Aperto de Mão

01-02-2013 15:57

 Aperto de Mão

“Assim correm os meus sonhos; mas quem sou eu?

Uma criança gritando na noite;

Uma criança gritando por luz;

E sem outra linguagem senão um grito”.

Tennyson – In Memoriam

 

    Poucos dias separam esta narração e o facto que lhe deu conteúdo. Mas, não será por isso que me recordarei melhor e julgo mesmo, que à medida que o tempo passa vou sentindo com mais intensidade o reconhecimento das nossas mãos.

    Em toda a nossa vida, estendemos ou elevamos as mãos em cumprimento a muitas pessoas, para além da família ou dos amigos mais íntimos. Sentimos nisso uma grande satisfação mas raramente procuramos uma razão mais profunda que nos possa explicar tal sentimento; isto porque, aparentemente, tudo parece estar explicado.

    Na família, os laços são muito fortes e a empatia gera uma relação afectiva que dirige com tal força a sintonia do pensamento, que mesmo na negação, o cumprimento se processa. Nos amigos, as relações de convivência alicerçam-se em situações progressivamente dependentes que salvo casos de transição, os seres humanos fixam-se numa relação de emoção e fundem-se com mais ou menos rigor nas alegrias e tristezas de cada um. Nas relações anónimas, geram-se boas maneiras, tornam-se cordiais os pensamentos, tolera-se o tempo de espera na bilateralização do diálogo, agigantam-se as ideias nobres; – torna-se possível, enfim, a perpetuidade da relação com vista a um compromisso de saudação no futuro.

    Apesar de toda a complexidade dos sentimentos e das suas solicitações recíprocas profundas, caímos por vezes em actos meramente de rotina – formais e repetitivos; contrariando desta forma o desejo que anteriormente motivou a ânsia de conhecer.

    Nestes ciclos relacionais, geramos e estendemos a inclusão e exclusão de pessoas que envelhecem connosco no pensamento e no corpo.

    Pensara eu, tantas vezes, que isto era o resultado do nosso tempo de crianças; em que euforicamente nos mostrávamos em humildes saudações no que nos distinguia em dia de domingo: o fato novo que com rigor a nossa mãe talhara em seu modelo, ou as botas novas de solado grosso e brilhantes como o Sol, para pontapear tudo quanto rolava no chão.

    Em desespero, acreditei ser o resultado do que nos inculcaram no nosso espírito frágil de crianças; ou a reacção em cadeia de uma “solidariedade na saudação” para um maior conhecimento em possíveis favores a solicitar ou a prestar.

    Cogitei em silêncio até saber com exactidão o porquê do “aperto de mão” – porque não me bastava, somente, conhecer a sua origem histórica e toda a teoria manancial que a envolve.

    E a resposta chegou com tanta evidência, que não resisto já, em descrever como a senti e qual o efeito que teve sobre mim.

    – Para aliviar meu filho de uma crise de asma tivemos de nos deslocar ao hospital do concelho onde residimos. Dentro deste e no serviço de pediatria decorria com normalidade o serviço de assistência a todas as crianças doentes por todo o pessoal de serviço naquele sector.

    O ataque de asma que vitimava meu filho era muito agudo e por isso a médica responsável, entendeu por bem, ordenar o seu internamento em observações; resultando do facto, uma exigência de eu permanecer durante longas horas junto à pequena cama, onde meu filho e a maravilha da ciência médica se debatiam na debelação da crise.

    Durante esse tempo fui observando outras crianças que se encontravam na mesma sala internadas, e cujos familiares evidenciavam a mesma dor por serem comuns os motivos da nossa presença ali.

    Estar dentro de uma sala de observações não é muito agradável a quem não tem grande experiência nem está muito habituado a estas cambiantes da vida: uma hora de espera parece-nos um dia e o nosso corpo parece ter estado sujeito aos mais duros trabalhos.

    Observei, também, outras crianças que não tinham junto de si familiar algum – o que para além da natural tristeza que senti; a convivência com elas me propiciou uma afecção paternalista. E, ficaria por aqui, se não fosse o facto de uma dessas crianças pelo seu choro mais lancinante ter-me chamado atenção dessa angústia no estar só; segurando na mão um punhado de bolachas encharcadas pelas lágrimas de tanto chamar pela mãe.

    Convivi durante bastantes horas com aquele quadro, apesar de tudo maravilhoso, pelos olhitos negros da garotinha e pelos movimentos bem ladinos do seu pequenino corpo.

    Tive a impressão que adormecera junto da cama de meu filho, pois não me apercebera de tudo o que se passou até ao momento em que vi diante de mim a médica com a menina a que me refiro sentada sobre o seu colo. Pareciam mãe e filha e entretinham-se a adivinhar o que a ambas lhes faltava. Algum tempo depois, a criança perdia o choro e metia à boca uma das bolachas que antes lhe servia de companheira.

    Perante este momento sublime, senti metamorfosear-se o pensamento e cheguei mesmo, a distinguir mal as duas; pareceu-me por instantes minha mulher e minha filha; e fiquei tão emocionado que desejei adormecer de novo para não batalhar contra a fragilidade do coração.

    Já de madrugada, meu filho estava melhor e o chefe da equipa médica dava-lhe alta para regressar a casa. A menina dormia agora calmamente e a médica que atendera meu filho e o restante pessoal de serviço, continuavam a ser anónimos para mim, mas agora, só no nome: pudesse eu transmitir-lhes o que senti naqueles rasgos de emoção.

    Acenei a todos em agradecimento pelo que fizeram pelo meu filho, não em acto de repetição formal nem gesto habitual de rotina. Estendi-lhes as mãos e uni-me pelo coração – compreendi, ali, naquelas amargas horas a razão da saudação e compreendi melhor o poema do amor.

 

Dr. Macedo Teixeira – Jornal O Distrito de Portalegre n.º 5988 – Ano 103 – 22.08.1986.

  • O Autor quis preservar o texto e a forma ortográfica em que foi escrito.