Aparição e Liberdade

Vi em Vergílio Ferreira o Existencialismo ao ler e interpretar duas das suas principais obras, Aparição e Manhã Submersa, constatando que este autor reflete sobre questões que me impressionam, e estou em crer que comungamos de uma preocupação que nos foi comum e me parece não ser fácil de experimentar, ou seja, a questão dos limites reais da liberdade do homem e dos limites da aparição do ser da própria liberdade. Acredito que será no tanger destas linhas que se encontrarão as dimensões perfeitas da vivência humana e da sua estabilidade, mais do que nas possibilidades de o homem ser capaz de “escolher” voluntariamente a sua liberdade, ou seja, viver sem a necessidade objetiva das leis ou ter a sua liberdade em relação à sociedade.

    Acredito, porque sendo a linha dos limites reais da liberdade do homem uma linha que se vai planificando e engendrando no sentido da história universal e sendo a linha dos limites da Aparição do ser da liberdade a linha da essencialidade, ou seja, aquilo que é, e permanece independentemente de todas as transformações temporais dos limites reais da liberdade, quando estas são conjugadas de modo tangencial permitem os limites perfeitos da vivência humana. Creio, sinceramente, que será na compreensão desta ordem, na aprendizagem do que ela implica que residirá a grande alegria de viver, de pensar e experimentar a vida; julgo que é esta preocupação que está presente no pensamento literário de Vergílio Ferreira e no toque existencial com que exprimiu literariamente pelas personagens e suas vivências numa grande parte dos seus textos.

    Aliás, nas suas obras, especialmente na obra Aparição, o autor descreve situações onde se experimentam relações de possibilidade, mas sem acreditar-se que é preciso viver a qualquer preço, porque as situações acontecem e os momentos terão o sentido que lhes dermos. Vergílio Ferreira deixa-nos nos nossos atos, em expectativa de decisão consciente, mas supliciada pela falta da sua realização completa. Mostra-nos que a existência humana tem sentido, mesmo nas situações mais simples ou absurdas, mostra-nos que estas são quadros transitórios de uma realidade em definição. Na presença do eu ou no ressurgir do acontecimento, os limiares da existência ganham outra forma porque a impressão estética ou a plasticidade da memória lhes dá uma outra dimensão, que nos impressiona e convida ou nos estabiliza e nos “adormece”.

    São, de facto, as questões dos limites reais da liberdade do homem e dos limites da aparição do ser e da própria liberdade, que Vergílio Ferreira procura equacionar através de uma interpretação estética e literária, mas também crítica e profunda. No pensamento das personagens e na construção literária sente-se uma tensão entre a consciência do ser pelas qualidades que sente despertar em cada momento que vive e ao mesmo tempo a censura lapidar a tudo o que faz ressurgir o mistério, mas lhe é capaz de quebrar a sua dulcíssima esfinge.

    Pode constatar-se esta preocupação nas obras a que me referi, quando diz pela sua pena: “Se o meu pai não tivesse conhecido minha mãe; se os pais de ambos se não tivessem conhecido; se há cem anos, há mil anos, há milhares e milhares de anos, um certo homem não tivesse conhecido certa mulher; se enfim!”

    Como pensar que eu poderia não existir? Quando digo “eu” já estou vivo… Como entender que esta iluminação que sou eu, esta evidência axiomática!... que é a minha presença a mim próprio..... Como pensar que é nada? A minha vida é eterna porque é só a presença dela a si própria, é a sua evidente necessidade, é ser eu, Eu, esta brutal iluminação de mim e do mundo. E, todavia, eu sei que “isto” nasceu para o silêncio sem fim.

    Para terminar, desejo comparar o conceito e valor da liberdade, no modo de a viver, quer na aparição das coisas e do ser, quer na nossa relação existencial de convívio e de partilha. São ideias familiares ao autor, a mim e a vós, porque a preocupação que nos domina é sobre o problema da experiência dos limites da vida. Como viver e experimentá-los, como solucionar as situações incompreensíveis de injustiça e como acreditar sem reservas na transcendência que nos eterniza? Pela experiência direta dos fenómenos que dão origem à “iluminação”, pela experiência irracional dos indivíduos, tendo em conta as paixões cegas ou as forças ocultas que são muito mais fortes que as forças humanas? Aceitar a regularidade e deixar embalar o espírito até à fogueira do conforto?

    Lembro de novo os pensamentos do autor quando diz: “Se todos fizéssemos só o que nos apetece…” ou “ouça, doutor: se alguma coisa me preocupou foi ser consequente, unir o que faço ao que sinto. Porque não faz o mesmo?” E continua, nos limiares das suas personagens, pronunciando em exclamação: “Este ‘eu’ solitário que achamos nos instantes de solidão final, se ninguém o pode conhecer, como pode alguém julgá-lo?” “E de que serve esse ‘eu’ e a sua descoberta, se o condenamos à prisão? Sabê-lo é afirmá-lo. Reconhecê-lo é dar-lhe razão. Que ignore isso o que ignora que é.”

    Em todas estas expressões sente-se uma emoção existencial e uma procura de uma verdade perfeita através da face última das coisas, que eu julgo ser o essencial ou os limites da Aparição, antes de esta ser encarnada pela forma da palavra, ou por qualquer vivência irracional. Para mim, acredito na possibilidade de experimentarmos “esta face última da realidade” pela relação de sentido entre o sujeito que somos e a realidade que nos é dada em “objectum”, em presença e pelo esforço de elevação até aos limites reais da nossa liberdade e do ressurgir do seu Ser. A compreensão e vivência da nossa vida passam pelo ajustar da perfeição do ver da verdade e da verdade que se nos torna possível. Aliás, este entendimento parece estar presente no prólogo da obra “Aparição”, que diz: “E, todavia, sei-o hoje, só há um problema para a vida, que é o de saber, saber a minha condição, e de restaurar a partir daí a plenitude de tudo — da alegria, do heroísmo, da amargura de cada gesto. A minha presença de mim a mim próprio e a tudo o que me cerca, é de dentro de mim que a sei — não do olhar dos outros.”

    Concluo, por fim, dizendo que a conjugação tangencial das linhas dos limites reais da liberdade humana e da aparição do ser da liberdade hão de permitir a cada um de nós experimentar a “iluminação”, experimentar a vida na alegria de viver e pensar; hão de permitir reconhecer que mesmo o trabalho inútil e sem esperança, não poderá ser encarado como tragédia, nem a nossa vida pode ser reduzida à finitude biológica.

    Acredito, com todas as minhas forças, que é possível superar este estado de elevação existencial até outros níveis, até à perceção íntima e profunda da unidade e até à Aparição divina.

Macedo Teixeira