Crescendo Constroem-se os Sonhos (IV)

09-12-2011 16:56

Crescendo Constroem-se os Sonhos (IV)

    Afinal, vejo agora, com claridade que a razão pela qual cada um se guia e se rege é a razão da sua vida que, sendo original, dá-lhe o toque de qualidade que nos torna diferentes uns dos outros. Afinal, todos se reforçam num sentimento que é o valor mais elevado e mais íntimo e é também o mais secreto e o mais precioso. É por uma qualquer razão que cada um tende a realizar de um certo modo a sua vida. Uns, vivem para deixarem exemplos morais de uma conduta séria e honrada; lavam as mãos de tudo quanto possa ensombrar esta ideia – a sua causa tem a razão na honra e no valor da dignidade. Outros, vivem para a aventura; querem deixar exemplos de um heroísmo e abnegação que emocione a vida e faça com que sejam recordados mais pelo que viveram e fizeram do que pelo que foram. Outros, vivem para o mundo e para os problemas que este levanta, entregam-se em espírito e trabalho numa missão que não escapa à dor nem conhece elevações de luxo; procuram limpar o mundo, conforme lhes é possível, sem terem em conta quantos são precisos ou quantos existem; trabalham de sol a sol na esperança que o futuro será melhor e os outros o hão-de continuar (neste grupo estão os mais pacíficos que querem deixar recordações, mas não deixar pena nem serem indesejados). Outros há que vivem para a miséria, sem que esta lhes peça para ficarem; por todos os caminhos por onde andam, prendem-se à pobreza miserável da escravidão da vida, e nem sempre são pobres de bens e de espírito. São pobres, porque trocam a condição da luz pela condição das trevas; e pobres, porque trocam o que têm de melhor que é a liberdade de serem ricos com alguns bens e viverem conforme a saúde da sua alma e a beleza do seu espírito.

    Sei que todos têm a sua razão e todos se reforçam nestas convicções. Todos têm a ideia que a sua é a melhor razão e que não há outra possibilidade de a melhorarem, quando é negativa, ou de a combinarem numa comunhão participada para além da sua causa. Reconheço que estas são razões da vida do homem, mas só em parte as razões da vida humana. E, se estas não forem reguladas nos períodos da nossa juventude, tornar-se-ão em tensões que despertarão forças positivas e negativas que poderão ser em qualquer caso prejudiciais à vivência da nossa consciência e liberdade. Foram, apesar de tudo, estas expressões da vida e os planos que elas projectam que fizeram a minha personalidade. E o modo como a desenvolvo e me aplico na adaptação e integração do Mundo. Foram estas condutas que me inspiraram a procurar os caminhos que me conduzem ao meu destino, que fizeram com que acreditasse que a liberdade existia e que era o melhor prémio da vida, além da saúde e da santidade da alma. Acredito que seja da nossa natureza a tendência para resistir a tudo que não traga nada de novo, que não seja empolgante e provoque ondas de fascínio e de mistério; o homem só não resiste ao que o surpreende. Disse-me, há muito tempo, um amigo, que um homem só não resiste à sedução e, que por ela, se deixa encaminhar até ao momento em que ela dure.

    De facto, o homem surpreende-se e admira-se pelo desconhecido e por tudo quanto o encante e o faça sonhar. É neste estado de graça que procura completar-se pela satisfação na resolução dos problemas que o acordam para as necessidades. Acrescento, porém, que para além da sedução existe algo que o envolve com muito mais força e permanência; algo que se encontra entre o vivido indefinido e o desejo de viver pela sua própria razão, o desejo de encontrar a sua linha e de fazer o seu próprio figurino. É aí que se situa um poder incondicionado e natural que impele cada um de nós para um estado dos planos da vida, a que o homem não resiste e, em quietude, procura escutá-lo para o definir e ser-lhe fiel no mais íntimo e profundo do seu ser. É essa força que sensibiliza e emociona a nossa razão e faz com que cada um se projecte para um ideal que não conhece em concreto, mas pensa nele como limite possível. Não é, certamente, o sonho de uma glória conquistada, porque esse é um sentimento que ganha força em cada realização da vida. Pela minha experiência atrevo-me a dizer que será uma força que não tem designação e que nem sequer está regulada pelas capacidades humanas, mas que se manifesta conforme vamos vendo e sentindo o mundo e nele conscientemente vamos tomando parte.

    Vivemos em conformidade com uma ordem de gradações que se expandem ou se contraem, com influências determinantes na nossa espécie. São elementos vitais, sem uma definição real, que emergem da transformação geral e permanente do Mundo e que actuam na razão da nossa vida com efeitos consequenciais na sua ordem. O valor da emoção de cada um de nós em resultado destas influências está na nossa consciência, porque delimita-a para responder às tensões criadas por esta Ordem e equilibradas por este poder. Só isto como acontecimento pode explicar os diferentes modos como o homem capta e compreende os efeitos do mundo e lhe procura as suas causas. Só esta possibilidade poderá explicar que o plano da ordem do mundo seja o mesmo e os seres humanos sejam tão diferentes e tão diversos na concepção dos seus projectos e na resolução das suas emoções. Será esta força que impelirá a nossa razão para o encontro da luz da alma que a serena e a equilibra donde em consequência nos equilibramos nas tensões próprias da vida. Será este poder que tornará o homem capaz de ser diferente ao longo da vida e poder, sem perder-se, sonhar até à utopia.

    Este poder e esta força não serão os únicos recursos do homem, mas serão, com certeza, os mais inspiradores na sua elevação. Não são, por esta razão, elementos de um qualquer paraíso artificial que estejam só no nosso pensamento. É algo que acontece e que não é a força do homem nem a sua capacidade, que é antes a projecção de uma força que dá outra expressão ao pensamento, desde que o homem se incline para ela. Creio que é um prémio que reforça o sentimento e expande a consciência para limites que são reais e não existem só na imaginação ou fé; existem fundamentalmente nas possibilidades das inclinações possíveis por um poder transcendente ao homem que actua livremente na sua realização.

    Quando vejo que tudo está ao nosso alcance, com certa regularidade, mesmo que com muito trabalho e esforço, não vejo outra explicação para que os homens e mulheres neste mundo continuem a superar, o que são obstáculos, muitas vezes perigosos, se não fosse o desejo de conhecer os seus limites para além do real físico. Se tudo o que o homem precisa para sobreviver lhe é dado como a todos os outros animais, por que razão o homem se aventura para realidades aparentemente impossíveis? Quando vejo que cada pessoa se transcende para a busca de outros elementos essenciais através de vários modos, vejo-me forçado a admitir que o homem só se torna verdadeiramente homem nesta animação para um outro estado do ser. É nesta elevação transcendente que o homem se completa, torna-se no que é e mostra em sentimento o que desejou e sentiu ser possível alcançar. Será este sentimento mais empolgante e arrebatador que lhe trará serenidade e o fará feliz.

    Esta força começa bastante cedo a tocar-nos sob as mais diversas formas. Quando jovens e maiores já não são só os exemplos que nos preocupam, mas também o sentimento de liberdade que esses exemplos na prática nos causam. A partir desta altura, somos induzidos para práticas que não nos envergonhem nem sejam indignas, e isso não acontece só porque existe condenação social, mas surge na sua evidência pela necessidade do modelo que queremos construir, e que cairá por terra, se os nossos sentimentos de estima forem perturbados e destruídos. São estes sentimentos que, já nesta altura, manifestam em si esta força que aos poucos se vai tornando mais perceptível, na medida em que nos tornarmos mais perfeitos na maioridade. É esse sentimento interior que nos vai estimulando na caminhada e despertando na vontade da aventura. Os exemplos são a expressão resolvida do pensamento desejado; o que nos incitará mais no caminho da maioridade é a vontade de conquistar o nosso próprio destino, caminhar pelo seu caminho e chegar às metas que o estabelecem. É essa força e o poder que esta intensifica que tornam o homem capaz de formar um ideal com o seu próprio sentido e o seu plano próprio. Um ideal que faz de cada um aventureiro ou apaixonado, devoto ou libertário, sonhador ou convencido.

    Neste contexto, os outros surgem como referências e sinais indicadores; surgem no nosso caminho como se nos visitassem e nos trouxessem alguma coisa que é necessária. São elementos de um processo, que acontecem no perímetro do seu destino, mas só se podem completar com os jovens que com eles caminhem e façam por si mesmos a sua própria caminhada. Por isso, os outros surgem como elementos inspiradores das tarefas que temos de realizar para cumprir o modelo que queremos como projecto; os outros inspiram-nos nesse fim e nele se realizam também. Os outros são a experiência realizada nos acontecimentos que consideramos positivos para seguir; são a marca de um desejo moral que nos querem transmitir. Nesta individualização e concordância cautelosa, a nossa natureza é induzida à capacidade de rejeitar o que não queremos e, até às vezes de rejeitar aquilo que precisamos, mas que a nossa sensibilidade não se apropria imediatamente. Não será uma capacidade que dependa apenas do sujeito na escolha ou decisão, será uma capacidade natural que deriva da ordem humana no seu crescimento e que nesta altura é muito mais determinante na resposta a qualquer perturbação positiva ou negativa do desenvolvimento da nossa vida. Não julgo de modo radical esta atitude de rejeição, nesta altura, ao que não gostamos, apesar de alguma inconsciência. Nem vejo nestes actos uma desaprovação do acto social, a não ser que a nossa rejeição seja feita com actos indignos que nos atrofiem na caminhada da vida. Vejo, nas atitudes de uma adesão cautelosa e pensada, o resultado da procura pelo que cada um é em si mesmo e também pela procura da sua igualdade. Por um lado, porque cada um possui a sua especificidade; e por outro, porque todos num mundo possível de aventura querem ser actores dessa possibilidade. Acredito que existem igualdades diferentes numa igualdade comum. Também nesta dimensão ponho-me a pensar, não só nos outros como também nos elementos naturais, e concluo que a igualdade é uma realidade lógica e não é uma aspiração humana; a igualdade existe para que os elementos a diversifiquem e a tornem diferente nas suas formas. A animação é a mesma, difere nas formas e nos momentos; a vida é igual mesmo na diferença e na diversidade. É por este quadro comparativo e na sua lógica plural que insisto nas grandes questões da juventude e na sua educação para a maioridade. Na verdade é da maior importância a educação da responsabilidade e da preparação para a liberdade de vir a ser responsável pela sua vida e pela ordem que cada um integra e de que é elemento base.

    Na juventude, o que mais nos preocupa e mais inspira são os sentimentos de liberdade para vivermos a vida que sabemos igual para todos, mas não sabemos que os seus efeitos variam conforme forem os modos com que a respeitamos. Neste período, somos mais conforme o momento do que conforme a razão. É próprio desta fase a procura de uma comunhão de sentimentos do que é mais fascinante e do que é mais libertador de todas as ordens socialmente definidas. Os sentimentos de liberdade parecem-nos iguais em todas as vidas semelhantes à nossa e julgamos que só nos libertamos das desigualdades em que caímos ao crescer, se formos capazes, agora, de viver em liberdade e na riqueza dos elementos que a fazem no nosso dia-a-dia. Não é preciso pensar muito nem ser muito cauteloso, basta-nos alguma prudência e um espírito forte e dominador. O diverso não será necessariamente diferente; o diverso pode ser igual nesta forma e o diferente pode justificar todo o tipo de ensaios e experiências. Basta que nos deixem ser livres e que confiem em nós e nada de mal há-de acontecer.

    Não há, acreditamos nós, outro modo melhor de nos tornarmos nos adultos do futuro senão pelo modo de crescer e viver fazendo da nossa vida um ensaio permanente. Os outros não são senão expressões de uma referência que tende a ser universal e a ser divulgada por cada um dos elementos que a compõem e de que o Homem é a sua mais elevada realização. Cada um é, por esta razão, parte integrante dessa referência; é um elemento singular na sua ordem e tem uma originalidade que é preciso descobrir e nós, como jovens, acreditamos desempenhar aqui um papel principal.

    É nesta complexidade imprevisível e mais intolerante na crença das razões clássicas que a sociedade tem um papel determinante no auxílio às vivências da juventude pela forma educada e exemplar, porque se a juventude tende para a liberdade sem limites, os exemplos sociais indicam-lhe o referente normal do razoável e os jovens esforçar-se-ão na originalidade, mas corrigir-se-ão até aos limites normais.

    Lembro-me, com alguma emoção, de alguns factos que ocorreram na minha vida e que revelam com nitidez os ensaios que eu fazia para realizar o que julgava, naquele tempo, serem desejos pessoais e gostos de ser jovem e ser bom. Pelo que vivi nessa altura, e pelo que fui capaz de realizar até hoje, acredito que de facto não há outro modo melhor de nos tornarmos nos adultos do futuro senão pelo modo de crescer e viver, fazendo da nossa vida um ensaio permanente e, nessa altura, quando jovens, crescer e viver pelas experiências que tenham como limite o ser bom. Quando eu era jovem, o que me ocorria nos meus pensamentos era o desejo de ser o melhor, o desejo de ganhar e de vencer. Creio que sou necessariamente sincero e não creio que tenha mudado alguma qualidade de raiz para dizer o que de facto não fora. O que eu sentia nessa altura traduzia-se pelo desejo de ser o melhor, de vencer e de ganhar, mas quando apertavam comigo vinha sempre à minha lembrança, já não o desejo único de ganhar, mas a alegria de não perder, mesmo que não vencesse, de não ser o último; a alegria de ser referência para os outros. Não gostava nada que me vissem perder, mas aceitava passar como perdedor, envergonhava-me é se me sentissem derrotado perante a situação em que ficava ou a pontuação que obtinha. Hoje sinto com verdadeira razão que o que me afligia verdadeiramente não era o perder ou ganhar, era o ser notado como um bom jovem que se interessava pela vida, ainda que ela não trouxesse grandes alegrias; desejava ser escolhido para participar, e gostava de ganhar, fazia questão disso, mas nunca senti como mais grave a derrota do que o sentimento de condenação que os outros poderiam vir a ter sobre mim. Esse sentimento perturbava-me tanto que às vezes mal distinguia o resultado, fosse ele qual fosse, era na aprovação social que eu via a minha maior vitória.

    Creio que é essa sensação que faz com que o jovem queira ser destacado naquilo que faz e, sobretudo, naquilo que anseia realizar. Todos sabemos que o sentimento de vitória dá-nos uma grande segurança e uma emotiva capacidade de auto-estima, mas tal capacidade não é mais fortificante que o sentimento de participação e pertença pela escolha que fazem de nós, pelos melhores modelos que temos ou pelas melhores capacidades que representamos.

    Tenho ainda profundamente vincada a gratidão que exprimia a todos os que me escolhiam para participar no seu grupo; e não era só por me sentir "bom'' no que fazia, entenda-se o conceito, por ser jovem e ser próprio da idade, eu sentia-me reconhecido ou "desejado" pelos outros e especialmente pelos meus pares. Sabia que eles gostavam que eu os ajudasse e fôssemos um grupo forte e vencedor. Infelizmente, parece ser normal na actualidade fazer-se por tratamento de choque a mudança de atitudes nos jovens; digo infelizmente, porque não vejo que isso seja uma atitude social correcta e que produza os melhores efeitos e consequências. Parece ser normal que ainda em tenra idade o sentimento natural que atrás referi seja quebrado na sua particularidade para dar lugar a atitudes comprometidas pelo jogo da lógica do vencedor a qualquer preço e em qualquer condição.

 

Autor: Macedo Teixeira; Obra: Crescendo Constroem-se os Sonhos; Editorial Panorama, L.da; Março de 2002; págs. 35 a 48.