”

Answering right away:

“Whom they killed in Nazareth?

 

“Wasn’t He a Blessed Man?

He did good and received evil!...

Therefore, our friend Rose,

with us it may be equal”

 

“You are very right”,

lamented São with unhappiness,

“For not paying attention,

my soul is troubled

 

“My son goes to War,

my man is very sick,

before I shouted to the four winds:

‘I’m strong, and I’m not a believer!...’

 

“Now with a lost soul,

I cry every day in darkness.

Our Blessed Lady,

help me, give me your hand!...”

 

“In your repentant soul,

the Blessed One will give you forgiveness,

and it won’t take much long

until you feel her in the heart

 

“Your husband will get well,

your son will come safe and sound.

With Faith, Light and Courage,

you will never lose your bread!...”

 

Our Blessed Lady

come to rescue in the works,

because even when we earn our bread

we may fall into obstacles

 

I know that we already go in the end,

between the last wagon.

Don’t let the train move;

make the journey with us

 

Some barely listen to You,

they are lost in illusion.

Lady, make them see

groping in darkness

 

Our Blessed Lady

come to rescue in the works,

because even when we earn our bread

we may fall into obstacles.

 

Macedo Teixeira,August de 2020.

 

 
 

Laços de Ternura / Bonds of Tenderness

17.08.2020 16:25

Laços de Ternura

 

Deixa-me agora tratar-te simplesmente por tu;

é assim, neste amor, que também os teus netos me tratam!

Não será pior, penso eu, que também amarás como se fosses tu...

Nós somos os mesmos; o tempo e as circunstâncias é que datam!...

 

Sabes? Passeando até ao lugar das nossas raízes,

vi um sonho que escorria para a terra.

Vi os rios, os vinhedos, as oliveiras e algumas serras,

e, em silêncio, recordei os nossos dias felizes.

 

Entretanto, naquele lugar, entre o amor e a alegria,

olhando a observar as pessoas, vi-as também numa correria!

De repente, uma música enterneceu-me e levantou um véu!

 

Mas num instante, recobrei as forças e também a paz!

E a contemplar a extensão do Vale, pareceu-me ouvir-te a dizer: “É o meu rapaz!”

Sim, demorei muito tempo, mas não foi fácil fazer isto de seu como tu:

pôr na cabeça um chapéu, passar a ser eu também a lembrar-me em seres tu.

 

Macedo Teixeira, Agosto de 2020.

Bonds of Terderness

 

Let me now just treat you by “you”;

it is like that, in this love, that your grandchildren also treat me!

It will not be worse, I think, that you may also love as if were you...

We are the same; it is the time and circumstances that date!...

 

You know? Strolling to the place of our roots,

I saw a dream that was dripping to earth.

I saw the rivers, the large vineyards, the olive-trees and some mountains,

and, in silence, I remembered our happy days.

 

Meanwhile, in that place, between love and joy,

looking to observe the people, I also saw them in a hurry!

Suddenly, a music touched me and lifted a veil!

 

But, in an instant, I recovered my strengths and also peace!

And contemplating the Valley extension, it seemed to me to have heard you saying: “It’s my boy!”

Yes, I took very long, but it was not easy to do this of his like you:

to put a hat on the head, to start being me also remembering of being you.

 

Macedo Teixeira, August 2020

 

Tese “Nos Caminhos do Ser Humano” / Thesis “On the Paths of the Human Being”

31-07-2019 19:45

 

Nos caminhos do ser Humano

 

Macedo Teixeira

 

Vila Nova de Gaia

Portugal, Setembro 2016

 

Palavras-chave:

 

  • Leis da Genética
  • Economia Global
  • Razão
  • Pedagogia
  • Origens

 

 

 

 

“A tolerância é muito mais do que aceitar passivamente o ‘outro’. É algo que implica a obrigação de agir e que deve ser ensinada, cultivada e defendida.”

Ban Ki-moon

 

Minhas Senhoras e Meus Senhores,

 

    Ao tomar como tema da minha conferência “Nos Caminhos do Ser Humano”, e ao apresentar-me hoje aqui na Universidade Aberta, permiti que, à maneira de prólogo, expresse a minha satisfação por poder discorrer sobre a minha existência e ser matriz na tese que irei desenvolver.

    Tomando em consideração os objetivos do I Simpósio Internacional de Educação e Pedagogia “Paz e Cidadania Global”, sinto-os como uma oportunidade de poder falar dos paradigmas da nossa existência, já que têm sido os modelos de ordem social, e no caso os da Educação, que me têm preocupado mais.

    Dizer com elevada confiança que esta caminhada de reflexão, fora estruturada numa argumentação descomprometida, impessoal e baseada em princípios e leis, tornando-se certamente mais objetiva na argumentação e mais fácil na compreensão do que se propõe.

    Pretendo que a abordagem se torne numa dimensão fecunda pelo induzir à possibilidade de ser partilhada por todos e poder assim ser alargada nos seus limites de compreensão.

    Desde a fase de criança que passei pelas mais diversas experiências na educação; experiências com acontecimentos diversos, sendo uns dramáticos, outros cómicos e outros trágicos, uns melhores e outros piores, mas todos contribuindo para a descoberta do sentido ético da minha conduta na orientação profissional e na minha vivência social.

    Assim, com a finalidade de ser um juízo a propor para a reflexão em geral, comunico para o efeito de discorrer sobre o assunto, que na minha caminhada de experiências diversas confrontara-me sempre com dois princípios éticos antagónicos e sempre demasiado constantes na determinação e influência na vivência e educação do meu ser.

    Dois princípios que se têm mantido tão constantes nas várias situações da minha vida, que tudo me tem levado a crer que, ao longo da nossa existência, para que o sentido ético da nossa orientação seja inclinado para a predominância ética superior no nosso comportamento, para que se mantenha a predominância do comportamento ético no que ele tem de mais humano, justo e fraterno; tal inclinação irá depender sempre da nossa atenção sobre o que fizermos, pensarmos e dissermos, para podermos ajuizar bem e procedermos com humanidade.

    Dois princípios que, sendo antagónicos, se oporão de imediato no nosso comportamento, se oporão a partir da raiz gerando com isso uma certa tensão na determinação da prioridade da nossa conduta social.

    Dois princípios que condicionarão, penso até que naturalmente, a nossa sensibilidade a demarcar-se na ação ética dominante, quer quando praticada com um sentido mais humano por oposição a um sentido tirano ou com maior configuração de propósitos quando praticada num sentido tirano por oposição a um sentido humano.

    Assim, proponho que desde a mais tenra idade, nos processos educativo e de socialização, se preste uma particular atenção à influência destas duas leis na vida dos seres humanos, se preste uma particular atenção na educação do ser humano para que se perceba que aspetos deverão ser mais orientados na personalidade de cada criança para que, quando adulta, se torne num ser social, instruído e humanamente bom, Um Cidadão para a Paz e Cidadania Global.

    Proponho uma particular atenção na educação desde criança, dada a natureza destas Leis e a lógica que as caracteriza, sobretudo pelo poder que uma delas exerce na afirmação da nossa animalidade, de sentido contrário à racionalidade e ao amor.

    Nos casos da minha existência, estas emoções foram surgindo na minha vida numa forma tão originária, subtil e sempre com tal indistinção formal que bem se poderá dizer que estas forças nas minhas paixões tangeram tão naturalmente a minha vida e surgiram numa tal semelhança que me pareceram na aparência serem sempre de sentido transversal.

    E tão grande se tornava a sua aparência, que em certos casos, ambas pareciam indistintamente terem a mesma natureza; não se notava diferença entre o bem e o mal, parecia até que ambas lutavam para fazer emergir conflitos na sua razão e no seu valor ético de origem.

    Neste sentido, para poder explicar melhor o percurso realizado durante a minha caminhada e a difícil opção ética que fora partilhando na minha conduta, tentarei num modo de abordagem por comparação, sobre a organização e educação da sociedade, que ao que parece será estruturada a partir destas duas das leis fundamentais da Natureza, de cuja falta de atenção ainda se mantém decorrente sobre os efeitos negativos gerados até hoje na sociedade proponho à consideração da ciência da educação, que nos manuais escolares, se registem e se considerem estas duas leis, como um elemento pedagógico de grande importância para a Compreensão e Orientação da Personalidade Humana.

    Procurarei na minha explicação explicitar estas duas leis e mostrar a influência que têm tido na nossa conduta, ou seja: que, em contexto da ação humana, elas serão sempre emergentes e dominantes, quer seja a Primeira Lei Naturala lei da agregação do ser –, quer seja a Segunda Lei Naturala lei da tirania do ser 1.

 

    Sem preconceitos de materialismos ou espiritualismos, observemos o ser na sua gigantesca e misteriosa vida para irmos tirando algumas ilações: ficamos perplexos diante dum ser quase divino, isto é, um ser altamente dotado de valores humanos, científicos, artísticos, técnicos – o criador transcendente –; por outro lado, vemos o monstro, o cruel, o sádico, o desumano, que justifica a paranoia num pensamento lógico de premissas falsas. (Ibidem, p. 13.)

 

“Estudemo-nos, dentro de nós, numa introspeção, e encontramos uma vontade de nobreza a par de uma vontade de tirania, criadora de agressividade sádica, de crueldade feroz.”

 “Tem de se curar a humanidade para curar o Homem ou curar o Homem para que este crie outra humanidade, outra sociedade – em que o Homem (um ser condenado à morte) não viva em constante terror.” (Ibidem, p. 14.)

“A tirania do ser é simples: qualquer ser, para viver, tem de comer outro. “É a crueldade da Natureza.

“Os animais da mesma espécie inibem-se de se comerem entre si e comem outras espécies. Mas esta inibição não a tem o Homem porque, apesar de mais inteligente, é mais monstruoso, mais cruel. (Ibidem, p. 14.)

“Um povo resolve comer outro – invade, mata, destrói, viola, rouba –, exerce toda a espécie de violência e crueldade.

“Sim, a violência é a tirania do ser, impera na natureza; nada mais fácil de ver, nada mais objetivo.

“Porém, o que esses monstros, que fizeram uma história vergonhosa de tirania, ..... não verão ..... é que há outra força contra a tirania do ser: a Afetividade criadora duma agregação humana, duma Sociedade à procura duma Humanização, como nas religiões à procura do Céu. .....

“Os Homens estão em divisão: uns na tirania e outros na agregação. .....

 

    E o que é grave é que “As nações a manterem a agressividade, a violência, a crueldade estão contra os princípios naturais da agregação existentes na natureza.” (Ibidem, p. 15.)

 

    Assim, perplexo com esta contrariedade humana, entendo ser relevante para a experiência dizer a propósito que, embora tivesse vivido confrontado com estas circunstâncias na memória, quiçá no meu ADN, e tivesse sido grande o meu sofrimento social no percurso da minha vida, as minhas opções recaíram com maior predominância no esforço de a minha ação ética ser orientada pelo princípio da afetividade, ainda que lutando contra as dificuldades psicológicas para ser constante, mas hoje reconheço com felicidade que valeu a pena, tornara-me com esta atitude num ser humano, afetivo e mais sociável.

    Reconheço, que na caminhada da minha existência, prevaleceram na base da estruturação da minha consciência e do meu sentido de responsabilidade os primeiros ensinamentos que me foram dados durante os tempos da minha infância e da minha adolescência.

    Começara deste modo a adquirir conhecimentos fundamentais para vir a compreender qual o valor que tem a vida humana para quem aprende cedo que a nossa existência, para ter significado, deverá ser vivida em relação com os outros. Aprendia, afinal, entre experiências e jogos realizados nesta altura, o que mais tarde viria a perceber sobre o significado: “vamos aprendendo de Cristo, e que se ‘Amamos, logo existimos’ ”. 2

    Entretanto, à medida que fora crescendo na inteligência e adquirindo mais conhecimentos e com eles o conhecimento filosófico-científico, fora descobrindo que o nosso pensamento tende a ser travejado pelas faculdades da Razão e dos Sentidos. Dos sentidos, através de todas as sensações que vamos formando da realidade e gravando as imagens na memória para que, sempre que necessário, possamos evocar lembrando. Da razão, pelo entendimento que vamos tendo para a delimitação do ser através das nossas formas conceptuais, para as podermos configurar em entes ideais.

    Assim fora reconhecendo também, ao aprender de Descartes, que somos uma natureza pensante, que somos aquele que estará na prova da certeza, que somos nós que pensamos certo ou errado, ou ainda na certeza de que se “penso, então existo”. E que a nossa intranquilidade é fruto da nossa fragilidade no ser e nos conhecimentos e das nossas limitações no tempo do infinito.

    Mais consciente da realidade do Mundo, começara a atuar na compreensão do conhecimento apreendido em referência ao Pensamento Económico Português – do qual fui inferindo, com base em algumas leis económicas” 3. De que haverá indubitavelmente uma evolução histórica nas relações económicas e sociais, evolução pela qual os povos irão diminuindo na sua tensão social à medida que forem evoluindo também nas suas mentalidades.

    Vivemos num mundo global, precisamos de um pensamento global, de uma economia global; porventura uma economia com diferenças na diversidade de origem, mas que seja comum na particularidade da dignidade humana; nenhuma criança descobrirá o Amor e a Paz num Mundo Global se não crescer sob a égide do direito universal do acesso à dignidade da Liberdade, Proteção, Educação, Trabalho e voluntariamente puder caminhar ao encontro de Deus.

    Meditei na Criação, no que é criado e nas partes que o constituem, sobretudo na origem visível do processo da Criatura humana.

    Neste sentido, tudo me tem levado a crer, ressalvando as exceções à regra, que, qualquer que seja a criatura humana, haverá uma das partes que, no processo da Criação e durante toda a existência, estará numa densidade mais profunda que a outra. Cada um de nós será uma realidade dinâmica mutável que, no Processo de Criação e Educação Permanentes, assume instantes variáveis, quiçá conforme as circunstâncias em que se encontre, a um tempo e em cada singularidade.

    E porque esta realidade me parece ser decorrente de uma lei da natureza, julgo que daí não se poderá tirar vantagem sobre quem mais possa em cada circunstância.

    O conhecimento e o desenvolvimento do sistema genético e a melhoria dos seus elementos no jogo relacional com a Natureza e com o Grupo deverão proporcionar-nos no futuro outras capacidades para percebermos melhor esta complexa densidade natural nos seres humanos. Contudo, será necessário começar a preparar o caminho para o fortalecimento da relação entre os seres, procedendo-se na orientação do ser humano pela Didática e pela Pedagogia ao “descarnar” de elementos negativos que sejam constitutivos, sobretudo aqueles que permanecem na maior parte das vezes quase impercetíveis na personalidade de uma criança, muitas vezes oriundos das origens, credos, educação, culturas, famílias.

    Em tudo isto, fui concluindo no exercício da docência da importância da palavra “educar”, uma palavra que provém do latim educere, que significa “conduzir para fora de”, o que, se bem interpretado, deverá levar a que a ação educativa seja para conduzir o educando a partir daquilo que ele em si mesmo já é; a criança é um ser em potência a revelar na ação das suas características, logo, não será suficiente perceber a relação funcional das coisas desligada dum sujeito educando, isto é, que se distende através delas, pelas suas possibilidades naturais, na revelação das competências que não se situam em nenhum quadro institucional.

    Foi assim que compreendi também que, no preâmbulo dos meus pensamentos, sempre prevaleceram as minhas origens. 4

    Direi que fui relacionando ao longo da minha docência a disciplina da Didática com a Pedagogia.

    Percebendo melhor entre as lições diárias que era nesta subjetividade educativa que o conhecimento se descobriria melhor nas nossas possibilidades e que estas aumentariam com o que fôssemos vendo e nos fosse sendo mostrado, ainda que por fora; pois só o saber sobre o todo nos tornará possível alcançar a realidade. 5

    Daqui se poderá inferir que o saber sobre o todo deverá ser um saber que tenha em conta os elementos naturais em conjugação com os elementos sociais e vice-versa, será necessário passarmos à ação prática, integrando e realizando os atos educativos para que sejam entendidos socialmente por todos e pelos educandos especialmente como atos vitais, e não apenas como manifestações datadas e assumidas culturalmente.

    Em toda a minha vida de docente realizei diversos acontecimentos comemorativos: o Dia da Árvore, o Dia dos Direitos Humanos, o Dia da Criança.

    Passada a data da comemoração, tudo se esfumava na vulgaridade, e os fogos ou a desertificação eram facilmente desculpados como um problema da ignorância, um problema dos interesses financeiros, um problema de desleixo do Estado.

 

    Só poderemos entender que somos um ser cívico, um ser de direitos, se exercermos na prática uma pedagogia de raiz; plantar uma árvore não pode ser entendido como um gesto cultural; tem de ser entendido como uma atividade vital, como uma atividade que deverá salvar o Planeta da destruição e salvar a vida humana da tragédia pela falta de recursos, uma vez que já estaremos a viver a crédito, segundo a declaração da Global Footprint Network num comunicado conjunto com a World Wildlife Fund (WWF):

https://24.sapo.pt/article/sapo24-blogs-sapo-pt_2016_08_04_1981753532_planeta-terra--a-partir-de-segunda-feira--estamos-a-viver--a-credito

 

“Para satisfazer as nossas necessidades, atualmente precisamos do equivalente a 1,6 planetas” por ano, disseram ambas as organizações. “O custo desse consumo excessivo já é visível: escassez de água, desertificação, erosão do solo, queda da produtividade agrícola e das reservas de peixes, desflorestação, desaparecimento de espécies.”

“Viver a crédito só pode ser provisório, porque a natureza não é uma jazida, da qual podemos extrair recursos indefinidamente.” 6

 

    E se este é um problema vital, outros há que necessitam de ser encarados do mesmo modo; como poderemos aprender a perdoar, ou até mesmo a julgar, se a pedagogia não for com base num Amor Comum e que tenha em conta o conhecimento global da matriz do educando? Um ser dificilmente compreenderá que é vital para a Paz a tolerância da diferença e o respeito pelo outro se não aprender desde pequenino, nos valores da civilidade a ser verdadeiro, honrado e respeitador dos seus semelhantes, se não aprender a conjugar cedo a Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Criança e dos Povos.

    E perante a instabilidade da Ordem do Mundo, comecei a acreditar que seria bom, como forma possível, para equação de algumas das dificuldades na vivência contemporânea, reconhecer-se a necessidade da emergência do pensamento concreto, o qual superasse a própria abstração e que integrasse a realidade elevando-a na dialética da superação.

Aliás, a propósito, cito:

 

“..... Para Hegel aquilo que é parcial, delimitado, separado é justamente o que é ‘abstrato’ (abstractus, em latim, significa literalmente ‘extraído’, ‘posto de parte’). O ‘concreto’ exige, pelo contrário, um pensamento que seja capaz de ter em conta o conjunto de todos os aspetos, mesmo aqueles que se opõem e se excluem. Este pensamento deve também ser capaz de nos dar conta da passagem de um elemento ao seu oposto.” 7

 

    Por último, sabendo que vivemos cada vez mais entre as limitações dos ideais de Justiça, de Família, de Bem, de Verdade, de Amor, será de acreditar que só por meio de uma interação contextualizada em ambiente de integração geral 8 e certamente global de todos os elementos naturais e sociais, conseguiremos impelir-nos para o que será possível e desejável conceber numa pedagogia mais experimental que doutrinária nos aspetos que considerei como mais relevantes no “Caminho do Ser humano” e que agora procurarei traduzir na seguinte proposta:

 

    Tomando em consideração os objetivos do I Simpósio Internacional de Educação e Pedagogia “Paz e Cidadania Global”, na década internacional consagrada pela ONU (2013-2022) à aproximação das culturas, proponho que sejam consideradas nas linhas orientadoras do Simpósio e no Objetivo número 1, Educação para a paz e cidadania, as seguintes questões:

  1. Educação e Pedagogia por Comparação (a Natureza, o sentido das leis e dos elementos naturais);
  2. Educação ética para uma cidadania global estruturada (elaboração de normas e códigos de conduta social; as leis imperativas devem constituir-se como o último recurso);
  3. As Origens Sociais (endogenia cultural, multiculturalismo e as migrações);
  4. Relações familiares (educar para o valor da Família; os vários tipos de famílias);
  5. Compreensão do sentido do Amor e do Perdão com vista ao valor da Tolerância (Declaração Universal dos Direitos do Homem);
  6. O fenómeno da religiosidade (Conhecimento e encontro das religiões e Valorização do Sentido Ecuménico);
  7. Estudo sistematizado do ambiente e dos recursos naturais (a situação atual da Terra [“Vivemos a Crédito”]).

 

Bibliografia

 

1. BORGES GUEDES, J.M., Homem: Monstro e Semideus, Gráfica Firmeza, Porto, 1987, pp. 13, 14 e 15.

2. CLEMENTE, Manuel, Patriarca de Lisboa, Texto da homenagem feita pela Santa Casa da Misericórdia do Porto e referido na homilia Solenidade da Santíssima Trindade em 2011, sobre o problema do individualismo.

3. MORAIS E CASTRO, Armando Fernandes, O Pensamento Económico Português, “As bases da Teoria económico-social do Portugal Medievo”, exemplos de leis económico-sociais.

4. MACEDO TEIXEIRA, O Sentido do Escritor no Caminho da Globalização. Georges Seféris, um escritor de consciência europeia, cujo pensamento esteve em exposição na Biblioteca de Vila Nova de Gaia em 1998 e que dizia o seguinte: “Ninguém se fecha sobre si mesmo com medo de perder a sua originalidade, porque esta constitui a sua força e acredita nela.”

5. GARCÍA HOZ, Victor, Princípios de Pedagogia Sistemática, Coleções Ponte, Livraria Civilização Editora.

 6. https://24.sapo.pt/article/sapo24-blogs-sapo- pt_2016_08_04_1981753532_planeta-terra--a-partir-de-segunda-feira--estamos-a-viver--a-credito

7. HEGEL, Introdução à História da Filosofia e Sistema da Vida Ética, Edição Prisa Innova S.L., Madrid, Espanha, 2008; tradução de Artur Morão e Edições 70, L.da. Prefácio de Roger-Pol Droit, Página XVI.

8. MACEDO TEIXEIRA, Quando As Estrelas Acordam, Sítio do Livro, Lisboa, 2014.

 

On the paths of the Human Being

 

Macedo Teixeira

 

Vila Nova de Gaia

Portugal, September 2016

 

Keywords:

 

  • Laws of Genetics
  • Global Economy
  • Reason
  • Pedagogy
  • Origins

 

 

 

 

“Tolerance is much more than passively accepting the ‘other’.  It brings obligations to act, and must be taught, nurtured and defended.”

Ban Ki-moon

Ladies and Gentlemen,

 

By taking “On the Paths of the Human Being” as the theme of my conference, and by presenting myself here today at the Open University, allow me that, by way of prologue, I express my satisfaction for being able to discourse about my existence and to be matrix on the thesis I will develop.

Taking into consideration the objectives of the I International Symposium of Education and Pedagogy “Peace and Global Citizenship”, I feel them as an opportunity to be able to speak of the paradigms of our existence, since are the models of social order, and in the case those of Education, that have worried more.

To say with elevated confidence that this walk of reflection has been structured on an uncommitted and impersonal argumentation, based on principles and laws, certainly becoming more objective in the argumentation and easier in the comprehension of what is proposed.

I intend that the approach becomes a fertile dimension by the inducement to the possibility of being shared by everyone and thus it may be broadened in its limits of comprehension.

Since the phase of a child, I went through the most diverse experiences in education; experiences with diverse events, being ones dramatic, others comic and others tragic, some better and others worse, but all contributing to the discovery of the ethical sense of my conduct in the professional orientation and in my social living.

Thus, with the finality of being a judgement to propose for a reflection in general, I communicate for the effect of discoursing about the matter, which in my walk of diverse experiences I have always been confronted with two antagonist ethical principles and always too constant in the determination and influence in the living and education of my being.

Two principles that have remained so constants in the several situations of my life, that everything has led me to believe that, along our existence, so that the ethical sense of our orientation is inclined towards the superior ethical predominance on our behavior, so that the predominance of the ethical behavior is kept on what it has of most humane, just and fraternal; such inclination will always depend upon our attention to what we do, think and say, so that we may judge well and proceed with humanity.

Two principles that, being antagonistic, will oppose each other immediately in our behavior, will oppose each other from the root, generating with that a certain tension in the determination of the priority of our social conduct.

Two principles that will condition, I even think that naturally, our sensitivity to demarcate itself in the dominant ethical action, whether when practiced with a more human sense by opposing a tyrannical sense or with greater configuration of purposes when practiced in a tyrannical sense by opposing a human sense.

Thus, I propose that since the most tender age, in the educative and socialization processes, one pays particular attention to the influence of these two laws in the life of human beings, one pays attention in the education of the human being, so that we perceive which aspects should be more oriented within the personality of each child, so that, when they are adults, they become a social, learned and humanly good being, A Citizen for Peace and Global Citizenship.

I propose a particular attention in the education since child, given the nature of these Laws and the logic that characterizes them, especially by the power that one of them exerts upon the affirmation of our animality, of contrary direction to rationality and love.

In the cases of my existence, these emotions were appearing in my life in such an originary and subtle way and always with such a formal indistinction that we may well say that these forces in my passions touched so naturally my life and appeared in such a resemblance that they seemed in appearance to always be of transversal sense.

And so great became its appearance that, in certain cases, both seemed indistinctly to have the same nature; I did not notice the difference between good and evil, it even seemed that both fought to make emerge conflicts in their reason and in their ethical value of origin.

In this sense, so that I may explain better the path made during my long walk and the difficult ethical option that I was sharing in my conduct, I will try in a way of approach by comparison, about the organization and education of society, which presumably will be structured from these two of the fundamental laws of Nature, of whose lack of attention still remains resulting over the negative effects generated until today in society, I propose to the consideration of science of education that, in school textbooks, these two laws are recorded and considered, as a pedagogical element of great importance to the Comprehension and Orientation of Human Personality.

I will seek with this explanation of mine to clarify these two laws and to show the influence that they have had in our conduct, that is: that, within the context of human action, they will always be emergent and dominant, whether it be the First Natural Law – the law of the aggregation of the being –, or whether it be the Second Natural Law – the law of the tyranny of the being 1.

 

Without prejudices of materialisms or spiritualisms, let us observe the being in its gigantic and mysterious life, so that we go taking some inferences: we become dazzled before a being almost divine, that is, a being highly gifted of human, scientific, artistic and technical values – the transcendent creator –; on the other hand, we see the monster, the cruel one, the sadic, the inhuman, who justifies the paranoia in a logical thought of false premises. (Ibidem, p. 13.)

 

“Let us study ourselves, within us, in introspection, and we shall find a will to nobleness side by side with a will to tyranny, creator of a sadistic aggressiveness, of a ferocious cruelty.”

 “We have to cure humanity to cure Man or to cure Man so that he creates another humanity, another society – in which Man (a being condemned to death) does not live in constant terror.” (Ibidem, p. 14.)

“The tyranny of the being is simple: any being, to live, has to eat another.” It is the cruelty of Nature.

“Animals of the same species inhibit themselves of eating each other, and they eat other species. But this inhibition, Man does not have it, because, despite being more intelligent, he is more monstrous, more cruel. (Ibidem, p. 14.)

“A people decides to eat another – invades, kills, destroys, rapes, steals –, it exerts all kind of violence and cruelty.

“Yes, violence is the tyranny of the being, it rules in nature; nothing easier to see, nothing more objective.

“However, what these monsters, who made a shameful history of tyranny, (...) will not see (...) that there is another force against the tyranny of the being: the creative Afectionateness of a human aggregation, of a Society in search for a Humanization, like in religions in search for Heaven. (...)

“Men are in division: some in tyranny, and others in aggregation. (...)

 

And what is grave is that “Nations that maintain aggressiveness, violence, cruelty are against the natural principles of aggregation existent in nature.” (Ibidem, p. 15.)

 

Thus, perplexed by this human contrariness, I understand that it is relevant for the experience to say, by the way, that, although I had lived confronted with these circumstances in memory, perhaps in my DNA, and although it had been great my social suffering in the course of my life, my options fell with greater predominance on the effort of my ethical action being guided by the principle of affectionateness, even if fighting against the psychological difficulties to be constant, but today I recognize with happiness that it was worth, I became with this attitude a human, affectionate and more sociable being.

I recognize that, within the walk of my existence, on the basis of the structuring of my conscience and of my sense of responsibility, the first teachings I was given during the times of my childhood and adolescence prevailed.

I began this way to acquire fundamental knowledge to come to comprehend what value has human life for who learns early that our existence, to have meaning, it should be lived in relation with others. I learned, after all, between experiences and games done by this time, what later I would come to understand about the meaning: “we are learning from Christ, and that if ‘We love, therefore we exist’ ”. 2

Meanwhile, as I was growing in intelligence and acquiring more knowledge, and with it the philosophical-scientific knowledge, I was discovering that our thought tends to be laid by the beams of Reason and the Senses. From the senses, through all the sensations that we are forming from reality and storing the images in memory so that, whenever necessary, we may evoke by remembering. From reason, by the understanding that we are getting for the delimitation of the being through our conceptual forms, so that we may configure them in ideal entities.

Thus I was acknowledging also, by learning from Descartes, that we are a thinking nature, that we are that who will be in the proof of certainty, that it is us that think right or wrong, or even within the certainty that if “I think, therefore I am”. And that our unquietness is a result of our frailty in the being and in the knowledges and of our limitations within the time of the infinity.

More aware of the reality of the World, I began to act within the understanding of the knowledge apprehended in reference to the Portuguese Economic Thought – from which I was inferring, based on some economic laws” 3. That there will be undoubtedly a historic evolution in the economic and social relations, evolution by which the peoples will lessen in their social tension as they are evolving also in their mentalities.

We live in a global world, we need a global thinking, a global economy; perhaps an economy with differences in the diversity of origin, but that it is common in the particularity of human dignity; no child will discover the Love and Peace in a Global World if they do not grow under the aegis of the universal right of the access to the dignity of Liberty, Protection, Education, Work and voluntarily nor can walk towards God.

I have meditated upon the Creation, upon what is created and on the parts that constitute it, especially upon the visible origin of the process f the human Creature.

In this regard, everything leads to believe, save the exceptions to the rule, that, whoever may be the human creature, there will be one of the parts that, within the process of Creation and during all the existence, they will be in a deeper density than the other is. Each one of us will be a mutable dynamic reality that, within the Process of Permanent Creation and Education, assumes variable instants, possibly according to the circumstances in which we are, at a time and in each singularity.

And because this reality seems to me that it is resultant from a law of nature, I think that from there we cannot take advantage over who has more power in each circumstance.

The knowledge and the development of the genetic system and the improvement of its elements within the relational game with Nature and with the Group should provide us in the future other capabilities to understand better this complex natural density in the human beings. However, it will be necessary to start preparing the path towards the strengthening of the relationship between the beings, by proceeding in the direction of the human being by Didactics and by Pedagogy by stripping off the negative elements that are constitutive, mainly those who remain most of the time almost imperceptible in the personality of a child, often coming from the origins, creeds, education, cultures, families.

In all this, I was concluding within the exercise of teaching of the importance of the word “educate”, a word that proceeds from the Latin educere, which means  “to guide to the outside of”, which, if well interpreted, should lead to the educative action to be to guide the pupil from what they already are in themselves; the child is a being in potency to be revealed themselves in the action of their characteristics; therefore, it will not be enough to understand the functional relation of things disconnected from student subject, that is, that expands through them, by their natural possibilities, in the revelation of the competences that are not situated on any institutional board.

It was so that I also understood that, in the preamble of my thoughts, my origins have always prevailed. 4

I will tell that I was relating throughout my teaching profession the subject of Didactics to that of Pedagogy.

Because I understood better among the daily lessons that it was in this educative subjectivity that knowledge would be better discovered within our possibilities and that these would increase with what we were seeing and was being shown to us, even if on the outside; since only with the learning about the all it will become possible for us to reach this reality. 5

From here we can infer that the knowledge about the all should be a knowledge that takes into account the natural elements in conjunction with the social elements and vice versa, it will be necessary to go to practical action, by integrating and accomplishing the educative acts so that they are understood socially by everyone and by the pupils, especially as vital acts, but not only as dated and culturally assumed manifestations.

Throughout my all life as a teacher, I have accomplished several commemorative happenings: the Day of the Tree, the Day of the Human Rights, the Day of the Child.

When the date of commemoration had passed, everything vanished into the thin air of vulgarity, and the fires or desertification were easily excused as a problem of ignorance, a problem of the financial interests, a problem of the negligence of the State.

 

We can only understand that we are a civic being, a being of rights, if we exert in practice a root pedagogy; to plant tree may not be understood as cultural gesture; it has to be understood as a vital activity, as an activity that should save the Planet from destruction and save human life from the tragedy by the lack of resources, seeing that we will be already living on credit, according to the declaration from Global Footprint Network in a conjunct communiqué with the World Wildlife Fund (WWF):

https://24.sapo.pt/article/sapo24-blogs-sapo-pt_2016_08_04_1981753532_planeta-terra--a-partir-de-segunda-feira--estamos-a-viver--a-credito

 

“For us to satisfy our needs, we currently need the equivalent to 1.6 planets” by year, said both organizations. “The cost of this excessive consumption is already visible: water scarcity, desertification, soil erosion, fall of agricultural productivity and of the fish reserves, deforestation, disappearing of species.”

“To live on credit can only be provisional, because nature is not a resting-place, from which we can extract resources indefinitely.” 6

 

And if this is a vital problem, there are others that need to be faced in the same way; how can we learn to forgive, or even to judge, if pedagogy is not based on a Common Love and that has into account the global knowledge of the student’s matrix? A being will hardly understand that it is vital for Peace the tolerance of the difference and the respect for the other if they do not learn from when they are little ones, within the values of civility, to be truthful, honorable and respectful to their fellow-creatures, if they do not leart to conjugate early the Universal Declaration of the Rights of Man, Children and of the peoples.

And before the a instability of the Order of the World, I began to believe that it would be good, as a possible way, for equation of some of the difficulties in the contemporary life, to acknowledge the need of the emergence of concrete thought, which should surpass the very abstraction and integrate reality by elevating it in the dialectics of surmounting.

Besides, apropos, I quote:

 

“..... For Hegel, that which is partial, delimited, separate is precisely what is ‘abstract’ (abstractus, in Latin, means literally ‘extracted’, ‘put apart’). The ‘concrete’ demands, on the contrary, a thought that is able to take into account the set of all the aspects, even those which oppose to each other and are excluded. This thought should also be able to make us realize the passage from an element to its opposite.” 7

 

Lastly, knowing that we live more and more between the limitations of the ideals of Justice, of Family, of Good, of Truth, of Love, it will be believable that only by means of an interaction contextualized in an environment of general integration 8 and certainly global of all the natural and social elements, we will manage to impel ourselves to what will be possible and desirable to conceive within a pedagogy more experimental than doctrinary in the aspects that I considered as more relevant on the “Path of the Human Being” and that now I will try to translate into the following proposal:

 

Taking into consideration the goals of the I International Symposium of Education and Pedagogy “Peace and Global Citizenship”, during the international decade dedicated by the UNO (2013-2022) to the rapprochement between cultures, I propose to be considered in the guiding lines of the Symposium and on the number one Goal, Education for peace and citizenship, the following questions:

  1. Education and Pedagogy by Comparison (Nature, the meaning of the natural laws and elements);
  2. Ethical education for a structured global citizenship (elaboration of norms and codes of social conduct; the imperative laws ought to be constituted as a last resource);
  3. The Social Origins (cultural endogeny, multiculturalism and migrations);
  4. Familial relationships (to educate for the Family value; the several types of families);
  5. Comprehension of the meaning of Love and Forgiveness with a view to the value of Tolerance (Universal Declaration of Human Rights);
  6. The phenomenon of religiousness (knowledge and gathering of the religions and Valorization of the Ecumenical Sense);
  7. Systematized study of the environment and of natural resources (the actual situation of the Earth [“We live on Credit”]).

 

Bibliography

 

1. BORGES GUEDES, J.M., Man: Monster and Semigod, Gráfica Firmeza, Oporto, 1987, pages 13, 14 e 15.

2. CLEMENTE, Manuel, Patriarch of Lisbon, Text of the homage made by the Holy House of Mercy of Oporto and mentioned in the homily Solemnity of the Holy Trinity in 2011, about the problem of individualism.

3. MORAIS E CASTRO, Armando Fernandes, The Portuguese Economic Thought, “Bases of the Socio-economic Theory of the Medieval Portugal”, examples of socio-economic laws.

4. MACEDO TEIXEIRA, OThe Meaning of the Writer on the Path of Globalization. Georges Seféris, a writer of European conscience, whose thought was on view in the Library of Vila Nova de Gaia in 1998 and that said the following: “Nobody closes over themselves with fear of losing their originality, because it constitutes their strength and they believe in it.”

5. GARCÍA HOZ, Victor, Principles of Systematic Pedagogy, Ponte Collections, Civilização Editora Bookstore.

 6. https://24.sapo.pt/article/sapo24-blogs-sapo- pt_2016_08_04_1981753532_planeta-terra--a-partir-de-segunda-feira--estamos-a-viver--a-credito

7. HEGEL, Introduction to the History of Philosophy and System of the Ethical Life, Edition Prisa Innova S.L., Madrid, Spain, 2008; translation by Artur Morão and Edições 70, L.da. Preface by Roger-Pol Droit, Page XVI.

8. MACEDO TEIXEIRA, When the Stars Awake, Sítio do Livro, Lisbon, 2014.

 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 16)

Ler mais: https://partilharsaberes.webnode.pt/blog2
Caminho de Luz e Sombra (Texto 16)

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Caminho de Luz e Sombra (Texto 17)
03.08.2020 17:35
 

       Ao trabalhar neste comerciante como empregado de escritório e ainda antes de ir para o serviço militar e para a colónia de Moçambique também aprendera as atividades do comércio de vários artigos, tendo-lhe servido depois de ter regressado de África e ter passado à disponibilidade, para poder ganhar para além do salário fixo mensal mais algum dinheiro extra, vendendo nas horas livres sapatos de homem, de senhora e de criança em sapatarias da cidade do Porto e de Matosinhos. Também deverá dizer-se que com a ajuda desta mesma empresa, pelas horas que voluntariamente lhe dera para estudar durante o horário de trabalho, já antes de entrar para o serviço militar e depois quando regressara após o cumprimento do mesmo, premiando, deste modo, a sua grande dedicação à aprendizagem que mantivera sobretudo depois do regresso da Colónia de Moçambique, pudera em pouco tempo, completar como trabalhador estudante o terceiro ciclo no liceu de Gaia e ingressar na Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

        Tudo isto fora possível, porque, apesar de já estar a frequentar o quarto ano do curso comercial do ensino noturno da Escola industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, fizera a opção de mudar para a frequência do ensino liceal noturno com aulas para aquisição de conhecimentos no Externato Pedro Nunes em Gaia e com exames de avaliação externa no liceu de Gaia, chegando mesmo a frequentá-lo à noite durante o ano anterior ao ingresso na universidade do Porto. Acrescente-se que esta opção foi desejada, pois de outra forma não teria sido possível alcançar um curso superior no domínio das Humanidades.

        No começo dos verdes anos, no tempo do serviço militar e na guerra colonial, António descobrira a jovem com quem haveria de namorar e casar. Durante cerca de seis anos em que namoraram e depois do casamento, a sua mulher fora sempre a sua principal aliada no combate por uma vida melhor. Continuar a estudar à noite, trabalhar de dia e ser desejado pela sociedade, pelos conhecimentos profissionais, pela dedicação e trabalho e, principalmente, pela retidão e elevado sentido moral foram fatores que determinaram em grande parte a aceitação do namoro e do casamento por ambos, mas também pelas famílias, que, à sua maneira, colaboraram e desejaram que assim fosse.

       Entretanto, quando chegou o dia de ingressar no exército, fora um pouco surpreendido por ter sido convocado para Leiria e para o Regimento de Infantaria número sete, pois neste quartel seriam selecionados alguns militares para o curso de Furriéis milicianos, o que de imediato lhe agradara, por poder vir a ser selecionado para o curso e poder ter no futuro outras regalias e um vencimento maior.

       Contudo, logo nos primeiros dias de ter iniciado a recruta, começara a sentir-se movido por duas forças opostas: por um lado queria passar na seleção, mas por outro lado temia que passando a sua especialidade viesse a ser atirador conforme a informação que corria no quartel. Daí que, quando iniciava os exercícios físicos para mostrar as suas capacidades junto do oficial instrutor, a maior parte das vezes não fora capaz de concluir bem nenhum, fosse o salto de obstáculos fáceis, fosse a subida ao pórtico ou fosse simplesmente uma pequena corrida no exterior das casernas.  

        Apesar de desejar ser selecionado, tinha consciência de que não estava a proceder nesse sentido, o receio de vir a ter a especialidade de atirador impedia-o de responder melhor aos exercícios de aprendizagem teórica, tendo em conta as habilitações escolares que tinha, assim como de fazer bem os exercícios físicos, pois antes de ir para a tropa fora jogador de futebol num clube federado e no escalão júnior, por isso esta má prestação não tinha justificação.

       Mesmo assim, a sorte parecera continuar a bafejá-lo, pois ainda antes de terminar a recruta e de ser excluído da seleção em consequência dos maus resultados, fora chamado ao capitão da companhia para explicar a situação em que se encontrava, que não era compreensível para o oficial. Ele tomara como base da sua preocupação as habilitações escolares, que estavam quase no limite para ter ido para as Caldas da Rainha ou Tavira, onde seriam recrutados os Cabos milicianos, bem como o seu passado desportivo de jogador de futebol, que contrariava a incapacidade revelada nos exercícios de recrutamento.

      Questionado sobre a hipótese de ainda poder ser selecionado, neste encontro com o oficial, foi deduzindo das palavras amigas do Capitão que, no geral, todos os selecionados seriam atiradores e poucos escapariam à mobilização para combater nas colónias. Perante este cenário esmorecera um pouco, deixara-se invadir pelo receio e quando o capitão o questionou sobre a hipótese de ainda ser selecionado, se essa fosse a sua vontade, respondera que seria melhor ser um soldado com uma boa especialidade do que um atirador com boas regalias. Com esta resposta, despedira-se do Capitão com um cumprimento formal, mas também com um sentimento de afeto pelas palavras de coragem que este lhe transmitira pela opção que fizera.

       No seu ideal de estudante, desejara tornar-se médico, pensara muitas vezes que tinha talento para isso, uma vez que gostava de socorrer e curar os companheiros quando eles precisavam. Aliás, a sua intuição não o enganara, pois nos testes para a seleção da especialidade esse talento viera a revelar-se ao ser mandado para Coimbra para o Regimento dos Serviços de Saúde, onde completara a parte teórica da especialidade de auxiliar de enfermeiro. Concluída a parte teórica, fora enviado para estagiar no Hospital Militar da Boavista na cidade do Porto, tendo sido aprovado com uma alta classificação que lhe permitira ficar entre os primeiros lugares do curso e, em consequência, fazer-lhe nascer a esperança de que dificilmente seria mobilizado para o Ultramar.

       Concluída a especialidade de Auxiliar de Enfermeiro, fora colocado de novo em Coimbra no C.I.C.A. 2 para cumprir o tempo restante de serviço, que andaria à volta de mais dezoito meses, se não fosse para as colónias. Quando ultrapassou o tempo de doze meses, ficara convencido de que já não seria mobilizado, acreditara nesta altura que valera a pena ter estudado como estudou não só para adquirir conhecimentos, mas sobretudo por ter sido aprovado com aquela classificação, pois era informação corrente que os primeiros dez do curso de Auxiliares de Enfermeiro não seriam mobilizados.

      Entretanto, quisera a sorte que, já com quinze meses de serviço e quando já nada fazia prever o sucedido, fosse mobilizado para Moçambique, uma colónia africana que tinha fama de ser bastante perigosa para os militares que iam para lá combater. Quando fora informado da sua mobilização individual pelo Tenente, ficara desolado e não escondera as lágrimas que lhe caíram pela face. O Tenente, que era um militar habituado a estas situações, não tivera muitas palavras para justificar esta mobilização inesperada, limitara-se a encorajá-lo e a desejar-lhe as maiores felicidades para a sua missão. Depois, indicara- -lhe como deveria levantar a guia de marcha na Secretaria para se apresentar no Entroncamento no Batalhão de Serviços de Material, onde integraria um pelotão de apoio direto como enfermeiro responsável desta unidade militar.

     Ele e os seus companheiros não demoraram muito tempo neste quartel, depressa foram enviados para Santa Margarida para fazerem a preparação militar adequada à situação de guerra que se travava nas colónias. Neste campo de treino militar, aprendera a usar algumas armas, algumas granadas e a executar alguns exercícios de combate. Não se sabia ao certo o que os esperava e, por isso, deveriam estar bem preparados. No seu caso, não só como enfermeiro mas também como combatente, pois na situação em que fora mobilizado poderiam acontecer as duas realidades.

Depois de ter passado alguns dias em casa, partira de comboio com os olhos rasos de lágrimas pela despedida da família e da jovem que amava e a quem prometera casamento.

      Embarcara uns dias antes do fim do mês de dezembro na estação das Devesas, numa noite de inverno muito fria e chuvosa. Numa noite de grande tristeza, por partir para a guerra, mas também por naquele momento não poder abraçar alguns amigos que, por razões de mau tempo, não puderam lá estar. Mesmo assim, lá conseguira recompor- -se e abraçar fortemente o irmão, que fora o último a segui-lo com o olhar, enquanto o comboio se afastava em direção à estação do Entroncamento, para regressar ao Batalhão de Serviço de Material pelo período de dois dias, antes de viajarem para o aeroporto de Lisboa, donde embarcaram num avião de transporte de militares com destino à colónia de Moçambique, mais concretamente à zona de Cabo Delgado, uma terra considerada de “cem por cento de guerra”.

      Poderá dizer-se que não fora um embarque sem resistência psicológica, pois o receio pelo pior começara a nascer logo que puseram os pés no aeroporto. Valeram- -lhes naquela triste noite as meninas que davam assistência psicológica aos militares que embarcavam para a guerra, que, para além dos afetos que não se cansavam de transmitir, distribuíam a cada militar uma pequena caixa que continha chocolates, bolos e uma garrafinha de vinho. Era uma espécie de brinde, que, misturado com os afetos e sorrisos, faria esquecer por algum tempo a família daqueles que não eram de Lisboa e que não a poderiam ter junto deles. Durante o tempo de espera pelo embarque ouviam-se soluços que iam sendo abafados pelo vinho que ia fazendo algum efeito, pelo menos enquanto se misturavam as emoções.

 

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 73 a 79.

 

Laços de Ternura / Bonds of Tenderness

09-06-2017 18:24

Laços de Ternura

 

Deixa-me agora tratar-te simplesmente por tu;

é assim, neste amor, que também os teus netos me tratam!

Não será pior, penso eu, que também amarás como se fosses tu...

Nós somos os mesmos; o tempo e as circunstâncias é que datam!...

 

Sabes? Passeando até ao lugar das nossas raízes,

vi um sonho que escorria para a terra.

Vi os rios, os vinhedos, as oliveiras e algumas serras,

e, em silêncio, recordei os nossos dias felizes.

 

Entretanto, naquele lugar, entre o amor e a alegria,

olhando a observar as pessoas, vi-as também numa correria!

De repente, uma música enterneceu-me e levantou um véu!

 

Mas num instante, recobrei as forças e também a paz!

E a contemplar a extensão do Vale, pareceu-me ouvir-te a dizer: “É o meu rapaz!”

Sim, demorei muito tempo, mas não foi fácil fazer isto de seu como tu:

pôr na cabeça um chapéu, passar a ser eu também a lembrar-me em seres tu.

 

Macedo Teixeira, Julho de 2016.

 

Bonds of Terderness

 

Let me now just treat you by “you”;

it is like that, in this love, that your grandchildren also treat me!

It will not be worse, I think, that you may also love as if were you...

We are the same; it is the time and circumstances that date!...

 

You know? Strolling to the place of our roots,

I saw a dream that was dripping to earth.

I saw the rivers, the large vineyards, the olive-trees and some mountains,

and, in silence, I remembered our happy days.

 

Meanwhile, in that place, between love and joy,

looking to observe the people, I also saw them in a hurry!

Suddenly, a music touched me and lifted a veil!

 

But, in an instant, I recovered my strengths and also peace!

And contemplating the Valley extension, it seemed to me to have heard you saying: “It’s my boy!”

Yes, I took very long, but it was not easy to do this of his like you:

to put a hat on the head, to start being me also remembering of being you.

 

Macedo Teixeira, July 2016.

 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 16)
20.07.2020
 

   Ao fim de dois anos, António transformara-se num empregado de escritório competente e com muitos conhecimentos destes serviços. Ganhara fama de bom empregado, trabalhador e assíduo, de tal maneira que noutras empresas congéneres não lhe faltariam oportunidades de ganhar mais, mas havia prometido à sua mãe que, enquanto fosse ela que decidisse, continuaria naquela fábrica, mesmo em questões de salário ou outras. E infelizmente assim fora, como prometera, até aos dezassete anos, pois antes de os completar a mãe falecera de um cancro no útero e a sua vida a partir dessa altura passara a ser mais orientada por si mesmo. Não gostava muito de ter de entrar às oito e meia da manhã, uma vez que noutras empresas os empregados de escritório entravam às nove horas; depois, com o falecimento da mãe, passara a ser mais controlado pelo Licínio, e isso era um grande obstáculo à sua liberdade de ação em todos os domínios, sobretudo porque começava a dar os primeiros passos para encontrar a jovem da sua primeira paixão. a mulher amada não estaria muito longe, mas isso só viera a sabê-lo uns meses depois de a mãe falecer.

   Estava na flor da idade e o fascínio da sua juventude e dos quase dezassete anos pareciam poder colorir a sua vida e alegrar a sua alma a conter o desgosto de ter perdido a mãe num mundo que começava agora a descobrir. Apeara-se na recordação do amor que recebera até ao dia em que soubera que fora o último, e desdobrara-se teimosamente no respeito ao pai e obediência ao irmão e mulher, pela proposta que o Licínio fizera para que se mantivessem unidos e vivessem juntos na sua casa, para poder olhar pelo pai e sobretudo para proteger e ajudar a crescer o António, aquele que continuaria na juventude e já como maior a ser o seu menino Tonito. Além disso, também tinha havido maior proximidade afetiva da sua mãe com a nora, a sua mulher, já que optara no momento de grande sofrimento e amargura, por escolher a sua casa e os seus cuidados depois de vir do hospital para terminar em Paz os seus últimos dias. Ficaram, então, a viver juntos e, por aquela casa pequena e humilde, já se ouviam há alguns anos os risos e os gritinhos das crianças que começaram a nascer e que a avó ainda antes da doença terminal pegara ao colo e guiara pela mão quando de vez em quando lhes fizera uma visita.

   O Amaral deixara a casa de Avintes, que alugara à Senhora Maria Pinheiro; com ela, ficaram os sonhos de menino que o António tivera durante o tempo que lá viveram. Ficara o terreno onde caminhava pelo meio dos carreiros que separavam os produtos agrícolas plantados. Ficaram as árvores de fruta e as videiras que lhe faziam brilhar os olhos quando os frutos coravam ou as uvas estavam prontas para serem colhidas em cachos suculentos. Ficara a casa e o jardim onde ainda criança esperara longos dias acreditando que uma raiz já seca ainda haveria de dar canas da Índia. Visitava todas as manhãs o lugar onde plantara aquela raiz que por lá aparecera sem saber como. Todos os dias a olhava na esperança de ver nascer uma pequena folha que lhe indicasse que o seu sonho ia ser real. De tanto desejar e a tratar com carinho, acreditara que um dia ela haveria de se encher de canas. Aliás, diz muitas vezes que se acreditarmos muito na possibilidade de um sonho, que ele se torna realidade. Pois sobre as canas da Índia diz tê-las visto em muitos lugares, mesmo onde os sinais seriam menos evidentes, e se já não escolhera uma cana para pescar era porque o rio Febros agora ficava longe. Ficara lá mais vincada a recordação da mãe, porque vira-a sentada no terreiro muitas vezes a sorrir de alegria enquanto descascava as batatas e migava as couves para a sopa, por toda a riqueza que tinham agora depois de a procurarem e sofrerem tantos anos.

   Não fora fácil a adaptação; a casa era muito pequena, havia muita limpeza mas só havia um quarto de casal. Para dormirem todos, as outras divisões tornavam-se em quartos provisórios, o trabalho obrigava os adultos a horários diferentes, não sendo fácil para o sossego das crianças. Depois, quando um dos maiores adoecia, lá ocupava o quarto do casal, pois era preciso que o médico visse o doente na melhor divisão.

   O António continuava a trabalhar e a estudar à noite, chegando muitas vezes quando já tudo dormia. O amor naquela casa era bendito, o jantar feito pela cunhada ficava embrulhado em jornais e num cobertor; estava sempre quentinho, mas era preciso comer mantendo todo o silêncio. Para estudar para os exercícios diários, e em especial para os testes, só poderia ser na cozinha e com a porta fechada para não incomodar ninguém e muito menos as crianças, que dormiam muito perto.

   Apesar de os resultados na escola serem bons e ainda muito jovem já ter independência económica, foram várias as noites em que as lágrimas iluminaram a sua vida na solidão de órfão de mãe e da vida de sacrifício que levava.

   Lembrava-se nos grandes tormentos do que lhe prometera quando esta o chamara ao leito alguns dias antes de já não poder falar. Reconhece que essa promessa fora nos momentos mais irados a sua tábua de salvação, pois se não tivesse prometido que seria bom, trabalhador e obediente, talvez não tivesse a glorificação da honradez nem o reconhecimento social para ser respeitado.

   Aliás, numa noite de inverno, já apaixonado e a caminhar para os grandes sonhos que haveria de realizar com a sua Cinderela, tivera depois de algumas horas de estudo no sofrimento do cansaço, uma espécie de “encontro” que durara o tempo de uma carícia e deixara sentimento marcado no coração para o lembrar sempre que valerá a pena ser assim, pois ainda sente a leveza do sinal quando lhe escapa o esplendor. Acredita que fora o momento do acordar da sua estrela, que continua a crer ser verdadeiro e sem nenhuma dúvida, julgou na altura poder imortalizá-lo, no poema que se segue:

   Sonho

   A mulher que Deus me deu
   Deus a deu Deus a levou
   A mulher que me escolheu
   Seja ela o que eu não sou.

   Deus a deu, Deus a levou
   Por outra coisa não poder ser
   Uma lágrima me ficou
   Que me mata até morrer.

   Se escutas meu pensamento
   Nesta noite longa e fria
   A tal não dês atento
   Porque choro d´alegria.

   De alegria que não tive
   Nem dei conta no sentir
   A criança quando dorme
   Dorme a chorar e a rir.

   Criança que já não sou
   Um boneco quero ter
   Deus mo deu, ou m´inventou
   Me acompanhe até morrer.


   Quisera depois começar a entrar nas voltas do destino e, por meio de um concurso, arranjara emprego nas Trinchas e Pincéis 1001, era uma das maiores lojas de comércio de pincelaria no Porto. Acarinhado como um familiar pela patroa, trabalhara durante algum tempo na cidade, mas depressa se atemorizara em relação ao futuro. Desejava ser alguém e a cidade parecera-lhe um local onde facilmente se poderia perder. Haveria algo de estranho que porventura o atrairia para os caminhos da perdição, e a promessa que fizera à mãe de ser “bom menino” começara a senti-la de tal modo que tudo quanto lhe parecesse que levaria ao contrário ele deveria rejeitar. Corrido pelas escadas abaixo, em altos berros, pela patroa, que não aceitara de bom grado a sua saída, no dia seguinte fora apresentar-se num outro armazém para desempenhar funções no escritório, um lugar que há algum tempo lhe fora oferecido por um amigo que lá trabalhava e tinha grande influência no comerciante. Era uma empresa que ficava próximo da sua residência, passara a ganhar tanto como ganhava no Porto e a ter mais facilidade para continuar a estudar à noite na Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia, como o fazia desde os quinze anos de idade.

   O dono deste armazém chamava-se Moreira, mais conhecido pelo senhor Moreira das peles, que, para além da sua bondade no reconhecimento da competência e do trabalho dos empregados, possuía também uma grande inteligência na arte de comerciar peles e outros artefactos para o calçado. De tal modo que, em certas situações, alguns destes produtos poderiam ser pouco vendáveis, pela aparência ou por outra razão qualquer, no entanto, ele recomendava-os à experiência a alguns industriais, que, com alguma resistência, lá iam fazendo alguns modelos para mostrar e vender aos seus clientes. Depois, era só aguardar os resultados e o inesperado tornava-se contagiante. As sapatarias compravam tanto calçado destas amostras especiais que, na maior parte das vezes, a existência destes produtos em armazém já não chegaria para as encomendas dos fabricantes que apostaram nesta aventura.

   Contudo, quando entrou para o escritório desta empresa tinha feito há pouco dezassete anos de idade. Estava a um ano de saber se seria ou não apurado para todo serviço militar, um problema que o afligia como a todos os jovens daquele tempo, porque a Guerra Colonial era assustadora e poucos escapariam à mobilização para as Colónias ultramarinas. Aliás, no dia de ir à inspeção, chegara a pensar que ficaria livre, pois tinha num braço as marcas da dor de se ter escaldado quando ainda andava na instrução primária. Julgara ele que se dissesse ao médico que o seu braço estava afetado pelo escaldão que sofrera quando ainda era menino, o médico teria pena dele e o livraria do serviço militar e, em consequência, o livraria também do receio que tinha de ir parar às colónias. Porém, de nada lhe valera este pensamento, pois quando fora inspecionado ainda lhe ocorrera esta ideia, mas a aprovação para o serviço militar fora geral e sem haver lugar para apelo nas circunstâncias.

   Com grande esforço para poder trabalhar de dia e estudar à noite, lá fora continuando a amealhar algum dinheiro, já que dois anos depois da inspeção chegaria o dia da chamada para cumprir o serviço militar. Tivera consciência de que ganharia muito pouco como soldado, mas as habilitações literárias que tinha na ocasião só em certas condições permitiriam ter um posto de classe superior e assim poder ganhar mais e ter mais vantagens.

 
Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 68 a 73.
 
Caminho de Luz e Sombra (Texto 15)
 

Entretanto, aconteceram alguns factos no quotidiano que vieram trazer um pouco mais de alento e ajudar na mudança deste ambiente tão pesado. O Licínio regressara do serviço militar e retomara o trabalho como encarregado numa fábrica de calçado na freguesia de Oliveira do Douro, concelho de Vila Nova de Gaia, podendo retirar do seu salário uma importância razoável para ajudar nas despesas da família. O Toninho terminara a instrução primária, embora andar na rua sem fazer nada tornar-se-ia numa grande aflição pelos perigos que espreitavam nas suas brincadeiras de criança. O que vale é que esta situação não se prolongaria por muito tempo, pois no princípio do ano de 1962 a mãe decidira pôr-lhe termo e metera os pés ao caminho para ir à fábrica onde trabalhava o seu filho Licínio pedir trabalho para o filho António.

     O patrão chamava-se Elias e recebera-a com uma grande alegria, não só por o Licínio ser um dos seus empregados preferidos mas também por ter apreciado no António a sua inteligência nas respostas e a sua alegria na comunicação.

Elias não tinha filhos e é de crer que tivesse sentido um murmúrio na alma provocando-lhe um sentimento paterno.

     – O rapaz fica já aqui! – respondera. – Vai almoçar à Luzia e será por minha conta! Deixe-o ficar, que eu vou fazer dele um grande homem!

     Com esta bondade expressiva terminara a aflição de Maria, que não queria ver o filho perdido pelos campos nem pelo rio, pois já não era a primeira vez que faltava à hora do almoço e a fazia percorrer longas distâncias à sua procura, estando tantas vezes o rio cheio e com correntes de meter medo.

      Começara como aprendiz de sapateiro, mas rapidamente fora colocado na experiência de trabalhos nas máquinas que transformavam os artefactos para o calçado. Aprendia com tanta facilidade que a estima dos operários se transformara em pressão sobre o irmão Licínio, para que este o colocasse junto de si para executar tarefas que permitissem que mais tarde viesse a ser um profissional especializado no setor da produção.

     Saía de casa todas as manhãs por volta das 7h00, carregando nas mãos uma lancheira com o almoço que a mãe fazia, enquanto ele se vestia e arranjava, para ainda estar fresco ao meio-dia para almoçar. Ganhar um pequeno salário e ser estimado por todos era como um prémio que lhe dava forças para caminhar, muitas vezes, com os pés encharcados de água ou com as mãos geladas de frio. Aliás, é com grande alegria que recorda os operários de quem fora aprendiz, pelo carinho que lhe deram mas também por tanto terem insistido com o irmão para que este o pusesse a estudar à noite. Eram os operários que afirmavam com toda a franqueza que este menino poderia ter uma vida melhor, já que ele se revelava muito inteligente nas tarefas que desempenhava.

     – Senta-te à minha beira e vê como eu dou cola nestas solas, é o trabalho que vais fazer! – dissera-lhe com carinho o operário que começara a ajudar como aprendiz.

     – Não disse que tinha que ir buscar fôrmas? – lembrara o António com preocupação.

     – Sim, mas só depois de acabarmos este serviço!... – respondera-lhe objetivamente o operário. Depois acrescentara com afeto:

     – O tempo de secar e colar tem que ser seguido e de modo alternado!

     – Ensinem este menino, que o patrão já lhe deu um prémio, quer que ele vá almoçar à Luzia e é por conta da casa! – entrando de rompante, ordenara com ar feliz o encarregado geral da fábrica.

     – Ele é inteligente, está aprender bem! Vamos ter homem!... – exclamaram os operários que estavam mais próximos.

     – Só não percebo é porque é que o Licínio não o tira desta vida. Ele sabe o que é a vida de operário e não se importa que o irmão venha a ser um reles sapateiro?! – acrescentara um outro, com algum desconforto pela arte, apesar de ter funções mais técnicas.

     – O que estão para aí a cochichar?!... – indagara o Licínio, sem sombra de aborrecimento.

    – Estávamos a dizer que é uma pena que o seu irmão esteja a aprender esta profissão! – retorquira um dos operários mais velhos e que tinha maior confiança.

    – Você sabe que isto não é futuro!... O rapaz é tão inteligente, ele decora tudo e com tanta facilidade que é pena que não possa ir estudar para um dia ter melhor sorte do que nós!... E depois se ficar na oficina não virá a ser senão um operário com todos os sofrimentos que já nos bastam a nós.

   – Ele não ficará cá muito tempo, eu já ouvi o patrão a dizer que certamente ele iria para o escritório e se assim for eu hei de arranjar maneira de ele ir estudar à noite. – sossegara-os o Licínio com a sua preocupação. E depois, para rematar a conversa e reconhecer a partilha de afetos, concluíra: – Vocês têm razão, isto não é futuro e eu também sinto que ele merece melhor sorte, mas enquanto as coisas não mudam, terá que ser assim!...

     O grande entusiasmo do António na aprendizagem tocara o coração de todos, já que algum tempo depois de ter sido iniciado nos trabalhos de aprendiz fabril, o patrão propôs ao Licínio que o rapaz fosse experimentado nos serviços do escritório para ver como seria o seu jeito nesta nova função. Assim, num final de tarde e sem que nada o fizesse prever, dado que durante dois anos o António tornara-se num aprendiz exemplar, o Licínio chamou-o para lhe dar a novidade de que iria trabalhar no escritório. Sabe-se que, no intervalo do dia, telefonara à mãe, a quem contara a proposta que o patrão fizera. Dissera-lhe, também, para lhe vestir uma roupa melhor, pois como empregado de escritório teria que estar sempre mais arranjado.

      O Toninho ficara tão contente com esta nova oportunidade que se apressou a regressar a casa, para contar à mãe, o que afinal ela já sabia, pois o Licínio era casado e maior, mas seriam os pais que teriam que autorizar a mudança.

     Quando chegou a casa vira nos olhos da mãe uma mistura de alegria e de tristeza, ela tinha tantas dores, por uma doença no útero, que lhe tiravam as forças e anunciavam o fim. Mesmo assim, lá fora indicando ao seu menino, que agora teria cerca de catorze anos, qual a roupa que deveria vestir no dia seguinte, ao mesmo tempo que preparava o jantar para ambos, já que o pai não tardaria a chegar e era preciso alimentarem-se.

     Depois da partilha desta alegria, António fora deitar- -se com o reforço da satisfação pelo novo emprego, mas também pela melhoria do horário de entrada que agora seria meia hora mais tarde. Acordou já o sol rompia pela manhã, a sua mãe não o acordara como era costume e o silêncio da casa fazia augurar algo de muito triste. Levantara-se e chamara por ela, mas ninguém respondera. Olhara para o chão com tristeza e vira junto da cama em cima de uma cadeira um fato, uma gravata, uma camisa e aos pés um par de sapatos mais novos e meias a condizer; a sua mãe tinha sido modista de roupas de criança e ele continuara a ser o seu modelo. ainda meio confuso e a pensar no que iria fazer, uma voz caridosa de uma vizinha entoara vinda de perto:

    – António, a tua mãe adoeceu durante a noite, foi na ambulância para o hospital! – exclamara com a voz entristecida – Veste a roupa que ela te deixou e vai depressa para o trabalho, não te atrases mais – dissera carinhosamente.

     Mais consciente da situação, saíra a correr para apanhar a primeira camioneta que passasse, já era bastante tarde e ainda por cima estaria em causa uma nova oportunidade na sua vida de adolescente. Tornar-se num empregado de escritório trouxera-lhe um sentimento de confiança e expectativa no futuro. Adivinhava que iria melhorar no estatuto, que iria ter mais aceitação dos amigos e das raparigas a quem já ia arrastando a asa. Sabia que profissionalmente também iria ganhar bastante mais. Tudo se conjugava para os seus sonhos, mas o senão de se sentir só haveria de ser uma triste recordação para toda a vida.

     Chegara ao novo emprego e já metade da manhã tinha passado. O seu irmão Licínio estava preocupado, ainda que soubesse o que sucedera à mãe antes de ele ter sabido pela vizinha, mas o tempo de atraso era tanto que chegara a temer que o patrão já não deixasse o irmão iniciar a nova experiência de escriturário.

     António batera na porta da frente e, ainda agitado pela correria, entrara no escritório e saudara os presentes com um pedido de desculpa por ter chegado atrasado. O patrão saudara-o começando por fazer uma pequena apresentação do escritório e da pessoa que iria ser o seu mestre na aprendizagem dos novos serviços. Ele sabia que o rapaz estava triste e a razão do seu atraso estaria mais que justificada. Com afeto e com uma voz elogiosa lá fora dizendo:

    – Faz tudo o que o Sr. José te ordenar, procura ter muita atenção e verás que isto não será difícil. Dentro de pouco tempo poderás ser um bom escriturário e se tiveres vontade poderás vir a ser um guarda-livros muito competente.

    – Muito obrigado, Sr. Elias – agradecera o rapaz comovido.

Depois, lá foi sendo absorvido pelo som da máquina de escrever enquanto esperava que o Sr. José lhe indicasse o que iria fazer. Neste intervalo, olhara por entre a vidraça que separava o setor da costura e do corte das peças para o calçado, ao mesmo tempo que sentira que algo estaria a mudar na sua relação com a nova realidade; sentira que deixaria para trás o trabalho duro da experiência fabril. Como vindo dum sonho, despertara bruscamente ao ouvir a voz do Sr. José:

    – Vamos começar? – interrogara.

    – Sim! Vamos! – respondera de imediato.

    – Presta atenção ao seguinte – afirmara com um certo jeito. – Em primeiro lugar, teremos de começar pela caligrafia, melhorando-a, para poderes tirar faturas com boa apresentação. Para isso irei escrever algumas frases neste caderno para copiares com perfeição. Será um dos exercícios necessários, para obteres a caligrafia ideal e assim tirares uma fatura legível e apresentável.

      Seguiram-se, depois, outras indicações e avisos, até que chegara o meio-dia e com ele a hora de almoçar para quebrar o jejum em que se encontrava.

 

      Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 62 a 68.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 14)

 

    Entretanto, quando comunicaram ao rei do Egito que o povo fugia,o coração do Faraó e dos seus servidores mudaram a respeito do povo. Disseram: “Que fizemos deixando partir Israel que agora já não nos prestará serviço?!” O Faraó mandou atrelar o carro e pôs-se em marcha com o seu exército. Prepararam seiscentos carros escolhidos e todos os carros do Egito com os melhores combatentes. O Senhor endureceu o coração do Faraó, rei do Egito, que começou a perseguição aos filhos de Israel. Estes, porém, avançavam triunfalmente. Os egípcios perseguiram-nos e alcançaram-nos quando estavam acampados junto ao mar. Todos os cavalos dos carros do Faraó, os seus cavaleiros e o seu exército avistaram-nos em Pi-hahirot, em frente de Baalcefôn. Como o Faraó se aproximava, os filhos de Israel, erguendo os olhos, viram os egípcios a marchar contra eles. Esmagados pelo terror, invocaram o Senhor em altos brados e voltando-se contra Moisés, interrogaram: “Não havia sepulcros no Egito para que nos tenhas trazido para morrermos no deserto? Que foi que nos fizeste, tirando- -nos do Egito? Não te dizíamos no Egito: Deixa-nos servir os egípcios; era melhor sermos escravos dos egípcios do que morrermos no deserto?”. Moisés respondeu ao povo: “Não tenhais receio de nada. Tranquilizai-vos e vereis a vitória que o Senhor vai alcançar neste dia em nosso favor. Os egípcios que hoje estais vendo, não mais voltareis a vê-los. O Senhor combaterá por nós. Permanecei calmos”.

   Então, o Senhor, interpelando Moisés, exclamou: “Porquê esses gritos? Ordena aos filhos de Israel que se ponham em marcha. E tu, ergue a tua vara, estende a tua mão sobre o mar e divide-o para que os filhos de Israel possam atravessá-lo a pé enxuto. Eu vou endurecer o coração dos egípcios, para que entrem no mar atrás deles, e obterei uma gloriosa vitória sobre o Faraó e sobre todo o exército, os seus carros e os seus cavaleiros. Os egípcios ficarão a saber que Eu Sou o Senhor, quando o Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros fizerem resplandecer a Minha glória”. O anjo de Deus, que marchava à frente das hostes de Israel, mudou de lugar e foi para trás deles. a coluna de nuvem que os precedia foi colocar-se atrás deles entre o acampamento dos egípcios e o acampamento de Israel. De um lado iluminava a noite, e, do outro, a escuridão era absoluta. E os dois exércitos não puderam aproximar-se um do outro.

   Moisés estendeu a mão sobre o mar e o Senhor fustigou o mar com um impetuoso vento do oriente, que soprou durante toda a noite. Secou o mar e as águas dividiram-se. Os filhos de Israel desceram a pé enxuto para o meio do mar e as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda deles. Os egípcios perseguiram-nos, tendo todos os cavalos do Faraó, os seus carros e os seus cavaleiros entrado no leito do mar com o objetivo de os alcançar. Na vigília da manhã, o Senhor olhou da coluna de fogo e da nuvem para o campo dos egípcios e lançou nele o pânico. Bloqueou as rodas dos seus carros, de modo que só dificilmente conseguiam avançar. Os egípcios ao ver o que lhes acontecera ficaram com medo e disseram: “Fujamos diante de Israel, porque o Senhor combate a favor deles contra o Egito”. Então, entre a força das partes que separavam a esquerda e a direita do mar, o Senhor em alta voz bradara a Moisés dizendo: “Estende agora a tua mão sobre o mar e as águas voltarão a reunir-se sobre os egípcios, os seus carros e os seus cavalos”. Moisés estendeu a mão sobre o mar e, ao romper do dia, o mar retomou o seu nível habitual; os egípcios, em fuga, foram de encontro a ele precipitando-se no meio do mar. Ao reunirem-se, as águas cobriram os carros, os cavaleiros e todo o exército do Faraó que tinha entrado no mar em perseguição dos filhos de Israel. Nem um só escapou. Mas os filhos de Israel tinham avançado a pé enxuto (pelo meio do mar), enquanto as águas formavam como que uma muralha à direita e à esquerda deles. Foi assim que, nesse dia, o Senhor livrou Israel das mãos dos egípcios, os quais se encontravam mortos nas margens do mar. Israel reconheceu o grande poder que o Senhor tinha empregado contra os egípcios, e o povo acreditou no Senhor e em Moisés, seu servo.

   Depois deste prodígio, Moisés ordenou aos filhos de Israel que partissem do mar Vermelho e se dirigissem para o deserto de Sur. Caminharam durante três dias sem encontrar água. Chegaram a Mara, mas não puderam beber água, porque era muito amarga, daí o nome de Mara posto a este lugar. Perante esta aflição, o povo começou outra vez a murmurar contra Moisés, exclamando: “Que havemos de beber?” Moisés clamou então ao Senhor, que lhe indicou um madeiro. Aquele atirou-o à água tornando-a potável. Foi também ali que o Senhor deu ao povo leis e preceitos, e foi lá que o pôs à prova, pronunciando as seguintes palavras: “Se escutares a voz do Senhor, teu Deus, se fizeres o que for reto aos seus olhos, se cumprires as Suas ordens e se observares todas as Suas leis, não te infligirei nenhum dos males com que feri o Egito; porque Eu Sou o Senhor, Aquele que te restabelecerá”.

   Continuando o povo de Israel a caminhar, chegaram a Elim, onde havia doze nascentes de água e setenta palmeiras. Acamparam ali, junto da água, tendo depois toda a multidão dos filhos de Israel partido ao encontro do deserto de Sin, entre Elim e o Sinai. Era o décimo quinto dia do segundo mês após a sua saída do Egito. No deserto e com fome, toda a multidão começou a murmurar outra vez em altos brados contra Moisés e Aarão, dizendo-lhes: “Porque não fomos mortos pela mão do Senhor no Egito quando estávamos sentados diante das panelas de carne e comíamos pão à vontade? Trouxeste-nos para o deserto a fim de matar à fome todo este povo!”. O Senhor, sentindo a aflição do povo voltou-se para Moisés, falando-lhe novamente: “Vou mandar chover para vós pão do alto do céu. O povo sairá para recolher diariamente a quantidade necessária, a fim de o pôr à prova e ver se obedece ou não às Minhas ordens. No sexto dia, preparem-se para levar o dobro do que recolherem cada dia”. Moisés e Aarão falaram então aos filhos de Israel: “Esta tarde compreendereis que foi o Senhor quem vos fez sair do Egito, e amanhã de manhã vereis a glória do Senhor, pois ouviu as vossas murmurações contra Ele. E nós, que somos nós para murmurardes contra nós?” Moisés disse-lhes ainda o seguinte: “Esta tarde o Senhor dar-vos-á carne para comerdes, e amanhã pão com fartura, pois ouviu o que proferistes contra Ele. Mas nós, que somos nós? Não foi contra nós que murmurastes, foi contra o Senhor.” Depois, um pouco zangado com o povo, ordenou a Arão: “Diz a toda a assembleia dos filhos de Israel: Apresentai-vos diante do Senhor, porque Ele ouviu as vossas murmurações”. E, enquanto Aarão falava a toda a assembleia dos filhos de Israel, estando voltados para o lado do deserto, a glória do Senhor apareceu, de repente, na nuvem, comunicando a Moisés: “Ouvi as murmurações dos filhos de Israel. Por isso dir-lhes-ás: “Esta tarde, ao anoitecer, comereis carne, e amanhã saciar-vos-eis de pão. E, assim, ficareis a saber que Eu Sou o Senhor, vosso Deus”. Cumprindo a Sua palavra, o Senhor de tarde, fez aparecer codornizes que cobriram o campo, e, na manhã seguinte, havia uma camada de orvalho em volta do acampamento. Quando este orvalho se evaporou, apareceu à superfície do deserto uma coisa miúda, granulada, como saraiva caída na terra. Ao vê-la, os filhos de Israel perguntaram uns aos outros: “Que é isto?”, pois não sabiam o que era. Moisés respondeu-lhes: “É o pão que o Senhor vos dá para comerdes. O Senhor ordena o seguinte: Recolha cada um de vós o que for necessário para o seu sustento, à razão de um ômer por cabeça, e de harmonia com o número de pessoas que viva na mesma tenda….” Os filhos de Israel deram a esse alimento o nome de maná. Parecia-se com a semente de coentro, era branco e tinha o sabor de bolo de mel.

   Entretanto, vendo o Senhor que alguns não cumpriram o que lhes ordenara (não respeitaram o sétimo dia, que é o dia de sábado e dia de descanso consagrado ao Senhor, não respeitaram as quantidades diárias que poderiam recolher de pão), bradou com insistência a Moisés: “Até quando vos recusareis a cumprir os Meus mandamentos e as Minhas Leis? Vede, o Senhor deu-vos o sábado; por isso, no sexto dia, vos dará alimentação para dois dias. Permaneça cada um na sua tenda e que ninguém saia do sítio em que estiver no sétimo dia”. E, assim, o povo descansou no sétimo dia.

   Depois deste dia, o povo continuou a sua caminhada em direção ao Monte Sinai. No primeiro dia do terceiro mês, após a saída do Egito, os filhos de Israel chegaram ao deserto do Sinai, onde acamparam. Israel instalou-se aí, em frente do monte. Moisés subiu para Deus, e o Senhor chamou-o do alto do monte, dizendo: “Dirás o seguinte à casa de Jacob, anunciarás o seguinte aos filhos de Israel: Vistes o que fiz aos egípcios e como vos transportei sobre asas de águia para vos trazer até Mim. Doravante, se escutardes a Minha voz e se fordes fiéis à Minha aliança, sereis, entre todos os povos, uma propriedade Minha. Toda a terra Me pertence. Mas vós sereis para Mim um reino de sacerdotes e uma nação santa. São estas palavras que tu dirás aos filhos de Israel”. Moisés convocou os anciãos do povo e comunicou-lhes as palavras que o Senhor lhe ordenara para repetir. O povo inteiro respondeu: “Faremos tudo quanto o Senhor disse.”

   Algum tempo depois, Deus voltou a falar a Moisés, dizendo-lhe: “Vou aproximar-me de ti numa nuvem espessa a fim de que o povo se aperceba de que estou a falar contigo, e tenha sempre confiança em ti”. E para que o povo soubesse como proceder, chamou Moisés ao monte Sinai para ver o poder do Seu dedo que, através de chamas ardentes, escrevia em duas Tábuas os Dez Mandamentos que Moisés trouxera para ler ao povo:

 “– Eu Sou o Senhor, teu Deus, que te fez sair do Egito, de uma casa de escravidão. Não terás outro deus além de Mim.

  – Não farás para ti imagem de escultura, nem figura alguma do que há em cima no céu, e do que há em baixo na terra, nem do que há nas águas debaixo da terra. Não adorarás tais coisas, nem lhes prestarás culto; Eu sou o Senhor teu Deus forte e zeloso, que vinga a iniquidade dos pais nos filhos, até à terceira e quarta geração daqueles que me odeiam; e que usa de misericórdia até mil (gerações) com aqueles que me amam e guardam os meus preceitos.

  – Não pronunciarás em vão o nome do Senhor, teu Deus.

  – Recorda-te do dia de sábado, para o santificar.

  – Honra o teu pai e a tua mãe.

  – Não matarás.

  – Não cometerás adultério.

  – Não roubarás.

  – Não dirás falso testemunho contra o teu próximo.

  – Não cobiçarás a casa do teu próximo, nem a sua mulher nem coisa alguma que lhe pertença.”

  (iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [Neste texto 4, a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

   Assim contara a história e recordara ao seu menino, naquela triste noite, estes factos bíblicos, assim também começara a amenizar-se a tristeza de não terem visto o filme “Os Dez Mandamentos”.

 

  Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 56 a 62.

 

                     Caminho de Luz e Sombra (Texto 13)

 

     Perante esta atitude, o Senhor ordenou a Moisés: “Estende a tua mão sobre o Egito para que os gafanhotos venham a esta terra, invadam o Egito e devorem toda a vegetação aqui existente, tudo o que o granizo deixou”. Moisés estendeu a sua vara e o Senhor fez soprar um vento do oriente naquela terra, durante todo esse dia e durante toda essa noite. Quando amanheceu, o vento do oriente tinha trazido os gafanhotos que se espalharam pelo Egito e pousaram sobre toda a extensão do seu território em tão grande quantidade que não houve nem haverá jamais semelhante invasão. Cobriram a superfície de toda a terra e esta tornou-se escura. Devoraram toda a vegetação e todos os frutos das árvores, tudo o que o granizo tinha poupado.

     O Faraó mandou imediatamente chamar Moisés e Aarão e, mostrando arrependimento, disse-lhes: “Pequei contra o Senhor, vosso Deus, e contra vós. Mas perdoai o meu pecado ainda esta vez e rogai ao Senhor, vosso Deus, que afaste de mim este flagelo mortal”. Moisés saiu de casa do Faraó e intercedeu junto de Javé. O Senhor fez soprar um vento do ocidente muito violento que arrastou os gafanhotos, precipitou-os no mar Vermelho, sem ficar um único em todo o território egípcio. Mas o Senhor endureceu o coração do Faraó e este não deixou (uma vez mais) partir os filhos de Israel.

    Em consequência de mais esta má atitude do rei do Egipto, seguiu-se a nona praga – as trevas, tendo para isso o Senhor falado a Moisés: “Estende a mão para o céu e haja trevas sobre todo o Egito, tão espessas que se possam apalpar”. Moisés estendeu, então, a mão para o céu, e durante três dias densas trevas cobriram todo o Egito. No decurso de três dias, não se viram uns aos outros e ninguém se mexia do lugar em que se encontrava. Mas os filhos de Israel tinham luz nas regiões por eles habitadas. Perante este facto, o Faraó mandou chamar Moisés e rogou-lhe: “Ide oferecer sacrifícios ao Senhor. Só permanecerão aqui as vossas ovelhas e os vossos bois. Os vossos filhos também poderão acompanhar-vos”. Moisés respondeu: “Tu próprio terás de colocar nas nossas mãos o que for necessário para oferecer os sacrifícios e os holocaustos ao Senhor, nosso Deus. Os nossos rebanhos virão também connosco, não ficará nem sequer uma rês, porque é dentre os nossos rebanhos que devemos escolher os animais para oferecermos em sacrifício ao Senhor, nosso Deus, e, enquanto lá não chegarmos, não sabemos quais serão as vitimas que ofereceremos ao Senhor”. Mas o Senhor endureceu o coração do Faraó, e o Faraó faltou à palavra e voltou a não deixá-los partir e, enfurecido, disse a Moisés: “Sai da minha casa! Livra-te de tornares a aparecer na minha presença, pois no dia em que voltares a estar diante de mim, morrerás!” Ao qual, Moisés replicou: “Assim o disseste. Não voltarei mais à tua presença.”

     E assim deu-se o anúncio da décima praga. Tendo o Senhor dito a Moisés: “Enviarei mais uma última praga sobre o Faraó e sobre o Egito, depois da qual não só vos deixará partir, mas expulsar-vos-á daqui. Dirás ao povo que cada mulher peça aos seus vizinhos objetos de prata e oiro”. O Senhor fez com que o povo achasse graça aos olhos dos egípcios. O próprio Moisés era muito respeitado no Egito, tanto pelos servidores do Faraó, como pelo povo em geral. Moisés, cumprindo depois o que Deus ordenara, disse: “assim falou o Senhor: Pelo meio da noite passarei através do Egito e todo o primogénito nascido no Egito morrerá, desde o primogénito do Faraó, que deveria ocupar o trono, até ao primogénito da escrava que faz girar a mó e todos os primogénitos dos animais. Elevar-se-á um clamor imenso em todo o país do Egito, um clamor tal como nunca houve antes e não mais haverá. Mas, entre os filhos de Israel nem mesmo um cão latirá, quer contra eles quer contra o seu gado; assim, ficareis a saber de que maneira o Senhor distingue os egípcios dos filhos de Israel. Então, todos os teus cortesãos aqui presentes virão ter comigo e prostrar-se-ão diante de mim, dizendo: Parte tu e todo o teu povo que te obedece! Então, depois disso partirei”. Após estas palavras e dominado por grande cólera, Moisés saiu da casa do Faraó. O Senhor dissera também a Moisés: “O Faraó não vos escutará, para que, assim, os Meus prodígios se multipliquem no Egito”. Moisés e Aarão realizaram todos estes prodígios na presença do Faraó, mas o Senhor endureceu o seu coração e ele continuou a não permitir que os filhos de Israel saíssem da sua terra.

     Com esta praga, deu-se a instituição da Páscoa. O Senhor disse a Moisés e a Aarão no Egito: “Este mês será para vós o primeiro mês, será o primeiro mês do ano. Dizei a toda a assembleia de Israel: No décimo dia deste mês, tome cada um de vós um cordeiro por família, um cordeiro por cada casa. Se a família for pouco numerosa para comer um cordeiro, comê-lo-ão em comum com o seu vizinho mais próximo, segundo o número de pessoas, tendo em conta o que cada um pode comer. Será um cordeiro sem defeito, macho e com um ano de idade; podereis escolher um cordeiro ou um cabrito.

     Guardá-lo-eis até ao décimo quarto dia deste mês: então toda a assembleia de Israel o imolará ao entardecer. Recolherão o seu sangue e espalhá-lo-ão pelas duas ombreiras e pela verga da porta das casas onde for comido. Nessa mesma noite, comer-se-á a carne assada ao fogo com pães sem fermento e ervas amargas. Não comereis dela nada que esteja cru ou cozido em água, mas somente assada ao fogo; comê-lo-eis com a cabeça, as patas e as entranhas. Não deixareis nada para o dia seguinte, e se ficar algum resto queimá-lo-eis. Quando o comerdes, tereis os rins cingidos, as sandálias nos pés e o bordão na mão. Comê-lo-eis apressadamente, pois é a Páscoa do Senhor.

     Nesta noite, passarei através do Egito e ferirei de morte todos os primogénitos nascidos no Egito, desde os homens até aos animais, e exercerei a Minha justiça contra todos os deuses do Egito, Eu, o Senhor. O sangue servirá de sinal nas casas em que residis. Vendo o sangue, passarei adiante, e não sereis atingidos pelo flagelo destruidor, quando Eu ferir a terra do Egito. Conservareis a recordação desse dia, comemorando-o com uma solenidade em honra do Senhor: celebrá-la-eis como uma instituição perpétua, de geração em geração. Durante sete dias, não haverá fermento nas vossas casas. Quem comer pão fermentado, desde o primeiro dia até ao sétimo, será excluído de Israel.

     A meio da noite, o Senhor matou todos os primogénitos do Egito, desde o primogénito do Faraó, herdeiro do seu trono, até ao primogénito do preso na masmorra, e todos os primogénitos dos animais. O Faraó ergueu-se durante a noite, assim como todos os seus servidores e todos os egípcios, e ouviu-se um imenso clamor no Egito, pois não havia casa alguma sem um morto. Nessa mesma noite, o Faraó mandou chamar Moisés e Aarão, e atormentado, suplicou-lhes: “Ide-vos, parti do meio do meu povo, vós e os filhos de Israel. Ide servir o Senhor como dissestes. Levai também as vossas ovelhas e os vossos bois, como pedistes, e parti! Implorai também por mim a bênção”.

     Os filhos de Israel partiram de Ramsés para Sucot, em número de cerca de seiscentos mil homens, sem contar com as crianças. Além disso, partiu com eles uma numerosa multidão de gente de proveniências diversas e grandes rebanhos de ovelhas e bois.

     Quando o Faraó deixou partir o povo, Deus não o conduziu pelo caminho da terra dos filisteus, que, no entanto, é o mais curto, pois Deus disse: “O povo poderia arrepender-se de ter partido quando se encontrar perante uma guerra, e regressar ao Egito. Então, Deus fez com que o povo se desviasse do deserto para o mar Vermelho. Os filhos de Israel saíram do Egito em boa ordem. Moisés levou consigo as ossadas de José, porque José fizera jurar os filhos de Israel, rogando-lhes: “Quando Deus vos visitar levareis daqui os meus ossos convosco. Partiram de Sucot, acamparam em Etam, na extremidade do deserto. O Senhor ia à frente deles; durante o dia, numa coluna de nuvem para os guiar no caminho; e, durante a noite, numa coluna de fogo para os iluminar, a fim de poderem caminhar de dia e de noite.

     Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 51 a 56.

 

Caminho de Luz e Sombra (12)

26-06-2020 17:47

Caminho de Luz e Sombra (12)

 

      Perante esta aflição, o Faraó chamou Moisés e Aarão e disse-lhes: “Intercede junto do Senhor para que Ele afaste as rãs da terra do Egito e eu deixarei ir o vosso povo oferecer sacrifícios ao Senhor”. Moisés respondeu-lhe: “Fazei-me a mercê de dizer quando devo rogar por ti, pelos teus servidores e pelo teu povo, a fim de que o Senhor afaste as rãs de ti e das tuas casas, de modo a ficarem apenas no rio”. Ele volveu: “Amanhã”. E Moisés retorquiu: “Far-se-á como desejas, para saberes que ninguém é semelhante ao Senhor, nosso Deus. As rãs afastar-se-ão de ti, das tuas casas, dos teus servidores e do teu povo; ficarão apenas no rio.” Moisés e Aarão saíram da casa do Faraó e Moisés invocou o Senhor a respeito das rãs que tinha enviado contra o Faraó. O Senhor fez o que Moisés pedira: e as rãs morreram nas casas, nas praças e nos campos. Mas o Faraó, sentindo-se aliviado naquele momento, endureceu o coração e, como o Senhor tinha predito, não escutou Moisés e Aarão.

 

      Como o Faraó não cumpriu a promessa que fizera a Moisés e Aarão, Deus continuou a castigar o povo egípcio, enviando a praga dos mosquitos. O Senhor disse a Moisés: “Dize a Aarão: ergue a tua vara e fere o pó da terra, e transformar-se-á em mosquitos em todo o Egito. Assim fizeram e todo o pó da terra se transformou em mosquitos. Também os magos lançaram mão dos seus encantamentos para produzir mosquitos, mas não conseguiram. Os mosquitos continuavam sobre os homens e sobre os animais. Os magos disseram, então, ao Faraó: “Está aí o dedo de Deus”. Mas o coração do Faraó permaneceu endurecido.

 

     Seguiu-se, então, a quarta praga, a praga das moscas venenosas. O Senhor ordenou a Moisés: “Levanta-te de manhã cedo e apresenta-te ao Faraó quando ele sair para ir às águas. Dir-lhe-ás: Assim fala o Senhor: Deixa partir o Meu povo a fim de que Me sirva. Se recusares, enviarei moscas venenosas contra ti, contra os teus servidores, contra o teu povo e contra as tuas casas; as casas dos egípcios ficarão cheias de moscas venenosas, assim como a terra que eles habitam. Mas, nesse dia, abrirei exceção para a terra de Gessen, onde reside o Meu povo. Lá não haverá moscas venenosas, para saberes que Eu, o Senhor, estou presente nesta terra. Farei, portanto, distinção entre o Meu povo e o teu. É amanhã que este prodígio será realizado”. Assim fez o Senhor. Surgiu na casa do Faraó e nas dos seus servidores uma nuvem imensa de terríveis moscas, e todo o Egito foi assolado pelas moscas venenosas.    

   

     Então, o Faraó mandou chamar Moisés e Aarão, e disse-lhes: “Ide oferecer sacrifícios ao vosso Deus aqui nesta terra”. Moisés respondeu: “Não é conveniente que se proceda desta maneira, pois os sacrifícios que oferecemos ao Senhor, nosso Deus, seriam uma abominação para os egípcios. Se oferecermos, sob os olhos dos egípcios, sacrifícios que lhes são abomináveis, não seriam capazes de nos apedrejar? Iremos para o deserto, a três dias de caminho, e ofereceremos sacrifícios ao Senhor, nosso Deus, conforme a ordem que nos deu. O Faraó retorquiu: “Consinto em deixar-vos partir para oferecerdes sacrifícios ao Senhor, vosso Deus, no deserto; mas não vos afastareis demasiadamente. Rogai por mim ao Senhor”, ao qual Moisés respondeu: “Logo que me for embora da tua casa intercederei por ti junto de Deus, e amanhã as moscas venenosas retirar-se-ão do Faraó, dos seus servidores e do seu povo. Mas que o Faraó não continue a iludir-nos, recusando-se a deixar ir o povo para oferecer sacrifícios ao Senhor”. Logo que saiu de casa do Faraó, orou ao Senhor, que fez o que lhe pedira Moisés. As moscas venenosas afastaram-se do Faraó, dos seus servidores e do seu povo: não ficou sequer uma. Mas, ainda desta vez, o Faraó endureceu o coração, e não deixou ir o povo.

 

     Surgiu, por isso, a quinta praga – a peste dos animais. Contudo, antes da ação desta praga, o Senhor ordenou a Moisés que fosse ter com o Faraó e lhe dissesse, o seguinte: “Assim fala o Senhor, Deus dos hebreus: Deixa partir o Meu povo a fim de que Me sirva. Se te recusares, se persistires em detê-lo, a mão do Senhor cairá sobre os teus rebanhos que se encontram no campo, sobre os cavalos, os jumentos, os camelos, os bois e as ovelhas. Será uma peste de consequências terríveis. Contudo, o Senhor fará distinção entre o gado dos filhos de Israel e o gado dos egípcios, e não morrerá nada que pertença aos filhos de Israel”. O Senhor fixou o tempo, dizendo: “Amanhã, o Senhor fará isto na terra”.

 

     No dia seguinte, perante o silêncio do Faraó surgiu mais esta praga. O Senhor cumpriu com a Sua palavra e todo o gado dos egípcios morreu, mas não morreu um único animal dos filhos de Israel. Tendo o Faraó mandado informar-se verificou que nem um só animal dos rebanhos de Israel tinha morrido. No entanto, o seu coração continuou endurecido e não deixou partir o povo.

 

    Seguiu-se a sexta praga – as úlceras, tendo para o efeito o Senhor indicado a Moisés e a Aarão: “Enchei as vossas mãos de cinza de forno, e que Moisés a lance para o céu, de maneira que o Faraó veja. Transformar-se-á num pó que se espalhará por todo o Egito, e produzirá nos homens e nos animais úlceras e tumores. Deitaram, pois, cinza de forno e apresentaram-na ao Faraó. Moisés lançou-a para o céu, e produziu úlceras e tumores nos homens e nos animais. Os magos não puderam comparecer diante de Moisés por causa das úlceras, pois tinham sido atingidos, como, aliás, todos os egípcios. O Senhor endureceu o coração do Faraó que não escutou Moisés nem Aarão, como o Senhor tinha predito.

 

    Veio depois a sétima praga que surgiu sob a forma de granizo; porém, antes de ser lançada, o Senhor incumbira Moisés do seguinte: “Amanhã de manhã irás apresentar-te ao Faraó e dir-lhe-ás: Assim fala o Senhor, o Deus dos hebreus: Deixa ir o Meu povo a fim de que Me sirva. Porque, desta vez, irei desencadear todos os Meus flagelos contra ti, contra os teus servidores e contra o teu povo, para ficares a saber que ninguém é semelhante a Mim em toda a terra Se, de repente, Eu estendesse a mão e desencadeasse a mortandade sobre ti e o teu povo, terias desaparecido já da terra. Mas, se permiti que vivesses, foi para veres o Meu poder, e para que o Meu povo seja glorificado por toda a terra. Se persistires em ser um obstáculo à sua partida, amanhã a esta hora, farei chover granizo tão violentamente que nada houve de semelhante no Egito, desde a origem até ao presente. Coloca, portanto, em segurança, o teu gado e tudo quanto tiveres nos campos, pois todos os homens e todos os animais que se encontrarem nos campos, sem terem regressado a casa, serão atingidos pelo granizo e morrerão.

 

    Entretanto, entre os servidores do Faraó, aqueles que temeram a palavra do Senhor, mandaram recolher às suas casas os seus servos e rebanhos. Aqueles que não fizeram caso deixaram nos campos os seus servos e os seus rebanhos. Por mais esta recusa, o Senhor ordenara, então, a Moisés: “Estende a mão para o céu, a fim de cair granizo em todo o Egito, sobre os homens, sobre os animais e sobre toda a verdura dos campos”. Moisés estendeu a sua vara para o céu, e o Senhor enviou trovões e granizo, e o fogo do céu caiu sobre toda a terra. Choveu granizo e os relâmpagos misturavam-se ao granizo, tornando-se tão violento que nada houve de semelhante em todo o Egito. O granizo destruiu por todo o Egito, quanto havia nos campos, homens, animais, destruiu toda a verdura e quebrou as árvores. Apenas a terra de Gessen, onde viviam os filhos de Israel, foi poupada ao granizo.

 

    Constatando este flagelo, o rei mandou chamar Moisés e Aarão, manifestando a sua culpa, dizendo-lhes: “Desta vez confesso o meu pecado. O Senhor é justo; eu e o meu povo é que somos culpados. Rogai ao Senhor que acabe com os trovões e com o granizo e eu deixar-vos-ei partir, sem tentar reter-vos”. Moisés respondera: “Logo que sair da cidade, levantarei as minhas mãos para o Senhor. Os trovões terminarão e não haverá mais granizo para ficares a saber que a terra pertence ao Senhor. Moisés retirou-se da casa do Faraó e saiu da cidade. Ergueu as mãos para o Senhor, e os trovões e o granizo cessaram e a chuva deixou de cair sobre a terra. Vendo que a chuva do granizo e os trovões tinham cessado, o Faraó continuou a pecar e a endurecer o coração, continuando a não deixar partir os filhos de Israel.

 

    Perante este procedimento, Deus enviou a oitava praga – os gafanhotos. Porém, Moisés e Aarão foram ter novamente com o Faraó e com a indicação que Deus lhes dera, comunicando-lhe o seguinte: “Assim fala o Senhor, o Deus dos hebreus: Até quando recusarás curvar-te submissamente diante de Mim? Deixa partir o Meu povo, a fim de me oferecer sacrifícios. Se te opuseres a isso, trarei, amanhã, gafanhotos sobre toda a extensão do teu país. Cobrirão a superfície da terra até não poder ser vista. Devorarão o resto das colheitas que escaparam do granizo, devorarão todas as árvores que crescem nos vossos campos. Encherão as tuas casas, as casas dos teus servidores e as casas de todos os egípcios. Será uma tão grande calamidade, que os teus pais e os pais dos teus pais nunca viram igual desde que chegaram a esta terra”. Depois de Moisés se ter retirado da casa do Faraó, os servidores do rei do Egipto disseram-lhe, em lamentos: “Durante quanto tempo ainda este homem será causa da nossa desgraça? Deixa partir essa gente para oferecer sacrifícios ao Senhor, seu Deus. Não compreendeste ainda que o Egito caminha para a ruína?” Mandaram, então, Moisés e Aarão comparecer novamente diante do rei, que lhes disse: “Ide render culto ao Senhor, vosso Deus. Quais são os que devem partir?” Moisés respondeu: “Iremos todos, novos e velhos, com os nossos filhos e as nossas filhas, com as nossas ovelhas e os nossos bois, porque temos de celebrar uma festa em honra do Senhor.” O Faraó retorquiu: “Assim o Senhor esteja convosco como é certo que vou deixar-vos partir com os vossos filhos! Tende cuidado, porque não é com boas intenções que procedeis.” Mas, arrependendo-se do que tinha prometido, retorquiu de novo: “Não, não! Ide apenas vós, os homens, e oferecei sacrifícios ao Senhor, pois esse é o vosso desejo.” E, em seguida, foram afastados da presença do Faraó.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 46 a 51.

(iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

Caminho de Luz e Sombra

16-06-2020 18:50

Caminho de Luz e Sombra (11)

 

    Moisés apascentava todos os dias o gado do seu sogro Jetro, sacerdote de Madian. Um dia, conduzira o rebanho para além do deserto e subira ao monte de Deus: o Horeb. Neste monte, o Anjo do Senhor apareceu numa labareda, no meio de uma sarça que estava toda a arder mas não se consumia. Então, Moisés disse para consigo: “Vou aproximar-me e examinar esta visão extraordinária, vou saber por que razão esta não se consome!”. Deus viu que ele se tinha aproximado para observar, chamou-o do meio da sarça: “Moisés! Moisés!” Ele respondeu: “Aqui estou”. Depois, Deus disse-lhe: “Não te aproximes daqui; tira as sandálias dos teus pés, porque o lugar em que te encontras é terra sagrada”. E acrescentou: “Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob”. Então, Moisés escondeu o rosto, pois não se atrevia a olhar para Deus. O Senhor, porém, continuou: “Eu vi a miséria do Meu povo no Egito e bem assim tenho ouvido o seu clamor por causa dos seus opressores. Conheço, pois, a sua dor. Estou decidido a libertá-lo das mãos dos egípcios e a conduzi-lo para uma terra fértil e espaçosa, uma terra que mana leite e mel, terra em que reside o cananeu, o heteu, o amorreu, o fezedeu, o heveu e o jebuseu. Agora, os gritos dos filhos de Israel chegaram até Mim e vi a tirania que sobre eles exercem os egípcios. Vai, envio-te ao Faraó, para que tires do Egito o Meu povo, os filhos de Israel”. Mas, como Moisés era muito humilde, disse a Deus: “Quem sou eu para ir ter com o Faraó e tirar os filhos de Israel do Egito?” – Ao que Deus respondeu: “Eu estarei contigo; e o sinal de ter sido Eu que te envia é este: quando tirares o Meu povo do Egito, oferecereis sacrifícios sobre este monte”. Então, Moisés disse: “Quando eu for ter com os filhos de Israel e lhes disser que o Deus dos seus pais me enviou para junto deles, se me perguntarem qual é o Seu nome, que lhes responderei?” – Deus disse então a Moisés: “Responderás o seguinte: – Eu sou Aquele que sou”. E acrescentou: “Assim falarás aos israelitas: “Eu Sou envia-me a vós!” Deus ordenou ainda: “Dirás isto aos filhos de Israel: – Foi o Senhor, o Deus de vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, que me enviou para junto de vós – Esse é para sempre o Meu nome, esse é o nome com que Me invocarão de geração em geração. Vai, reúne os anciãos de Israel e diz-lhes: – O Senhor, Deus dos vossos pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, apareceu-me e disse-me: “Visitei-vos e vi como vos tratam no Egito”. Por isso resolvi: transferir-vos-ei da opressão do Egito para a terra dos cananeus, heteus, amorreus, ferezeus, heveus e jebuseus; para uma terra que mana leite e mel. E eles escutarão a tua voz!”

 

    Disse ainda: “Depois irás com os anciãos de Israel ter com o rei do Egito, e dir-lhes-ás: O Senhor, o Deus dos hebreus, apareceu-nos, permite-nos pois que, durante três dias, caminhemos através do deserto, para oferecermos sacrifícios ao Senhor, nosso Deus. Eu sei que o rei do Egito não vos autorizará a partir, se não for castigado por mão poderosa. Mas Eu estenderei a mão e castigarei o Egito com toda a espécie de prodígios que realizarei no meio deles. Depois deixar-vos-á partir. E farei que o povo ache graça aos olhos dos egípcios e, quando de lá sairdes, não partireis de mãos vazias. Cada mulher pedirá à sua vizinha e àquela que reside em sua casa objetos de prata, objetos de oiro e vestuário, que entregareis aos vossos filhos. E, assim, despojareis os egípcios”.

 

    Porém, Moisés voltou a lembrar: “Eles não me vão escutar, dirão que o Senhor não me apareceu”. Perante esta dúvida, o Senhor perguntou-lhe: “Que tens tu na mão?” Ele respondeu: “uma vara”. E o Senhor ordenou: “Deita-a ao chão”. E Moisés deitou-a ao chão e a vara transformou-se numa serpente, que, ao vê-la, Moisés fugiu. No entanto, o Senhor ordenou-lhe: “Estende a mão e agarra-a pela cauda”. Moisés estendeu a mão, agarrou-a, e a serpente voltou a ser uma vara na mão dele. “Farás todas estas coisas para que eles acreditem que o Senhor, o Deus dos seus pais, o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, te apareceu realmente.” Depois prosseguiu, dizendo: “Mete a mão no peito”. E Moisés meteu-a como o Senhor lhe dissera, e, ao retirá-la, ela estava coberta de lepra, branca como a neve. Depois ordenara-lhe de novo: “Mete outra vez a mão no peito”. Voltou a metê-la e, quando a retirou, a mão tinha o anterior aspeto de carne. Disse-lhe, então: “Se eles não acreditarem em ti, e se a evidência do primeiro prodígio os não convencer, acreditarão na evidência do segundo. E, se nem mesmo acreditarem nestes dois prodígios, se não te quiserem escutar, irás buscar água ao rio e derramá-la-ás sobre a terra, e a água que fores buscar ao rio transformar-se-á em sangue na terra.”

 

    Contudo, Moisés manifestou mais uma vez a sua humildade, confessando ao Senhor: “Ah, Senhor! Mas eu não sou homem que facilmente use da palavra; nunca pude fazê-lo, nem ontem nem anteontem; e mesmo agora que estais a falar com o vosso servo, tenho a boca e a língua embaraçadas.” O Senhor retorquiu-lhe: “Quem deu boca ao homem? Quem faz o mudo, o surdo, o homem que vê e o cego? Não sou Eu, o Senhor? Vai, pois; Eu estarei contigo quando falares e ensinar-te-ei o que hás de dizer.” Mas, Moisés respondeu mais uma vez: “Ah! Senhor, dai esta missão a outro.” Então, o Senhor encolerizou-Se com ele, e disse-lhe: “Não existe Aarão, teu irmão, o levita? Eu sei que ele fala com muita facilidade. Aliás, ele vem precisamente ao teu encontro, e, vendo-te, o seu coração exultará. Falarás com ele, e colocar-lhe-ás as palavras na boca. Quando falardes, Eu estarei com a tua boca e com a boca dele, e ensinar-vos-ei o que deveis fazer. Ele falará por ti ao povo, servir-te-á de boca, e tu serás como Deus para ele. Leva na tua mão essa vara, pois é com ela que tu realizarás os prodígios”.

 

    Moisés retirou-se, e, de volta a casa de Jetro, seu sogro, pediu-lhe: “Rogo-te que me deixes partir e regressar para junto dos meus irmãos que se encontram no Egito, para ver se estão ainda vivos”. Ao qual, Jetro respondeu: “Vai em paz”.

 

    No regresso ao Egito, o Senhor falou a Moisés em Madian, dizendo-lhe: “Vai de novo para o Egito, pois todos aqueles que procuravam a tua vida para te fazer mal já morreram”. Então, sem perder tempo, Moisés tomou consigo a mulher e os filhos, ajudou-os a montar num jumento e voltou para o Egito, segurando na mão a vara de Deus.

 

    Já no Egito, Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó, e disseram-lhe: “Assim fala o Senhor, o Deus de Israel: ‘Deixa ir o Meu povo a fim de celebrar uma festa em minha honra no deserto’.” Mas, o Faraó respondeu: “Quem é esse Senhor para que eu obedeça às Suas ordens, deixando ir Israel? Não conheço o Senhor e não deixarei ir Israel”. E eles retorquiram: “O Deus dos hebreus apareceu-nos. Deixa-nos ir ao deserto, durante três dias de caminho, para oferecermos sacrifícios ao Senhor e evitar, assim, que Ele nos fira com a peste ou com a espada”. Então o rei do Egito respondeu-lhes: “Moisés e Aarão, porque pretendeis desviar o povo do seu trabalho? Ide cumprir as obrigações a que estais sujeitos”. E acrescentou: “Esse povo é atualmente muito numeroso: que será se, por vossa causa, interromperem os seus trabalhos?”. E nesse mesmo dia, o Faraó deu a seguinte ordem aos inspetores do povo e aos capatazes: “Não mais fornecereis ao povo palha para fazer tijolos, como antigamente; que eles próprios a vão buscar. Exigir-lhes-ei a mesma quantidade de tijolos que antes, sem reduzir nem um só. Estão ociosos e por isso gritam: ‘Queremos oferecer sacrifícios ao nosso Deus.’ Carreguem essa gente com mais trabalho; que nele se ocupem e não deem ouvidos às mentiras que lhes vêm contar”.

 

    Perante o sofrimento do povo, Moisés voltou-se outra vez para o Senhor, e clamou: “Porquê, Senhor, fizestes mal a este povo? Porque me enviastes? Desde que fui falar ao Faraó em vosso nome, ele maltrata o povo, e Vós nada fazeis para o libertar”. O Senhor respondeu-lhe: “Verás, dentro em pouco, o que vou fazer ao Faraó. Coagido por uma poderosa mão, deixá-los-á ir; coagido por uma poderosa mão, ele mesmo os expulsará da sua terra”.

 

    Depois disse a Moisés: “Vê, vou fazer de ti um deus para o Faraó: e Aarão, teu irmão, será o teu profeta. Dirás o que Eu te ordenar, e o teu irmão Aarão falará ao Faraó da sua terra para que ele deixe sair os filhos de Israel. Então, quando o Faraó vos disser: ‘Fazei um prodígio’, dirás a Aarão: ‘Pega na tua vara e lança-a diante do Faraó’, e ela transformar-se-á numa serpente”.

 

    Moisés e Aarão apresentaram-se ao Faraó e fizeram o que o Senhor tinha ordenado. Aarão lançou a sua vara à frente do rei e dos seus servidores, e ela transformou-se numa serpente. O Faraó mandou, porém, chamar os sábios e os magos: e os magos do Egito fizeram o mesmo com os seus encantamentos. Atiraram todas as suas varas ao chão, que se transformaram em serpentes, mas a de Aarão devorou as outras. Todavia, como o Senhor tinha predito, o coração do Faraó endureceu-se e não deixou sair o povo de Israel.

 

    Perante esta atitude de recusa do rei do Egito, Deus lançou sobre o Egito dez pragas. A primeira consistiu na conversão das águas em sangue que poluiu os rios, matou os peixes e tornou a água potável imprópria para beber durante sete dias. a segunda foi a praga das rãs, pela qual toda a terra do Egito ficou infestada.

 

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 41 a 46.

(iv). “Bíblia Sagrada”. Editorial Verbo – Lisboa, 1976 – Edição Comemorativa da visita de Sua Santidade João Paulo II a Portugal – Êxodo, págs. 66 a 86. [a citação é até à pág. 78, de Êxodo 1 até Êxodo 12:38.]

 

Caminho de Luz e Sombra

03-06-2020 19:19

     Caminho de Luz e Sombra (Texto 10)

 

    O Toninho, ainda a trautear as palavras do pai, exclamara: – Como são lindas as estrelas, Pai! Se calhar está ali a estrela do menino Jesus! – acrescentara ainda com o fascínio do que aprendera sobre o Natal.

 

    – Essa é outra realidade, de que te falarei noutra ocasião! Agora não temos tempo para explicações! – rematara o pai concluindo. – Já estamos a chegar a casa do homem. Reza para que ele tenha bilhetes para nos vender. Sem eles não poderemos ver o filme que há tanto tempo ouço dizer que é muito bonito!

 

    A partir desta altura, começaram a andar mais depressa, dando as mãos um ao outro enquanto subiam pela rua perpendicular ao carreiro, por onde tinham vindo, para chegarem até junto da porta onde morava o bilheteiro.

 

    – Boa noite! O senhor não sabe quem sou, mas eu sou familiar de pessoas que o senhor conhece bem e que são suas amigas! – exclamara o Amaral, em jeito de apresentação. – Olhe, por exemplo, o senhor não conhece o Zé “torneiro”? Ele é meu primo! – dissera com afeto. – Ele é um grande industrial da terra, não é? – interrogara, com solenidade.

 

    – Ah, sim! Sim, conheço-o muito bem! De facto é um industrial muito perfeito e muito respeitado na nossa terra – afirmara o bilheteiro em tom coloquial e a abanar a cabeça em sinal de concordância. Depois, mais desembaraçado nas palavras, perguntou: – Mas, qual é o problema que o traz a minha casa?

 

    – Desculpe por não saber a sua graça, embora ouça dizer muito bem do senhor – observou Amaral com deferência.

 

    – Mas o que é que o senhor deseja? – voltou a insistir, na expectativa do problema.

 

    – O meu nome é Amaral, e a razão que me levou a vir a sua casa foi porque prometi aqui ao meu rapaz que o levaria no próximo domingo ao cinema. Queria que víssemos o filme “Os Dez Mandamentos”, que vai ser exibido no Cine Teatro almeida e Sousa, onde o senhor é o responsável pela bilheteira. E como no domingo, com certeza, já não haverá bilhetes, apressei-me a vir comprá-los hoje antes que se esgotassem.

 

    – Oh! Meu caro senhor, mas eu já não tenho bilhetes, já estão esgotados! – exclamara o bilheteiro com alguma emoção.

 

    – Estão esgotados?! Mas ainda faltam alguns dias para a exibição do filme! – retorquira Amaral com grande tristeza.

 

    – Sim! Sim!... O senhor Amaral tem razão, mas as pessoas não largaram a bilheteira para fazerem a marcação de bilhetes para o próximo domingo. Aliás, já não vamos abrir a bilheteira ao público porque acabei de entregar os últimos bilhetes.

 

    – Queira desculpar, senhor, mas aqui para o meu rapaz não será possível arranjar-se pelo menos um bilhete? – suplicara emocionado. E acrescentara de seguida: – Viemos de longe com a ideia de que ainda não seria tarde, e afinal já não há bilhetes. Veja como o meu rapaz está tão triste, ele ainda é um menino; por favor, não o deixe ficar neste estado. – apelava o Amaral para o coração do bilheteiro.

 

    – Mas, senhor Amaral, se o senhor tivesse ido no domingo à bilheteira, também lhe arranjaria bilhetes como arranjei aos outros.

 

    Depois, como forma de partilhar da tristeza comum, exclamara:

 

    – Ainda por cima, sabendo agora quem é, e a que família pertence, fico com pena de não ter nenhum bilhete!

 

    – Que havemos de fazer senão lamentar a pouca sorte que tivemos! – desabafara Amaral com resignação. E, de modo repentino, despedira-se respeitosamente dando a mão ao seu menino, ao mesmo tempo que procurava conter-lhe as lágrimas, efetuando o movimento de descida em direção à perpendicular do caminho de regresso a casa. O Amaral olhava o céu, como a suplicar forças para a caminhada que, a partir daquela altura, já não fariam com a mesma alegria de quando saíram. Depois, com passo ligeiro e já recomposto, exclamara com mais otimismo:

 

    – Vamos, rapaz! Agora é preciso quando chegarmos a casa animar a tua mãe e prometer-lhe que quando voltar a ser exibido este filme eu comprarei os bilhetes a tempo! – E, sem deixar esmorecer o sentimento de compensação que procurava para a angústia que o invadia, começara a contar algumas passagens bíblicas sobre a saída dos hebreus do Egito, através das águas do mar Vermelho, em direção à Terra Prometida; afinal, começara a contar o que ouvira falar sobre a história do filme “Os Dez Mandamentos” e o que lera na Bíblia, especialmente durante o tempo em que tivera contacto com o Seminário.

 

    – Sabes, Toninho, muitos filhos de Israel e as suas famílias foram com Jacob para o Egito. (iv) Este povo hebreu tornara-se mais numeroso e mais poderoso que os egípcios. Por isso, o rei, tendo medo que os israelitas os destruíssem, ordenou aos seus chefes para os oprimirem com trabalhos muito duros, como, por exemplo, fazerem os tijolos de barro para construírem as cidades. Depois, não satisfeito com esta atitude, por o povo hebreu estar a aumentar cada vez mais, ordenara às parteiras, Séfora e Fua, que quando assistissem aos partos, se nascessem rapazes que os matassem e se fossem raparigas as deixassem viver. Como as parteiras não cumpriram a ordem dada, por serem tementes a Deus e terem conseguido enganar o Faraó, dizendo que as mulheres dos hebreus não eram como as dos egípcios, pois eram vigorosas e davam à luz mesmo antes de chegar a parteira, o Faraó dera a seguinte ordem a todo o seu povo: “Lançareis ao rio todas as crianças do sexo masculino que nascerem aos hebreus e deixareis viver todas as raparigas”.

 

    Ora, como tinha nascido naquela altura o menino Moisés, a sua mãe, que era filha de um hebreu que se chamava Levi, colocou o seu filho num cesto de vergas num canavial da margem do rio Nilo. a filha do Faraó, que não tinha filhos, estando a banhar-se no rio, avistou o cesto no meio do canavial e mandou buscá-lo pela sua serva. Quando abriu o cesto viu que era um menino a chorar. Teve pena dele e disse: “É um filho dos hebreus”.

 

    Então, a irmã do menino que acompanhava o cesto no canavial disse à filha do Faraó: “Queres que te vá procurar uma ama, entre as mulheres dos hebreus para criar este menino?” “Vai”, disse-lhe a filha do Faraó, e a irmã de Moisés foi buscar a sua mãe.

 

    A filha do Faraó disse-lhe, então, o seguinte: “Leva este menino. Amamenta-mo, e dar-te-ei o teu salário”. A mãe levou o menino e criou-o, e quando Moisés cresceu, entregou-o à filha do Faraó, como tinham combinado, tendo sido adotado por esta e lhe dado o nome de Moisés, “por ter sido tirado das águas”.

 

    Moisés fez-se homem e, certo dia, indo reunir-se com o povo, viu um egípcio a bater num hebreu. Após confirmar que ninguém se encontrava em redor, matou o egípcio e enterrou-o na areia. No dia seguinte, viu dois hebreus a brigar. Disse ao agressor: “Porque bates no teu camarada?” – E o homem respondeu: “Quem te nomeou chefe e juiz entre nós? – Queres matar-me como mataste o egípcio?” Moisés ficou amedrontado e pensou: “Portanto, não há dúvida de que o facto é conhecido”. Realmente, o Faraó soube do que se tinha passado, e mandou prender Moisés para o matar, mas este conseguiu fugir e foi refugiar-se na terra de Madian.

 

    Chegado a esta terra, sentou-se junto a um poço e adormeceu escondido entre os arbustos. Sem saberem da sua presença, as sete filhas do sacerdote de Madian foram tirar água do poço para levarem para casa e encheram também os tanques para darem de beber ao gado do pai.

 

    No momento em que tiravam a água, aproximaram-se alguns pastores que as obrigaram com violência a abandonar o poço. Moisés acordou com os gritos das raparigas que procuravam defender-se dos malfeitores. De imediato, pegou no cajado que lhe tinha servido para se apoiar e enfrentar os ventos do deserto e lançou-o contra os pastores para libertar as filhas do sacerdote.

 

    Como forma de pagar este gesto heroico de Moisés, o sacerdote convidou-o para comer com ele e a sua família, depois propôs que assistisse a algumas danças, acabando por ficar a viver com eles. Na sequência deste convívio, casou com Séfora, que lhe deu um filho, ao qual Moisés pôs o nome de Gerson.

 

    Decorrido muito tempo, morreu o rei do Egito, mas os filhos de Israel continuavam a viver na escravidão. Os lamentos e gemidos dos hebreus eram tão fortes e tão dolorosos que chegaram até Deus, o qual se compadeceu deles e lhes enviou Moisés como seu libertador.

 

   Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 36 a 41.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 9) / Path of Light and Shadow (Text 9)

14-03-2020 19:33

Caminho de Luz e Sombra (Texto 9)

 

    No entanto, apesar destas mudanças positivas na vida da família, outros factos negativos, não menos importantes, iam fazendo estragos no domínio psicológico e moral. Numa noite próxima da Páscoa, por volta das nove horas, Amaral lembrara ao seu menino a ida ao cinema, que lhe prometera na noite anterior:

 

    – Sossega, meu rapaz, que ainda não é hora de sairmos! – exclamara o pai com alguma irritação ao ver o seu menino andar ansioso ao redor da mesa. – Nós só vamos a casa do bilheteiro depois do jantar! Ainda é muito cedo para tanta preocupação! – Depois, acrescentara com cortesia:

    – Nós não devemos incomodar o homem antes das dez horas!... É preciso que tenha jantado bem e que esteja com boa disposição para conseguirmos os bilhetes. Vamos a casa dele esta noite, porque no domingo, no dia da exibição do filme, já não haverá bilhetes, certamente já estará tudo esgotado.

 

    Entretanto, nesta altura e já a falar mais com o coração, sussurrou-lhe baixinho:

 

    – Sossega um pouco mais, meu menino, porque sairemos de casa lá por volta das nove horas, pois apesar de o caminho não ser muito longo, pode ser que o bilheteiro nos atenda um pouquinho mais cedo.

 

    Com estas palavras, Amaral procurava também acalmar o seu Toninho, que esperara todo o dia por aquela ocasião para poder ver os bilhetes que lhe permitiriam ir pela primeira vez ao cinema.

    Esta ansiedade tornara-o inquieto e insistente; António não parava de dar voltas à mesa onde tinham comido a refeição de mais um dia.

    Chegada a hora, dissera o Amaral ao seu menino:

 

    – Vamos, comecemos a andar para estarmos em casa do bilheteiro antes das dez horas! Quero que sinta que temos uma grande vontade de comprar os bilhetes. um para mim, outro para a tua mãe e outro para ti. Compraremos bilhetes para a plateia, para podermos estar mais sossegados, pois os lugares do geral são mais baratos, mas são mais barulhentos. Eu juntei dinheiro para esta ocasião e também não quero que estejamos no meio da confusão que há quase sempre na geral.

 

    António deveria ter nesta altura dez anos de idade, estaria a acabar a instrução primária, mas nunca pudera sair do espaço entre a sua casa e a escola, que distavam entre si três quilómetros. O seu desenvolvimento e crescimento não tinham passado para além dos jogos do pião, dos jogos de futebol e da pescaria no rio Febros, que corria no leito a jusante da casa onde viviam.

    Algum tempo depois de iniciarem a caminhada, o Toninho perguntara ao pai:

 

    – Que filme vamos ver? É como nos livros de cowboys que eu leio dos assaltos às diligências ou dos ataques dos índios? – insistira com curiosidade, porque também era grande a alegria de ir pela primeira vez ao cinema.

    – Não é nada disso, rapaz! – respondera-lhe o pai com alguma intolerância. – É o filme dos Dez Mandamentos: – Amarás o Senhor Teu Deus acima de todas as coisas. – Honrarás o teu pai e a tua mãe. – Não matarás. – Não roubarás. – Não dirás falso testemunho… É um filme que conta a história do povo de Israel e que mostra como o príncipe Moisés recebeu as Tábuas das Leis com os Dez Mandamentos escritos pelo dedo de Deus. E mostra como Moisés guiou o povo hebreu da saída do Egito a caminho da Terra Prometida.

 

    Com esta explicação, fez-se silêncio entre ambos, enquanto caminhavam lado a lado pelo carreiro estreito, criado pelas passadas de homens e mulheres que o percorriam para chegarem ao rio Douro e apanharem o barco que os transportava até à cidade para fazerem compras ou ganharem o pão de cada dia; também era delineado por todos aqueles que o utilizavam para trabalhar nos campos ou fazer compras nas pequenas lojas que ficavam mais perto de sua casa. Neste silêncio percorreram uma boa parte do caminho, mas, ansiosos pelo desejo de comprar os bilhetes, Amaral e o seu menino puseram-se a tagarelar sobre os mistérios da noite:

 

    – Oh! o céu está cheio de estrelas! – exclamara o Toninho, admirado.

    – Sim, hoje está uma linda noite, uma noite de luar – respondera-lhe o pai. – São tantas as estrelas e estão tão brilhantes que apetece agarrá-las! – Depois, acrescentara com maior admiração: – Vês aquelas, ali em cima? Formam a constelação da Ursa Maior!

    – O que são constelações? – perguntara o menino com curiosidade.

    – As constelações são grupos de estrelas. A Ursa Maior é aquela ali em cima – apontando como se estivesse um pouco para além dos seus olhos. – Ela tem sete estrelas, quatro que formam um quadrilátero e três que formam uma linha a servir-lhe de cauda.

 

    De seguida, continuara a explicar em jeito professoral e recordando o que aprendera na escola e no Seminário quando estudara com o primo Manecas que chegara a Juiz Conselheiro: – As constelações [iii] são grupos de Estrelas que formam uma figura e a que se dá um nome especial, por isso a Ursa Menor e a Ursa Maior são dois desses grupos que com outros, como Orion, Cassiopeia e Pegasus enchem o Céu de Luz.

 


[iii] Torrinha, Francisco. Novo Dicionário da Língua Portuguesa. Editorial Domingos Barreira, Porto, 1977.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 33 a 36.

 

Path of Light and Shadow (Text 9)

 

However, despite these positive changes in the family life, other negative facts, not less important, were making damages in the psychological and moral domains. On a night near Easter, around nine o’clock, Amaral reminded his little boy the journey to the cinema, which he had promised the night before:

 

– Calm yourself down, my boy, since it isn’t time to go yet! – exclaimed the father with some irritation by seeing his little boy running anxiously around the table. – We’ll go to the box-office clerk only after dinner! It is still very early for such a worry! – Then, he added with courtesy:

– We should not bother the man before ten o’clock!... It’s necessary that he had dined well and that he is in a good mood for us to get the tickets. We’re going to his house tonight, because Sunday, on the day of the movie screening, there will be no more tickets, certainly it will be everything already sold out.

 

Meanwhile, by this time and speaking more with the heart, he whispered him:

 

– Calm yourself a bit more, my little boy, because we’ll go out home around nine o’clock, since although the way isn’t very long, it may be that the box-office clerk will answer us a little early.

 

With these words, Amaral sought also to quiet his Toninho, who had waited all day for that occasion to be able to see the tickets that would allow him to go for the first time to the cinema.

This anxiety made him unquiet and insistent; António did not stop turning around the table where they had eaten the meal of one more day.

 When the time came, Amaral told his little boy:

 

– Let’s go, let’s start walking to get the box-office clerk's house before ten o’clock! I want him to feel that we have a great will to buy the tickets. One for me, another for your mother and another for you. We will buy the tickets to the main level, so that we’ll be able to stay quieter, since the seats of the generic are cheaper but they’re noisier. I have saved up for this occasion, and I also do not want us to be in the middle of confusion there is almost always in the generic.

 

António should be ten years old by this time, he would be finishing primary education, but he had never been able to leave the space between his house and the school, which were three kilometers [about two miles] apart. His development and growth had not passed beyond the top [toy], the soccer games and the fishery on river Febros, which flew on the bed downstream of the house where they lived.

Some time after they had started the walk, Toninho asked his father:

 

– What movie are we going to watch? Is it like in the cowboys’ books that I read about the assaults to the stagecoaches or the Indians’ attacks? – he insisted with come curiosity because it was also great the joy of going for the first time to the cinema.

– It’s none of that, boy! – the father answered with some intolerance. – It’s the Ten Commandments movie: – You shall love the Lord thy God above all things. – Honor your father and your mother. – You shall not murder. – You shall not steal. – You shall not give false testimony against your neighbor… It’s a movie that tells the story of Israel’s people and that shows how Prince Moses had received the Tablets of the Law with the Ten Commandments written by God’s finger. And it shows how Moses had guided the Hebrew people from the way out of Egypt and on the way to the Promised Land.

 

With this explanation, silence was made between both, while they walked side by side through the footpath, created by the steps of men and women who covered it to get at river Douro and to catch the boat that transported them to the city to shop or to win the everyday bread; it was also demarcated by those who used it to work in the fields or to go shopping in the small stores that were closer their homes. In this silence they covered a good part of the path, but, eager for the desire of buying the tickets, Amaral and his little boy started chattering about the mysteries of the night:

 

– Oh! the sky is full of stars! – exclaimed Toninho, amazed.

– Yes, tonight is a beautiful night, a moonlit night – the father replied to him. – The stars are so many that it feels like grabbing them! – Then, he added with greater amazement: – Do you see those, up there? They form the Ursa Major constellation!

– What are constellations? – the boy asked with curiosity.

– Constellations are groups of stars. Ursa Major is that one up there – pointing as if it was a bit beyond his eyes. – It has seven stars, four that form a quadrilateral and three that form a line that serves as a tail.

 

Then, he continued to explain in a professorial way and remembering what he had learned in school and the Seminary when he studied with cousin Manecas, who came to be Judge Counselor: – Constellations [iii] are groups of stars that form a figure to which you give a special name, therefore Ursa Minor and Ursa Major are two of those groups that with others, like Orion, Cassiopeia and Pegasus fill the Sky with Light.

 


[iii] Torrinha, Francisco. New Dictionary of the Portuguese Language. Editorial Domingos Barreira, Oporto, 1977.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 33 to 36.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 8) / Path of Light and Shadow (Text 8)

28-02-2020 17:53

Caminho de Luz e Sombra (Texto 8)

 

    Perante este desafio, alguém se apressou a participar o sucedido ao Zé Damas e aos seus amigos. Em face disto, e como estes homens tinham fama de não ser covardes, combinaram entre si como deveriam atacar os provocadores. O Neca Guerra, se não falha a memória, montou numa bicicleta e veio na frente para se certificar onde estavam os forasteiros, indo depois combinar com os companheiros a melhor forma de atacar os malfeitores. Talvez por volta das dez e meia da noite, assomou à porta da venda do senhor Soares o Neca Guerra, que os desafiou cá para fora. Nessa altura, os forasteiros já tinham bebido o suficiente e o discernimento já não era o melhor, pegaram nas facas e saíram sem proteção para o confronto. ainda não tinham posto o pé na rua e já um fueiro caía sobre a primeira cabeça, ouvindo-se um estalido como se fosse de uma pequena bomba de carnaval; depois foi um tal malhar conforme iam saindo e ficando atordoados. Valeu a espingarda do representante do regedor que fez soar dois tiros para o ar, que afugentou os curiosos e terminou a pancadaria.

    Por volta de 1957, já trabalhavam pai, mãe e os filhos mais velhos, já entrava em casa o dinheiro suficiente para viverem uma vida digna e com a possibilidade de Maria fazer o que pensara quando começou a trabalhar no ateliê da Olivinha – deixar o emprego e tratar do seu mais pequenino. Para ela, este fora um momento de tristeza por deixar o trabalho, as colegas e a patroa que tanto estimara e ficara sempre reconhecida. Mas, era preciso tomar conta do menino, porque a idade da escola primária estava a chegar e era preciso fazer tudo para que não acontecesse o mesmo que acontecera ao Fernando, que não chegara a concluir a instrução primária.

    Nas horas vagas da tarde e sempre que lhe pediam, ia trabalhar na costura para casa das pessoas que estimava. A vida começava a sorrir e a felicidade de ambos estendia-se a toda a vizinhança. Maria era sincera e amiga de todos, estava sempre preparada para ajudar alguém que precisasse dos seus serviços ou a pedir aos seus para que o fizessem também.

    Ainda a morarem nesta mansarda, onde já não faltava o carinho e amizade das crianças com quem o Toninho brincava e dos seus pais, que eram os donos da propriedade, nem faltava o suficiente para viver e até dar a quem precisava, surgiu a Guerra Colonial; corria o ano de 1961. Três anos antes, Licínio assentara praça e começara a cumprir o serviço militar em Vendas Novas; tivera a sorte de passar à disponibilidade sem que a Guerra Colonial tivesse surgido. No entanto, com este conflito bélico, começaram a ser enviadas a maior parte das tropas no ativo para combater nas colónias, e como o Licínio tinha habilidade para a condução, fora chamado na situação de disponibilidade, para instruir condutores que na maior parte dos casos partiriam depois para o Ultramar.

    Este facto assustara-o imenso, pois não era certo que não tivesse de ir também para o ultramar, para uma das colónias onde as tragédias vinham bater às portas das pessoas e a todas as terras de Portugal. Foram milhares de militares que tombaram trespassados pelas balas ao lutarem pela defesa colonial. Mas, Licínio lá foi passando o tempo por cá até que o Exército o dispensou e não mais o voltaria a chamar.

    Neste preâmbulo, o Toninho tinha começado a frequentar a escola primária de Cabanões. Começava nesta altura a sua educação mais profunda e, tal como um pequeno pássaro, começava também a ganhar mais sentido de orientação e força para voar, começava a percorrer outras distâncias e a deixar ambientes para guardar na sua recordação. A neve pela manhã começava agora a fazer doer as mãos e as personagens dos seus jogos já não eram como dantes; os pais, com quem brincava e que aborrecia, já não eram os únicos na sua vida. Só os intervalos de tempo, em que não havia deveres para fazer ou recados para executar, lhe permitiam de novo viver e jogar com os sentimentos do tempo e da alegria de ser somente ele a brincar como queria. Entretanto, até esses raros momentos de liberdade estavam já carregados de perturbação; os deveres que não sabia para aprender na escola, o beijo que não lhe davam, o ralho e o medo com que o inspiravam na revolta do coração ou nos carinhos que já não estavam nas lágrimas que chorava. Tudo isto tornava-se nas sementes de outros “espinhos”, que haveria de sentir mais tarde quando tivesse a idade e o poder para abrir outras janelas e percorrer outros caminhos. O Fernando trabalhava como serralheiro na UTIC, vendendo nas horas vagas roupas, relógios e objetos de ouro, que lhe davam bastante lucro para poder guardar para a sua ida para a tropa, que já se aproximava, e para o casamento que também estava prestes a acontecer. Por sua vez, Maria passava o tempo a correr atrás do carteiro ao longo dos campos, pois já não era a primeira vez que ele levava de volta a carta do filho Licínio por ela não o ouvir chamar do fundo do caminho ou por outra razão qualquer. A carta e as notícias que traziam eram a consolação para o seu coração.

    Entretanto, durante algumas tardes, Maria fora trabalhar para a Senhora Maria Pinheiro, uma alma bondosa que tinha bastante idade, que a tratava tão bem que, apesar de já não ter grandes necessidades económicas, gostava muito de costurar para ela. Numa das tardes, esta senhora quis prendá-la com a cedência da sua casa, mediante o pagamento de uma renda entretanto combinada, visto sentir-se doente e ter de ir para casa de um familiar. Era uma casa grande, com todas as condições para a época, uma moradia com rés-do-chão e 1.º andar, com um grande quintal, cheio de árvores de fruto, o que permitia que toda a família vivesse à vontade e com um pouco mais de dignidade.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 30 a 33.

 

Path of Light and Shadow (Text 8)

 

In the face of this challenge, someone hastened to transmit the incident to Zé Damas and his friends. In the face of this, and since these men had the fame of not being cowards, they agreed between themselves how they should attack the provokers. Neca Guerra, if I remember correctly, mounted on a bike and came in the front to make sure of where the outsiders were, going after to settle with the companions the best way to attack the evildoers. Maybe around half past ten at night, Neca Guerra showed up in the offing of Mr. Soares’ tavern and defied them to the outside. By that time, the outsiders had already drunk enough, and discernment was no longer the best, they took the knives and went out without protection to the confrontation. They had not yet put their feet outside, and an oxcart stake already fell over the first head, and a crack was heard as if it were from a little carnival bomb; then it was such a beating as they were coming out and getting stunned. It was worth the rifle of the chairman’s representative that made sound two shots up to the air, which scared away the curious ones and ended the pounding.

By 1957, the father, the mother and the oldest sons were already working, it entered now enough money so that they could live a decent life and with the possibility of Maria doing what she had thought when she began to work at Olivinha’s atelier – to leave the job and to take care of her littlest one. For her, this was a moment of sadness for leaving the work, the colleagues and the employer who she esteemed so much and who was always grateful. But it was necessary to take care of the little boy, because the age for elementary school was coming, and it was needed to do everything so that it did not happen the same it happened to Fernando, who did not come to finish primary education.

In the afternoon spare time and whenever she was asked, she went to work in sewing to the house of the people she esteemed. Life was beginning to smile and the happiness of both extended to all the neighborhood. Maria was sincere and friend of everyone, she was always prepared to help someone who needed her services or asking her family ones to do it too.

Still living in this poor house, where no longer lacked the kindness and the friendship of the children with whom Toninho played and of his parents, who were the owners of the property, nor it lacked enough to live and even to give to who needed, the Colonial War broke out; it was the year of 1961. Three years before, Licínio enlisted and had begun to do his military service in Vendas Novas; he had the luck to pass to the military reserve without the Colonial War having broken out. However, with this warlike conflict, the most of the active troops started to be sent to combat in the colonies, and since Licínio had the ability to drive, he was called in the availability situation, to instruct drivers who, in the majority of the cases, would leave to the overseas possessions.

This fact had frightened him very much, since it was not certain that he would not have to go also to the overseas territories, to one of the colonies where the tragedies came knocking on peoples’ doors and to every land of Portugal. They were thousands of soldiers who bit the dust trespassed by the bullets when they were fighting for the colonial defense. But Licínio was passing the time around here until the Army dispensed him and would no longer call him.

In this preamble, Toninho had begun to attend the elementary school of Cabanões. It began by this time his most profound education and, like a little bird, he began to get more sense of orientation and strength to fly, he began to cover other distances and to leave environments to keep in his remembrance. In the morning, snow started to make the hands hurt, and the characters of his games were no longer as before; the parents, with whom he played and who he nagged, were no longer the only ones in his life. Only the time intervals, during which there was no homework or errands to do, allowed him to live and play again with the feelings of time and of the joy of being only him playing as he wanted to. Meanwhile, even those rare moments of freedom were so loaded of disturbance; the homework he did not know to learn at school, the kiss someone did not give him, the reprimand and the fear with which others inspired him within the revolt of the heart or in the fondling that was no longer in the tears he cried. All this became the seeds of other “thorns”, which he would feel later when he had the age and the power to open other windows and to walk other paths. Fernando worked as an automobile blacksmith in the UTIC, selling in his spare time clothes, watches and gold objects, which gave him enough profit to be able to spare for his departure to the military service, which was already coming, and for the wedding, which was also about to happen. In turn, Maria passed the time running after the mailman through the fields, since it was no longer the first time he took back the letter of her son Licínio, because she did not hear him calling from the end of the track or for some other reason. The letter and the news they brought her were the consolation for her heart.

Meanwhile, during some afternoons, Maria had gone to work for Mrs. Maria Pinheiro, a kind soul who was quite old, who treated her so well that, despite she did no longer have great economic needs, she liked very much to sew for her. In one of those afternoons, this lady wanted to offer her the concession of her house, through the payment of a rent meanwhile settled, given that she felt sick and needed to go to a parent’s home. It was a big house, with all the conditions for that time, a detached house with a ground floor and a first floor, with a big backyard, full of fruit trees, which allowed that all family lived at ease and with a bit more dignity.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 30 to 33.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 7) / Path of Light and Shadow (Text 7)

08-02-2020 19:10

Caminho de Luz e Sombra (Texto 7)

 

    Mas a sorte continuava a turvá-los com os reveses que os atormentavam de novo. O casal e os filhos mais velhos não podiam cuidar do menino durante o dia e não havia maneira de encontrar uma pessoa que tomasse conta dele para que o filho Fernando pudesse dar continuação à aprendizagem escolar e terminar a 4.ª classe. Por outro lado, Maria saía de casa com o coração nas mãos, porque o seu rapaz era ainda uma criança que precisava de carinhos como o irmão a quem lavava no ribeiro para lhe tirar a sujidade. Maria entrava no ateliê com lágrimas nos olhos e cosia as roupinhas das crianças que as haviam de vestir, desejando com amor que não vivessem na mesma penúria. Assim ia passando os dias e confidenciando aos vizinhos as dificuldades que tinham, conforme se tornava mais conhecida na localidade. Por esta simplicidade no contar das aflições foi ganhando a confiança das famílias daquele lugar, de tal modo que algumas pessoas começaram a oferecer-se para ajudar, para tomar conta do seu menino durante as horas em que ela e toda a família estivessem fora de casa. No valor de todas as vontades, deve destacar-se, por uma razão vital, a vontade da dona Rosa Lazeira, que fazia questão de ajudar de qualquer modo, embora não pudesse ficar com a criança, porque o seu marido sofria de tuberculose e não queria que o menino viesse a sofrer também de tal doença.

    Espalhada pela comunidade a dificuldade de encontrar quem tomasse conta da criança, logo surgiram outras famílias a oferecer-se para ajudar, a Ti Chica, a família do Buer e a Ti Luzona. Foi esta última que mais tempo dedicou a cuidar do menino. Era uma família de trabalho e de grande respeitabilidade na terra. A Ti Luzona era uma mulher alta e destemida. Andava sempre com uma chibata na mão para tocar nos objetos estranhos que apareciam na rua ou para raspar nas orelhas daquele que fosse mais malandro. Vestia saias quase até aos pés, que a tornavam aparentemente ainda mais alta e mais austera. A sua figura contrastava com a do seu marido, que era um homem de coração tão grande e tão bondoso como o dela, mas muito mais baixo de estatura, ainda que mais atraente no olhar.

    O Toninho chamava-lhe a “mãe Luzona”, recebera um carinho tão semelhante ao que a mãe lhe dava que dificilmente a esqueceria. O Silvino, um dos filhos deste casal, era ferreiro e todos os dias de manhã chamava o Toninho para lhe fazer companhia nos trabalhos da forja. Ensinara-lhe a dar com jeito à manivela para que o ferro ficasse em brasa, depois, com o suor a escorrer-lhe pelo rosto, retirava o ferro do fogo, mergulhava-o por instantes na água e com uma cantilena a acompanhar martelava-o até ficar na forma que pretendia: picão, cinzel, um objeto de trabalho, conforme as encomendas que tinha. De tarde, a “mãe Luzona” dava a ambos um bom almoço, um prato bem cheio, dizendo que quem não era para comer também não era para trabalhar.

    Ao Toninho, depois do almoço, dava-lhe umas sopas de vinho e mandava-o dormir uma boa hora de sono. Dizia que era preciso fortalecer o rapaz, e as “sopas de burro cansado”, nome popular destas sopas, eram para ela o melhor remédio para o fortalecer.

    Já homem, o António ainda lembrará o amor com que esta mulher o tratara e a educação que lhe dera durante os anos em que estivera à sua guarda. A “mãe Luzona” não distinguia o amor aos filhos do amor a este menino.

    Entre os recados que fazia para ela, as brincadeiras com os amigos no largo das Menesas e o aconchego da família à noite, Toninho crescia nesta pureza de ambientes. O rio Febros e os campos de milho para a farinha ou de erva para o gado tornavam-se nos fatores estruturais da sua socialização. Aliás, o largo das Menesas era o ponto central do lugar, pois para lá convergiam a maior parte das pessoas que queriam encontrar-se na mercearia e venda de comes-e-bebes do senhor Soares. As crianças brincavam no largo, ao picão, à bugalhinha ou a jogar à bola, comprando de vez em quando castanhas, um pirolito ou um arranca-dentes à Ti Sisma, que era uma senhora que gostava muito das crianças da terra. Ao redor do largo, moravam alguns lavradores, onde de vez em quando havia festas com danças nos terreiros ou nas eiras, como nas festas das desfolhadas em que se juntavam as mais belas moças do lugar que eram disputadas no amor pelos jovens mais aventureiros.

    Também surgiam, às vezes, alguns desacatos, com alguns murros à mistura, mas rapidamente sossegados pela autoridade do regedor ou do seu representante. Só uma vez, numa noite de verão a situação foi mais complicada. Não era a primeira vez que vinham de outras freguesias homens que tinham fama de serem desordeiros, que com a sua chegada assustavam um pouco as gentes do lugar, principalmente as crianças, que fugiam a sete pés.

    Numa noite de verão, começou a constar-se que viriam alguns homens do lugar de Lijó, da freguesia de Vilar de Andorinho, para se baterem com o Zé Damas, o Neca Guerra e outros que também não eram fáceis de acomodar. Deveriam ser nove e meia da noite, quando chegaram ao lugar montados em bicicletas três desses forasteiros. Ao que parece, um deles tinha o nome de Gaudêncio e foi o primeiro a colocar em cima da mesa na loja do senhor Soares uma das facas de matar porcos que trazia. E, ainda antes de ter sido servido de um copo de vinho que tinha pedido, começara em altos berros a desafiar para a luta alguns dos nomes referidos.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 27 a 30.

 

Path of Light and Shadow (Text 7)

 

But luck continued to trouble them with the misfortunes that tormented them again. The couple and the oldest sons could not take care of the little boy during the day, and there was no way of finding a person who looked after him, so that the son Fernando could give continuation to the school learning and finish the 4th grade. On the other hand, Maria went out home with her heart in her hands, because her boy was still a child who needed tenderness like the brother whom she washed in the stream to take him the dirt. Maria entered the atelier with tears in her eyes and she sewed the clothes of the children who would dress them, wishing with love that they did not in the same penury. And so she was passing the days and disclosing to the neighbors the difficulties they had, as she was getting more known in the locality. Due to this simplicity when she was telling the afflictions, she was earning the trust of the families of that place, such that some people began to offer themselves to help, to take care of her little boy during the hours in which she and all the family were out of home. Within the value of all the wills, it should be pointed out, for a vital reason, the will of Mrs Rosa Lazeira, who insisted on helping anyway, even though she could not stay with the child, because her husband suffered from tuberculosis, and she did not want that the little boy came to suffer from such disease too.

Spread by the community the difficulty of finding someone who took care of the child, soon other families appeared offering themselves to help: Aunt Chica, Buer’s family, and Aunt Luzona. It was this last one who devoted more time looking after the little boy. They were a family of work and great respectability in the land. Aunt Luzona was a tall and fearless woman. She always carried a twig in her hand to touch the strange objects that appeared on the street or to hit on the ears of that who was more rogue. She dressed skirts almost down to the feet, which made her apparently even taller and severe. Her figure contrasted with that of her husband, who was a man of such a great heart and so kind as hers, but much more short-sized, though he was more attractive in the look.

Toninho called her “mom Luzona”, he had received a fondness so similar to that which his mother gave him, that he hardly would forget her. Silvino, one of the sons of this couple, was a blacksmith and everyday morning he called Toninho to make him company in the works of the forge. He had taught him to crank up carefully, so that the iron got red-hot; then, with the sweat dripping through his face, he removed the iron from the fire, dipped it for moments in water and with a refrain accompanying, he hammered it until it got the form he wanted: pickax, chisel, a work object, according to the orders he had. In the afternoon, “mom Luzona” gave both a good lunch, a very full plate, saying that who was not for eating was not either for working.

To Toninho, after lunch, she gave him wine soups and told him to sleep a good hour of sleep. She said that was necessary to strengthen the boy, and the “tired donkey soups”, the popular name of these soups, were to her the best remedy to strengthen him.

Already a man, António will still remember the love with which this woman treated him and the upbringing she gave her during the years he was at her care. “Mom Luzona” did not distinguish the love to her children from the love to this little boy.

Among the errands he did for her, the children’s plays with his friends in Menesas square and the comfort of the family at night. Toninho was growing in this pureness of environments. River Febros and the cornfields to the flour or the grass ones to the cattle became the structural factors of his socialization. Besides, Menesas square was the central point of the place, since to there converged the great part of the people who wanted to meet at the grocery store and selling of food and drink of Mr Soares. Children played in the square: throwing spikes to the ground, the oak gall or played ball, buying occasionally chestnuts, water with redcurrant syrup or a stretchable gummy candy to Aunt Sisma, who was an old lady who loved very much the land’s children. Around the square, lived some farmers, where from time to time there were feasts with dances in the yards or on threshing floors, like in the husking feasts where the most beautiful young girls of the place gathered, who were disputed in love by the most adventurer young boys.

It also occurred, sometimes, some disrespects, with some punches to the mix, but quickly calmed down by the authority of the head of the parish council or its representative. Only once, on a summer night, the situation was more complicated. It was not the first time that came from other parishes men who had the fame of being troublemakers, who with their arrival scared a bit the people of the place, especially the children, who ran for their lives.

On a summer night, it started to be said that some men would come from the place of Lijó, from the parish of Vilar de Andorinho, to fight with Zé Damas, Neca Guerra and others who were not also easy to accommodate. It should be half past nine at night, when three of those outsiders arrived at the place mounted on bikes. It seems that one of them was called Gaudêncio, and he was the first to put on the table of Mr Soares’ store one of the knives for killing pigs he carried. And, even before he was served a glass of wine he had asked, he had started in screams challenging some of the mentioned names to the fight.

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 27 to 30.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 6) / Path of Light and Shadow (Text 6)

24-01-2020 16:55

Caminho de Luz e Sombra (Texto 6)

 

    Durante bastante tempo, este fora o maior problema de consciência destes pais sobre os seus filhos, pelo sentimento de dor criado, ao saberem que para protegerem e criarem um precisavam de sacrificar outro nas tarefas da casa e ao abandono da escola. E, para que esta dor não fosse ainda maior, valia-lhes o poderem contar com as ajudas esporádicas de pessoas que viviam nas proximidades do seu lar, para que no regresso a casa, logo que terminado no fim da tarde o trabalho, Maria pudesse consertar no coração de todos a felicidade de cada dia.

    Depois do batizado do menino, a situação começou a melhorar bastante; já havia quem tomasse conta da criança durante o dia, as amizades dos vizinhos começavam a dar frutos no auxílio da casa e os meios económicos tinham superado a pobreza extrema. ao que parece, tudo estava a encaminhar-se para um bem-estar e alguma felicidade e tudo poderia vir a tornar-se ainda melhor, se algo de inesperado, pelo menos naquela ocasião, não tivesse acontecido – a casa onde moravam, e que lhes tinha sido cedida para o seu lar, tinha de ser restituída para um dos familiares do proprietário. a partir daquela altura (por volta do ano de 1952) e em pouco tempo, a família Amaral tinha que arranjar uma nova casa, tinha de resolver um novo e difícil problema.

    Nesta situação, seria mais uma vez necessária a ajuda do primo Zé, pois conhecia bem a terra e outras terras vizinhas. O Amaral contara-lhe o sucedido, ficando com a esperança de que ele haveria de arranjar solução para o problema. E assim acontecera, pois ainda antes do prazo indicado para deixarem a casa, já uma outra, apesar de bem mais pequenina e modesta, o primo Zé tinha encontrado e apalavrado o aluguer, que seria económico, porém, não deixando de se tornar num encargo que antes não tinham e as condições não eram ainda desafogadas.

    Mesmo assim, logo que decidida a situação, por ambas as partes, senhorio e caseiro concordaram que a muda deveria ser imediata, pois era muito importante deixar vaga a casa onde viviam, para desta maneira poderem mostrar a sua compreensão pela necessidade da casa que lhes tinha sido cedida gratuitamente e, em simultâneo, poder ser uma forma de agradecimento reforçada na gratidão por esta espécie de retribuição moral.

    Com a mudança de residência também mudavam de freguesia, passavam de Avintes para Vilar de Andorinho, para o lugar das Menesas e para um local a montante do rio Febros. Era uma casa térrea, pequena e já bastante deteriorada. Mas como o Amaral era da arte, depressa a tornara mais asseada, pintou-a, substituiu as telhas partidas, organizou melhor os espaços da habitação e cortou o mato que fechava o carreiro de acesso à entrada principal. Quem olhava para a sua localização, do lugar do centro das Menesas tomando a sua linha horizontal ou tomando a linha vertical da marginal do rio Febros na direção da pequena colina, poderia ficar com a impressão de que seriam mais uns anexos de serventia aos animais do proprietário e lavrador, do que seria uma casa para servir de habitação. No entanto, quem se aproximava das suas redondezas, depois de passar o lugar onde lavavam roupa as lavadeiras das Menesas e de atravessar a ponte romana que ligava o rio Febros nas duas margens, constatava tratar-se de uma casa, porventura, muito modesta, mas com uma beleza natural que impressionava esteticamente quem lá passava. Era também aprazível, porque a corrente da água do rio era composta por pequenas cascatas, que se formavam pela força da água saída dos moinhos de pedra e que escondiam, na sua maior ondulação, uma diversidade muito rica de peixes: barbos, trutas, bogas, escalos, ribeirinhas, etc., facto que entusiasmava um grande número de pescadores que por lá passavam e faziam questão de experimentar os seus dias de sorte numa boa pescaria. Outra das riquezas naturais daquela casa era o campo que ficava no fundo da escarpa, que se descia e subia para cultivar e colher os produtos agrícolas que nasciam naquela pequena planície. Estava cheio de árvores que produziam bons frutos e de choupos e carvalhos, onde as videiras se enrolavam e se enchiam todos os anos de uvas para comer e produzir vinho americano, que, engarrafado com a mistura de outra qualidade de vinho, durante pelo menos um ano, tornava-se num vinho bastante agradável para poder ser bebido principalmente no verão. Nas traseiras desta casa modesta, encontravam-se mais alguns aspetos enriquecedores do ambiente do lar, nomeadamente um pátio solarengo onde podiam brincar as crianças.

    O senhorio era um agricultor médio e a casa onde vivia era paredes meias com a casa agora habitada pela família Amaral. Pode dizer-se que o todo do prédio habitado pelas duas famílias formava um retângulo, tendo no centro um pátio interior que dava acesso aos aidos dos bois, das vacas e dos porcos, mas também era um grande pátio comum que servia para as crianças brincarem e crescerem com harmonia. De vez em quando, lá se ouvia o guinchar de um porco e sentia-se algum tempo depois o cheiro a carne assada. Apesar da diferença entre as profissões, e por isso o horário das ocupações ser muito diferente entre ambos, eram bastantes as vezes que havia ocasião para falar sobre a vida, o crescimento dos filhos e os desejos para o futuro. Aliás, as crianças estabeleceram facilmente um contacto afetivo e partilhado. Quantas vezes, por seu intermédio, Maria podia permutar os bens alimentares que tinha comprado, como, por exemplo, bacalhau e outros peixes por aqueles que este lavrador produzia em abundância, como milho, feijão, castanhas e outros. Estes e outros acontecimentos fortaleceram a amizade e a estima recíproca, acabaram por tornar-se durante algum tempo nas forças que uniam estas famílias e que eram as únicas a viver nesta colina e nos campos que se estendiam para bem longe desta casa de lavoura.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 24 a 27.

 

Path of Light and Shadow (Text 6)

 

For a long time, this had been the biggest problem of conscience of these parents about their children, by the feeling of pain created, when they knew that, to protect and raise one, they needed to sacrifice the other in the home tasks and to the school dropout. And, for this pain to not be even greater, it was worth that they could count with the sporadic helps from people who lived nearby their home, so that in the return to home, once the work was finished in the evening, Maria could arrange in everyone’s heart the happiness of each day.

After the boy’s christening, the situation began to better a lot; there was already someone who took care of the child during the day, the friendships of the neighbors were starting to give fruits in the aid to the house, and the economic means had surpassed the extreme poverty. Presumably, everything was going towards a well-being and some happiness, and everything could become even better, if something unexpected, at least on that occasion, would not have happened – the house where they lived, and which had been lent to be their home, had to be given back to one of the relatives of the owner, from that time on (about the year 1952), and in short time the family Amaral had to find a new house, they had to solve a new and difficult problem.

In this situation, it would be needed once more the help of Cousin Joe, since he knew well the land and other neighbor lands. Amaral had told him the happening, getting with the hope that he would find a solution to the problem. And so it happened, since even before the term for them to leave the house, already another one, although much smaller and modest, Cousin Joe had already found and bound by word the rent, which would be economic, however not ceasing to become a charge that they had not before, and the conditions were not yet well-off.

Even so, since the situation was settled, by both parts, landlord and tenant agreed that the removal had to be immediate, since it was very important to leave vacant the house where they lived, so that by this way they could show their understanding about the necessity of the house that had been lent to them freely and, at the same time, to be a reinforced way of thanking in the gratitude for this moral retribution.

With the removal of residence, they also changed parish: they passed from Avintes to Vilar de Andorinho, to the place of Menesas and to a place upstream the river Febros. It was a ground house, small and already very deteriorated. But since Amaral was from the craft, soon he had turned it tidier, he painted it, replaced the broken roof-tiles, he organized better the dwelling spaces and cut the brushwood that closed the access footpath to the main entrance. Those who looked to its location, from the place of the center of Menesas taking its horizontal line or taking the vertical line from the waterside of river Febros in the direction of the little hill, could get the impression that it would be some more annexes to serve as dwellings. However, to whom approached its surroundings, after passing the place where the washerwomen of Menesas washed the clothes and after crossing the Roman bridge that connected the river Febros on the two banks, it would be noticed that we were dealing with a house, perhaps very modest, but with a natural beauty that impressed aesthetically anyone who passed by. It was also pleasant, because the stream of the river water was composed by little cascades, which were formed by the strength of the water that left the stone mills and that hid, in its greatest undulation, a very rich diversity of fish: barbels, trouts, boces, chubs, etc., a fact that enthused a great number of fishermen who passed by there and insisted on trying their lucky days on a good catch. Another of the natural richnesses of that house was the field that was situated at the bottom of the scarp, through which one went down and up to cultivate and reap the products that sprang on that little plateau. It was full of trees that produced good fruits and of poplars and oak-trees, where the grape-vines wound themselves and got full of grapes every year to eat and to produce American wine, which, bottled with a mixture of another wine quality, for at least a year, became a very pleasurable wine to be able to be drunk especially in the summer. In the backyard of this modest house, there were some more enriching aspects of the home environment, namely a manorial yard where the children could play.

The landlord was an average farmer and the house where he lived was party-walled with the house now inhabited by the family Amaral. We may say that the whole of the building inhabited by the two families formed a rectangle, having at its center an inner yard that gave access to the courtyard for the oxen, the cows and the pigs, but also a large common patio that served for the children to play and grow up with harmony. Every now and then, there we heard the squeal of a pig, and after a while we felt the smell of roast meat. Despite the difference between professions, and therefore the schedule of the occupations being very different between both, there were many the times when they could talk about life, the growth of the sons and the wishes for the future. Besides, the children easily established an affective and shared contact. How many times, through her, Maria could exchange the food goods she had bought, like, for example, codfish and other fish by those that this peasant produced in abundance, like corn, beans, chestnuts and others. These and other happenings had strengthened the friendship and the reciprocal esteem, they ended up becoming for some time the forces that united these families and who were the only ones living on this hill and in the fields that extended far away from this farmhouse.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 24 to 27.

Caminho de Luz e Sombra (5) / Path of Light and Shadow (5)

27-12-2019 18:17

Caminho de Luz e Sombra (Texto 5)

 

    Estava-se nos princípios do mês de abril de 1950, mais propriamente no final da tarde do dia cinco. Depois de finalizarem o trabalho, quando o dinheiro dava e já não era muito cedo, Amaral e o seu filho Licínio costumavam embarcar na lancha de Avintes, que transportava as gentes que iam e vinham da cidade, dos seus trabalhos e do seu comércio.

    Naquela tarde fatídica, Amaral e o seu filho terminaram o trabalho um pouco mais cedo do que o costume, logo, como seria habitual nestas circunstâncias, viriam a pé para pouparem; no entanto, ao contrário do que seria habitual, naquela tarde trágica era vontade do Amaral regressarem a casa na lancha de Avintes.

    Porém, o Licínio tinha bastante fome naquele fim de tarde e pediu ao pai para comerem alguma coisa antes de embarcarem. O pai não queria fazer-lhe a vontade, pois só tinha dinheiro para os bilhetes; vir de transporte era mais rápido e evitava o cansaço da caminhada, que era o triplo do esforço depois de um dia de tanto trabalho. Entretanto, a insistência do rapaz foi tanta que ele não olhou ao problema de ficar sem dinheiro para a viagem e resolveu gastá-lo no aconchego do estômago de ambos. Quando acabaram de comer e beber (já que o Amaral gostava bem de um copo de vinho, pois ele era das terras do bom vinho, especialmente, do vinho do Porto), puseram-se a caminho por entre campos até à terra de Avintes.

    Entretanto, enquanto caminhavam de regresso, e sem nada saberem, acontecia a grande tragédia. A lancha em que viriam, se não fora a fome do Licínio, acabaria por afundar-se, ainda antes de estes terem chegado a casa. Sobre este acontecimento trágico, está escrito no Museu da Pessoa ([ii]) o seguinte:

    “Também havia barcos de passageiros que encostavam nas escadas. Era o caso do Barco das Padeiras, que transportava as pessoas para Rio Mau, Avintes e depois regressava ao Douro. Mais tarde fizeram umas lanchas para transportar passageiros, uma chamava-se a Foz de Sousa que era mais conhecida pelo nome “A Badalhoca”, que embateu nas pedras e foi ao fundo, mesmo em frente à Quinta da Paradela e morreram 28 pessoas. O acidente ocorreu no dia 5 de abril de 1950 e foi o desastre maior que houve no rio Douro até à data. Eu ainda era miúdo, tinha 12 ou 13 anos. A lancha ia para Avintes carregada de passageiros quando bateu numa pedra encostada à margem e começou a meter água. As pessoas começaram a cair todas para o mesmo lado até que o barco virou.”

    Maria estava em casa com os filhos mais novos, esperava sempre sem saber de que lado viriam os seus Amaral e Licínio; não era certo que viessem de camioneta ou de lancha e a maior parte das vezes até vinham a pé, como fora o caso naquela tarde de horror. Consumada a tragédia, os gritos de pedido de socorro depressa atravessaram como raios os corações daquela comunidade que, à toa, se lançara em direção ao leito onde a morte ceifava uma grande parte das vidas. Maria ficara agarrada aos seus meninos e quase louca de dor entre a certeza e a incerteza de aquela poder ser também a sua desgraça. apesar de não ser muito conhecida no lugar, já tinha granjeado o amor das pessoas, todas sabiam bem das rotinas diárias de cada um, logo, foi muito grande e imediata a comoção geral.

    Preparando-se num ápice, pegou nas crianças e saiu para a rua a gritar pelo seu “Zé”, como gostava de chamar-lhe e pelo seu menino “Cininho”, nome que também guardava no fundo da sua alma. Ainda não tinha dado muitos passos e com as lágrimas a cobrir-lhe a face ouviu uma voz que a chamava: – Mãe, mãe, somos nós! Estamos aqui! – exclamavam entre soluços. – Nós não viemos na lancha, nós viemos a pé – gritaram várias vezes, para a acalmar e a trazer à realidade.

    Quando Maria tomou verdadeira consciência da presença deles, abraçou-os e beijou-os com o coração dorido, mas com a alma a pular numa alegria contida. Depois de uma certa contemplação e de dar graças pelo mistério do conforto das almas, foram todos em direção ao rio, ao lugar da tragédia, para partilharem o amor e solidariedade com aqueles que sofriam pelo trágico acontecimento da perda dos seus entes queridos que não veriam mais com vida. Por lá estiveram bastante tempo, olhando aquela tragédia, ao mesmo tempo que se interrogavam sobre as circunstâncias da sua própria vida. Já muito tarde, regressaram a casa para comerem alguma coisa e deitarem-se unidos pelas dores, mas com a certeza de que estavam juntos para começarem o novo dia.

    Algum tempo depois desta onda de dramas e tragédias, o ciclo da vida parecia começar a voltar ao estado normal, alguma esperança começava a renascer nos pensamentos desta pobre família. Amaral e Licínio mudaram de patrão, o pai para um trabalho na mesma profissão, mas um pouco mais remunerado e o filho para uma fábrica onde passara a estar mais contente e a ter um salário melhor. Para reforçar este sentimento positivo, Maria fora convidada pela Dona Olívia ou Olivinha, como era mais conhecida em Avintes, a apresentar-se no seu ateliê, para iniciar a sua carreira na costura. Primeiro, como simples operária e mais tarde como mestra, função que desempenharia até ao dia em que, por sua vontade e por ter uma vida melhor, deixaria de trabalhar. Entretanto, começara também a ser pensado o dia do batizado do seu menino e o modo como deveriam convidar o primo Zé “torneiro” e esposa para serem padrinhos. Aliás, não só seriam o primo Zé e esposa os padrinhos do registo civil como seriam também a sua filha Rosa e o marido os padrinhos da igreja; tudo estava a ser pensado com humildade, mas com muito amor. Com isto, a azáfama da casa e do trabalho começavam a envolver os membros da família, que por algum tempo começaram a viver com a cabeça erguida e com vontade de superar todas as dificuldades, apesar de sacrificarem a ida à escola do filho Fernando, por não terem arranjado ainda alguém que ficasse como ama do seu menino António.

 


[ii] Museu Pessoa – Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira – Sou José Fernandes Marques Teixeira. Nasci no Muro dos Bacalhoeiros, n.º 111, a 22 de dezembro de 1946. Atualmente, moro na Rua da Fonte Taurina. Depoimento de José Fernandes Marques Teixeira. Entrevistado por Patrícia Sousa, Lígia Costa e Sónia Moreira. São Paulo, dezembro de 1999. “O maior desastre no rio Douro”, Naufrágio.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 21 a 24.

 

Path of Light and Shadow (Text 5)

 

We were in the beginnings of the month of April of 1950, more precisely in the end of the afternoon of day 5. After they finished the work, when the money sufficed and was no longer very soon, Amaral and his son Licínio used to embark in the motorboat of Avintes, which transported the peoples that went to and came from the city, from their works and from their commerce.

In that fatidic afternoon, Amaral and his son finished the work a bit earlier than usual, hence, as it would be habitual in these circumstances, they would come on foot to save money; however, contrary to what would usual, in that tragic afternoon it was Amaral’s will to return home in the motorboat of Avintes.

However, Licínio was very hungry in that evening and had asked his father to eat something before they embarked. The father did not want to comply with his son’s wish, since he only had money for the tickets; to come from transport was faster and avoided the tiredness of the walk, which was the triple of the effort after a day of so much work. Meanwhile, the insistence of the boy was such that he did not look to the problem of getting without money for the trip and he decided to spend it on the comfort of the stomach of both. When they had finished to eat and drink (as Amaral liked very much of a glass of wine, since he was from the lands of the good wine, especially, port wine), they set out across fields to the land of Avintes.

Meanwhile, while they walked back home, and without knowing anything, the great tragedy happened. The motorboat in which they would come, if it were not Licínio’s hunger, would end sinking, even before they had arrived home. About this tragic happening, it is written in Museu da Pessoa [Museum of the Person] ([ii]) the following:

“There were also passenger boats that leaned against the stairs. It was the case of the Barco das Padeiras [Bakers’ Boat], which transported the people to Rio Mau, Avintes and then it returned to the Douro’s River. Later, they made some motorboats to transport passengers: one was called Foz de Sousa [Sousa’s Mouth], which was more known by the name of “A Badalhoca” [The Dirty One], which collided with the stones and sank to the bottom, right in front of the Quinta da Paradela [Paradela’s Farmhouse] and 28 people died. The accident occurred on the 5th of April of 1950 and it was the greatest disaster that have always happened in Douro’s River until that date. I was still a kid, I had 12 or 13 years old. The motorboat was going to Avintes full of passengers when it hit a rock close to the riverbank and started to spring a leak. All the people began to fall to the same side until the boat had overturned.”

Maria was at home with her youngest sons, she always hoped without knowing from which side would come her Amaral and Licínio; it was not certain that they came by bus or by motorboat, and most of the times they even came on foot, like it was the case in that horror afternoon. When the tragedy was consummated, the screams of help soon pierced through the hearts of that community like lightning bolts, and the community threw itself, haphazardly, to the riverbed where death reaped a great part of the lives. Maria had remained attached to their little boys and almost crazy of pain between the certainty and the uncertainty of that may be also her disgrace, although she was not well known in the place, she had already won the people’s love, every one of them knew well the daily ruts of each other, hence, it was very great and immediate the general commotion.

All of a sudden, she prepared herself, took the children and went out to the street screaming for his “Joe”, like she liked to call him and for his little boy “Cininho”, a name that she also kept deep in her soul. She had not taken much steps yet, and with tears covering her face, she heard a voice that called: – Mom, mom, it’s us! We are here! – they exclaimed among hiccups. – We didn’t come in the motorboat; we came on foot – they shouted several times to calm her down and bring her back to reality.

When Maria had truly realized their presence, she hugged them and kissed them with the heart aching but with the soul jumping in a refrained joy. After a certain contemplation and after giving thanks for the comfort of the souls, they went all towards the river, to the place of the tragedy, to share the love and solidarity with those who were suffering due to the tragic happening of the loss of their loved ones who they would no longer see with life. They had been there for a long time, watching that tragedy, and at the same time they wondered about the circumstances of their own lives. Already very late, they returned home to eat something and go to bed united by the sorrows, but with the certainty that they were together to begin a new day.

Some time after this wave of dramas and tragedies, the cycle of life seemed to begin to return to its normal state, some hope began to be born again in the thoughts of this poor family. Amaral and Licínio changed their bosses: the father to a work in the same profession but a bit more paid, and the son to a factory where he started to be happier and to have a better salary. To reinforce this positive feeling, Maria had been invited by Mrs Olívia or Olivinha, as she was more known in Avintes, to present herself in her atelier, to begin her new career in needlework. First, as a simple workwoman and later as a mistress, a function she would perform until the day when, by her will and for having a better life, she would stop working. Meanwhile, she also began to think of his little boy’s christening and about the way they should invite the cousin Joe “turner” and his spouse to be godparents. Besides, not only Cousin Joe and his parents would be the godparents of the civil registration, but also their daughter Rosa and her husband would be the godparents of the church; everything was being thought of with humbleness, but with much love. With this, the bustle of home and of work started to involve the members of the family, that for a while they started to live with their heads up and with the will to surpass all the difficulties, although they were sacrificing the school attendance of their son Fernando, because they had not yet managed to find someone who stayed as a nanny of her boy António.

 


[ii] Museu Pessoa – Testimonial of José Fernandes Marques Teixeira – I am José Fernandes Marques Teixeira. I was born in the Wall of the Codfishing Ships, № 111, on the 22nd of December of 1946. Presently I live in the Street of the Taurine Spring. Testimonial of José Fernandes Marques Teixeira. Interviewed by Patrícia Sousa, Lígia Costa and Sónia Moreira. São Paulo, December of 1999. “The greatest disaster in the Douro River”, Shipwreck.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 21 to 24.

 

Feliz Natal e Próspero Ano Novo

21-12-2019 21:34

FELIZ NATAL E PRÓSPERO ANO NOVO

Desejo a todos os amigos e amigas um Feliz Natal e um Próspero Ano Novo!

I wish to all my friends a Merry Christmas and a Happy New Year!

Je souhaite à toutes mes amies un Joyeux Noël et une Bonne Année!

أتمنى لجميع الأصدقاء عيد ميلاد سعيد وسنة جديدة سعيدة!

Saya berharap semua teman Selamat Natal dan Selamat Tahun Baru!

祝所有朋友圣诞快乐,新年快乐!

Zhù suǒyǒu péngyǒu shèngdàn kuàilè, xīnnián kuàilè!

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 4) / Path of Light and Shadow (Text 4)

13-12-2019 18:19

Caminho de Luz e Sombra (Texto 4)

 

    Viajaram numa das últimas carreiras e, já ao anoitecer, lá chegaram a casa onde o marido e o filho Fernando os aguardavam com grande satisfação e não menor ansiedade. Bastante exaustos, mãe e filhos, chegaram ao lar levando com eles a claridade do seu anjinho, que agora enchia de luz e bênçãos a casa daquela pobre família. Uma casa da freguesia de Avintes, que ficava próxima da “Ti Cachaça”, a mercearia daquele lugar. Um lugar bastante próximo da praia do Areinho e do esteiro onde os barcos atracavam todos os dias, para transportar as gentes que se deslocavam de e para a cidade do Porto com desembarque no Cais da ribeira.

    – Oh! Há quanto tempo estávamos aqui numa sombra de pesadelo! – desabafou o marido com a voz embargada! – O Fernando não parava de perguntar: “Oh, pai! Quando é que a mãe e o nosso menino vêm?” E como eu não sabia o que fazer, por já estar a anoitecer e o caminho ser longo, cheguei a temer pelo pior. Graças a Deus que já cá estão! – concluiu mais sossegado. E continuou, dizendo: – Deixa-me agora pegar no menino enquanto descansas um pouco e te pões à vontade.

    Amaral não revelara logo a surpresa que lhe reservara, ele sabia bem do que Maria precisava para recompor-se e tornar-se na mulher que era. Depois de várias manifestações de afeto e enquanto os filhos se envolviam em volta do colo da mãe e beijavam com intermitência o bebé, Amaral presenteou-a com um caldo de galinha que tinha acabado de fazer. Em casa não faltavam galinhas nem coelhos, apesar de este espaço ter sido cedido só até ao dia em que fizesse falta, pois foi por caridade e estima ao primo Zé que o cederam temporariamente para refúgio desta família, que viera para esta terra na aventura por melhores dias. Malgrado a aflição por a falta de dinheiro ser cada vez maior, compensava-os a criação de animais, legumes e alguma fruta para acompanhar e fazer as delícias daquela pobreza encoberta.

    – Ah! homem, como cheira bem este caldo! Tira também uma malga para os meninos, que devem estar cheios de fome! – disse isto, olhando-os com tristeza e ao mesmo tempo a ofegar com um profundo sentimento maternal, um sentimento que só nos estados de santidade poderá emergir nas almas.

    Depois do consolo do pão e do caldo de galinha, era preciso ganhar a noite que já ia muito adiantada. O Amaral e o seu filho Licínio tinham de pôr-se a pé de madrugada para se porem a caminho do Porto, onde trabalhavam ganhando um pequeno salário para sustento de toda a família.

    Ainda antes de adormecerem, Maria interrogou o marido sobre a quem deixar o menino, logo que tivesse forças para ir trabalhar. Ela estava a ensaiar a confecção de roupinhas de criança, para mostrar à Olivinha que no seu ateliê em Avintes e no Porto, nas lojas onde comerciava, era muito apreciada neste tipo de moda. Tal como a maior parte das jovens do seu tempo, Maria tinha sido ensinada para ser uma boa esposa e boa dona de casa. Contudo, a pobreza dos salários do marido e do filho era razão vital para ela ter de acrescentar para a sobrevivência o conhecimento e a qualidade da confecção de roupas de criança, que afinal também tinha aprendido na arte de lavores.

    Amaral encolheu os ombros e, depois de um leve suspiro, exclamou:

    – Sossega, mulher! ainda agora passaste por bastantes dores e já estás a pensar onde deixar o nosso bebé para ires procurar o sustento que falta para o pão de cada dia! – disse isto para a ajudar a sossegar, pois ele bem sabia como seria difícil subsistir com salários tão baixos. Eram cinco bocas para alimentar, para vestir e viver com alguma dignidade.

    Depois, para a consolar, lá foi acrescentando:

    – Estamos numa terra de pessoas boas, portanto, há de haver uma alma caridosa que tome conta dele. Por outro lado, o nosso filho Fernando, no tempo que não tiver escola, também ajudará a tomar conta. – Mal sabia ele que esta seria a primeira machadada que daria no crescimento deste filho, pois ele haveria de perder o ano de escolaridade e até, ao que parece, nunca ter completado a instrução primária.

    Algumas horas de sono e esta família começava o dia com o despertar do novo para a continuação da caminhada da vida, com muito amor, mas cheia de espinhos e carregada de sofrimento. Para acrescentar a este rol de pobreza, sem que nada o fizesse prever, abriu--se na comunidade de Avintes um ciclo trágico, ainda que com uma mistura de felicidade milagrosa, pelo menos para esta família. Por um lado, porque Maria, quinze dias depois do parto, preparara uns modelos de roupa de criança para apresentar à dona Olívia, a senhora da moda que a recebeu no seu ateliê e que, depois de avaliar os modelos, lhe propôs que esperasse mais algum tempo até poder dar-lhe trabalho. Significava isto que, para ganhar dinheiro para um pouco mais de pão, teria de esperar ainda mais algum tempo.

    Entretanto, o marido e o seu Licínio sofriam cada vez mais nas canseiras das caminhadas de ida de Avintes para a cidade do Porto, e vice-versa, a maioria dos dias, a pé, pois a camioneta e a lancha, apesar de terem um custo económico não eram comportáveis diariamente. Por outro lado, ver sofrer o rapaz custava os olhos da cara. Ele apresentava uma inteligência invulgar, tinha passado da primeira classe para a terceira e terminado a instrução primária com distinção e louvor. Finalmente, custava ainda muito mais, porque ambos sabiam que tinham recusado a ajuda social, principalmente do professor Carvalho na obtenção do auxílio financeiro das gentes da freguesia, para a compra das roupas que o rapaz precisava e da inscrição num colégio em Coimbra, onde poderia estudar e vir a ser doutor. E toda esta recusa por uns vinte e cinco tostões diários que o Licínio iria ganhar como aprendiz numa fábrica de calçado, que estes pobres pais não podiam prescindir nem para os quais a Comissão de Ajuda Social fora capaz de conseguir alternativa. Tudo isto era bastante amargo e tornava a vida desta família num rosário de lamentos que Amaral afogava na massa com que cimentava as paredes e nas frases em latim, de sentido doloroso, que aprendera no Seminário quando ainda era rapaz.

    Contudo, a pior nuvem negra aproximava-se com força sinistra da terra onde viviam, com ela viria também a grande tragédia que enlutou bastantes famílias em Avintes e, se não fora o tempo ter jogado a favor do Amaral e do seu rapaz, também certamente teria enlutado esta.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 17 a 21.

 

Path of Light and Shadow (Text 4)

 

They traveled in one of the last routes and, already at nightfall, they arrived home, where the husband and the son Fernando awaited them with great satisfaction and not less anxiety. Very exhausted, mother and sons, they arrived home taking with them the brightness of their little angel, who now filled with light and blessings the house of that poor family. A house in the parish of Avintes, which was near “Aunt Cachaça [brandy]”, the grocery of that place. A place very close to the small sandy river shore and to the branch, where the boats came alongside every day, to transport the peoples who split from and to the city of Oporto with disembarkation at the riverside quay.

– Oh! How long we were here in a shadow of a nightmare! – the husband unburdened himself with his voice seized! – Fernando didn’t stop asking: “Dad! When will mom and our little boy come?” And since I didn’t know what to do, because it was already getting dark and the path was long, I feared the worst. Thank God you’re already here! – he concluded more serene. And he continued, saying: – Let me hold the boy while you rest a little and make yourself comfortable.

Amaral had not revealed yet the surprise he had reserved to her, he knew well what Maria needed to recover and become the woman she was. After several manifestations of affection, and while the sons wrapped themselves around the mother’s lap and kissed intermittently the baby, Amaral offered her a chicken broth he had just make. At home, there were plenty of chickens and rabbits, although this space was only yielded only until the day it was needed, since it was for charity and esteem by Cousin Joe that it was temporarily yielded to the refuge of this family, who had come to this land in the adventure for better days. In spite of the affliction due to the lack of money was even bigger, the creation of animals, vegetables and some fruits compensated them to garnish with and make the dainties of that covered poverty.

– Ah! Man, how good this broth smells! Take also a bowl for the kids, who must be hungry! – she said this, looking at them with sadness and at the same time gasping for breath with a profound maternal feeling, a feeling that only in the states of holiness may emerge within the souls.

After the consolations of the bread and the chicken broth, it was necessary to catch the night, which was already very advanced. Amaral and his son Licínio had to get up at daybreak to set off to Oporto, where they worked earning a little salary to the support of all the family.

Still before they fell asleep, Maria inquired her husband about who to leave the boy with, as soon as she had the strength to go to work. She was rehearsing the confection of children’s clothes, to show to Olivinha, who in her atelier in Avintes and in Oporto, in the shops where she traded, was very prized in this kind of fashion. Like most of the young girls of her time, Maria had been taught to be a good spouse and a good housewife. However, the poverty of the husband’s and the son’s wages was the vital reason for her to need to add to the survival the knowledge and the quality of the confection of children’s clothes, which after all she had learned in the embroidery art.

Amaral shrugged his shoulders and, after a slight suspiration, he exclaimed:

– Calm yourself down, woman! You just went through so much pain and you’re already thinking about where to leave our baby so that you search for the sustenance needed to everyday bread! – he said this to help her calm down, since he knew well how difficult it would be to subsist with so low wages. They were five mouths to feed, to dress and to live with some dignity.

After, to comfort her, he was then adding:

– We are in a land of good people; thus, there will be some charitable soul who takes care of him. On the other hand, our son Fernando, in the time he has no school, will also help to take care. – Little he knew that this would be the first ax stroke he would give in the growth of this son, since he would lose the schooling year and even, as it seems, he would never complete primary education.

Some hours of sleep, and this family started the day with the awakening of the new to the continuation of the walk of life, with much love, but full of thorns and loaded with suffering. To add something to this roll of poverty, without anything that made it predict, a tragic cycle has opened in the community of Avintes, even though with a mix of miraculous happiness, at least for this family. On the one hand, because Maria, fifteen days after the labor, had prepared some children’s clothes models to show to Mrs. Olivia, the fashion lady who had received her in her atelier and who, after evaluating the models, had proposed to her that she awaited some more time until she could give her work. This meant that, to earn money for a bit more bread, she would still have to wait some more time.

Meanwhile, her husband and her Licínio were suffering each more in the efforts of the walks from Avintes to Oporto city, and vice versa, most of the days, on foot, since the bus and the motorboat, although they had an economical cost, they were not daily affordable. On the other hand, to watch his boy suffering costed the eyes of the face. He showed an unusual intelligence, he had passed from the first year of school to the third one and had finished the primary education with distinction and praise. Finally, it cost even much more, because both knew that they had refused social aid, especially from teacher Carvalho in the obtainment of financial help from the peoples of the parish, to the purchase of the clothes the boy needed and of the enrollment in a private school in Coimbra, where he could study and come to be a graduate. And all this refuse for only some twenty-five daily “tostões” [more or less like one farthing] that Licínio would earn as an apprentice in a shoe factory, which these poor parents could not do without nor for whom even the Social Aid Commission was able to manage an alternative. All this was very bitter and made the life of this family a rosary of laments that Amaral drowned in the mortar with which he cemented the walls and in the sentences in Latin, of painful meaning, which he had learned in the Seminary when he was still a young boy.

However, the worst dark cloud was getting near with sinister force to the land where they lived, with it would also come the great tragedy that put so many families into mourning in Avintes and, if it were not the time to have played in favor of Amaral and his boy, it would certainly put this one into mourning too.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 17 to 21.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 3) / Path of Light and Shadow (Text 3)

29-11-2019 17:21

Caminho de Luz e Sombra (Texto 3)

 

    Era esta a outra bênção que Maria ansiava naquela ocasião e que tanto pedira nas suas orações. A caridade é um dom que temos guardado no lado mais profundo da alma e que rejubila quando se sente glorificada. No caso de Maria, toda a caridade seria recebida com amor, ela era uma mulher que tinha aprendido, desde pequenina, a reconhecer e a agradecer o amor que lhe davam.

    Na tarde em que tivera alta, e antes de deixar a enfermaria das parturientes, despedira-se com afeto e gratidão dos médicos, enfermeiros e de todo o restante pessoal. Quisera reconhecer, daquela forma singela, o modo como a ampararam e lhe proporcionaram um ambiente de amor e carinho.

    Depois de vestido com as roupinhas que fizera antes, pegou ao colo o seu menino e embrulhou-o num modesto cobertor para o aquecer e o prender melhor. Com acenos às pessoas fora-se dirigindo para as escadas da saída para o átrio onde se encontravam os serviços administrativos do hospital e onde estariam à sua espera, o seu homem, que a beijara e saíra apressadamente para continuar o trabalho e não ter problemas com o patrão, o seu filho Licínio, o primo Zé “torneiro” e duas pessoas caridosas que arranjaram no local para o registo do menino. O primo Zé e as duas testemunhas, depois de felicitarem Maria e de afagarem o menino, apressaram--se para completarem as formalidades de assinar o documento de certificação do nascimento, para depois fazer-se o registo civil na freguesia de Miragaia.

    Não se sabe se no cumprimento do primo Zé a estas pessoas bondosas fora associada alguma compensação. O primo era muito discreto nas suas ações. Procurava não dar a entender o que fazia pelos outros e se nesta altura dera alguma recompensa monetária, nunca se soube qual fora o seu montante nem como fora dada. O primo Zé “torneiro” procurava ser bondoso e isso chegava-lhe para ser feliz e fazer felizes os outros.

    Depois deste momento formal, Maria despedira-se de todos, com a alegria de levar ao colo o seu anjo mais pequenino, ao mesmo tempo que com uma das mãos ia aconchegando ao ventre o outro filho enquanto saíam os três do hospital.

    O seu Licínio pouco mais teria que doze anos de idade, mas nos seus olhos poderia ver-se a alegria de ver o seu irmãozinho, mesmo no refulgir da imagem de sofrimento, que já tinha ganho no rol das horas amargas pelos trabalhos dolorosos de fazer e carregar massa para cimentar as paredes como aprendiz da construção.

    Já próximos da igreja da Torre dos Clérigos, o seu rapaz agarrara-se à saia da mãe e pedira-lhe que o deixasse olhar uma vez mais para o menino. Afinal, ele era também o seu menino, pois haveria de ser assim que o trataria enquanto não fosse homem. Depois de observá-lo por instantes, exclamara: – O menino é tão lindo que até parece um anjo!

    – Sim, sim, parece um anjo pequenino – respondera-lhe a mãe um pouco emocionada. E, afagando-o com ternura, acrescentara com sinceridade e algum mimo: – É como tu, quando nasceste, também eras assim como o nosso menino!

    Depois desta breve paragem, já num ponto intermédio entre o princípio e o fim do espaço que ladeava a Igreja da Torre dos Clérigos, Licínio agarrara a mãe com maior vigor para lhe pedir o que mais desejara fazer desde que saíram do hospital:

    – Mãe, deixe-me pegar no menino, deixe-me levá-lo ao colo, deixe-me que eu posso com ele – insistia já quase a choramingar.

    Este sinal de amor pelo irmãozinho fez, por momentos, Maria enfraquecer no seu receio. Também não tinha muita força para continuar com o menino ao colo; o ato de dar à luz, apesar da experiência, provocara-lhe sempre uma grande fraqueza. O desejo do seu Licínio parecera-lhe ser uma pequena ajuda para recuperar forças, depois, ele era um pequeno adolescente, mas bastante robusto, que já trabalhava para ajudar no sustento da família. Sem mais, pusera-se a jeito para que o Licínio segurasse nos braços o corpinho do bebé. Porém, a tragédia ia acontecendo: o cobertor que segurava o menino desenrolara-se e o anjinho, se não fora o olhar atento de Maria para o aparar instantaneamente da queda, ter-se-ia estatelado no chão, provavelmente caindo sobre os carris do elétrico, pois quando a mãe reparou, o seu rapaz já estaria só a segurar no cobertor.

    – Ah! Licínio, que atenção a tua! – gritara a mãe com grande aflição. – Se eu não tivesse reparado tão depressa, o menino teria caído ao chão. Foi para isso que pediste para o levar?! – advertira-o zangada e com frieza. Mas, num súbito, para amenizar a tristeza do seu rapaz, exclamara: – Desculpa, meu filho, eu ainda não estou em mim, não sei o que estou a dizer! Mas isto já está a passar e tu bem sabes que eu gosto muito de ti. E sei que tu não fizeste isto por mal, talvez o cobertor já não estivesse a prender bem o teu irmão…

    – Não sei como isto aconteceu! – exclamara o rapaz, ainda com receio. – Comecei a olhar para o menino e não reparei que ele estava a cair por entre o cobertor. Mãe, fiquei com tanto medo de o perder, que se me batesse não choraria! – exclamara o rapaz já mais confiante.

    – Bem, agora vou levá-lo eu! – dissera a mãe. Depois acrescentara: – Vamos caminhar mais depressa para ainda apanharmos a camioneta para irmos para a nossa casa. O teu pai e o teu irmão esperam-nos com ansiedade, já devem estar preocupados com o nosso atraso; quantas vezes deverão ter pensado em nós e em algo de mal que nos tenha acontecido; devem estar ansiosos por nos verem. – Dizia isto para voltar de novo a ver a alegria nos olhos do seu Licínio, enquanto caminhavam ao encontro da camioneta que os haveria de levar de regresso.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 14 a 17.

 

Path of Light and Shadow (Text 3)

 

It was this the other blessing that Maria yearned for on that occasion and that she begged so much in her prayers. Charity is a gift that we have kept in the most profound side of the soul and that rejoices when it feels glorified. In Maria’s case, all charity would be received with love; she was a woman who had learned, since she was a little girl, to recognize and to thank the love others gave to her.

In the afternoon in which she was discharged from the hospital, and before she left the nursery of the parturients, she took leave with affection and gratitude of the doctors, paramedics and of the rest of the personnel. She wanted to recognize, in that simple manner, the way they aided her and provided her an environment of love and kindness.

After he was dressed with the little clothes she had made before, she picked him up, wrapped him up in a modest blanket to warm him up and to grasp him better. With nods to the people, she was heading to the exit stairs to the hall where were the administrative services of the hospital and where they would be waiting for her: her husband, who kissed her and left to continue his work and to not have problems with his boss, her son Licínio, her cousin Joe “turner” and two charitable people they found in place for the record of the little boy. Cousin Joe and the two witnesses, after felicitating Maria and fondling the little boy, they hurried to complete the formalities of signing the certification document, so that they could make the civil record in the parish of Miragaia.

It is not known that if, in the greeting of cousin Joe to these kind people, had been associated some compensation. The cousin was very discrete in his actions. He tried not to give a hint of what he did for others and if by this time he had given some monetary reward, it was never known what was his amount nor how it was given. Cousin Joe “turner” tried to be kind, and that was enough for him to be happy and make others happy.

After this formal moment, Maria said goodbye to everybody, with the joy of carrying in her arms her littlest angel, and at the same time, she was tucking the other son in to her belly while the three were leaving the hospital.

Her Licínio little more was than twelve years old, but in his eyes, one could see the joy of seeing his little brother, even in the refulgence of the image of suffering, which he had got in the roll of the painful works of making and carrying mortar to cement the walls as a construction apprentice.

Already near to the church of Clérigo’s Tower, her boy clung to his mother’s skirt and asked her to let him look once more to the little boy. After all, he was also his little boy, since it would be as such that he would treat him while he was not a man yet. After observing him for moments, he exclaimed: – The boy is so beautiful that he looks like an angel!

– Yes, yes, he looks like a little angel – the mother answered him a bit touched. And, fondling him with tenderness, she added with sincerity and some cuddle: – He is like you, when you were born, you were also like our little boy!

After this brief stop, already in an intermediary point between the beginning and the end of the space that sided the church of the Clérigos Tower, Licínio clung to his mother with greater vigor to ask her what he most desired since they had left the hospital:

– Mom, let me hold the little boy, let me carry him in my arms, let me because I can hold him – he insisted already almost sniveling.

This sign of love for the little brother made, for moments, Maria weaken in her concern. She also had not much strength to continue carrying her little boy in her arms; the act of giving birth, despite the experience, had always caused her a great weakness. The desire of her Licínio seemed to be a little help to regain strength; besides, he was a little adolescent, but very robust, who already had a job to support his family. Without further ado, she put herself in position so that Licínio could hold in his arms the baby’s little body. However, the tragedy was going to happen: the blanket that was holding the boy unrolled itself and the little angel, if it was not the attentive look of Maria to catch him instantly from the fall, he would fall at full length on the ground, probably falling over the rails of the streetcar, since when the mother noticed it, her kid would be holding only the blanket.

– Ah! Licínio, what lack of attention of yours! – yelled the mother with great affliction. – If I had not noticed it so fast, the boy would have fallen on the ground. Was it for that that you asked me to take him?! – she admonished him angry and with coldness. But, suddenly, to soothe the sadness of her boy, she exclaimed: – I’m sorry, my son, I’m not in my right mind yet, I don’t know what I’m saying! But this is already passing and you know well that I love you very much. And I know that you didn’t mean this, maybe the blanket was no longer seizing well your brother…

– I don’t know how this happened! – exclaimed the boy, still afraid. – I started to look at the boy and didn’t notice that he was falling from between the blanket. Mom, I was so scared of losing him, that if you beat me, I wouldn’t cry! – exclaimed the boy now more confident.

– Well, now I will carry him! – said the mother. After, she added: – Let’s walk faster so that we still catch the bus to go to our home. Your father and your brother await us with anxiety, they should already be worried with our delay; how many times they should have thought about us and about something wrong that might have happened to us; they should be anxious to see us. – She said this to watch again the joy in the eyes of her Licínio, while they walked towards the bus that would take them back.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 14 a 17.

 

Caminho de Luz e Sombra (Texto 2) / Path of Light and Shadow (Text 2)

15-11-2019 19:38

Caminho de Luz e Sombra (Texto 2)

 

    Sem poder conter-se por mais tempo, respondera pausadamente:

    – De facto, hoje não estou nos meus dias quanto à alegria que costumo manifestar. Quero que saibam que é a nossa última aula, que vou deixar a escola, chegou a ordem para a passagem à aposentação. Amanhã, já serei um professor reformado e, como pensei mais no trabalho do que na reforma, isto parece-me uma ilusão! – dissera estas palavras com um olhar apreensivo e distante.

    – Oh! Vai deixar-nos?! – exclamaram com tristeza.

    – Vou deixar-vos a vós e a toda a comunidade – ajuntara com mansidão e paz. Depois, percebendo que o ambiente começara a ficar pesado, incentivara-os a partilharem de alguma felicidade comum, dizendo: – Para nos animarmos um pouco mais, proponho para a aula de hoje uma reflexão sobre a seguinte questão: “Como esperam realizar os vossos sonhos?” Significa que cada um poderá falar ou escrever sobre os seus desejos e gozar da liberdade para voar pelo pensamento até ao lugar dos sonhos que gostaria de realizar.

    – Ok, professor! – responderam sem hesitar. Entretanto, sem que nada o fizesse prever, um outro aluno levantara o braço para o questionar.

    – Eu gostaria que, antes de falarmos dos nossos sonhos, pudéssemos ouvir o professor sobre o que escreveu no seu livro: “Crescendo Constroem-se os Sonhos” (i). – E, para o efeito, localizara de imediato a página 35, linha 21, começando a ler em voz alta: – “Afinal, vejo agora, com claridade, que a razão pela qual cada um se guia e rege é a razão da sua vida que, sendo original, dá-lhe o toque de qualidade que nos torna diferentes uns dos outros”. – Terminada a leitura deste excerto, comentara: – Deste pensamento poder-se--á concluir que para realizarmos os nossos sonhos, cada um deverá seguir a razão da sua vida. – Mas, continuando a análise, prosseguira nas suas observações, dizendo: – Quando chegamos à página 79, linha 14, o professor propõe-nos como fundamento último para a realização dos mesmos, que vivamos com perspetiva num “Mundo de idealidade”, o qual passo a citar: “Neste Mundo de Idealidade, os objetivos que percorremos tenderão para a realização transcendental, uma realização mais elevada que a realização ideal, já que será uma realização onde somos singularidades disponíveis e voluntárias que não servirão só na tradição porque querem realizar a História”. – Depois, para concluir, sugeriu afirmativamente: – No entanto, apesar de estes dois fundamentos serem esclarecedores para a compreensão da nossa dimensão real e ideal na realização dos nossos sonhos, creio que todos gostaríamos de saber se existe algo mais que desconheçamos, sobre as razões de nos propor este caminho, em especial, o do Mundo de idealidade para alcançarmos a singularidade em plenitude!

    – Bem, têm razão! Existe, de facto, algo mais – respondera o professor com total concordância. – Por isso, já que no primeiro fundamento não pareceu ter havido grande dificuldade na interpretação, vou limitar-me teoricamente ao fundamento da idealidade, julgando com esta explicação poder ajudar-vos a caminhar melhor na vivência da vossa vida. Sendo, também, minha preocupação apresentar-vos depois alguns fundamentos práticos, dado que neste caso serão as razões que serviram de fundamento para a proposta em questão.

    Neste sentido, começarei por dizer que, em todos os aspetos, o termo idealidade terá de estar relacionado como real; no entanto, sabendo nós que cada situação desejada e cada circunstância que a condiciona dificilmente coincidirão com a nossa vontade e possibilidade, tornar-se-á necessário que o termo seja concrescível com a nossa atitude voluntária, que o termo cresça com a nossa disposição dinâmica, para podermos conceber ser possível atingir o real. Será preciso que, pela nossa ação, ele se abra e se acrescente nos limites do ideal (como, por exemplo, no ideal de família), para poder manifestar-se depois nos domínios do realizar e do sentir na totalidade.

    A idealidade e o voluntarismo na motivação tornam-se emergentes na nossa ação. Só através de um limite ampliado (ou seja, através da idealidade), se podem abstrair todos os limites, mesmo nas circunstâncias em que julgaríamos racionalmente tal não ser possível. Ser voluntário é proceder por vontade própria, é proceder sem estar à espera de qualquer contrapartida. Proceder pela idealidade em relação à vida é também proceder voluntariamente com a disponibilidade que nos for possível para a interpretar em todas as dimensões que a constituem. Procedendo deste modo, mais facilmente compreenderemos que a vida, pela sua natureza dinâmica, surgirá em todas as formas afins, independentemente da nossa vontade, embora possamos conjugar toda a nossa força e inteligência para a defender e a tornar melhor, sem esquecer os limites da nossa fé, para podermos ser mais confiantes, sobretudo quando estivermos perante casos de grande incerteza. Logo, pela mesma razão, compreenderemos que a vida e que a nossa consciência sobre cada situação indicam uma globalidade que o poder humano será capaz de experimentar, de modo certo e seguro, embora dessa globalidade apenas possa apreender algumas partes, pois o homem é uma totalidade que participa da globalidade, mas isso só é possível na condição de essência e singularidade existencial.

    Quanto aos fundamentos práticos, que são neste caso as razões principais para a proposta que vos apresento, gostaria de começar por vos contar o que fui relacionando. Algo que terá a ver com aquilo que ressurgiu num caminho de luz e sombra.

 

    Às doze horas, do dia um dia vinte e quatro do mês de fevereiro, do ano de 1950, dera os primeiros “gritinhos” a criança do sexo masculino, que Maria tinha acabado de dar à luz.

    Foram longas horas de sofrimento, pelas dores que, em compasso, se alongaram até aos últimos instantes antes do nascimento. Maria gemia com brandura durante as dores de parto. Era uma mulher sofrida, que ao dar à luz também exorcizava a dureza da vida que a corroía nos dias de fome e nas muitas horas de sofrimento. Depois do momento de alívio, Maria mudara o rosto de sofrimento marcado por gemidos contidos, para um rosto de prece, louvando Nosso Senhor Jesus Cristo, pela graça de lhe conceder mais um filho, já que em todo o tempo, não manifestara com maior sacralidade outra qualquer vontade. É certo que era bastante a sua experiência nestes mistérios, já era mãe de seis rapazes, apesar de só três terem escapado aos surtos das “doenças ruins” e das quais só os doutores souberam o nome. Era mais um rapaz, o sétimo filho que acabara de nascer, porventura marcado no número, com uma simbologia especial, pois dizem que o sete é um número bíblico: sete são os céus, sete são os dias da semana, guardam-se os segredos a sete chaves, etc. Não foi a menina que dizia desejar, mas nestas coisas, da vontade de Deus, dizia também que Ele é que sabia oque era necessário e que nós deveríamos aceitar tudo, segundo a Sua vontade. Era o sétimo filho, que contava já na sua ainda jovem vida, já que tinha casado muito nova e muito pouco tempo depois do casamento começara a experiência da maternidade.

    Ao meio-dia de 24 de fevereiro de 1950, no Hospital Geral de Santo António, na cidade do Porto, Maria dava à luz mais um menino que fora registado nos serviços do hospital com o nome de António. Depois do parto, Maria beijara com doçura o seu menino, contemplara-o e afagara-o por algum tempo até o levarem para ser lavado e voltar de novo ao seu leito.

    Enquanto durara esta separação, agarrara-se aos lençóis e beijara-os como que a agradecer as bênçãos recebidas. E, sem querer que se notasse, deixou deslizar pela face algumas lágrimas que, ao formar pequenas gotas, lhe afagaram o rosto e lhe apagaram a sede de todo o sofrimento. a religiosidade de Maria acendia na sua alma a força e a vontade dos profetas e o nome que dera ao seu filho haveria de merecer a caridade das testemunhas do seu nascimento. Os registos no hospital obrigavam a estes tratos e ela era demasiado pobre para poder pagar a alguém. O nome António haveria de fazer recordar o divino Santo António e fazer sentir no coração o apelo da esmola a qualquer alma que estivesse no local do registo hospitalar e fosse bondosa para assinar o termo.

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 9 a 14

 

Path of Light and Shadow (Text 2)

 

Without being able to refrain himself for much longer, he replied pausingly:

– In fact, today I’m not in my days regarding the joy I use to manifest. I want you to know that this is our last class, that I’m going to leave school, the order to the passage to retirement has come. Tomorrow, I will already be a retired teacher and, since I thought more about work than about retirement, this seems to me like an illusion! – he had said these words with an apprehensive and distant look.

– Oh! Are you going to let us?! – they exclaimed with sadness.

– I’m going to let you and all the community – he added with mildness and peace. Later, understanding that the atmosphere began to get heavy, he incited them to share some of the common happiness by saying: – For us to get ourselves a bit more animated, I propose for today’s class a reflection about the following question: “How do you expect to fulfill your dreams?” This means that each one may speak or write about their desires and enjoy the freedom to fly through thought up to the place of the dreams you’d like to fulfill.

– Ok, teacher! – they answered without hesitating. Meanwhile, without anything that made it predict, another student raised his arm to inquire him.

– I would like that, before we talk about our dreams, we could listen to the teacher about what he wrote in his book: “By Growing We Build the Dream” (i). – And, for the effect, he situated immediately the page 35, line 21, starting to read out loud: – “After all, I see now, with clarity, that the reason by which each one guides themselves is the reason of their lives, which, being original, gives them the touch of quality that makes us different from each other”. – Once the reading of this excerpt was finished, he commented: – From this thought, we may conclude that for us to fulfill our dreams, each one should follow the reason of their lives. – But, continuing the analysis, he proceeded in his observations, by saying: – When we get to page 79, line 14, the teacher proposes us as a last fundament to the realization of them, that we live with perspective in a “World of Ideality”, which I start to quote: “In this World of Ideality, the goals we go through will tend to the transcendental realization, a realization more elevated than the ideal realization, since it will be a realization where we are available and voluntary singularities that will not serve only in the tradition because they want to realize History”. – After, to conclude, he suggested affirmatively: – However, despite these two fundaments being elucidative to the comprehension of our real and ideal dimension in the realization of our dreams, I believe that we all would like to know if there is something more that we ignore, about the reasons of you proposing this path, especially, that of the World of ideality for us to reach fully the singularity!

– Well, you’re right! There is, in fact, something more – the teacher answered with total concordance. – Therefore, since in the first fundament didn’t seem to have great difficulty in the interpretation, I will limit myself theoretically to the fundament of ideality, and I think that with this explanation I may help you to walk better in the living of your life. And it is, also, my concern to present you later some practical fundaments, considering that in this case it will be the reasons that served to the proposal in question.

In this sense, I will start to say that, in all aspects, the term “ideality” will have to be related as real; however, because we know that each desired situation and each circumstance that conditions it will hardly coincide with our will and possibility, it will become necessary that the term is concrescible with our voluntary attitude, that the term grows with our dynamical mood, so that we are able to conceive as possible to reach the real. It will be necessary that, through our action, it opens itself up and adds itself on the limits of the ideal (as, for example, in the ideal of family), so that it may manifest itself later within the domains of the realization and of the feeling in totality.

Ideality and voluntarism in motivation become emergent in our action. Only through an amplified limit (that is, through ideality), may we abstract from all limits, even in the circumstances in which we would rationally think that such is not possible. To be voluntary is to proceed by self-will, it is to proceed without waiting for any compensation. To proceed by ideality towards life is also to proceed voluntarily with the availability that is possible to us to interpret it in all dimensions that constitute it. By proceeding this way, more easily we will comprehend that life, by its dynamical nature, will emerge in all similar forms, regardless of our will, although we may combine all our strength and intelligence to defend it and make it better, without forgetting the limits of our faith, so that we may be more confident, especially when we are before cases of great uncertainty. Hence, by the same reason, we will understand that life and our conscience about each situation indicate a globality that the human power will be able to experience, in a certain and sure way, although that globality can only apprehend some parts, since man is a totality that participates in globality, but that is only possible under the condition of essence and existential singularity.

Regarding the practical fundaments, which are in this case the main reasons for the proposal I present you, I would like to begin telling you what I was relating. Something that will have to do with what has resurged in a path of light and shadow.

 

By twelve o’clock of the day twenty-four of February of the year 1950, the male child gave his first little cries, which Maria had recently delivered.

It was long hours of suffering, by the pains that, in compass, prolonged to the last instants before the birth. Maria moaned blandly during the labor pains. She was a suffering woman, who, by giving birth also exorcised the hardness of the life that corroded her on the hunger days and in the many hours of suffering. After the relief moment, Maria had changed the face of the suffering marked by repressed groans to a face of prayer, praising our Lord Jesus Christ, for the grace of Him having conceded her one more son, since at all time, He no longer manifested with greater sacredness any other will. It is certain that it was sufficient her experience in these mysteries: she was already mother of six boys, despite only three have escaped the outbreak of the “evil diseases” and of which only the doctors knew the name. It was one more boy, the seventh who had been born now, perhaps marked on the number, with a special symbology, since they say seven is a biblical number: seven are the skies, seven are the days of the week, we keep secrets locked by seven keys, etc. It was not the girl she said to wish, but in these things, of God’s will, she also said that it was He Who knew what was necessary and that we ought to accept everything, according to His will. He was the seventh boy, who she counted in her yet young life, since she had married very young, and very little after the wedding she had already begun her experience of motherhood.

At noon of the day 24th of February of 1950, at the General Hospital of Saint Antony, in the city of Oporto, Maria gave birth to one more boy who was registered in hospital services with the name of António. After the labor, Maria kissed with sweetness her little boy, she contemplated him and caressed for a while until they took him to be washed and get back again to his bed.

While this separation lasted, she clung to the sheets and kissed them as if she was thanking the received blessings. And, without her wanting to notice, she let slip through her face some tears that, by forming little drops, caressed her face and quenched the source of all suffering. The religiousness of Maria lit in her soul the strength and the will of the prophets, and the name she gave to her son would deserve the charity of the witnesses of his birth. The records at the hospital forced to these procedures, and she was too poor to be able to pay someone. The name António would remind the divine Saint Antony and make feel in the heart the appeal to the alms to any soul who was in the place of the hospital record and who was kind to sign the term.

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 9 to 14.

 

Caminho de Luz e Sombra / Path of Light and Shadow

11-10-2019 17:04

Caminho de Luz e Sombra (Texto 1)

 

Prefácio

    Falar sobre o livro de um autor que já se conhece há vários anos é tarefa ingrata, pois parece soar a elogio falso. Porém, perante o desafio para escrever o prefácio desta obra, resta-me apresentar a minha humilde perspectiva sobre o que li.

    O livro apresenta várias facetas interessantes com uma atualidade e defesa de valores que precisam de permanecer na nossa sociedade para que haja esperança no futuro.

    Começamos por sentir um aperto no coração com o professor que vai largar os seus alunos, que lhe são tão queridos, não só pela proximidade afetiva que se desenvolve entre um professor e os seus alunos ao longo de um ano letivo, ou de vários, mas também pela partilha de saberes e pensamentos que vai deixar de ter continuidade, embora sinta que a semente ficou no pensamento e coração de alguns para poderem vir a ser cidadãos conscientes e ativos.

    Continuamos o percurso, recuando no tempo até à década de 50 do século passado, visitando uma época de vidas simples e difíceis, que eram simultaneamente vidas cheias de amor, fraternidade e solidariedade. É um período que muitos de nós não conhecemos, mas que com este livro passa a ser também nosso, porque o autor nos consegue transportar com enorme realismo a essa época com todo o colorido local. Para quem viveu nesse período e nesses locais, imagino que se deliciará a recordar esses acontecimentos e espaços que já não existirão (pelo menos, como naquela época). Para estes leitores, como para os seus familiares mais diretos, também representará um orgulho sentir que tudo o que fizeram no passado não foi em vão, pois existe alguém que não esqueceu esses tempos e que lhes está a agradecer da forma que melhor sabe: imortalizando esses momentos e essas pessoas através da escrita. Para os estudiosos, surge mais um testemunho de um tempo passado que não convirá esquecer: o desastre no rio Douro com uma lancha em 1950; o fantasma da Guerra Colonial (desde os receios dos jovens que partiam até à vida social em Moçambique nos anos 60, com alguns laivos cinematográficos); e os anos tumultuosos do pós-25 de Abril de 1974, a nível académico.

    Mas a obra não se limita a esse objetivo: surge encaixada na narrativa uma história imortal, cujo protagonista é Moisés, que nos envolve de uma forma avassaladora, tal como se estivéssemos realmente a acompanhar esses momentos que são tão caros a quem tem uma sensibilidade religiosa e emocionantes para qualquer ser humano que gosta de refletir sobre a condição humana.

    Finalmente, e como não poderia deixar de estar presente numa obra deste autor, marcamos encontro com a Filosofia, através de vários apontamentos, os quais mais uma vez nos lembram que a busca do saber, de respostas para e sobre a nossa existência, é uma característica indissociável do ser humano.

    São estes caminhos de Luz e Sombra que compõem uma vida e que se encontram vertidos em forma de livro, para serem apreciados até à última folha.

 

Maria de Fátima Dias

Setembro de 2012

(1)

    Não fora fácil adormecer na noite que antecedera a sua aposentação. Sentira que não iria despedir-se dos alunos, sem deixar transparecer alguma mágoa, por ter sido um pouco forçado a aposentar-se, mesmo sabendo que teria tempo suficiente para não ser penalizado no valor mensal da pensão. Tivera consciência de que, mesmo nestas condições, contrariava a sua vontade no que teria sido mais desejável – que a mesma tivesse surgido naturalmente, isto é, no limite máximo de tempo que poderia manter-se no ativo.

    Sentira com tristeza este acontecimento, mas o seu culminar teria sido muito mais amargo sem os desígnios da consciência do dever cumprido nem o sentimento de afeto das comunidades educativas de que fizera parte. Teria sido muito mais amargo, porque sempre acreditara que, quando chegasse este momento, surgisse com ele um sentimento mais profundo, julgara que seria mais reconhecido pela gratidão do Estado que sempre servira com a maior dedicação e carinho.

    Procura esquecer as razões da sua mágoa perante a ausência da atitude patronal no reconhecimento daquele momento. No entanto, refere com orgulho que aquele fora o epílogo mais solene da sua carreira, lembrando com alegria o que lhe fora permitido para a sua realização por parte das comunidades escolares; de um modo especial, da comunidade dos alunos, durante o tempo em que exercera o seu magistério.

    Este estado ansioso e de vigília também aconteceram pela interrogação sobre o modo como, a partir do dia seguinte, iria dar continuidade à sua vida, ansiando por manter uma atividade que não fosse muito diferente, no despertar de sentimentos, daquela que, entretanto, mudara na situação do estatuto. Por um lado, porque os alunos o ajudaram a viver com jovialidade e a ser exigente com os modos de ser e, por outro, porque naquela ocasião era o segundo ano que alguns dos alunos continuavam juntos no crescimento e desenvolvimento de níveis de aprendizagem diferentes. Em ambos os casos, partilharam sentimentos que o ensino e a aprendizagem inevitavelmente criam. Laços de afeto, que ficam na memória, que é preenchida no tempo, com a singeleza dos atos que a história da vida nos diz serem novos, mas que a metamorfose da realidade nos parece fazer crer que serão sempre os mesmos. As relações educativas modificam-se, mas parecem atemporais em certas realidades e em certos momentos da vida.

    A batalhar com as ideias que propusera a si mesmo, sobre o modo como lecionaria a última aula, adormecera já a madrugada ia bastante longa. Depois de três horas de sono, ainda agitadas pelos pensamentos anteriores, acordara com o relógio a despertar na hora marcada.

    Levantara-se como se nada de extraordinário tivesse acontecido e preparara-se sem dar quaisquer sinais que pudessem alertar a família para as angústias que cresciam dentro da sua alma. A viagem para a escola seria de cerca de quarenta quilómetros, o que lhe permitiria durante o tempo de percurso sintetizar as ideias que se propusera apresentar aos alunos para o teor da última aula.

    Entrara na escola, saudara todas as pessoas que vira antes de entrar para a sala de aula e que iria ver pela última vez nas condições de professor no ativo. Ficara em silêncio enquanto os alunos se sentavam e se dispunham como era habitual no início da aula. E, como não começara logo a ditar o sumário e a fazer a chamada, como era quase sempre o seu modo de proceder, esta atitude causara alguma surpresa e provocara algum silêncio, dando-lhe tempo para olhá-los com um sentimento de alma que nunca tivera antes. Sentira-se capaz de manter aquela situação até ao fim, acreditara por algum tempo que os tocaria o suficiente para ficarem marcados por uma espécie de paixão, que terminaria ali, para nascer nas suas almas, como forma de uma imagem de alguém, que passara na sua vida para os ajudar a aprender e a caminhar melhor. E, antes de dizer “até sempre”, ou “jamais nos esqueceremos dos momentos que passamos juntos”, como era sua vontade, um aluno entrecortara o silêncio, perguntando com delicadeza:

    – O professor está triste?

    – Não! – respondera baixinho.

    – Parece estar um pouco estranho – insistira o aluno com curiosidade.

    Depois, com alguma indiscrição, indagaram em conjunto:

    – Se calhar fomos nós que fizemos algo de errado, algo que não deveríamos ter feito!

    E como o silêncio continuara, exclamaram em voz alta e com mais objetividade:

    – Diga-nos o que se passa, professor! Não fique assim tão calado! Tire-nos desta angústia, por favor!

 

Macedo Teixeira, Caminho de Luz e Sombra, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 5 a 9.

 

Path of Light and Shadow (Text 1)

Preface

 

To speak about the book of the author we already know for several years is an ungrateful task, for it seems to sound like a false compliment. However, before the challenge to write the preface of this work, it remains for me to present my humble perspective about what I have read.

The book presents several interesting facets with an actuality and defense of the values that need to remain in our society, so that there may be hope in the future.

We begin to feel a sense of constriction of the heart with the teacher who is going to leave his students, who are so dear to him, not only by the affective closeness that is developed between a teacher and his students throughout a school year, or several ones, but also by the sharing of knowledges and thoughts that it will stop having continuity, although he feels that the seed had stayed in thought and in the heart of some, so that they may become conscious and active citizens.

We continue on the path, going back in time to the decade of the ’50s of the past century, visiting an epoch of simple and hard lives, which were simultaneously lives full of love, fraternity and solidarity. It is a period that most of us do not know, but that with this book comes to be also ours because the author manages to transport us with an enormous realism to that epoch with all the local coloring. For those who lived in that period and in those sites, I imagine that you will delight to remember those events and spaces which no longer exist (at least, not like at that time). For these readers, as for their closest relatives, it will also represent a pride to feel that everything they have done in the past was not in vain, since there is someone who did not forget those times and who is thanking them the best way he knows: by immortalizing those moments and those people through writing. For the studious ones, it comes up one more testimonial of a past time that should not be forgotten: the disaster in the river Douro with a motor-boat in 1950; the ghost of the Colonial War (from the fears of young ones who were departing to the social life in Mozambique in the ’60s, with some cinematographic smattering); and the tumultuous of the post-25th of April of 1974, on the academic level.

But the work does not limit itself to that goal: it emerges fit in the narrative an immortal story, whose protagonist is Moses, who involves in an overwhelming way, as if we were really following those moments which are so dear to who has a religious sensitivity and exciting to any human being who likes to reflect upon the human condition.

Finally, and since I could not stop being present in a work of this author, we make an appointment with Philosophy, through several notes, which remind us once more the search for knowledge, for answers to and about our existence, it is a characteristic indissociable from the human being.

It is these paths of Light and Shadow that constitute a life and that are turned into the form of a book, so that they are enjoyed to the last page.

 

Maria de Fátima Dias

September 2012

(1)

It had not been easy to sleep in the night that preceded his retirement. He had felt that he was not going to say goodbye to the students without letting some sorrow to become manifest, because he had been a bit forced to retire, even knowing that he would have enough time to not be penalized in the monthly value of the pension. He was aware that, even in these conditions, he was counteracting his will in what would have been more desirable – that it should have happened naturally, that is, in the maximum limit of time that he could keep himself in active service.

He had felt with sadness this event, but its culmination would have been much bitterer without the designs of the conscience of the duty done nor the feeling of affection of the educational communities he was part of. It would be much bitterer, because he had always believed that, when the moment came, it would emerge with it a deeper feeling, he had thought that it would be more acknowledged by the gratitude of the State he had always served with the greatest dedication and kindness.

He tries to forget the reasons for his grief before the absence of the employer’s attitude in the acknowledgment of that moment. However, he refers with pride that it was the most solemn epilogue of his career, remembering with joy that what had been permitted to him for his realization on the part of the school communities; in a special way, of the students’ community, during the time he had exerted his mastership.

This anxious state and of vigil also happened by the interrogation about the way how, from the following day, he would give continuity to his life, yearning for keeping an activity that was not very different, in the awakening of feelings, from that which, meanwhile, had changed in the status situation. On one hand, because the students helped him to live with joviality and to be demanding with the ways of being and, on the other, because on that occasion it was the second year in which some of the students continued together in the growth and development of different levels of learning. In both cases, they shared feelings that teaching and learning inevitably create. Bonds of affection, which stay in memory, which is filled in time, with the simplicity of the acts that the history of life tells to be new, but that the metamorphosis of reality seems to make us believe that they will always be the same. The educational relationships modify themselves, but they seem atemporal in certain realities and at certain moments of life.

Fighting with the ideas that he had proposed to himself, about the way he would teach his last lesson, he had felt asleep when the dawn was already very long. After three hours of sleep, still agitated by the previous thoughts, he had woken up with the clock going off at the set hour.

He got up as if nothing extraordinary had happened and he had prepared himself without giving any sign that might draw the family’s attention to the anguishes that grew inside his soul. The journey to school would be about forty kilometers [twenty-five miles], which would allow him during the time of the route to synthesize the ideas he had proposed to himself to present to his pupils for the tenor of the last lesson.

He had entered the school, had saluted all the people he had seen before he entered the classroom and that he would see for the last time in the conditions of a teacher in active service. He had remained in silence while the pupils were sitting down and arranging themselves as usual at the beginning of the class. And, since he had not begun to dictate the summary and to make the roll call, as it was always his way of proceeding, this attitude had caused some surprise and had provoked some silence, giving him time to look at them with a feeling of the soul that he never had before. He had felt capable of keeping that situation until the end, he had believed for a while that he would touch them enough for them to get marked by a kind of passion, which would end there, so that he would sprout in their souls, in a form of a picture of someone, who had passed by their lives to help them learn and walk better. And, before he said “so long”, or “we will never forget the moments which we’ve spent together”, as was his will, a student interrupted the silence, asking with delicacy:

– Teacher, are you sad?

– No! – he answered in a low voice.

– You seem to be a bit strange – the student insisted with curiosity.

Later, with some indiscretion, they inquired after together:

– Perhaps were we who did something wrong, something we shouldn’t have done!

And since the silence continued, they exclaimed out loud and with more objectivity:

– Tell us what’s going on, teacher! Don’t stay so quiet! Get us out of this anguish, please!

 

Macedo Teixeira, Path of Light and Shadow, Chiado Editora, Lisbon, 2013, pages 5 to 9.


 

 



 

 

 

 


 

 


 

 


 

 

 



 

 

 

 

 

 

 

 

 


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