Crescendo Constroem-se os Sonhos

23-12-2011 16:22

Crescendo Constroem-se os Sonhos (V)

Ainda bastante jovens somos colocados perante a necessidade de elevar a competição sobre a colaboração e, na sua compreensão, estará imediatamente implícito a força do poder pelo que alguém recebe em dinheiro e é valorizado em exclusivo pela sociedade. As características humanas, na sua profundidade psíquica e mental, são desvalorizadas e o jogo torna-se dominação, força e eleição social. Infelizmente quebram em tenra idade esse sentimento natural que temos todos, esse sentimento puro de equipa, de grupo e de amizade pela glória de estarmos juntos. Pessoalmente digo que, como eu, serão poucos os que não se perdem e não desanimam definitivamente. Digo isto sem nenhum gosto especial nem nenhum destaque pessoal. Valeu-me uma poderosa luz que me iluminava desde que nascera, apesar de na minha juventude se ter quebrado na sua ligação com os meus sonhos. Uma luz que tem-se mantido sempre a fortalecer-me na fé de que outros sonhos hei-de realizar. Valeu-me depois o espírito que não se perdeu em mim e me soprou em todas as minhas aventuras. Ora me perdia, ora me encontrava, pela recordação do que me haviam ensinado e do que me haviam dito: "se fores capaz de afinar os pensamentos com os actos a tua luz te voltará a iluminar e o teu espírito te guiará".

    As sociedades não têm uma visão sentimentalista e humana da vida, têm um pensamento humano carregado de desejos que realizam nos outros e confundem a ternura e afectividade na sua pureza, pois vêem sinais de esperança na caminhada humana da vida, mas deixam-se cegar por indiferença e superioridade de qualquer espécie. E o que é mais dramático e incompreensível é que envolvem os acontecimentos de substância negativa num jogo social, onde não se distingue ninguém como culpado ou como inocente para arrebatarem as vitórias a qualquer preço e com uma condição qualquer.

    É esse sentimento social que escolhe os mais poderosos num poder qualquer e que a minha consciência moral me faz admitir que poucos respeitam o poder dos valores verdadeiros. É esse sentimento que faz com que alguns jovens vão perdendo aos poucos o sentido da exaltação da vida na sua verdadeira dimensão; alguns quebrando mesmo todos os laços que os uniram e dignificaram na sua infância, até se perderem definitivamente no seu ser. Não chegam mais a sentir qualquer reforço familiar ou social desde o tempo de meninos, não sentem mais qualquer "prémio" que os estimule, porque lhe quebraram o sentimento natural e eles não foram capazes de se fazerem por dentro até serem suficientemente fortes para se fazerem também por fora com a liberdade de serem eles próprios.

    Há um “prémio” que está acima dos nossos olhos, não forçosamente aquele que resulta da visão social actual que é importante para vivermos em comunidade, mas que não é o melhor para a nossa felicidade. Aliás, a visão que a sociedade actual tem da Humanidade e daquilo que é humano não é caracterizado pelo principal, que é, como disse, ser sentimental e humana, e por isso, se assim o homem vai vivendo dentro do possível, viveria muito melhor e seria mais feliz se vivesse com estes predicados. A visão actual da sociedade é de desejo de dar nas vistas e de excluir tudo o que a responsabilizar e tudo o que em pensamento não lhe der gozo nem sensação de vitória. Somos já bastante perfeitos em pensamento; desenvolvemos concepções morais de projecção, idealizamos e escrevemos acordos de princípio e de regulação social, mas na prática negamos os nossos pensamentos, não por esforço intencional, mas por ilusão, pois acreditamos mais no que pensamos para a moral do que o que fazemos para a sua prática.

    Não encontro outra razão que não seja aquela que acabei de referir, aquela que motiva tantos desencantos sociais e tantos desencontros com os ideais da juventude e a sua própria força. Acredito que uma visão humana e sentimental há-de gerar o carinho pela estima dos verdadeiros e sinceros valores; dos valores que garantem a aventura da juventude de cada um e o encontro com os laços que tornam perene a vida. Será esta categoria do pensamento que valorizará a vida jovem, que estimulará o desejo da responsabilidade nos actos em que são intérpretes e aumentará a segurança com vista ao seu futuro. A sociedade espera dos jovens a confiança de serem capazes de tomarem conta dos destinos do mundo e dos valores que o compõem, por isso exige-lhes capacidade, inteligência e responsabilidade, mas tal só é lícito se a sociedade os acompanhar nos momentos em que são mais frágeis. Nós nunca nos poderemos sentir confiantes e seguros no mundo se continuarmos a fazer o homem só para os nossos objectivos e só para uma certa perspectiva social. O Homem é muito mais do que o ser vencedor e o ser de sucesso. Na verdade, pode ser vencedor de quê? Se a ordem percorrida não for a da competição, mas a da dominação! E o sucesso tem em conta o quê? O humano, o natural, o serviço, ou simplesmente o espectacular, o irracional e o resultado?

    Se o homem começar a formar-se na sua juventude, através da consciência social que refiro, então, o "prémio" que receberá estará acima dos nossos olhos, porque assim a nossa conduta e os princípios que a regularão concluirão o nosso pensamento e os nossos desejos. Passaremos a ser mais justos não só por praticarmos a justiça, mas por participarmos dela de modo implícito e inclusivo; os outros não serão só expressões de julgamentos, mas também expressões de partilha. Os outros não serão os diferentes e nós os iguais; serão iguais que não tiveram as condições normais ou as perderam por qualquer motivo no jogo da vida social. Será esta visão sentimental que irradiará a luz que nos chega de muito longe; será uma visão do espírito que atingirá as almas e as elevará à forma da sua luz e à eternidade da vida. Subir e fazer subir os outros será a nossa obediência suprema e a nossa vontade divina. Não olharemos mais sobre a nossa luz natural só para fazermos juízos de reprovação; olharemos fundamentalmente pela alegria de apreciarmos e valorizarmos; pela alegria de fazermos juízos de lembrança que como iguais teremos que ser mesmo assim, por ventura produzindo algo simples ou complexo, mas nunca nada fazer por não ter recebido muito.

    Ainda toco nas minhas recordações com uma sensibilidade cheia de desejo de aí permanecer. Não se pode parar o tempo da nossa história, mas os quadros com que a pintamos revelam, em certos casos, momentos de pormenor que jamais poderemos esquecer. Quando era menino brincava com as coisas pelo prazer de as ter e as utilizar para a minha satisfação. Sabia lá eu, que brincava com os meus próprios sonhos. Afinal, nós temos os nossos sonhos reais, que não são fantasias nem nos deixam no vazio da lembrança. São mesmo realidades que nos acontecem ou que nós as provocamos e que depois causam uma brilhante recordação. E mesmo que ao crescermos tenhamos passado maus bocados, são relevantes os pormenores que nos fascinam pela impressão de regresso ao tempo como sensação de libertação causada pelo bem-estar social por havermos conseguido superar as dificuldades. Essas recordações têm-me feito homem e têm-me ajudado a encontrar o caminho para a realização dos meus desejos e sonhos que quando jovem acreditei realizar. Esses pormenores deram-me força para regenerar deficiências estruturais psíquicas e morais; encheram-me quando estava vazio de um alimento que não sei ao certo de onde vem nem em que forma se assimila; sei que é diferente do alimento físico e me estabiliza emocionalmente quando estou mais carente de tudo. Sei que é raro na sua abundância, que temo ser demasiado esbanjador quando não me certifico das minhas possibilidades. E em casos extremos chego a pensar o que seria de nós se esse alimento acabasse!... Observo a Natureza e vejo que os bens alimentares vão escasseando, mas acredito que a regeneração natural e a diversidade serão capazes de resolver as dificuldades. Quando me refiro ao natural quero referir-me ao que é visível, aquilo que se transforma por acção de forças que estabelecem trocas entre si. Umas implicam as outras, e no jogo natural a regeneração e a diversidade são consequenciais. Mas o invisível, aquilo em que não podemos tocar, nem moldar pela transformação vital; aquilo que é essência, se radica a si mesmo e se manifesta de uma forma tão misteriosa e tão cálida, essa realidade eu desejo-a tanto que gostava que estivesse sempre presente, mas ao verificar que não é consequencial e só vem de vez em quando fico preocupado com a sua utilização.

    Em menino lembro-me de ir para o rio, eu chamava-lhe o regato, e tinha até nomes para identificar o lugar onde nadava com os meus companheiros e onde pescávamos lindos peixes. Questões de pormenor, mas que dão um enfeite simples e natural e fazem avivar a nossa proximidade. Em certas ocasiões do ano, principalmente no Verão procurava as elevações feitas pelos lavradores para represar as águas e onde corresse um fio pequenino de água arranjava-o como queria para fazer um moinho. Com um figo dos maiores que ia buscar à figueira que lá havia, cravava a toda a volta pequenas lascas de madeira de caixas de fósforos ou de pauzinhos pequeninos que alisava carinhosamente. Atravessava-o com um pau na vertical com a altura de 30 a 40 cm e com a base exterior ao figo com o bico bem afiado pousava-o sobre um caco de argila com um buraquinho no centro onde a azenha se movia. A sua velocidade no movimento era conforme à biquinha de água que eu previamente preparava. Não podia esquecer-me de construir uns pequenos muros até à altura do pau do moinho, onde depois suspendia uma barrinha de arame ou de madeira com um anel em arame fino ao centro onde rodava o pau da azenha na vertical superior. Ficava horas a olhá-lo, a vê-lo rodar e a jorrar água em seu redor. Só o largava para regressar a casa, mas no outro dia ia vê-lo de novo.

    Quando a corrente da água aumentava pela alteração dos caudais do rio, eu não podia brincar mais com o meu moinho. Tinha de esperar por outro ano e pela estação do Verão que era a que me permitia viver este pequeno sonho. Fazia outras coisas, bem sei, mas cada uma delas era diferente no embalar da vida e na esperança de viver mais. Cada um destes momentos humedeceram de perfume a minha sensibilidade, abriram-me tempos de ansiedade para ser alguém na vida. Criaram-me desejos de vir a ser no futuro o meu próprio sonho, à medida que ia sonhando.

    Sinto nestes acontecimentos de menino, e nos que já escrevi da minha juventude, uma força que me agarra e me lança para a frente, uma espécie de "prémio" que me faz sentir homem e me vai ajudando a concretizar as partes do meu grande sonho. Sinto uma grande alegria quando me recordo de alguns acontecimentos que marcaram a minha vida, e nem todos foram agradáveis, mas eu vivi-os como menino e julgo-os com satisfação. Acredito que a minha consciência se libertou pelo meu crescimento moral, mas não creio que o tenha feito para me iludir nem para simular o que não sinto. Mesmo quando tenho sensações mais ofuscadas por qualquer névoa do passado, o meu juízo não fica muito tempo confuso ou desesperado, sinto apenas uma leve emoção que me faz alterar o tempero das vivências momentâneas e as minhas paixões decrescem por pouco tempo. Não sei se seria possível viver sem alterações no grau da vontade e do desejo de manter uma chama acesa de modo sempre intenso. No meu caso, sinto essas mudanças com um valor positivo, porque me fazem situar melhor e ver com mais limpidez.

    O Homem faz-se na vida através de todos os ingredientes que a compõem e de todo o tempero que lhe dá sabor nas várias fases que são as formas do homem. Todas estas formas têm um encanto próprio que se mantém em cada pessoa como conteúdo de memória. Um conteúdo que é recordado com plano para subida na unidade que é conjugada permanentemente nas suas partes. Todos os planos ou formas da vida humana são muito exigentes para se completarem com perfeição, mas a forma adulta é aquela que me parece ser a mais exigente por constituir ou completar o homem na maior parte dos seus domínios. Por esta razão, todas as experiências vividas como menino, adolescente e jovem são fundamentais para darem consistência e força a esta fase que completa as capacidades e permite que possamos tomar iniciativas por nós próprios e decidir o que queremos para a nossa vida.

    É na fase adulta, sobretudo nos primeiros dez anos, que mais necessitamos de recorrer a todos os conhecimentos e a todas as experiências vividas para podermos optar nas decisões que temos de tomar. É vulgar dizer-se que é na adolescência que se vivem as grandes crises do ser humano. É nesta altura que se procuram os laços sociais no grupo, a marcação do espaço no convívio, se procura descobrir e compreender as grandes alterações por que passa o nosso corpo e, sobretudo, se procura reduzir o mundo à nossa própria vontade. Vivemos em crise pelas alterações bruscas a que estamos sujeitos e pela fragilidade que nos caracteriza. Mas se esta fase é uma fase vulnerável e crítica pelas razões aduzidas, não deixa de ser uma fase mais acompanhada e mais apoiada por suportes humanos que a fase da maior idade ou idade adulta. A partir dos 25 anos e até mais ou menos os 35 anos de idade, o homem vive em sucessivas crises de consciência, de desejo e de projecto. De consciência, porque tem que optar entre o viver segundo o momento e conforme a ocasião ou viver conforme o dever e segundo a tradição. Entre estes dois modos de vida pode escolher um terceiro, que corresponde ao viver segundo a sua única vontade e de acordo com o seu único juízo, mas aí opta por uma consciência individual e à margem da família e do grupo. Em qualquer um dos modos escolhidos, enquanto não encontra as bases que estruturam e edificam a capacidade de autonomia na sua consciência, a independência é pouco provável e o comportamento no seu todo é um comportamento debilitado. Crise de desejo, porque é confrontado com os valores que regulam a sociedade e pelas experiências a que a mesma nos sujeita. É uma provação permanente e uma exigência implacável. Ou se compreende e aceita o mundo social no modo como este está regulado e se distingue as partes na sua responsabilidade; ou se discorda, retirando o valor do mundo na sua forma social objectiva, destacando-se apenas os elementos humanos e, neste caso, colocando-se em pé de igualdade tudo o que é mais fácil, vivendo e resolvendo as questões conforme a matéria que tivermos na ocasião. Vivendo e resolvendo progressivamente as questões base dos nossos desejos (a casa, o automóvel, a independência económica, a esposa, filhos, etc.), mas admitindo tudo numa situação precária sem assumir culpa nem responsabilidade na parte que nos cabe. Pode dizer-se, em resultado, que os que resolvem as suas questões pelo modo da cooperação, acalmam quando têm a certeza que comungam do social e organizam a sua vida de modo independente e autónomo; enquanto que os que actuam pelo modo ocasional e desresponsabilizado vão vivendo numa certa dependência para as suas soluções, mais à mercê dos outros e com desejos que lhe são impostos, em consequência menos tranquilos e com pouca auto-estima. De qualquer forma, em ambos os casos passam-se momentos de grande perturbação, sendo em meu entender, mais aflitivo para aqueles que acreditam no mundo como um valor social, cooperando com esforço e dedicação a este valor. Nos primeiros tempos da maioridade, vive-se em crise de projecto, porque as situações não são estáveis nem seguras para quem inicia a vida em comunidade e comunga com a necessidade de constituir uma família a partir da sua própria vontade e com as suas possibilidades. Pode dizer-se que na maior parte dos casos tudo se forma de modo esquemático e transitório, e as partes dos planos são substituídas com regularidade. Pode pensar-se que a organização social na sua perfeição vai dependendo da disposição das partes e, por isso, o homem como ser social na sua aplicação e experiência necessita também de apurar os planos na sua disposição. Viver durante um tempo de modo esquemático e transitório surgirá como solução para os ajustamentos na adaptação à estabilidade e harmonia social. Os problemas que a vida levanta e o modo como os vamos resolvendo nesta primeira fase da maioridade ajudam a diminuir as tensões e a força das crises existenciais em que vamos vivendo, pelo menos até ao limite provável de 10 a 15 anos depois da maioridade. Mas pode concluir-se que esta fase é profundamente perturbada a partir de fora, e se o problema mais geral é de crise de identidade e em consequência de segurança e afirmação, os factores da consciência, do projecto e do desejo são os que mais reflectem as perturbações e os que mais evidenciam o apagamento ou ausência dos conteúdos das fases anteriores.

 

Autor: Macedo Teixeira; Obra: Crescendo Constroem-se os Sonhos; Editorial Panorama, L.da; Março de 2002; págs. 48 a 60.