Conto premiado pela Junta de Freguesia de S.Nicolau - Porto

13-12-2010 20:02

                                Nas Contas de Uma Vida 

      Fiquei dominado e confesso que me envolvi durante algum tempo da noite, num silêncio de acordo, para descansar a cabeça e contemplar a recordação dum acontecimento tão humano que se passou num dia destes em que tive de visitar Lisboa. Eu era um elemento de um grupo que participava num congresso cheio de surpresas e emoções; estava muito fatigado por que não tinha grande experiência da pressão das grandes multidões, nem sabia bem, como fazer quando nessa tarde chegasse o meu momento de responsabilidade na acção de congressista; quando chegasse o tempo de defender de um modo mais directo os objectivos que me levaram à reunião com o grupo de pessoas e na capital do nosso Portugal.

     Encontrava-me numa grande cidade e, apesar de fazer parte de um processo social, sentia-me só; sentia-me como se fosse uma peça de uma engrenagem que só entra em funções, mas não manifesta sentimentos; a diplomacia toma conta da moral e dos seus fins, tudo parece reduzir-se a gestos simples que nem sabemos ao certo se os estamos a interpretar bem!

    No intervalo, saí para almoçar, tendo por algum tempo conquistado a minha maior liberdade, atirei com as palavras para uma qualquer pessoa e num qualquer lugar por onde ia passando à procura do sitio para comer. Não escolhi, não tinha vontade de escolher fosse o que fosse, o que queria era manter o equilíbrio e afinar a memória para me sentir mais vivo. Queria libertar-me da tensão que a expectativa me havia criado e forçar a vida que me traz ao peito e me desperta nas minhas emoções. Queria, enfim, ser um sujeito elementar, mas também ter no acontecimento a facilidade de me emocionar pela viagem, pela cidade e pelas pessoas – ser um ser de carne e osso.

    -Posso ver? – perguntei, com delicadeza e respeito pela idade daquela linda senhora!

   -Esteja à vontade, menino! – exclamou, com apreensão e curiosidade. E com alguma pacatez e mansidão, lá foi dizendo:- Veja, que há coisas muito bonitas e boas!...

    Tenho no meu temperamento a ingenuidade consentida de tudo ver e apreciar com espontaneidade e elevação. Dou valor às coisas e às pessoas sem estar preocupado com o que sinto sobre esta atitude. Às vezes, a conversar com os amigos, digo que gosto de inventar paraísos artificiais; jogar com o tempo e correr atrás dele para não chegar atrasado aos deveres. Gosto de nunca estar só, nem que seja com a conexão da vitalidade das pessoas e dos objectos que embelezam e enfeitam as montras dos estabelecimentos. Das cidades, gosto do jogo de luzes e de gestos que os espíritos transcrevem e cujos movimentos lhe dão uma certa graça. Mas, fico atordoado pela impressão que me causam na sua estranheza e embriaguez; atordoado pelas ilusões do seu fascínio e pelo pânico da sua solidão.

 Passou um certo tempo em que me preguei ao enlevo daquela senhora e à voz com que atendia os outros compradores e que eram mais efémeros.

   -Já viu o que queria? – perguntou, com insistência.

 -Já, já vi o que queria estimada senhora – respondi em tom interrogativo. Foi esta voz menos adocicada e mais altiva que me integrou no meu gesto social, mas sobretudo no meu gesto de amor, para trazer sempre objectos de recordação das terras que visito.

   Naquele intervalo conquistei a minha liberdade e a capacidade de dedicar um pouquinho mais de atenção aos meus; lembrar-me de quando era menino e ficar ansiosamente à espera daqueles que me tinham deixado a brincar com os meus “autocarros” feitos de caixas de camisa. – Eles haviam de trazer alguma coisa! Eles nunca se esqueciam de mim!... Eram coisas simples; objectos que traziam a marca do homem e o sentimento de Deus.

   Os objectos da minha infância estão ainda tão vincados na minha memória e servem-me tanto nas minhas fugas para o vivido que em certas ocasiões desejo ardentemente voltar às ilusões de criança e inventar os brinquedos que nunca me deixaram só.

   Não fora estes sentimentos e teria nestes anos de existência soçobrado às circunstâncias da vida. Teria ficado entalado entre as tensões e o sofrimento da ingratidão e do desrespeito pela pessoa humana; teria perdido o interesse e o gosto pelas convicções ou teria quebrado, pela fúria na desforra de qualquer violência. Esta insistência do coração não tonifica apenas os estados de desertificação humana, serve especialmente para manter uma atracção natural no jogo da vida e da família. As crianças lembram-se muitas vezes dos pais pela figura da ternura e da alegria do seu prémio em carinho; sentem-se muito ansiosas pelas prendas que deverão receber; são como relógios que batem as horas, pela pergunta permanente: - Mãe, quando é que o pai vem?

   Não creio que estes hábitos tenham acabado mas, já não vejo o que era prática de outros tempos. Sei que os pais andam mais preocupados com as situações que a vida hoje exige; sei também que não estão tão sensibilizados para procurarem, por si mesmos, o que são as partes dos seus desejos e da sua satisfação nem verem nos filhos a emoção da expectativa. Os objectos de diversão e brincadeira são mais complicados; exigem uma participação diferente para a compra e compreensão da máquina. As crianças já não brincam com objectos simples e de fácil acesso na explicação e hoje é muito frequente as empresas baterem à porta para mostrarem o que há de mais moderno. Os pais já não precisam tanto de procurar, já não têm esse gosto, tudo está “ a um passo de distância” e, mesmo que não haja dinheiro pode comprar-se a crédito! E quando os filhos têm tudo sem precisar de esperar algum tempo pelo prémio dos pais, também já não se lembrarão muito se estes estiverem ausentes; o excesso material tende a suprimir a carência da vida familiar. Ciclo de contracção e desaparecimento; ciclo de silêncio e de frio que arrefece até à desagregação radical.

   Como se acordasse após esta meditação, animei de novo e escolhi naquela montra onde a linda senhora as tinha em exposição, um conjunto de prendas; objectos que distinguiam os meus sentimentos de partilha afectiva. Nós gostamos dos filhos por igual, mas concentramo-nos no gosto de cada um e excitamo-nos como eles se excitam nas suas preferências particulares. Para a rapariga, uma coisa que diga mais directamente respeito ao mundo; para os rapazes, algo que afirme a sua disputa e preferência! Para nós, uma coisa que nos lembre que existimos, que não somos uma peça velha e deitada ao lixo.

    -Quanto é? – perguntei, com algum carinho.

   A senhora olhou-me profundamente e demorou algum tempo a responder. Não sei se eu lhe fazia recordar alguém. Um filho, talvez! Quem sabe?... Como não tinha máquina de somar e as parcelas eram várias, pegou num caderninho e começou a rabiscar os números. “ – Um,…mais três…;mais sete…; são…”, a memória faltava-lhe e eu tinha-lhe tomado a emoção. Eu, não era um qualquer! Não era, porque ela olhou-me com profundidade e também ficou presa a mim.

 -Some o menino! Já tenho alguma dificuldade! A vista já não é o que era –dizia a senhora em comentários divinos.

   Peguei no caderno e somei rapidamente a conta. Tirei o dinheiro do bolso e paguei-lhe. Não fiz qualquer comentário, mas aquela cena ficar-me-á para sempre gravada na memória. Não esqueço mais que existem pessoas no mundo que confiam, mesmo sabendo que estão misturadas as sementes dos frutos humanos e que alguns ficaram tão maus, que até põem em dúvida a nossa semelhança. Julgo que não me enganei a somar a conta e que lhe paguei o que ela me pediu; atesto o que digo com emoção e profunda gratidão, por ter confiado em mim e por me ter avivado o meu sonho, de trazer sempre prendas para os meus e não me esquecer do Mundo e de o limpar, conforme me for possível!...,desejando que este texto de uma história verdadeira ajude a aumentar a bondade e a crença neste mundo que está em grande crise destes exemplos.

                                            Macedo Teixeira