Relação entre a Literatura e a Filosofia

19-04-2013 15:55

Relação entre a Literatura e a Filosofia

Macedo Teixeira

    Nos nossos dias, as fronteiras entre a Filosofia e a Literatura são flexíveis e interdisciplinares; já não são como no passado, expressões de um saber com textos radicalmente distintos.

   À literatura está associada a ideia de ficção, diz-se que um texto literário é um produto da imaginação, é uma “fantasia” imaginada pelo escritor, é uma forma de escrita em que o valor predominante é a forma artística do texto (o caso mais exemplar é o texto poético). Em contrapartida, o texto filosófico, em vez de criar “ficções”, será uma meditação sobre a realidade que procurará descrever de forma o mais possível objetiva.

   Assim sendo, o texto filosófico debruçar-se-á sobre os problemas reais, enquanto o texto literário se moverá essencialmente no plano da imaginação.

   Tendo em consideração o que nos diz José António Campos, na análise que faz sobre o diálogo platónico nas suas características literárias ou filosóficas, é de crer que Platão tinha da filosofia e da literatura uma visão completamente distinta; isto porque dizia tratar-se de dois tipos de textos que exerciam poderes completamente diferentes; sendo um de influências positivas e outro de influências negativas. De facto, na República, mas também em outros diálogos, Platão entende que os textos literários, sobretudo os textos poéticos e os textos dramáticos, exercem um efeito predominantemente negativo para quem os lê ou ouve recitar, por exemplo nas atividades teatrais. Efeitos negativos porque excitam a imaginação, distraem da observação da realidade, não têm por objetivo levar o leitor ou espectador à verdadeira noção do que seja o Bem, que era a Ideia suprema para Platão. Sobre os textos filosóficos dizia que estes transmitiam conhecimento e ajudavam na aquisição da virtude, tendo por isso um valor educativo por excelência. Mesmo assim, e tendo em consideração o autor citado, deve dizer-se, todavia, que tal posição de Platão quanto ao valor da literatura merece alguma crítica, não podendo ser aceite sem reservas. Em primeiro lugar, porque muitos dos grandes filósofos foram simultaneamente grandes escritores, preocupados em escrever textos que ao mesmo tempo transmitissem conhecimentos e fossem agradáveis de ler. O próprio Platão é o exemplo mais completo do que dizemos, uma vez que os seus diálogos são criações literárias de altíssima qualidade. Neles encontramos retratadas personagens dos mais variados tipos humanos: uns violentos e coléricos (como o Cálicles do Górgias), outros tímidos como Fédon de Élis, outros exuberantes como Hípias, outros, ainda, desregrados como Alcibíades, todos eles figuras de uma realidade e vivacidade inesquecíveis, para já não falar de Sócrates, cuja imagem seria completamente diferente se Platão não tivesse feito dele a personificação do homem inteligente e corajoso, capaz de pôr a vida em jogo para comprovar a justeza e a coerência do seu pensamento. As cenas representadas nestes diálogos exprimem o pensamento filosófico mas também a plasticidade literária do grande escritor que foi Platão.

    Atualmente os pensadores e críticos contemporâneos sublinham que, quer o texto filosófico, quer o texto literário, são acima de tudo um texto, isto é, um discurso sobre a “realidade”, uma interpretação dessa mesma realidade. Tal discurso interpretativo pode assumir contornos mais abstratos (como o caso do texto filosófico) ou centrar-se sobre a análise de casos mais concretos (como o caso do texto literário), mas em ambos os casos o resultado é um texto, e os problemas que um texto coloca ao leitor – a sua estrutura discursiva, as suas possibilidades de interpretação – são de natureza idêntica tanto no caso do texto filosófico como no caso do texto literário.

   Quer isto significar que, modernamente, as fronteiras tradicionais entre filosofia e literatura se vão esbatendo. Aquilo para que os pensadores contemporâneos chamam a atenção é precisamente para a Identidade do Meio, de que se servem quer o escritor quer o filósofo: esse meio é a linguagem.

   É através da linguagem que um e outro constroem a sua imagem do mundo, a sua interpretação da realidade, e por isso mesmo, o leitor perante um texto acaba por ter uma atitude semelhante e defrontar-se com problemas semelhantes tanto no caso da literatura como no caso da filosofia. Às vezes esses problemas possuem um acrescento estético na linguagem objetiva da verdade; dão prazer por meio da beleza literária; desviam em certa medida a atenção ao essencial que é o conteúdo da mensagem transmitida, mas um texto não deve suscitar apenas o poder da atração para as questões, deve também permitir a libertação das tensões através do exercício lúdico e de prazer, em suma, a libertação do próprio leitor. A Filosofia, tal como a Arte ou a Literatura, nunca perdem a atualidade porque os problemas de que tratam são inerentes à condição humana, e por isso nunca desaparecem de todo dos horizontes do pensamento.

   Vê-se deste modo que a Linguagem ganha força de sentido e faz estalar os sentimentos, mas dá uma certa graça ao texto por que a interpretação que o autor literário ou filosófico faz do mundo e de qualquer questão é concebida pela disposição das “pedras” que representam as palavras na edificação das estórias ou sistematização dos saberes.

   Eis a razão por que a partir do século XVIII a reflexão sobre a linguagem nas dimensões psíquica, literária e filosófica passou a ter uma importância decisiva para a compreensão do texto no seu sentido e no seu conteúdo. A identificação do meio permite a compreensão da organização do texto na sua beleza artística, na sua força de pensamento e na sua atualidade de assunto; a identidade do meio é a rede ou a tela onde se tecem as imagens pela ligação das palavras ao seu próprio corpo ou ao corpo que os autores fazem questão de produzir.

   Para clarificar ainda melhor o que se diz (da Introdução feita por Isabel Gomes e Artur Morão na Coleção Filosofia – Porto Editora à obra Teoria da Interpretação de Paul Ricoeur), citamos o seguinte:

   “– Os quatro ensaios que constituem este volume têm como objetivos compreender a linguagem ao nível das produções como poemas, narrativas e ensaios, quer sejam literários quer sejam filosóficos. Por outras palavras o programa central que está em jogo nos quatro ensaios é o das obras, o da linguagem como obra e como lidar com a linguagem, enquanto obra.

   “ ‘Não há compreensão de si que não seja mediada por signos, símbolos e textos; a compreensão de si coincide, em última análise, com a interpretação aplicada a estes termos mediadores’. A mediação dos signos chama-nos a atenção para a língua como lugar onde a experiência do homem se diz: ‘As experiências humanas traduzem-se na linguagem’. No lugar da ‘consciência de si (cartesiano)’ é colocado um si mais rico e profundo que só se reconhece nos seus atos e nas suas obras.”

   A tarefa reflexiva da filosofia implicará a tarefa de arbitragem de interpretações rivais: arbitrar o conflito de interpretações (desde a psicanálise – orientada para a arché – à ciência da religião projetada para um telos [para um fim]).

   O sujeito que deixou de ser consciência imediata, ser pensante, cogito, só poderá aproximar-se de si através da interpretação das suas obras (atos, objetos e textos). A filosofia é reflexão, mas já não é filosofia do cogito ou da consciência. A questão da filosofia é ontológica, é a questão do ser. De um ser que se revela em múltiplas formas – no conceito, mas também no símbolo e na metáfora –, exigindo múltiplas interpretações, seguidas de um esforço de reflexão.