Crescendo Constroem-se os Sonhos

03-02-2012 16:23

Crescendo Constroem-se os Sonhos (VI)

    De facto, ao reconhecer que na ordem natural tudo se verifica por uma recapitulação regenerativa a partir das sucessivas gerações e movimentos, que tudo se transforma a partir de uma qualquer condição, propriedade ou força e que nos seus recursos a natureza escolhe sempre o melhor, que melhor pode regenerar-se no ser humano sem um bom conteúdo nervoso? Ou que melhor pode surgir em cada situação do homem se não tiver sido alimentado de acontecimentos e factos vivenciais ricos e qualitativamente saudáveis? Tenho-me interrogado acerca de mim próprio e dos percursos que fiz para alcançar os objectivos que idealizei. Tenho pensado que sendo diferente como todos os outros, fui sujeito a experiências tão elevadas em sacrifício que têm alguma raridade e só podem explicar-se no seu sucesso a partir de factores que foram a força da minha infância e da minha juventude.

    Antes de mais, devo destacar aqueles que se formam no reforço psicológico pelo desejo de imitar os outros. Esteve sempre presente no meu horizonte um desejo de ser alguém, uma espécie de ícone que me apelava à sua direcção e me fazia sentir na consciência uma emoção extasiada para a perseguir até ao fim. Meditava na minha idade e preparava-me em cada atitude para me elevar até ao pico deste sentimento. Falava dele a todos e dizia que era por ali que devíamos ir, devíamos procurar ser perfeitos; estudar para aprender, trabalhar para ganhar dinheiro e conviver para encontrar os laços da nossa vida. Fiz parte de um grande grupo de jovens, que estudando em condições difíceis (trabalhando e estudando) fazíamos de cada situação um tempo de alegria e de desejo de vencer. Havia uma espécie de pacto de amizade e de compromisso de irmos todos, como se estivéssemos a caminhar para o mesmo sonho. Para onde fosse um, os outros sabiam e tomavam parte na mesma aventura ou ficavam à espera de uma outra qualquer. Pertenci a grupos diversificados que se formaram em espaços diferentes; tive essa possibilidade, não que desejasse ou fizesse alguma coisa por isso, mas essa diversidade social tornava-se cada vez mais perceptiva na minha consciência, mesmo na efemeridade dos grupos. Se eu surgia de novo, em cada grupo que formávamos nascia rapidamente a ideia que acabei de referir, eu era de novo sujeito de um compromisso comum.

    É um facto que vivêramos de modos diferentes, que ficaram para trás alguns e, nos objectivos de uma carreira intelectual, contam-se pelos dedos de uma mão os que como eu chegaram a um curso superior. Mas ficou um sentimento inesquecível e uma tutela de consciência social que é indesmentível e que jamais posso negar ou esquecer. Quando olho os meus companheiros de percurso, sinto que me estimam e reconhecem-me porventura com uma lagrimazita de tristeza por não terem chegado mais longe. Olham-me com elevação e fazem questão de acentuar que fui lutador; sinto que serei um exemplo que gostarão de lembrar. A vida era muito dura e as condições de estudante-nocturno não eram muito boas. Os transportes não eram muitos e não iam a todos os lugares que agora vão. Vínhamos muitas vezes a pé até casa, ao frio e à chuva e com fome, por não termos jantado. Quando chegávamos a casa, o cansaço era muito e poucas horas tínhamos para dormir e acordar fortes para ir para o trabalho no dia seguinte. Os meus companheiros iam desistindo; cada ano que eu estudava, o grupo tornava-se menor e era uma imagem de solidariedade que me fortificava e me dava alento para continuar. Quando encontrava alguns desses companheiros que tinham desistido, depois de alguns desabafos, apertavam-me a mão e eu parecia ver-lhes nos olhos um pedido, que não desistisse, que era preciso que alguém um dia pudesse testemunhar o que fora uma necessidade de estudar para se ser alguém. Uma necessidade que não era como é agora; hoje, a necessidade de se ser alguém não vem de dentro, vem do exterior da sobrevivência do estatuto. Nós sobrevivíamos pelas nossas possibilidades e, especialmente, pela nossa vontade. Nós queríamos a nossa independência, nós lutávamos para nos integrarmos numa comunidade que sancionava tudo o que se passava no dia-a-dia. Alcançar a autonomia era muito difícil mas, em silêncio, cada um construía as suas defesas até se apresentar ao mundo, já como alguém e com uma certa referência. Fiz parte de uma sociedade polar: os ricos e os pobres; os da situação e os contrários; os moralistas e os pobres de espírito, uma sociedade dominadora e de coração duro. Mas cada um de nós sabia como proceder e desde que aprendesse os caminhos, qualquer que fosse o lado em que se colocasse, a sua vida dependia da sua capacidade e da sua competência. Tinha que se ser bom e educado para se ser alguém na vida. Mas nós queríamos isso, lutávamos com todas as nossas forças e com os conhecimentos que a vida nos dava para o conseguir.

    Creio que esta caminhada que tenho feito na maior idade, com o equilíbrio possível nas situações de crise, é consequência dos bons conteúdos psíquicos e da riqueza das situações vividas. Mas também é consequência da convicção de que vale mais a alegria da alma e do corpo do que a satisfação de um dos elementos por apagamento do outro. Continuo a acreditar na vida como um valor sem preço, defendo-a e exalto-a pela satisfação de querer continuar a ser alguém e julgar que lá longe estarão outras pedras que farão mais bela a minha casa e o meu ser. Aliás, este é um sentimento que nos torna fortes e empenhados e, por isso, o ser alguém pressupõe uma identidade e essa só se encontra se a procurarmos. Por esta razão, viver a caminho do horizonte real torna-se uma condição indispensável a cada homem, porque vamos vendo na nossa formação uma imagem de consciência que se vai levantando e seguindo ao encontro de um estado de sentimento perfeito e da sensação de o estar a compreender correctamente em cada acção da nossa vida.

    Elevo os espíritos que me têm ensinado a pensar e a ser homem na verdadeira acepção do termo. Não os cito como referência directa, mas nós, quando nos tornamos membros da comunidade das ideias, uma grande parte dos nossos pensamentos não são originais, já outros os pronunciaram. Por isso, o que escrevo, não é só meu, nem tem só uma matriz. Também este gesto nasce pela vontade de se ser alguém, e a imitação dos outros se não é perceptível é porque a singularidade de cada um também se faz de modo difuso. A vitalidade psíquica e mental depende de uma certa alimentação, depende de ingredientes que estimulam a vontade e aumentam o desejo de cada um. As imagens que recebemos de fora são determinantes para a nossa conduta e só há recolhimento equilibrado se os conteúdos da memória e do pensamento forem ricos de soluções e de possibilidades. Faço parte de uma sociedade fracturada, não que seja um dos seus membros voluntariosos, porque tudo tenho feito para a sua harmonia e perfeição. Não é que não reconheça à nossa sociedade outras qualidades que não tinha há cerca de trinta anos atrás, mas a sociedade actual tem-se afirmado mais pela descaracterização do que pelo valor da identidade. Os objectivos das acções que nos definem no presente constroem cada vez mais vivências fracturadas. E, deste modo, nós não poderemos ter independência social e autonomia no pensar. Por maior que seja a nossa liberdade, deste modo ela tenderá para condições sociais que lhe retirarão uma grande parte da sua força. A fracturação criou uma racionalização específica e fez nascer grupos de toda a espécie com a finalidade de assegurar certas formas particulares de poder. Com este comportamento social, a sociedade está cada vez a fechar-se mais nas formas de comunicação determinadas e a fragmentar-se em comunicações técnicas com tamanha velocidade no modernismo que uma grande parte da sociedade está a isolar-se em jogos individualizados de comunicação.

    Não há sociedade viva e ideal sem uma grande espontaneidade nas suas formas de vida, sem uma força de coesão permanente, pese embora a necessidade de afiliações e especificidades. Uma sociedade deve permitir a cada um dos seus membros a possibilidade de crescer em liberdade e segundo a ordem universal. E com todas estas riquezas humanas deverá estar sempre presente a riqueza da força da abstracção social de ordens que se têm de modernizar, mas que não podem ficar de fora da lembrança dos pensamentos de todos. A família, a Escola, a Sociedade, o Grupo, o Trabalho ou o convívio são riquezas que não podem ser fracturadas pelas ideologias, formas de viver, credos religiosos ou económicos. É na espontaneidade das suas riquezas e das suas forças que surgem os conceitos mais modernos e motivações mais envolventes. As escolhas são modos da liberdade de viver que dão a capacidade de livre iniciativa ao homem, mas não podem estar dominadas por condicionantes sociais de qualquer ordem ou poder. O homem tem de acreditar e sentir que o que escolhe é uma possibilidade, mas que poderia mudar se quisesse aventurar-se mais naquilo que escolhe. Todos nós temos de nos realizar e temos uma realização conforme as nossas maiores inclinações, o que quer dizer que nascemos para uma determinada tarefa na colaboração com o mundo. Julgo que a ordem deste engendra-se pela recapitulação das transformações de que depende e da lógica evolutiva das possibilidades do homem na afectação universal. Tudo isto está relacionado com uma superação natural de estados ou manifestações do ser das formas simples para as formas complexas e vice-versa. E esta relação pressupõe um ritmo de modificação acompanhada por todos os elementos, sejam humanos ou naturais, mas o homem aqui tem uma maior responsabilidade mercê da sua liberdade. Se constrói o mundo social, constrói-se a si como parte integrante do mesmo e reconstrói o mundo natural, porque o adapta à sua necessidade e vontade. A liberdade do homem ganha nesta colaboração um significado plural e tem a força da essência humana, porque o homem nasce como ser e realiza-se como existência. O aventurar-se mais naquilo que escolhe ou nas potencialidades das suas capacidades terá a ver com o exercício possível da sua liberdade e nunca com o sentimento de incapacidade que pode ser avaliado a qualquer sujeito por a sua competência ser ignorada em razão das vantagens de um qualquer poder.

    Tenho constatado que a lógica evolutiva das capacidades do homem e, por consequência, da sua competência, não é reconhecida no mesmo ritmo do crescimento das possibilidades do poder económico, quer na ordem social de qualquer Estado, quer na ordem mais geral do mundo. Assim sendo, tudo parece indicar que o poder de iniciativa anda atrás do das possibilidades e o modo como este problema se tem resolvido não me parece ser o mais perfeito. Tem-se verificado que as pessoas com mais possibilidades oferecem uma vantagem aparente na segurança social, já que, salvo as excepções, os seus objectivos tendem a um estaticismo do progresso dos países, pois estes agentes sociais actuam mais conforme o seu poder do que a sua vontade de realização do desenvolvimento. De facto, na lógica da colaboração não têm emergido os principais voluntariosos que por um processo natural de engendramento social seria lógico que assim acontecesse. Este processo normal de uma realização do homem com base no voluntarismo da sua inclinação mais evidente tem sido obstruído por forças sociais que têm mais em mente a lógica dos seus interesses particulares do que a lógica natural do mundo, especialmente o social, onde cada um dos seus membros terá de o ser com toda a sua vontade. Se cada pessoa verificar que as suas escolhas para ir mais longe ou aventurar-se mais nas capacidades e possibilidades estiverem condicionadas por sinais exteriores de riqueza económica ou de poder de afectação a qualquer força social dos grupos, a liberdade deixa de fazer sentido no homem, porque este só pode escolher ou aventurar-se conforme o que socialmente lhe está determinado no jogo das forças dos elementos que constituem o grupo. E até mesmo em cada grupo a força de cada elemento está subjugada pela amostragem das suas vantagens económicas. A liberdade como gosto e desejo de viver para se ser alguém conforme as suas possibilidades e competências deixará de ser um valor pelo qual o homem se realiza nas suas iniciativas. Por outro lado, se o homem deixar de poder alimentar qualquer sonho, por ser obrigado a acomodar-se ao que está socialmente determinado, de que lhe valerá ter fé num mundo novo? O mundo só será novo se em primeiro lugar nascer em cada pessoa como ideal, se for fundamentalmente pensamento e motivação e se fizer de cada um uma célula profundamente viva e dinâmica. Se a sociedade cair num determinismo económico e social, numa prévia escolha do sentido determinístico da conduta, na lógica hipotética dos poderes particulares e, em consequência, numa escolha selectiva de forças, o homem não pode sentir-se livre nem dizer que vive num mundo novo. O Homem tem que acreditar que vive num mundo dinâmico ideal e sempre em mudança para melhor.

    Ainda ninguém conseguiu fazer com que qualquer homem se animasse se este não tivesse sonhos de realização e de afirmação. E como seria a vida humana, se não procurássemos a nossa afirmação? O que seria de nós, se não sentíssemos vontade de agir, sermos sujeitos dos nossos pensamentos e acreditássemos num ideal?

    Quando constituí família a partir do matrimónio, tinha muito pouco dinheiro, poucos estudos e um emprego que estava suspenso pelo serviço militar. Tinha muito pouco para sustentar uma mulher, se ela dependesse de mim. Tínhamos um mundo de pessoas cheias de dúvidas; tinham-nos amor, mas não tinham a certeza sobre o mínimo das nossas possibilidades necessárias à sobrevivência. Sabiam que todos os casais começavam mais ou menos deste modo, seria a ideia para acreditarem no nosso futuro. As suas experiências vividas e o modo como estávamos a partir para a vida de casados davam-lhe alguma tranquilidade e, lá no fundo dos seus segredos, pensavam que o bem devia estar connosco. Este sentimento era reforçado pelos pensamentos que lhes vinham à memória pelo que nos tinham ouvido antes de casarmos. Durante o tempo que nos relacionámos e adaptámos um ao outro, nasceu uma chama que aquecia cada momento da nossa vida e garantia uma certa vontade ao gosto da afirmação. Era um sentimento tão forte que teria que ter significado e ser sinal de responsabilidade, não podia ser só ilusão e sinal de qualquer loucura. Eu tinha muito pouco, e se tinha um pouquinho de loucura da juventude que me iludia, tinha uma força mais dominadora e empolgante que ainda hoje, de quando em vez, faço questão de lembrar. Eu tinha a força do querer em toda a grandeza, eu sentia uma vontade de vencer que me tornava indomável. Nunca me apercebia se tinha frio ou calor, se demorava muito ou pouco, se era longe ou perto, se alguém ia estar ou não estar onde eu queria! O que eu pensava era só no que tinha de resolver e nas minhas responsabilidades no caso. Pedia fosse a quem fosse para me ajudar, sem nunca ultrapassar nem desrespeitar ninguém. Partia para a resolução dos problemas com a minha força de vontade, com a educação de um simples e com a afirmação de quem queria ser alguém na vida. Acreditem que continuo a pensar do mesmo modo, só já não actuo com tanta energia nem me convenço tão facilmente, tenho alguma nostalgia deste sentimento pelo qual corri, aprecio-o e, como um bem-estar, dedico-lhe alguns momentos de intimidade. Fazem parte dos meus troféus estes sentimentos de recordação de combate pela vida e de vontade de me construir como sou. Ao pensar, hoje, do mesmo modo, sinto que há um mundo novo que precisamos de ter sempre na nossa vida, um ideal de que devemos comungar no dia-a-dia.

 

Autor: Macedo Teixeira; Obra: Crescendo Constroem-se os Sonhos; Editorial Panorama, L.da; Março de 2002; págs. 60 a 72.