Caminho de Luz e Sombra (Texto 21)

     Depois de ter passado à disponibilidade, a vontade de estudar para adquirir conhecimentos e o sonho que sempre acalentara de tirar um curso superior fizeram mais força na ação de trabalhar e estudar, ser marido dedicado e um pai atento aos filhos que iam nascendo. O casal unira a vontade, dedicara-se mutuamente no esforço e as metas para os sonhos foram sendo alcançadas.

    É evidente que a vida em Portugal continental nos primeiros anos pós 25 de Abril de 1974 não foram fáceis, a sociedade ensaiava a vivência em Liberdade e as exigências dos rumos neste sentido eram mais fortes que as capacidades de resposta pelos poderes instituídos. Lutava-se pela igualdade no trabalho, na educação, na família, na saúde, no género, etc.

    Aliás, é com grande satisfação que ainda evoca o acontecimento da maior manifestação de estudantes dos cursos noturnos das escolas privadas e cooperativas do país, no Norte, com concentração na cidade do Porto de todos estudantes dos estabelecimentos de ensino privado e cooperativo desde Coimbra até ao Minho, e no Sul, com concentração na cidade de Lisboa de todos os estudantes também do ensino privado e cooperativo desde Leiria até ao Algarve. Coube-lhe a sorte de ter ficado no Norte com a responsabilidade de dirigir a manifestação e de tudo fazer para que esta fosse de forma ordeira e cívica, pois o seu objetivo era a obtenção de direitos iguais às escolas públicas em relação ao estudo e à avaliação científica, no caso dos estabelecimentos de ensino, como os colégios ou externatos, desde que tivessem as condições necessárias. A caminhada em manifestação tivera início na Câmara do Porto e dirigira-se até ao quartel-general na Praça da República. Sentira uma grande alegria e uma pontinha de orgulho por a manifestação ter corrido tão bem por parte do grupo que dirigira, pelo grande sentido de responsabilidade dos colegas que auxiliaram na coordenação da manifestação e por todos os que nela participaram tão entusiasticamente.

    Porém, é com alguma mágoa que recorda dois factos que nublaram esta manifestação que se propunha consistir numa reivindicação por direitos legítimos e possíveis, como se provou pela aprovação em decreto-lei desta norma educativa que autorizara a igualdade pedagógica e científica em todos os estabelecimentos de ensino privado que reunissem as condições necessárias. O primeiro facto, bastante lamentável, diz respeito à ação levada a cabo pelos estudantes em Lisboa que não correu bem e resultou, depois de alguns tumultos e sequestro de responsáveis do Ministério da Educação, na detenção de alguns estudantes; o segundo caso, também lamentável, diz respeito à manifestação no Porto e à entrega da missiva de que era portador, juntamente com dois colegas, ao comandante do quartel-general, que se não fora a sua habilidade, não saberemos se teria corrido tão bem.

     Tudo aconteceu quando a multidão se aproximou da Praça da República, depois de deixarem entrar a comissão de estudantes, que chefiava, fecharam imediatamente os portões do quartel. Esta ação parecera ser normal, pois o comando militar tinha sido avisado da grande multidão que se avizinhava. No entanto, quando os três representantes do grupo fizeram questão de falar com o comandante, se é um facto que foram autorizados a subir para o salão nobre com a força militar que os recebeu, quando se encontravam dentro do corredor e em direção a este salão, houve um procedimento de segurança que não parecera correto a quem (como ele) acabara de terminar o serviço militar com incidência na guerra colonial, tendo-lhe provocado algum receio por não lhe parecer estar a decorrer pelo melhor, enquanto esperavam no salão nobre para serem recebidos pelo comandante; por um lado, porque continuavam acompanhados de militares em forma de cerco; por outro lado, porque os mesmos militares tinham destravado as armas e metido bala na câmara como em situação de defesa muito extrema.

    O tempo de espera para serem recebidos, apesar de não ter sido demasiado, fizera aumentar o receio e a dúvida sobre as consequências do ato em questão. Perante o desespero da impaciência e medo, lembrara-se de inventar um compromisso que assumira antes, dizendo aos militares que prometera aos colegas que cá fora entoavam slogans e cânticos reivindicativos, que se ao fim de meia hora não saíssem do quartel ou não viesse alguém falar­‑lhes de dentro sobre o modo como estava a decorrer a receção, que estes deveriam pedir socorro e forçar a entrada até os libertar.

    Não se sabe se a invenção para esta advertência tivera algum efeito, o que é certo é que para além de terem permitido que este falasse da varanda à multidão, pouco tempo depois desta comunicação, o tenente-coronel Tomás Ferreira, em representação do brigadeiro Eurico de Deus Corvacho, recebera a missiva que continha os pontos reivindicativos e felicitara-os pela forma ordeira como se tinham comportado, dizendo com satisfação que o que pediam era um ato de justiça com o qual concordava, prometendo tudo fazer para serem bem-sucedidos, como de facto acontecera pela autorização ministerial concedida.

    Alguns meses depois, entrara na Universidade do Porto para frequentar à noite o curso de Filosofia, já que não era possível ser médico, pois teria de frequentar o curso durante o dia, e o facto de ter de trabalhar para ajudar no sustento da família não o permitiria. No entanto, não se cansa de dizer que mesmo que tivesse sido médico não hesitaria em cursar Filosofia, pois a reflexão estará sempre no princípio dos atos e será necessária em todos os saberes.

    Depois de um dia de trabalho, não era fácil ter disposição para começar as aulas às seis horas da tarde e terminar próximo da meia-noite todos os dias. Misturava quase sempre o sacrifício do esforço com uma alimentação ligeira que levava consigo para comer no intervalo das quatro horas de aulas diárias. Às vezes o cansaço era tanto que lhe dava sono a tal ponto que era preciso segurar as pálpebras para não fechar os olhos e poder continuar a anotar o que os professores ensinavam. Anotava imenso, porque acreditava que os apontamentos eram o recurso principal, já que não teria muito tempo para procurar nas obras o fundamento dos professores.

    Mas, a contrastar com a enorme vontade de tirar o curso, surgiram logo nos primeiros meses de frequência os primeiros obstáculos a impedirem o curso normal das aulas. Desde logo, sobre a continuidade da lecionação de algumas cadeiras, que, por não terem sido homologados os contratos de alguns professores, estaria na iminência de ser suspensa a lecionação das mesmas.  

      Aliás, só não fora suspensa, porque os professores manifestaram vontade em continuar naquela situação, isto é, lecionar sem saber se seriam ou não homologados os seus contratos e porque, entretanto, também desenvolvera uma ação de solidariedade, com a qual correra alguns perigos, por ter tido a coragem de ter sido a personagem principal no reforço do voluntarismo dos professores em dar aulas, pela oposição às vontades inerentes a alguns estudantes que não estavam de acordo com a predisposição dos mesmos em quererem continuar a lecionar sem vínculo contratual.

    Com esta ação, procurara contrariar o pensamento negativo dos opositores que ganhara imensa força com o aumento do número de aderentes. Já não era a primeira vez que se ouvia dizer que a experiência iniciada no pós-25 de Abril de 1974 da abertura da Faculdade de Letras à noite para a frequência de alguns cursos, nomeadamente História e Filosofia, não tinha colhido boa aceitação por parte do Ministério da Educação com o argumento da escassez do suporte financeiro e da falta de instalações mais adequadas.

     Ao que parece, tal como hoje, continuará a ser um grande problema reconhecer as situações favoráveis ao desenvolvimento, desde que impliquem mais gastos por parte do Estado, mesmo que não haja dúvidas que sejam boas, a não ser que se movimentem os interessados e estes tenham algum crédito político e económico.

    De qualquer modo, naquela altura, o que seria necessário era que houvesse alguma motivação social, pois fazia-se com veemência a apologia da liberdade e igualdade de oportunidades, o que em relação à motivação universitária poderia dizer-se que era de um nível muito elevado, dada a grande carência que havia de cursos superiores. Entre o conflito da agitação quase anárquica das manifestações académicas na rua e os plenários na Universidade, lá ia surgindo alguma luz sobre o modo de proceder para estudantes, que, como ele, tiveram de lutar mais por um curso como uma enxada para ganhar o pão do que para qualquer outro interesse que sempre soubera que lhe escaparia por ser um estudante noturno e não poder acompanhar a Universidade a tempo inteiro.

     Assim, ao refletir no empenho dos docentes, em lecionarem mesmo sem saberem o seu futuro profissional, resolvera, durante uma manhã numa reunião prévia da turma com os professores em questão, anunciar aos seus companheiros que na reunião geral de alunos, que, entretanto, fora marcada para a noite, iria propor por escrito que fosse aceite e reconhecida a disponibilidade dos professores em lecionarem, mesmo sem terem ainda o seu contrato homologado.

     Perante este facto, alguns estudantes insurgiram-se com alguma agressividade, insinuando em tom provocatório que este seria um ato irresponsável, pois ninguém deveria apoiar a vontade dos professores sem a consequente homologação do seu contrato, chegando mesmo a adverti-lo em voz alta, para as medidas de força que tomariam, caso este continuasse a insistir na sua proposta.

     Sem mostrar receio, nem responder às provocações, começara a escrever as ideias que se propusera apresentar na reunião geral de alunos, marcada para a noite. Entretanto, como não cedera à advertência do grupo de opositores, manifestando-o através do rascunho que começara a elaborar para discursar nos primeiros momentos da reunião, aproximaram-se dele dois ou três elementos que, exibindo alguma corpulência, começaram a invetivar com ditos e ameaças do género: “se logo lês algum texto, arrepender-te-ás para toda a vida! – Este assunto tem que ser tratado como nós queremos! – Se queres “guerra”, então terás a guerra e não sairás daqui direito!”

     Ao cabo de algum tempo de pressão constante, começara a sentir algum receio, pois esta não era uma guerra real como aquela que temera na Colónia de Moçambique, onde ocorreram vários acontecimentos trágicos com vítimas mortais de que fora tendo conhecimento ao longo do serviço militar nesta colónia. Esta era uma “guerra” sem quartel e aparentemente sem armas, mas por razões e pessoas às vezes muito obscuras e perigosas; os anos de 1975 e 1976 não foram bons no que respeita às confusões vindas de movimentos civis e militares que teriam em vista instituir um certo poder.

    Contudo, se o receio fez esmorecer um pouco, não fora suficiente para abalar a atitude na convicção de que estava certo, tornando-se ainda mais forte, depois de sentir que não estaria só naquela decisão. Por entre os opositores mais zangados, uma outra voz se fizera ouvir nas suas costas vinda de um outro grupo:

    – Olá, companheiro! Nós não sabemos ainda bem quem tu és, mas queremos que saibas que apoiamos o que propões. Temos a certeza de que a tua opinião será a mais correta e, se eles te quiserem bater, também terão de bater em nós. Vai em frente com o teu discurso e não tenhas medo de ninguém, que nós estaremos contigo!

Macedo Teixeira, “Caminho de Luz e Sombra”, Chiado Editora, Lisboa, 2013, pp. 97 a 103