Quando as Estrelas Acordam (17) / When the Stars Awake (17)
Quando as Estrelas Acordam (17)
Devemos, contudo, não esquecer o que dizia Heraclito de Éfeso: “nada se repete, nada pára, tudo está em movimento, o Universo é como um rio, não nos banhamos duas vezes nas águas do mesmo rio”. Bem sabemos que não é fácil adoptarmos esta verdade, pois vivemos muitas vezes agarrados ao passado, à espera de algo que foi excepcional na vivência da nossa vida, mesmo reconhecendo que é uma atitude de pura ilusão, porque não há repetição e, se houver Eterno Retorno, será provavelmente uma sucessão intemporal, logo, não corresponderá à mesma complexidade vivida, porque a passagem do referente trará consigo outro referido. Será esta, provavelmente, a condição da eternidade, não haver senão como infinita esta possibilidade descontínua. Donde, a possibilidade será o ilimitado contínuo e a possibilidade do possível será o limitado descontínuo. Acreditamos que o Universo, na sucessão de acrescentos, manterá as informações necessárias, para criar novas ordens e novos elementos a partir das bases e do seu autopoder de alterar os limites e as singularidades existentes.
Neste entendimento, de que nada pára e tudo está em mudança, vemos como condição, para uma ligação mais profunda e mais guiada pelo sentido estético, em todas as ordens e elementos, quer sejam de natureza social, em meio ambiente mais simples ou mais complexo, quer sejam de ordem cósmica em evolução permanente, a necessidade de nos deixarmos interpelar pelo número de sucessões possíveis, numa existência em contexto e numa mobilidade integrada a partir do nosso eu plural.
É um facto que emerge na nossa autoconsciência, um sentido cuja relação e significado cada um de nós deseja controlar pessoalmente, mas o esforço que fazemos para medirmos tudo a partir da relação e do significado que damos às coisas e ao mundo pode tornar-se numa força que age contra nós. Que relação podemos controlar, quando a vida é acção em ambiente mutável? Que significado permanecerá ao vivermos a nossa vida pela transposição dos contextos? Creio que se não nos deixarmos ascender, no acontecer de cada instante, até ao pulsar extremo de cada lapso de tempo das fracções singulares, que constituem a nossa identidade, envolvendo-nos em simultâneo, numa coexistência vital, provavelmente continuaremos a medir tudo, mas o desgaste e a exaustão tornar-se-ão em acções desmotivadoras da integração necessária do contexto em cada acto vivido. E, sendo assim, porque haveremos nós de querer controlar o sentido das coisas e da vida se não reconhecermos primeiro que há necessidade de uma compensação mais geral na sua complexidade contextual; somos mais felizes pela vivência transversal e interactiva do que pela vivência com a transposição de contextos para evitarmos um ambiente mutável, bom e saudável.
A vida não se reduz, nem ao nível do significado, nem ao nível do signo nem do símbolo; basta pensar no elemento físico da água, que significa “líquido incolor e inodoro”, que entre outras funções, destina-se a matar a sede, mas como símbolo pode associar-se à vida, maternidade, satisfação, etc. É um pequeno exemplo de como, pela nossa autoconsciência, queremos sempre apropriar-nos do valor das coisas por um certo sentido, relação e significado. Parece que ficamos mais seguros através do referente quantitativo e qualitativo que orienta o nosso sentimento da vida e a nossa percepção do Universo. Mas quando reflectimos melhor no esforço que fazemos para medirmos, através de cada interpretação, os sucessivos estados de consciência que reconhecemos mutáveis, mas teimamos em fixar como se fossem cenas de um filme, ficamos a pensar se não seria melhor deixarmos correr a vida, percebendo em cada momento o que se tornou claro, deixando-nos projectar com a totalidade, admitindo a vida como expressão possível, que nos realiza, independentemente da medida do acto que possa constituir essa clareza.
Não nos é possível captar nenhuma totalidade absoluta, nem isolar nenhum acontecimento, só é possível relacionarmos as parcelas das sucessivas totalidades e abstrairmos estados referenciais de identificação relativa dos acontecimentos. Mas não é pela condição dos limites da existência, que o ser deixa de ser interceptado por todos os fragmentos que se sucedem no turbilhão do acontecer da vida, nos lugares em que o infinito se regista. Tudo quanto acontece no nosso ser, acontece como totalidade, mas nós só apreendemos partes; as ligações são infinitas. A relação que prevalece não está ao nível da apreensão pela capacidade humana, só aquela relação que se manifesta pela presença real, aquela que coexiste com os nossos limites e nos faz sentir relacionados, pode ser realmente apreendida. No entanto, a nossa integração excede esses limites e, por isso, a totalidade é captada como abstracção possível e sempre a partir de qualquer radical que tende para o infinito. É nesta dimensão da compreensão que nos superamos a nós próprios; que, sendo um requisito do pensamento puro, torna-se difícil de alcançar, pois exige uma atitude mental, muito profunda e disciplinada, em pensamento e expressão, sendo, no entanto, este estado de consciência que nos permitirá atingir totalidades que vão para além do limite da matriz, que é o fundamento da nossa integração.
Devemos estar envolvidos na dinâmica dos acontecimentos, sermos tocados no mais fundo da nossa existência e caminharmos pela linha que nos liga a todas as matrizes do Universo para sermos revestidos de uma força que ejecta todas as substâncias necessárias para a nossa constante adaptação. É uma necessidade vital, esta ordem que se vai fazendo através da relação com os elementos que experimentamos ao viver com base no compromisso voluntário, de desejar viver sem obrigar a vida a situações excessivamente exageradas. Vivendo com o que ela nos dá, com o conhecimento que nos ilumina para procurar tudo o que a vida tem de bom, subtraindo o que engendrarmos de mau, fazendo-o colidir com o bem na velocidade das respostas boas que teremos que dar, para contrariar aquelas que, na maior parte dos casos, ocorrem por acção de resíduos mentais, que são o produto de pensamentos, ocasionalmente perturbados e confusos. Devemos viver, também, através da autodisciplina corporal e mental, para estarmos sempre bem abertos para as entradas de informação que ocorrem na actividade relacional nervosa e orgânica, que, devido à pressão dos microssistemas, fazem desencadear no nosso ciclo motivacional alterações de equilíbrio e, por consequência, uma certa tensão momentânea, para a qual não temos resposta exógena, nem estamos capazes de saber por quanto tempo vai ser necessária a acção endógena para o equilíbrio dos nossos sistemas. Será bom que possamos viver, deixando-nos surpreender pela própria vida nas suas cambiantes, que não são quantificáveis nem permanentes no comportamento.
Pois é um facto que nós somos finitos, limitados, incompletos, mas também é um facto que nos transcendemos, que nos superamos e que nos acrescentamos. Por outro lado, no processo de mutação, entra muita informação aleatória ou de acção combinatória incomensurável. Logo, se caminharmos pela linha que liga todas as matrizes do Universo (vivendo e impelindo-nos voluntariamente para o movimento da vida e para as consequentes mudanças), se captarmos as substâncias em cada contexto ambiental e pudermos participar por relação nessa combinatória incomensurável, a finitude, a limitação e a incompletude tornar-se-ão nas condições necessárias para cedo coexistirmos com o Infinito e com o Absoluto. A matéria e a forma não serão, neste contexto, apenas ordens e elementos físicos, serão também estruturas do infinito, elementos principais das matrizes do Universo. Por analogia, poder-se-á dizer que serão as camadas de um bolo, onde se acrescentam elementos que produzem sensações estéticas, que vão levando os nossos pensamentos até o mais longe possível e, ao mesmo tempo, vão formando na nossa consciência sentimentos, em que a atracção corporal decresce, na apreciação particular da matéria, e, em simultâneo, estes sentimentos vão-se tornando cada vez mais intensos nos laços de ternura que vamos nutrindo pelos pensamentos, porque nos levam até ao infinito e nos permitem interagir com o espírito, que universaliza a matéria e a humaniza para a atracção da mente e a produção da arte.
Macedo Teixeira, Quando as Estrelas Acordam, Sítio do Livro, Lisboa, Julho de 2014, pp. 62 a 66.
When the Stars Awake (17)
We should, however, not forget what Heraclitus of Ephesus said: “nothing repeats itself, nothing stops, everything is in motion, the Universe is like a river, we do not bathe ourselves twice in the waters of the same river”. We know well that it is not easy for us to adopt this truth, since we often live stuck in the past, waiting for something that was exceptional in the experiencing of our life, even recognizing that it is an attitude of pure illusion, because there is no repetition and, if there is Eternal Return, it will probably be a timeless succession, therefore, it will not correspond to the same lived complexity, because the passage of the referent will bring with it another referred. This will be, probably, the condition of eternity, to not exist this discontinuous possibility except as infinite. From where, the possibility will be the limitless continuous and the possibility of the possible will be the limited discontinuous. We believe that the Universe, in the succession of additions, will keep the necessary information, to create new orders and new elements from the bases and from its self-power to alter the limits and the existing singularities.
In this understanding, that nothing stops and everything is in change, we see as a condition, to a deeper connection and more guided by the aesthetical sense, in all orders and elements, whether they are of social nature, in a simpler or more complex environment, or of cosmic order in permanent evolution, the need to let ourselves to be interpellated by the number of possible successions, within an existence in context and in an integrated mobility from our plural self.
It is a fact that emerges in our self-consciousness, a sense of which relation and meaning each one of us wishes to control personally, but the effort we do to measure everything from the relation and from the meaning we give to things and to the world may become a strength that acts against us. What relation may we control, when life is action in a changeable environment? What meaning will remain when we live our life by the transposition of the contexts? I believe that if we do not let ourselves ascend, within the happening of each instant, up to the extreme pulsing of each lapse of time of the singular fractions, which constitute our identity, enveloping us simultaneously, in a vital coexistence, probably we will continue to measure everything, but the weakening and exhaustion will become demotivating actions of the necessary integration of the context in each lived act. And, this being the case, why should we want to control the meaning of things and of life if we do not acknowledge first that there is a need of a more general compensation in its contextual complexity; we are happier by the transversal and interactive life experience than by the life experience with the transposition of contexts so that we avoid a changeable good and healthy environment.
Life is not reduced, neither at the level of meaning, nor at the level of sign or of symbol; it suffices to think about the physical element water, which means “uncolored and inodorous liquid”, which, among other functions, is meant to quench the thirst, but as a symbol, it can be associated with life, motherhood, satisfaction, etc. It is an example of how, by our self-consciousness, we always want to take possession of the value of things for a certain sense, relation and meaning. It seems that we become more secure through the quantitative and qualitative referent that orients our feeling of life and our perception of the Universe. But when we reflect better on the effort we make to measure, through each interpretation, the successive states of consciousness that we acknowledge as changeable, but we insist on fixing as if they were movie scenes, we get to think if it was not better to let life run, understanding at each moment what became clear, letting ourselves project with totality, admitting life as a possible expression, which realizes us, regardless of the measure of the act that may constitute that clearness.
It is not possible for us to capture any absolute totality, nor to isolate any event; it is only possible for us to relate the parcels of the successive totalities and to abstract referential states of relative identification of the events. But it is not by the condition of the limits of existence, that the being stops being intercepted by all fragments that follow in the whirlwind of the happening of life, on the places where the infinite is recorded. Everything that happens to our being, happens as totality, but we only apprehend parts; the connections are infinite. The relation that prevails is not at the level of apprehension by the human capacity, only that relation which manifests itself by the real presence, that which coexists with our limits and make us feel related, can be really apprehended. Nevertheless, our integration exceeds those limits and, therefore, the totality is captured as a possible abstraction and always from any radical that tends to the infinite. It is within this dimension of comprehension that we surpass ourselves; which, being a requisite of pure thought, becomes hard to achieve, since it demands a mental attitude, very profound and disciplined, in thought and expression, and it is, nevertheless, this state of consciousness that will allow us to reach totalities that go beyond the limit of the matrix, which is the foundation of our integration.
We must be involved within the dynamics of the events, be touched at the deepest of our existence and walk by the line that connects us to all the matrices of the Universe so that we are armed with a strength that ejects all the necessary substances to our constant adaptation. It is a vital need, this order that is making itself through the relation with the elements that we experience by living based on the voluntary commitment, of wishing to live without obliging life to excessively exaggerated situations. Living with what it gives us, with the knowledge that illuminates us to search for everything good that life has, subtracting what we engender of evil, making it collide with good in the speed of the good responses we will have to give, to contradict those which, in most cases, occur by the action of mental residues, which are the product of thoughts, occasionally disturbed and confused. We must live, also, through corporal and mental self-discipline, so that we are always well open to the information inputs that occur in the nervous and organic relational activity, which, due to the pressure of the microsystems, set off balance changes in our motivational cycle and, consequently, a certain momentary tension, for which we do not have an exogenous response, nor are we able to know for how long it will be necessary the endogenous action to the balance of our systems. It will be good that we may live, letting ourselves to be surprised by our own life in its nuances, which are neither quantifiable nor permanent in the behavior.
Since it is a fact that we are finite, limited, incomplete, but i tis also a fact that we transcend ourselves, that we surpass and add to ourselves. On the other hand, in process of mutation, enters a lot of random information or of unmeasurable combinatory action. So, if we walk by the line that connects all the matrices of the Universe (living and impelling ourselves voluntarily to the movement of life and to its consequent changes), if we capture the substances in each environmental context and are able to participate by relation in that unmeasurable combinatorics, the finitude, the limitation and incompleteness will become the necessary conditions for us to coexist soon with the Infinite and with the Absolute. Matter and form will not be, within this context, only orders and physical elements, they will also be structures of the infinite, main elements of the matrices of the Universe. By analogy, we might say that they will be the layers of a cake, where we add elements that produce esthetical sensations, which are taking our thoughts to the furthest away possible and, at the same time, are forming within our conscience feelings, in which the bodily attraction decreases, in the particular appreciation of matter, and, simultaneously, these feelings are becoming even more intense in the bonds of tenderness that we are nourishing for the thoughts, because they take us to the infinite and allow us to interact with the spirit, who universalizes matter and humanizes it for the attraction of the mind and the production of art.
Macedo Teixeira, When the Stars Awake, Sítio do Livro, Lisbon, July 2014, pages 62 to 66.