Um Momento Estranho

23-04-2020 15:13

Um Momento Estranho

    Às vezes penso que é por gostarmos muito de uma coisa que a inventamos quando não a vemos; ou a sonhamos quando não a temos. Às vezes também acredito que necessitamos destes exercícios para superar muitas das carências que temos e muitas das dificuldades que encontramos no nosso caminho. Mas às vezes, também somos surpreendidos porque não podemos inventar mais o que de facto já existe na realidade e depois se torna uma recordação estável.

    São considerações a propósito do rosto de uma qualquer multidão, do corpo compacto que adquire e da beleza que pode ter na duração fugaz ou na duração do tempo preferido; porventura temporário e sem repetição, mas esteticamente belo e inesquecível em certas ocasiões.

    Até há pouco tempo, ainda não tinha completamente formada a minha consciência acerca deste assunto e desejava com alguma curiosidade, conhecer qual o efeito que tinha sobre nós uma grande multidão quando caminhando distraída pela margem de um qualquer espaço: orla marítima, praias, marinas, etc. Desejava conhecer porque tinha a impressão de que seria mais uma pessoa que se juntava aos outros, faria número, mas seria um estranho no meio da estranha multidão.

    Tinha em certos casos o sentimento de uma necessidade de estar sempre distante de grandes grupos e muito mais de grandes multidões. Um sentimento que tinha fundamento nas grandes tragédias que têm ocorrido na base de grandes ajuntamentos e que enfurecidos destroem e matam a vida social que tem emergido afinal na maior parte das grandes multidões.

    Um sentimento que me perturbava porque surgia em contradição com a lógica natural da vida humana! O Mundo tem tantas pessoas; milhões de milhões que dormem, trabalham e acordam nesta “bola giratória”, e como seria possível que só pudessem ter a razão do ato de conviver socialmente em grandes grupos, com objetivos prévios, mas que mesmo assim, em alguns casos descambassem para a tragédia: fosse a dos estádios desportivos, das greves ou das manifestações de rua?

    Apesar de tudo, interrogava-me se esse conviver emocional não poderia ser diferente noutras multidões em que as pessoas, ao conviverem em grandes grupos, sem objetivos rígidos e sem motivações determinadas pelas expectativas da sua revolta ou do prazer de sair vencedores em qualquer jogo, se neste caso não receberiam qualquer emoção diferente que não fosse apenas a emoção de caminhar com os outros quando com objetivos definidos, se não seria afinal emocionalmente diferente quando no caso dum modo espontâneo ao caminhar pela marina de um porto, ou pela praia ou por outro lugar.

    De facto, interroguei-me muitas vezes sobre a inexistência de tais possibilidades, tanto mais que ouvira falar de “calor humano”, mas associava esse sentimento mais ao exibicionismo e amostragem do que a uma qualquer energia humana que fosse boa e soubesse bem! Também este sentimento tinha fundamento numa certa amostragem exagerada de aspetos que são da intimidade humana e exigem um respeito e retidão, que são essenciais à vida de cada um: os concertos de rock, as competições desportivas, as campanhas políticas têm sido belas emoções sociais, mas em certos casos bastante exageradas e às vezes perigosas.

    Um sentimento, afinal, de admiração pelas grandes multidões mas ao mesmo tempo de rejeição por grande parte dos traços sociais e estéticos que elas evidenciam. Uma impressão que continuo a manter em relação aos exageros e às suas tragédias, mas que hoje me aflige mais com uma outra impressão que gravo na memória e que resulta de um momento fugaz que vivo entre dois tempos; tempos que me integram numa tristeza indemonstrável e numa sensação aproximada sobre as multidões em serenidade e silêncio e sobre o vazio emocional e tristonho, que fica nos lugares e em nós quando as multidões se separam em fuga para outros destinos e quando os lugares ficam desertos, sobretudo por uma razão de medo de uma pandemia que nos assola e que não parece ter fim, ainda assim, tenho muita fé, que apesar dos imensos pecados da Humanidade, Deus nos está a salvar, pois Ele é Bom e usa de Misericórdia para connosco!

    Triste emoção aquela que tenho agora vivido em dois tempos; o tempo passado de chegada à multidão espontânea e o tempo de partida, mas acima de tudo, uma misteriosa expressão que nos dá o tempo em que nos encontramos e em que a recordação das multidões ainda dá forma a um rosto e a uma impressão, que apesar de durar pouco parece durar para sempre.

    Que pena, que as multidões, só perante o caos e o medo anseiem constituir-se como tal, conviverem serenas e sem grandes exageros, ainda que temendo as tragédias. Deus tem razão, criou o Homem e multiplicou-o no maior problema divino, pois, a maioria dos seres humanos, ainda não sabe que ao viverem em conjunto, se vive mais feliz e com mais força e, isso é natural e não temos que inventar!

    Talvez agora, neste momento de efeitos trágicos na saúde e na vida social, jamais imagináveis por todo o Mundo, infelizmente, talvez agora, possamos passar a compreender melhor a presença das pessoas, ter a possibilidade sem medo de poder ir aos lugares que antes eram vulgares e às vezes até desprezáveis até à sua destruição, talvez agora, entre a Natureza bela e distante, o homem passe a poder conversar sem pressa e algum desdém, com alguém que possa escutar, talvez daqui em diante possa poder falar de Deus e da importância do cumprimento das suas Leis, sem ter receio algum de ficar sozinho e ser tido como um beato, já que até há pouco os grupos tenham dado primazia ao que é vulgar e apreciado muito mais o “poder de ganhar e ser o primeiro em tudo”. Ou dito de outra maneira, talvez agora possam entender ser mais importante o ser humano do que qualquer ideologia política, religiosa, financeira, desportiva ou outra e, sobretudo mais importante a Vida, o Homem e Deus!

   Oxalá, que o mundo social, quando for capaz de poder reunir-se sem receio de qualquer contágio maléfico, “agora de uma vez por todas”, passe a considerar como mais importante de todos os elementos: a Pessoa humana na sua vida com felicidade e a considerá-la como o valor mais valioso entre os valores e os dons de Deus.

   Macedo Teixeira