A Minha Leitura (1)

20-05-2020 17:58
 
 
A MINHA LEITURA (1)
 

Vivemos a maior parte da nossa existência, ou se calhar até toda a nossa vida, num sentimento de contínua insatisfação e numa enorme vontade de procurar sempre mais e mais, procurar o que nos parece diferente e com a ideia de vir a ser melhor para a nossa satisfação!...

 

Será este sentimento porventura um sentimento natural e próprio da natureza humana, um sentimento que talvez participe de um certo mistério, um sentimento que fará parte da nossa essência e por isso será inato em cada um de nós?!

 

Do que fui sentindo ao longo da minha vida e, ao que me parece na minha reflexão, este sentimento, quando na sua função mais persistente e acutilante, tornar-se-á numa espécie de “moscardo”, que de tão incomodativo pela permanência e dureza das suas picadas, vai perturbando com tanta insistência a nossa consciência que acaba sempre por nos desinstalar de qualquer estado de conforto, mesmo que com alguma satisfação. Sendo que com isso nos descompõe e de forma imperativa nos ordena a ter de continuar a prosseguir mais ou menos involuntariamente na nossa Caminhada para podermos continuar a viver e a procurar a nossa própria paz, ainda que quase sempre inquieta e às vezes num lapso de tempo um tanto apressado, para a obtenção entre a insatisfação de uma nova ordem de satisfação, ainda que sempre transitória.

 

Neste inexplicável incitamento, aparentemente indireto e involuntário, vão-se criando sucessivas ansiedades e desejos que nos levam para além de um espaço-tempo, percorrendo o ilimitado, para que numa projeção imaginária possamos voltar a ir ao encontro de um outro novo estado de contentamento.

 

Estado este, que apesar de a maioria das vezes nos parecer ser melhor, não deixará nunca, ainda que já tomado como lei natural e social do ser humano, de continuar a ser um outro e novo estado, porventura quando no caso, sendo melhor do que o anterior, mas que apesar de tudo continuará a permanecer sempre transitório na nossa consciência de satisfação, pois se é que em cada novo estado nos vamos contendo com certo contentamento, ele será apenas um momento não permanente, e só enquanto não pudermos voltar a continuar freneticamente a marchar na direção da nossa imprevisível satisfação.

 

Contudo, tomado que seja este movimento aparentemente inato, pela necessidade de ajudar a impulsionar a nossa consciência para o cumprimento do que seja natural e bom, social e humano: sejam eles, o contentamento, a satisfação da nossa consciência ou a realização da essência da nossa vida, então tomado no sentido destes valores poderá ser reconhecida a nossa natural e permanente insatisfação, se não for fixada de modo tão rígido, que possamos dar razão à expressão: “Tu és um insatisfeito por natureza.”

 

Porém, não vejo em nada de muito real esta permanente insatisfação em que vivemos cada vez mais, nem vejo o seu real valor se esta não for orientada para o “quanto baste”, que não é o que se verifica (tendo em vista a atualidade) e para o que sempre for prioritariamente mais necessária e não tão vulgarmente supérflua, como me parece ser o usual no tempo em que vivemos e na maior parte das nossas ações.

 

Creio que só assim, e perante este procedimento, valerá a pena tomar esta ansiedade como natural e até boa por dependente da lei, mesmo que a nossa consciência possa ser muito perturbada por um tal “moscardo” ou por um tal “aguilhão”, pois tomando-a assim no seu modo perturbante ela torna-se também numa forma de enervação necessária para realizarmos a nossa vida, sobretudo torna-se numa enervação para a procura de um caminho necessário para a superação do que não temos e sobre o que nos pareça não estar ainda completo no sentido da perfeição e da equidade. Só observando-se nesta linha de orientação da nossa conduta baseada numa insatisfação moderada me parece ser tolerada uma tal ansiedade, ressalvando na nossa boa vontade alguns excessos, sobretudo em que a nossa insatisfação tiver de ser ainda mais incisiva e apressada, quando pelo menos esta seja apenas por qualquer razão mais desesperante.

 

Contudo, se plausível admitir-se um tal estado de sentimento, como sendo natural e necessário para o crescimento da nossa satisfação, já o mesmo não se poderá dizer do seu sentido contrário, em que uma grande parte da sociedade, no Mundo atual, vai dando à direção do sentido deste valor no sentimento que é referido, negando aqueles que deverão ser os seus objectivos, pois no caso de um tal sentimento ser também essência do mistério da nossa vida, julgo em meu entender que este só poderá ter como desígnios: a Verdade, a Responsabilidade e o Respeito.

 

Verdade, porque se for condição da natureza humana a insatisfação, como homem nasce bom e participa da bondade, logo, trará consigo as sementes da verdade e qualquer satisfação só poderá ser entendida como tal, se esta for coincidente com a bondade do homem e não for obtida pela sua negação, pois esta já não poderá ter valor para a vida e será apenas um contravalor, e por consequência virá a tornar-se em maldade.

 

Responsabilidade, porque se o ser humano, quando nasce não traz consigo nenhum contravalor, como no caso da mentira, da maldade e da perfídia, a sua ação só poderá ser para o bem da verdade, quando pela prática consciente e de boa intenção na toma de responsabilidade nos seus atos, que deverão ser com vista à obtenção do bem, e com essa atitude poderá manter inalterável a pureza da sua vida, naquilo que ela é, e não no seu contrário, porque procedendo por intenção irresponsável a rejeitará e a tornará impura pela perda e pela mancha.

 

Respeito, porque se a insatisfação for então uma condição natural, ela não poderá nunca perturbar a satisfação do outro, ressalvando que a mesma seja verdadeira e respeitosa, pois se com a sua insatisfação pretender excomungar a satisfação do seu semelhante, procederá em desconformidade com o que poderá ser a lei natural e em consequência poderá cometer crime por contaminar um direito natural que, sendo recíproco, será universal.

 

Quem dera que o homem, não perdesse mais tempo, com a insatisfação gerada pela vontade de dominar, ser poderoso, ser egoísta, ser falso e julgar-se dono do Mundo. Vivemos, é verdade, nesta quadra ( de desespero sobre uma epidemia, que parece incontrolável!) num tempo de Paz silenciosa e de receio no presente e em relação ao futuro, na saúde, no emprego, na convivência social, mas também, na contínua necessidade, da emergência no socorro a tantas crianças, homens e mulheres, adultos e jovens, velhos e novos, que se encontram abandonados à sua sorte, a morrer à fome e à sede nos mares das migrações. A viver na penúria nos campos de refugiados e nas debandadas para fugir à guerra e à pobreza, em vários países do Mundo e em que vivem milhões de seres humanos.

 

Por isso, mesmo assim, apesar de estarmos a viver nesta quadra temporal de maior receio, em relação à nossa vida e saúde, quer no presente quer no futuro, apesar do medo que temos de todos os vírus, que cada vez vão sendo mais fortes e poderosos, na força sobre o nosso Sistema Imunitário, deveremos manter a  solidariedade e o amor incondicional, sobretudo, valorizando os que mais tem lutado e continuam a lutar, para manter, criar esperança e salvar a nossa vida.

No entanto, às vezes, também eu, como qualquer um outro de vós, continuo mesmo assim, perante a miséria humana, que grassa no nosso Mundo, a dizer que gostaria antes de, em lugar de falar de paz silenciosa e de medo, de amor e solidariedade (que são fundamentais nesta quadra de tragédia, que se vive em todo o mundo) e que se vai tornando  em ambiente mais de receio e de saber como viver em conjunto agora e depois de superada esta pandemia. Também eu (se não fora o caso da minha Fé num mundo novo) gostaria muito mais de gritar em desespero e em condenação, sobretudo gritar aos mais responsáveis, por uma certa parte de todas estas tragédias, pela fome que graça no mundo e que tem sido quase indiferentes, pela ingratidão e desespero das pessoas neste mundo social, às vezes tão indiferente e cruel.

No entanto, perdoando (mais pela Fé do que pela realidade) vou acreditando nos homens e na mudança de mentalidades, acreditando de que "amanhã" será um novo dia e, com ele haverão de surgir mais homens, de boa vontade e de grande coragem, e de que jamais irão continuar a permitir, sem reprimenda, que continue a alastrar-se a desgraça e a miséria que vão predominando neste mundo e, então nessa altura, possamos dizer como o poeta: “Há quanto tempo sonho com Aquele que há-de vir e não vem.”

Ou possa eu e todos vós, acrescentar, ainda que possa ser mais pela nossa fé: "Há quanto tempo sonhamos, com Aquele que haveria de vir e veio, porque sempre Esteve no meio de nós!."

 

Macedo Teixeira

 

A CEIA

 

Se alguém vier (há quantos anos sonho

com esse que há-de vir e que não vem

rasgar o frágil véu que nos separa!...

mas, enfim…), se alguém vier

ao banquete que eu lhe der,

em cada fruto que lhe apetecer

toque como Moisés com sua vara…

 

Com sua Fé,

abra de meio a meio o Sésamo fechado;

e dentro dele, deslumbrado,

saiba quem sou e quem é…

 

Arranque do meu sonho a Força inteira,

e eu serei

a bica de água fresca no deserto

o Mar Vermelho aberto

e a Terra de Canaã, que mostrarei

perto…

 

Serei

o verdadeiro sabor do meu banquete:

o gosto do meu sangue e do meu corpo

conhecido…

Todo eu me darei (ao tal que vem),

porque entre nós qualquer distância tem

o seu caminho andado e destruído…

 

Serei tudo, e nunca mais

o louco varrido à roda

do ermo da minha vida,

onde acontece a tal boda

entre o fogo e a casa toda,

sem uma Porta Estreita de saída…

 

Nunca mais

desertos de areia calma

cobrirão picos e fundos

dos cinco insondados mundos

da minha alma!...

 

Nunca mais

meus olhos terão de ver

tanta solidão sem fim:

— ser dono desta desgraça

de não ter terra onde nasça

uma flor que cresça em mim…

 

Miguel Torga, poema “A Ceia”, in “Tesouros da Poesia Portuguesa”, 2.ª edição, Editorial Verbo, 1984, pp. 372 e 373.