Sementes da Verdade

27-07-2012 16:14

SEMENTES DA VERDADE

O homem é um ser voluntarioso (2)

    Assim se começa a consciencializar a Verdade no real e no transcendente e se começa a afirmar em nós, e numa intimação tão profunda, um juiz supremo, implacável a toda a mudança que não reconheça a unificação contínua e convergente do Criador, do Homem e do Cosmos.

   Esse Juiz é Amor — por ele se julga e se é julgado, actua como Tribunal da Razão —, capaz de julgar o que nos transcende e explicar o que não somos capazes. Entroniza-se em nós e ascende à plenitude pelo nosso crescimento e desenvolvimento na aplicação dos princípios que o dogmatizam, tornando-se rigoroso, quando omitido ou posto em dúvida.

   Assim, sempre que o nosso acto é superior, rejubilamos pela gratitude, os nossos olhos brilham de alegria e o nosso sorriso enche qualquer pessoa, familiar ou desconhecido. Quando o acto é indigno, tornamo-nos melancólicos, instáveis, atormentados, paira o remorso e o Amor esconde-se em refúgio até poder voltar de novo, em sofrimento até curar a ferida que o acto em nós produziu.

   Pune severamente ao abandonar-nos, no mesmo instante que o traímos, e do lugar em que se refugia vai diminuindo a nossa dor, pela indicação de sinais orientadores na nossa caminhada, caminhando dentro de nós e sem poder caminhar connosco, crescendo em perdão no aumento do arrependimento e voltando totalmente quando a salvação e o peregrinar forem coincidentes.

   “Que segredo tão árduo e tão profundo: nascer para viver e para a Vida; faltar-me quanto o mundo tem para ela e não poder perdê-la, estando tantas vezes já perdida!” Camões — Canto X.

   É nas diferentes actividades e experiências que a vida humana se revela, nelas se caracteriza e se torna versátil.

   Versátil nas actividades motoras, sensitivas e orgânicas. Coordenadas pela lógica regional, mais específica e dominante na projecção de um estado da biologia corporal acabado e perfeito. Nas actividades intelectuais, racionais e mentais, coordenadas pela lógica sensitiva e abstracto-formal, mais gerais e dominantes na projecção de estados de conhecimento e de explicação incompletos e diversificados, pela natureza e validade destes. Versátil nas regras de variância em relação à pessoa, como indivíduo, num processo a tornar-se estado de ser finito, temporal e objectivo, no que se refere ao compromisso que define e empenha as actividades pessoais em cada uma destas sucessões da vida; e como sujeito, num estado de ser infinito, atemporal e objectivante, no que se refere ao universalismo que compromete o homem e o intima a ultrapassar o jogo pessoal e a alargar-se na generalização dos ideais e na partilha colectiva que devem ser sem restrições de qualquer espécie.

   Esta capacidade situacional permite-nos dar conta da diferença entre nós e os outros, entre nós e os seres irracionais, entre o que conhecemos e explicamos e entre o que sentimos e nos é possível reproduzir: ouvimos a voz da natureza e pelas diferentes formas a vamos entendendo e explicando, descobrimos que somos seres humanos unos e desiguais e que somos mais complexos que os seres inferiores a nós.

   Damos conta do nosso estado de sentimento e nele reconhecemos que somos afectados pela variabilidade cambiante do quotidiano e que o câmbio se efectua pela progressiva adaptação às sucessivas mudanças, determinadas pela concordância ou desacordo, alegria ou tristeza, amor ou ódio, paz ou guerra, acções que caracterizam valores da Verdade e do erro.

   Damos conta destas manifestações indirectas do inconsciente individual e colectivo, que predominantemente se constituem em ordenadores comuns a toda a comunidade e se impõem muitas vezes sem fundamento de direito e de facto. Manifestações marginais, socialmente e psicologicamente integradas que servem os desígnios de grupos, de seitas e de ordens estabelecidas sem razão justa e que confundem os princípios gerais do direito à diferença natural, à liberdade de escolha e à Vida em toda a sua plenitude. Manifestações que negam a Ordem natural e mortificam o Amor e a Pedagogia que o serve na descoberta dos princípios que regulam as experiências necessárias na materialização da essencialidade.

   E por fim, somos forçados a concluir que “nascemos para viver e para a Vida”, mas os princípios que activamos com vontade mais determinada, compromisso mais nobre e desejo mais humano, contrariam o princípio geral — “nascer para viver e para a Vida” —, pois não podemos deixar de reconhecer que enquanto existirem no mundo laços de dominação de qualquer espécie e a Pedagogia não for de esclarecimento e orientação, o Amor comum é irreal e a versatilidade da vida humana é de negação e de fuga, quando deveria ser de deslumbramento e reactualização progressiva. E a conclusão é ainda mais deprimente, ao reconhecer-se que as virtualidades do desejo, da vontade e do compromisso se transformam em virtualidades negativas da Verdade, pois o câmbio que naturalmente se obtém, quando nos elevamos pelas sensações dos desejos legítimos, da vontade e do compromisso, não implicam, como nos desejos ilícitos, penhor por erro; muito pelo contrário, quanto mais legítimos forem os desígnios que motivarem as acções humanas mais o pico da elevação se torna apetecível, e só quem não descobriu a diferença entre as escadas da licitude e da ilicitude se deixa aliciar pela utilização dos degraus que servem a escada da facilidade, da aparência, do egoísmo, da dominação, porventura mais leve do que a do Universalismo, da realidade, do servir sem escolha por interesse, e que em algumas facetas da nossa vida se torna tão custoso encontrar um só degrau, que sirva nos princípios de elevação da escada da Vida autêntica, que nos serene e afague por instantes, para que não tenhamos que invocar a certeza de que vale mais esperar com o pouco que interceptamos, que avançarmos pelo encanto do muito que nunca teremos.

   É nos exercícios voluntários que o homem opta na selecção de desejos, mesmo que inconscientemente seja intimado ao mais desagradável e penoso para a alma e nessa actividade vislumbre probabilidades diversas à realização. Significa que nenhum acto humano, ainda que a censura seja mais difícil e que decorra de acções conscientes e voluntárias, pode justificar-se na indignação. E significa, também, que a dignidade se pode desenvolver em todas as componentes, pela acção voluntária dos modos de educação e instrução.

   Neste sentido, não se justifica que uma grande parte da humanidade, que julgamos psicológica e socialmente normal, continue a satisfação do prazer egoístico da posse fácil, sem pensar nos prejuízos que ocasionam na Vida em geral. Por outro lado, não se compreende que apele constantemente para a liberdade, quando ela mesma não se liberta.

   Ninguém se pode esconder por detrás da ignorância e calcular os objectivos do prazer e da luxúria, nem invocar as probabilidades mais relevantes para a satisfação do que é indigno pelos desejos possíveis: nem tudo nos é lícito desejar e muito pouco nos é lícito possuir.

   E quando o homem se inclina mais para a cedência à solicitação do que é desagradável e penoso e opta pelo prazer egoístico da posse fácil, é totalmente consciente na coordenação da sua vontade? E poder-se-á falar de voluntarismo e normalidade, o que resulta de actos cujas causas não são totalmente conscientes?

   Acreditamos que são difíceis as opções, por tudo quanto prepare e permita a alegria da participação voluntária, pelos custos e sacrifícios que a dignidade humana exige, mas o voluntarismo das acções não pode ser dominado pelos desejos automáticos, nem as opções podem comprometer a vida com hipotecas que não se possam resgatar.

   Nas diferentes actividades o homem é motivado pelo imediatismo dos sentidos — confusão primeira nas sínteses da razão humana. Voluntarismos primários bloqueados pelos lampejos da emoção, que não deixando de ser criadora é ardilosa no encaminhamento ao cárcere da pessoa e à perda progressiva da sua liberdade.

   É motivado ao devaneio e à dependência das solicitações externas, sociais, económicas, políticas, religiosas, científicas, etc. Enfim, o desafio estridente entre o apelo dos sentidos na realização do prazer no real prático, exagerado por vezes, em nome do sucesso pessoal; e o ideal nobre que serve as causas e funções humanas e orienta o pulsar da vida no quotidiano de cada um.

   Neste estado mediador, entre o apelo dos sentidos ao dependente e à cumplicidade corporal e a consciência da recta razão no capaz e no possível, a vontade se superioriza na dissipação do estado primário vulnerável e gerador de instantâneos desequilíbrios. Pela vontade, dominada superiormente, o homem verga os impulsos e tendências, ajuíza os actos numa coordenação consciente e na extensão intensa. E nesta elevação dos mecanismos da vontade, atinge o amor na vocação esclarecedora dos actos mais ou menos conscientes, que o homem não controla absolutamente sem abertura a reflexões sempre mais cuidadas e mais profundas, e quantas vezes os actos mais desnorteados são compensados por comportamentos que nada dignificam o homem que é a causa e consequência dos factos.

   Apesar destas contradições, e dos resultados algumas vezes disparatados e angustiantes, todo o ser humano se esforça por diminuí-los nas suas consequências e erradicar as suas causas. E ao mesmo tempo procura encontrar actividades que resultem no equilíbrio, satisfação e elevação do seu ser, uma vez que as experiências boas ou indesejadas lhes ensinaram a evitar os caminhos da dor e do arrependimento e a procurar ser cada vez mais causa da felicidade e do bem-estar no mundo terreno.

   Mesmo que tais mudanças não sejam fáceis nas engrenagens sociais e estas o envolvam no corpo e na voz, pela vontade determinada e esclarecida, o homem supera a dor física e a alegria do espírito o vai impulsionando na contradição e esclarecendo-o pela palavra silenciada, o que a voz há muito abafou.

   Pela cultura e pelas diferentes experiências, o ser humano apercebe-se que é penalizado pela vontade inferior, no primarismo dos desejos, pela aparência e irrealidade que consequentemente propiciam, às vezes, estados dolorosos que substituem a alegria pelo remorso e reprovação. E, em comparação com estados de graça, o homem descobre na dimensão superior da vontade, a plenitude existencial, a glorificação da consciência, a estabilidade emocional, a tranquilidade e a superioridade na sua animalidade.

   Pela cultura e pela coordenação consciente de todos os valores empreendidos em cada acto, o homem pode libertar-se da tendência imediata do apelo à satisfação dos impulsos, que caracterizam a insensatez, a irrealidade do que é justo e humano, e fundamentalmente, o que caracteriza a ignorância no que há de mais sombrio e indigno no homem. O ser humano permanecerá sempre no estado de culpa, enquanto não transcender todos os desejos irracionais e ensombradores da inteligência. Já se o homem se libertar de todos os desejos de dominação voluntária, aprendendo a reagir com a consciência bem iluminada sobre o que deve e o que não deve fazer, pode escolher entre a culpa e a graça, entre a dor e a alegria, entre a vida estável e a vida efémera e esquecível.

 

Autor: Macedo Teixeira; Obra: Sementes da Verdade; Fotocomposição e Impressão: ROCHA/Artes Gráficas, L.da; Julho de 1992; págs. 12 a 16.