Crescendo Constroem-se os Sonhos

25-11-2011 00:00

Crescendo Constroem-se os Sonhos (III)

    Temos que escolher entre um mundo natural, com a sua própria ordem e com a nossa liberdade de escolha para viver, e um mundo natural e humano construído por nós, mas com egoísmo e só para a nossa vida. Essa escolha tem que ser feita pela necessidade de caminharmos para uma ordem que recapitula a perfeição humana, no mundo do ser criança, do ser jovem e do ser adulto.

    Ainda me lembro das primeiras sensações e do eco da gritaria ao sairmos da escola, do pontapear as pedras e empurrar para o chão os companheiros que às vezes mais gostávamos. Era uma certa maneira de dizer, "até amanhã!" Tornava-se na forma de manifestar a amizade de qualquer modo. E se não era, por vezes, o melhor modo, a experiência realizava-se e o sentimento começava a tornar-se forte.

    É neste quadro de efeitos temporários e distantes que começa a nascer para cada criança uma nova perspectiva sobre o que vai ser novo e diferente no futuro. Novos companheiros, outras situações que desconhecemos e, por ventura, mais tristezas e alegrias sobre as passagens ou reprovações na escola; perturbações da nossa inteligência, que ainda não está completa, nem pode ainda compreender todas as razões.

    Mais quietos e mais conformes com a nossa natureza de meninos, vamos situando a nossa vida e fazendo questão que ela seja como queremos. Construímos os nossos desejos num jogo de forças e de relações sociais que são a expressão da educação e da ordem dominante. Inventamos soluções para as nossas dificuldades e suprimos as faltas de todo o tipo de coisas, pelas respostas que encontramos. Às vezes vivemos alheados de tudo o que não queremos sem a certeza por que o fazemos, mas com a ideia que resistimos deste modo à forma de um mundo que nos querem mostrar. Um mundo que é nosso, mas muito diferente daquele em que vivêramos antes, que era completamente nosso, porque éramos pequeninos e não conhecíamos classes. Agarramo-nos ainda a ele com todas as nossas forças e todas as recordações que guardamos, pensamentos que se tornam na força que nos mantém na certeza de que era bom viver como quando fomos pequeninos. Nesse mundo não éramos estranhos e sabíamos como fazer. Não tínhamos que nos mostrar nem ganhar consciência das nossas dificuldades. Afinal, alhear-se nesta fase que recapitula a fase de menino é uma forma de resistir a uma outra ordem que vamos pouco a pouco reconhecendo como necessária, já que o outro plano do nosso ser, o plano da responsabilidade, vai rasgar o véu que escondeu anteriormente os grandes mistérios da nossa vida.

    Agora já não somos mais, nós e o mundo, que era nosso e só entrava nele quem nós queríamos e gostávamos. Já não podemos fazer o que queremos nem que seja para chamar a atenção e sermos o centro da vida. As interrogações nesta fase da responsabilidade, no que ela tem de limites, tornam-se na plantação do querer existir em cada momento conforme as sensações que temos. Sensações que ainda não são verdadeiramente nossas por que lhes falta ainda um sujeito determinado a existir livremente, sem qualquer condição que não seja a de ser sujeito num mundo de objectos. A adolescência rompe numa atitude descomprometida com o mundo e com as pessoas; não acontecem factos que entusiasmem muito e agradem o suficiente. O mundo e as pessoas configuram expressões e formam sentimentos que são hipoteticamente contrários às soluções que os adolescentes desejam e acreditam ser possíveis. A figura do sujeito determinado a existir livremente não se exprime ainda senão como ideal, não tem ainda suporte de atitudes completamente livres. O que os jovens vêem e sentem nesta altura desliza para emoções que não trazem nada de novo e que permaneça muito tempo. As atitudes são ainda frágeis e não libertam a vontade de tudo fazerem conforme lhes dá mais gozo e não do que seja melhor para todos."O princípio do prazer e o princípio da responsabilidade” não são muito distintos nos seus limites nem nas suas formas. Nesta altura os jovens adolescentes não deixam os domínios do prazer, pois assumem-se "senhores do que sentem e querem", participam na cooperação social pelo ensaio da responsabilidade, mas sentem-se "estrangeiros" quanto às regras que são socialmente adoptadas e que têm de respeitar. Não sei se é da nossa própria natureza resistir na revelação de qualquer plano, em que não fizemos as regras; sei que mesmo bastante mais velhos não nos é fácil conhecer e aceitar sem qualquer constrangimento na vontade o que é escrito e regulado para qualquer estrutura organizativa e sua aplicação prática. Sei que há em toda a nossa vivência e nos seus diferentes actos diversos pontos críticos entre a concordância e a decisão. Julgo não ser despropositado dizer que, na revelação dos planos, o dia e a noite têm um ponto crítico real, um ponto em que há tangência da noite com o final do dia e vice-versa. Com esta ideia pretendo justificar uma certa ordem natural e social e as diferentes perspectivas em que nos temos de colocar. Digo que tem que haver uma superação pessoal das qualidades do dia para o experimentarmos nos diferentes modos e sentirmos profunda e implicitamente as suas diferentes mudanças. É assim que se vivem estes planos elementares da unidade que se chama dia e é assim que se compreende que há na natureza uma certa ordem cíclica e que as mudanças desta resultam de transformações. Pretendo mostrar, afinal, que mesmo sobre a nossa relação com a natureza existe uma certa necessidade de ajustamento e superação dos pontos críticos em resultado das transformações naturais e que o homem não o faz com voluntarismo absoluto. Creio, entretanto, que é esta atitude que faz com que o homem seja um ser cultural por excelência e me leva a compreender que seja da nossa natureza a vontade de resistir a tudo o que está feito e a dar-lhe outra forma. Vejo, porém, que este grau de resistência vai mudando à medida que vamos sendo maiores e que os limites da sua maior complicação se verificam em certas idades e nos domínios da ordem humana e social. Concluo, porém, que mesmo na ordem natural a nossa relação tem de ser de superação e ajustamento, o que quer dizer que não podemos proceder em contradição para vivermos naturalmente bem. Logo, esta atitude de resistência humana, será por ventura natural, mas torna-se em certas fases da nossa vida numa força de acção muito poderosa pelo que deverá ser muito bem apreendida na ordem social para que cada um de nós não se perca no seu crescimento correcto.

    É como adultos, e mais responsáveis, que começamos a compreender que as sucessões dos planos naturais e sociais se tornam numa manifestação natural de revelações que nos parecem sempre semelhantes, mas que devemos assimilar nas nossas acções quotidianas por linguagens e gestos de total cumplicidade. Sinto que estas relações naturais vão ganhando uma aceitação e entrega à medida que vamos envelhecendo, à medida que vamos sentindo que afinal somos elementos do Universo e que conforme melhor com ele vamos combinando vamos sendo mais felizes e brilhando muito mais. Creio que é da nossa natureza esta atitude e acredito que está na nossa substância estas qualidades de sermos integrados no universo dos vários elementos pela extensão das nossas capacidades. De sermos integrados noutras formas e noutros planos, mas com a acção das nossas resistências e mudanças.

    À medida que nos vamos ligando mais ao mundo e às suas partes, vamos contrariando a nossa estabilidade emocional e desejando mais a nossa emocionalidade. Será, certamente, por esta razão que começamos muito cedo a rejeitar o mundo e a sua ordem, não fomos nós que a fizemos e pensamos que os que nos antecederam não tiveram a inteligência e o juízo suficientes para fazer um mundo melhor. Limitámo-nos a um idealismo emocional, despertando muitas vezes para exaltações e acontecimentos que nos parecem únicos, que nos parecem encaminhar para a realização plena e nos dar tudo o que precisamos. Os jovens adolescentes são a expressão temporal humana que melhor traduz esta forma de comportamento, esta forma de resistência que levanta maiores complicações nos domínios da ordem humana - social.

    É da nossa natureza o sentimento e a emoção, são elementos básicos do nosso humanismo e os elementos principais para a iniciação do nosso romantismo corporal. Resistimos, de um modo geral, durante a nossa vida a tudo o que é dureza e convicção forçada, mas na adolescência esta resistência por vontade de criar e mudar tem uma especificidade mais determinada. Pois se o princípio do prazer está agora mais nítido e traz-nos alguma vergonha quando praticado fora dos seus limites, o princípio da responsabilidade não é ainda integrado sem uma resistência, por vezes radical, e o modo que encontramos para a exercer manifesta-se pela prática do prazer e do gozo que a aventura e a rejeição causam no seu exagero.

    A adolescência traz consigo a emoção do tempo de viver e pensar no que mais agrada e do que é mais útil para nós e nos faz participar por envolvimento. Normalmente, procuram-se os acontecimentos que nos dão mais partilha de prazer do que de responsabilidade, acontecimentos que nos fazem esquecer do horário e da distância, esquecer com quem se está e onde, com quem se vai e com quem se vive. O mais importante para nós somos nós próprios - os outros têm que nos compreender e nos aceitar como somos e com a liberdade que queremos. A moral da autonomia baseada num sujeito legislador e obediente, a liberdade de viver com os outros e para os outros, ainda estão bem longe deste tempo de crescimento. O homem faz-se na vida, mas esta vai tendo a forma temporal vivida e as experiências adquiridas que são como se pode compreender, conforme as necessidades que cada um vai tendo. A exigência a si próprio só a determinamos num sentido de imitação e compromisso com o grupo, não necessariamente, com um plano cujas partes ainda não são necessárias no projecto em construção e muito menos na sua materialização.

    Nesta altura não sentimos necessidade de mudança nos ajustamentos e adaptações e fazemo-lo, com alguma contrariedade, se não for para o que nos diz estritamente respeito. O mundo tem de ajustar-se a nós e não o contrário; não temos de ser elementos de planos de projectos passados e se os mais velhos não concordam é porque não evoluíram o suficiente e são demasiado exigentes. Tenho consciência que estou a ser um pouco radical na análise observada, mas os pormenores é que podem variar um pouco, o resto tem uma forma temporalmente definida que se repete em todas as gerações. Eis, porque acredito que seja da nossa natureza ou até, quem sabe, de toda a natureza a tendência para resistir, que no homem, em meu entender, ganha a força de domínio e torna-se numa raiz da emergência cultural humanamente necessária. O problema surge nesta totalidade temporal e genética que terá que ser sempre bem acompanhada para que o homem se faça no tempo de cada uma das suas fases de crescimento com equilíbrio em todas as dimensões. Não pode a tendência a resistir perder-se do sentido natural da mudança nem as transformações vitais ocorrerem por ruptura com a capacidade humana.

    Resistir até ao ponto crítico, até ao ponto em que não podemos mais ser o centro único do amor e para o qual tudo terá de convergir, não será despropositado se estivermos a crescer e ainda não formos maiores nem necessariamente obrigados. Mas, logo que a idade e a responsabilidade tenham suporte natural do fazer da vida, não devemos encaminhar-nos para o resistir, como negação da ordem natural e social, antes, pelo contrário, devemos solidarizar‑nos com ambos e assumirmos a nossa parte no processo. Nada se mudará para nós se não nos mudarmos também, a proporção é individual mas a força da convicção com que o fazemos é elementar para nos desenvolvermos num mundo que é real. A maioridade, quando bem estruturada na sua origem e ordenada pela educação na base do dever e do respeito, trará ao homem a compreensão de que a liberdade não é um sonho, mas esta compreende todos e nós somos apenas um elemento que tem uma função na sua linha. A maioridade trará ao homem a compreensão mais natural destas realidades, pois até o dia e a noite em tangência têm de se superar para darem lugar a cada uma das suas composições. E o homem tem de se superar no centro para se elevar até a um outro onde passará a ser elementar, mas já não sujeito único.

    É bom recordar (e é com esta preocupação que escrevo estes pensamentos) que aprendi pelas experiências diversas que a expressão da vida não tem uma forma definida e acabada em cada uma das nossas épocas ou fases, pois esta desenvolve e rege-se por princípios e leis que são constantes e permanentes e, por isso, são naturais. Estes princípios e leis são as bases reguladoras necessárias e convenientes à vida de todas as gerações, e eu só vejo uma maneira simples de deles falarmos para que todos mais ou menos percebam a sua importância, e essa maneira é recordá-los pelos sentimentos vividos e expandi-los às emoções de cada um. É mais fácil perpetuar estes pensamentos pela comunhão geral de vivências e plantá-los nas emoções mais jovens, para que as formas das expressões da sua vida venham a ter conteúdos diferentes, como será lógico e natural, mas não sentidos nem ordens nem dimensões diferentes dos desígnios que a vida humana sempre deverá ter em todas as gerações.

    Tenho ainda muito vincadas as preocupações dos que me ensinaram a descobrir o caminho da vida autêntica, foram breves sentenças morais que se tornaram à medida que ia crescendo em sinais de aviso de que nada aconteceria sem que a nossa sensibilidade fosse subtilmente perturbada. Esses sinais foram as fontes de expectativas e os pensamentos reveladores de uma ordem que era preciso descobrir nem que fosse à custa de aventuras que deixassem algum desespero na alma e remoques de desânimo no mal sucedido. Ninguém me pôde avisar dos meus sonhos nem me dizer como caminhar para os encontrar, mas todos me falaram de algo que era a sua própria razão e se tornava na sua própria força. Todos me contaram as suas maiores realizações e me falaram em forma de exemplo elevado; acontecimentos da sua vida e sentenças moralmente profundas, formas de um bom encontro para sempre.

 

Autor: Macedo Teixeira; Obra: Crescendo Constroem-se os Sonhos; Editorial Panorama, L.da; Março de 2002; págs. 25 a 35.