A Cultura do Sonho

07-06-2013 17:19

A Cultura do Sonho

Macedo Teixeira

    Sinto-me, hoje, como se fosse um garimpeiro que sai pela manhã, com o sonho de encontrar algumas pedras preciosas e a vontade de as ver brilhar com toda a força da luz. Ainda mal iniciei a caminhada e já o suor me escorre pelo espírito e a ânsia de encontrar algo precioso me varre as ideias e me agita o coração. Sou diferente dele só nos motivos da caminhada: o garimpeiro, que habita os meus sonhos, procura a riqueza para a sua vida, eu procuro a riqueza para a minha alma. Ambos somos peregrinos nesta ansiedade louca de percorrermos caminhos com objetivos diferentes, mas alegrias tão semelhantes! – Que a realidade faça o destino de ambos: um para a vontade de sonhar, outro para a vontade de ser sonho.

   Sinto-me um garimpeiro porque sei que o que procuro não é muito fácil de se ver nem de se encontrar. Transpiro de emoção porque sei quanta necessidade há no que procuro e que agora ao anunciar-me, com a vossa permissão, também vos peço para caminharmos juntos. Ao que venho e ao que me refiro cabem na mesma preocupação, venho por uma razão e refiro-me a um ser. Simbolicamente posso ser um representante, já que, como diz Emmanuel Kant, tudo na natureza age segundo leis e só o homem age segundo a representação das leis, isto é, segundo princípios, ou: só ele tem uma vontade. É nessa qualidade que vos convido a refletirem comigo acerca da razão que evoco e do ser de que somos representantes. Quando somos pequeninos vivemos a nossa vida guiada por ordens de várias naturezas e com objetivos culturais distintos. É a unidade do ser humano que está em questão e a sociedade preocupa-se com a sua coesão e com os elementos que a tornam coesa. Nós pouco sabemos disso, para nós, o que é interessante, é o que sentimos no tempero dessas experiências. Ganha-se em cada dia uma certa vontade para voltarmos a experimentar as atividades do jogo ou das brincadeiras que vamos fazendo. Vão progressivamente aumentando os conteúdos das experiências que desejamos e o gosto de as repetir de novo. Isto leva‑me a pensar que, sendo o homem um ser de vontade, não nasce com essa força formada de modo inato e até pode perdê-la durante o tempo em que vive. Ao experimentarmos uma certa lucidez da vida, damos conta de que com facilidade nos desmobilizamos das convicções que são a força impulsionadora para a realização dos atos humanos mais simples ou mais complexos. Poder-se-á dizer que não são suficientemente fortes nem apelativas que baste, pois se o forem o Homem não esmorece nem se desencanta com os acontecimentos que as abalam. Mas, não é bem assim, não há convicção que seja suficientemente forte para arrastar o homem para fora do sentido negativo da vida se a sociedade não mobilizar as consciências e as vontades para o seu sentido positivo. Na educação realizam-se várias tarefas com vista à formação e desenvolvimento do homem e, especialmente, com vista à sua instrução para sobreviver com segurança. O gosto como sentimento não é muito fácil advir com a instrução programada, mas a formação tem que ter uma qualquer ordem e isso pressupõe educação. Educar é, então, dar uma certa ordem à forma que, neste caso, é a forma humana. Não há, como se vê, outro modo de nos prepararmos para a vida e também de a vivermos. Porém, ao examinarmos a situação atual da sociedade contemporânea, constatamos que a instrução atual é muito desenvolvida nas áreas de conhecimento; os saberes são muito diversificados e o homem do futuro será tecnicamente muito evoluído e cientificamente muito culto. Porém, há algo de raiz que nos deve preocupar e que pouco a pouco se está a perder. Trata-se dos sentimentos do gosto e da vontade com que vamos fortalecendo a vida. Sei que hoje as nossas consciências estão muito esclarecidas sobre o sentido que desejamos percorrer para encontrarmos as nossas potencialidades e vivermos as mais complexas situações, quando queremos ser capazes. No entanto, convido-vos a pensar no seguinte: Dotado de vontade, o Homem será capaz de descobrir os limites da sua liberdade. É uma afirmação que pode ser minha, mas que podemos entender como ideia universal. No entanto, até onde irá a sua força de vontade se os acontecimentos sociais tenderem para a valorização negativa da vida? Se a nossa consciência cada vez mais nos informar de que o que está adiante já está determinado por um esquema social de conhecimento que não valoriza a cultura do sonho. Se a nossa consciência for determinada por um esquema que tenda para sistemas de pensamento binário (0-1), (V-F), como é que será possível o homem descobrir os limites da sua liberdade?

   Em qualquer manual de Filosofia, pode constatar-se que foi com o aparecimento das lógicas polivalentes que foi possível responder a certas exigências das ciências modernas. Com Aristóteles iniciamos a lógica conceptual, que tem como objeto as coisas, as substâncias ou os seres, algo do qual dizemos que tem estes ou aqueles caracteres: “o homem é mamífero” ou “o homem é um ser vivo”. Com os estoicos surgiu uma lógica das proposições, “se o Sol brilha, é dia”, “se há trovão, há relâmpago”. Depois veio a lógica matemática simbólica, que permitiu a substituição da forma gramatical pela forma lógica. A substituição das línguas naturais por símbolos lógicos que representam conceitos linguísticos simplificados em proposições matemáticas. Atualmente a logística pôde elevar-se a um grau superior de abstração porque se apoia em múltiplos valores respondendo, deste modo, à matemática intuicionista de Brouwer, que distingue o verdadeiro, o absurdo e o falso, ou de Heyting, que distingue o falso, o verdadeiro e o indeciso. A Lógica tornou-se numa ciência útil no campo das probabilidades, como diz Robert Blanché. A Lógica não se dedicou só ao estudo das operações e às leis do raciocínio, como tornou possível ao Homem pensar e comunicar de um modo idealizado e calculado. Razão e Sonho passaram a fazer parte desta síntese infinita. Citando René Descartes, “a intuição é um ato puro do espírito e a evidência é o que é certo e indiscutível”. Estas ideias têm estado nas leis do conhecimento e da conduta e, conjuntamente com outras, despertam quem as cultiva para a convicção de que podem ser contadas estas histórias e explicados estes conhecimentos e que os mais novos sentirão a mesma emoção e ganharão força para as conhecer e descobrir outras.

   Numa lógica com um sentido natural e humano seria assim que aconteceria, não seria uma repetição, mas seria uma caminhada normal pela juventude dos elementos e pela maturidade da civilização do conhecimento. O problema é que em sistemas de pensamento binário não haverá lugar para o sonho, para os limites da liberdade pura.

   Volto a lembrar o nosso tempo de meninos: na idade das perguntas não nos cansamos de perguntar por tudo o que nos fascina. – O que é o Mundo? – É uma bola enorme – responderão os nossos pais. Ficamos a falar sozinhos… “a minha bola tem a forma do mundo”. Gostava de ver o tamanho do Mundo, interrogamo-nos afirmativamente.

   Se nos apercebermos bem deste diálogo, constatamos que o nosso pensamento vai acrescentando algo de muito maravilhoso aos fatores que entram em jogo nos nossos pensamentos. Se não, vejamos: – O que é o Mundo? – uma pergunta metafísica por um ilimitado real. É uma bola enorme, uma resposta física de volume ilimitado. A minha bola tem a forma do Mundo, uma afirmação de semelhança que me leva a gostar mais da minha bola porque tem semelhança, e eu posso brincar com ambos. Gostava de ver o tamanho do mundo, uma afirmação da vontade por via da força que começa a nascer em nós, um pensamento para sonharmos com o Mundo.

   Servi-me desta abordagem lógica para mostrar a todos vós que o nosso crescimento e desenvolvimento têm seguido uma ordem natural e que a nossa educação tende a acompanhar essa ordem. Não estão em causa, na minha análise, os fatores sociais mais preponderantes em cada época ou os objetivos políticos dos poderes reinantes. Não vêm a propósito para o que pretendo descobrir com todos vós. É uma questão de raiz e que tem a ver com o ser e com a razão que aqui me traz. A ordem natural que seguimos é evolutiva e crescente, cheia de novidades e alterações. É formada por sistemas dinâmicos não redutores e regenerativos quanto baste. Atua na temporalidade, modifica-se na forma, cresce nos elementos; responde com base nas leis e por força da correspondência das mesmas. Pode dizer-se que a Ordem Natural cultiva o que necessita, transforma para o que quer e muda conforme o tempo, engendrando nestes movimentos a vontade natural e animação dessa vontade.

   A Educação do Homem e o seu desenvolvimento têm seguido esta ordem, mas na atualidade estão a enfraquecer-se e a estabilizar-se numa grande insensibilidade e perda de força de vontade.

   Uma das ideias ou razões que me parecem ser responsáveis tem sido cultivada pela crença num individualismo social muito marcado pela posição de que quem não é por nós é contra nós. É um pensamento binário que traz consequências muito preocupantes, pois não basta desejar que sejam por nós, é necessário querer e fazer por isso, isto é, ser em nós com todos os outros. Esta ideia assim redutora de “quem não é por nós é contra nós” também terá uma intenção afirmativa que não deixará de ter a sua importância, pois também é preciso contrariar as intenções destrutivas, mas só do ponto de vista da crença de que o caminho que percorremos tem uma certa identidade e necessita de não ser desvirtuado, nunca a sua importância pode ser colocada num sentido redutor ou global de um qualquer pensamento, pois quem não é por nós dever-se-á procurar pelo menos que seja em nós. Não vivemos de costas voltadas, vivemos de frente com as características e ideais que marcam as nossas diferenças na singularidade e constituem a unidade comum que revela o Homem na caminhada do seu tempo e na diversidade da sua revelação. Quando constatamos que cada vez mais nos estamos a fechar em pensamentos que não têm característica, que perderam a forma e a sua origem, não têm identidade, somos forçados a concluir que estamos a cair em sentimentos de aflição e a nossa garantia a revelar-se no totalitarismo do grupo. Também isto não seria muito perigoso se fosse visível, porque a força humana facilmente o diluiria e o afastaria do centro da sua força. O problema é aflitivo e exige que pensemos nele porque estamos a cair numa força social fechada em sentimentos que são expressão de um inconsciente irracional ditado pelas forças que não comandamos e nem a natureza pode facilmente orientar e regular. O inconsciente social é baseado na comunidade que é a sua raiz e os seus valores a sua regulação. O Homem imita o natural e regula a sua ordem por meio da sua vontade e da sua razão. Quando necessita de evoluir, acontece por força da ordem natural e ganha forma por força do pensamento humano. Se há excessos, há ruturas ou arranjos, mas o progresso não se centra no aleatório. Do que se verifica atualmente, é que o progresso acontece por força dos ditames de uma qualquer circunstância e, se surgir uma deformação, releva-se e torna-se válida para manter aquela que é a necessidade que de forma aleatória acabou por surgir.

   Todos sabemos, muito embora seja uma das provas da ciência Física, que qualquer sistema abandonado em si mesmo, isto é, dinamizado pela sua própria força, perde identidade e tende para a desordem. O sistema social não escapa a esta regra natural que consiste em manter na identidade os seus elementos e vitalizar as suas forças para um encontro numa Ordem que cresce e se autorregula na base da integração de todos os elementos que a compõem. Se um qualquer sistema social for centrado no aleatório, cairemos na indiferença porque vivemos num regime social baseado na Democracia. Por outro lado, nunca uma ordem social que não seja constitutiva potencialmente de acentuação para o universalismo poderá regular e dirigir seja o que for. Logo, o sistema distenderá as suas partes para a busca do sentido regular e, como não tem a que se agarrar, deixa romper por dentro de si a negação do que é vital e positivo. O aleatório ganhará expressão e atividade em qualquer realidade que naturalmente será negativa porque é excessiva em relação às possibilidades que a limita.

   Outra das ideias que me parece responsável por esta ordem de graves problemas no futuro é o modo como se experimenta a ideia de ideologia política; ou seja, a ideia que fundamenta qualquer sistema particular de pensamento político. Quem reflete nas conceções atuais de modelos ideológicos de pensamento verifica que cada um deles está justaposto sobre todos; ou seja, cada um deles, quando é chamado a apresentar as suas intenções como intérprete de uma certa força e ordem social, não consegue fazê-lo porque traz atrás de si, não a sua ordem natural ideológica concreta, mas a ordem social que lhe sucedeu por força da sua colocação na posição que a ideologia social abstrata a foi remetendo. As ideias são as que forem do interesse e não prioritariamente as que garantirem os sonhos da ideologia natural do Homem. Todos nós sabemos que não se iluminará um estádio só com um projetor, mas todos sabem também que no conjunto dos projetores há um que é determinante na ordem de força e de chamada e que é comum a todos os outros e que todos são comuns a este. Logo, formam um sistema que não será abandonado em si mesmo, que permitirá a rotatividade e tem aberturas para todos. Sozinho não resolve o problema, mas no conjunto dá significado aos outros e ganha por força de ordem a localização do sinal e a distinção de funções.

   Uma terceira ideia, que reputo de responsável por esta crise que me parece vir a ser altamente perigosa para a nossa vida, prende-se com as características que deve ter aquele que é chamado pela sociedade para dirigir. Num regime social universal, o poder de participar é geral e a capacidade de escolha pressuporá esta mesma ordem. Assim, será com todos que se governa e através de todos que se é governado. Para o exercício de funções diretivas no poder social executivo ou legislativo, escolher-se-ão entre todos os que por vontade, por capacidades e aprovação vierem a ser reconhecidos com mérito. De qualquer modo, num regime social universal baseado na Democracia, todos serão chamados às responsabilidades da governação e todos serão potencialmente “escolhíveis”.

   Nos nossos dias o totalitarismo do grupo caiu também no aleatório das escolhas e, como sistema interpares, começou a negar o universalismo dos seus elementos e a força da sua ordem na escolha para cargos de responsabilidade começou a situar-se no imprevisto e no acaso. Logo, são chamados não alguns para todos, mas alguns para alguns. O todo social político passou a ser aleatório na sua forma, porque os conteúdos de pensamento são de alguns só para alguns. Em conclusão, diz a lei que o que não tiver que ser naturalmente adquirido pelo aleatório, há de resultar em consequências negativas e de perigo para a vida do homem. Por isso, a situação atual é de profunda rejeição pela cultura universalista, e uma grande parte dos seres humanos está a caminhar às escuras sobre a confiança no mérito social e na força de todos.

   Voltemos de novo ao nosso sentimento de meninos: Quando brincávamos uns com os outros, no encontro de todos, nascia a força para nos lembrarmos uns dos outros. Fôssemos de um grupo ou de outro, no jogo de cada um nascia a vontade de ser melhor e ser mais reconhecido. Mas tanto valia ser pobre como rico, no jogo era melhor quem jogasse mais e melhor. Na amizade era comum o sentimento de convívio e só a algazarra da vitória poderia ser diferente e a ordem ser de alternativa.

   De qualquer forma, o que ficava quando chegava a hora de regressar a casa e de nos separarmos, até ao dia seguinte, era o sonho e a satisfação ou um certo desencanto e a vontade de mudar.

   Em todos ficava o desejo de ser melhor no outro dia, ser apto para ser escolhido, desejar ser o ganhador, mas não como na atualidade e como o que acontece a todos nós, conscientes ou inconscientes disso. Em que o Teatro está a ficar vazio de público, os atores já estão previamente escolhidos e as peças a representar não têm origem, são feitas para a ocasião e para desejo apenas de alguns que são como os outros, mas não como todos.

   Quando eu era pequenino, ouvia os meus pais dizer: “Cresce e aprende, meu filho, para que sejas um homem de amanhã”, para que sejas alguém que a história fale de ti com alguma surpresa, mas sem vergonha. Para que sejas como nós, e, se fores mais rico, te lembres de todos e, em especial, “daqueles” que foram o exemplo para enriqueceres honrado como Deus quer. Quando eu era pequenino, eu sonhei, como todos vós, com um mundo onde eu sonhava e podia continuar a sonhar porque a cultura do sonho nascia na nossa vontade e era plantada em todos com a mesma semente.

   Mal sabíamos o que era a liberdade e, do lado em que viéssemos a ficar, a força de sonhar era mais forte que o sonho porque nascia por dentro de nós, tinha uma raiz comum e a força que se espalhava era combativa e contrária, mas não caía em qualquer terreno nem em corações despedaçados por descrença no gosto de viver, ser forte e viver para sonhar. Lembro-me de me dizerem, quando eu era pequenino, que se estudares, se aprenderes, se trabalhares, tu irás longe, tu serás alguém…

   Hoje, sinto-me um garimpeiro, mas também um poeta fraternal que à luz da filosofia da vida do pensamento de todos, vos propõe que mudemos algumas regras, para que haja sempre razões plurais e destinos para a luz de todos os sonhos.